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segunda-feira, 19 de novembro de 2018

René Bertholo no Hospital do Barreiro


Obras de René Bertholo no Hospital do Barreiro (Centro Hospitalar Barreiro Montijo, EP) a precisar de restauro, instaladas em jardins interiores. Datam de 1983 e sucedem-se a outras criações de arte pública realizadas em França. São em betão armado colorido e resistiram bastante bem ao tempo, ao livre, em pátios fechados junto a zonas de circulação de visitantes.

Esc5_76 1º pátio
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Esc5_764º pátio com peças obras
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Dizia o René numa entrevista que lhe fiz em 1984:

" Tive também vontade de fazer uma pintura que fosse compreendida pelo maior número de pessoas, sem ser popular propriamente. Só me transporto para um campo quase totalmente popular quando faço coisas para a arquitectura. (...)
Quando faço uma coisa para um edifício público, acho que quem vai ver aquilo são pessoas, não direi simples, mas que não têm cultura pictural, e portanto restrinjo-me voluntariamente a um vocabulário mais acessível a toda a gente. Ponho menos elementos que não se sabe o que são, mas ponho sempre alguns.
(...)
Aí, no Hospital, é a "démarche" extrema daquilo que eu procuro. Sei que uma pessoa que não sabe ler não terá um acesso total ao que faço quando pinto um quadro. Mas penso que apesar de tudo vai encontrar uma data de elementos que reconhece, que lhe dizem qualquer coisa, e o facto de encontrar um certo número de coisas que não reconhece, ou não sabe o que é, pode não estorvar uma leitura pessoal do quadro.
Para mim as formas são "containers" (contentores): permitem um certo número de conteúdos, mas não todos. Quando uma pessoa vê um quadro faz forçosamente uma interpretação pessoal que até a pode ajudar às vezes na compreensão de si próprio, e isso parece-me que é o máximo, em todo o caso é o máximo que eu posso pretender,
E um pouco como o 'I King', um livro de adivinhação chinês, anterior à Bíblia, onde se contam histórias que se lêem ao acaso, e cujos elementos têm a função de fazer subir ao consciente o que está no inconsciente. Gostaria que os meus quadros tivessem essa função. "

entrevista publicada a 14-04-1994 no Expresso: "Num quadro há milhões de histórias"

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No hospital existem duas outras obras de "arte pública", de Carlos Calvet (pintura) e Artur Rosa (escultura - autoria a confirmar):

IMG_0095Os vasos defendem uma parte do painel que está um pouco danificado. Julgo que se trata de pintura sobre tela colada em madeira.
O munumento "op", em ferro, está prejudicado pela ferrugem, mas resiste...
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sábado, 10 de novembro de 2018

João Francisco na 111, "Mille-Fleurs", 2018

Em torno das tapeçarias mille fleurs, caracterizadas pelo fundo preenchido por vegetação, produzidas no norte da França e na Flandres entre o fim da Idade Média e o início do Renascimento...

E cenas de naufrágios e refugiados, que têm a ver com notícias e imagens de travessias do Mediterrâneo - e o pintor inclui-se como retrato nessas cenas

Parte de um mail pessoal do João Francisco, e depois a folha de sala


Da natureza-morta à Pintura de história 

Dez anos depois da 1ª exposição, já na 111, o João Francisco conserva algumas características centrais do seu trabalho: a natureza-morta, pintura e desenho de observação diante de modelos (são paisagens) que constrói, a partir de uma prática de recolector - coleccionador. E essa prática da natureza-morta é também comentário ou releitura da história da arte, com extensão às referências literárias. É uma produção erudita mas que se vê (também) como prática brincada, às vezes próxima da banda desenhada pelo grafismo das formas e perspectivas. 

Aos actuais desastres e naufrágios mediterrânicos podem associar-se as anteriores paisagens marítimas do João Francisco que já eram trágico-marítimas ("Atlântida" e "Tempestade em Trouville - para E. Boudin", ambos de 2008) e também, de outro modo, as Ondas e Objectos flutuantes de uma exposição de 2014, e ainda a instalação "Sem título - trazido pelo mar para Joseph Cornell", de 2005/2012. Tudo se prolonga e reactualiza com novas referências e circunstâncias. Entretanto - mutação muito significativa, que deixa abertos novos passos -, a observação pode ser também imaginação, a natureza-morta acolhe o retrato do natural, usando o espelho e já não a imagem prévia.

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Transcrevo um mail do João Francisco sobre a exposição "Mille-fleurs" que hoje (10 de Novembro) chega ao fim.

"Eu não sei se posso dizer que o tema dos refugiados e dos naufrágios seja o principal ou o único da exposição [ não, não é o único, talvez não seja o principal, mas é aquele que mais intensamente atinge o observador, logo no espaço inicial da exposição, quando se começa a identificar a presença dos migrantes e dos mortos do Mediterrâneo; não é rápida essa identificação, ela é elidida pelo autor e talvez a evitemos, porque a arte não trata dessas coisas... Só mais tarde, ao tentar escrever sobre a exposição, o assunto se me tornou evidente, irrecusável.] O ponto de partida foram de facto as tapeçarias mille-fleurs, que realmente admiro e que me intrigam. A vontade de fazer algo a partir delas era já antiga. E o painel grande com as flores e os animais mortos foi o que inicialmente surgiu dessa referência (e que nesse sentido talvez se possa dizer que a ela mais esteja preso).
As outras pinturas da exposição surgiram autónomas a esta peça maior mas mantendo, para mim, esta procedência:
- por um lado na série mille-fleurs (as colagens sobre os desenhos de bordados reutilizados) onde se joga com a ideia de "cartão", ou seja, de algo que está a meio caminho entre a ideia e um outro objecto final a realizar, e onde sigo mais ou menos o aparato das tapeçarias referidas: um motivo central rodeado de elementos pequenos, mais ou menos parecidos, no que vejo também uma ironia com a repetição tão cara ao minimalismo. Interessou-me explorar a relação entre o que eu pintei e os elementos já existentes nas páginas encontradas, essa conversa entre o novo e o antigo, a passagem do tempo também, no fundo. Tudo isto tendo em conta a ironia e o anacronismo que consiste em falar hoje de uma forma de arte completamente morta e especifica como é a da tapeçaria. (que acresce também ao facto de ser já eu um pintor de "naturezas mortas" , um género "menor");
- e por outro nas pinturas a acrílico mais pequenas ("as paisagens"), que exploram temas que poderiam também ser motivos para tapeçarias (substituindo-se às cenas épicas de batalhas, mitologias, paisagens mais ou menos exóticas).
Tendo dito isto, o tema dos refugiados e dos naufrágios tornou-se bastante importante, aparecendo várias vezes, bem como pela primeira vez a inclusão de corpos, ou fragmentos deles (quase sempre o meu) , que interagem com os objectos estáticos da natureza morta, ou que parecem fazer um comentário à "acção".

É também como diz, senti que era um assunto delicado e melindroso, em relação ao qual tive muitas dúvidas durante o processo - se devia ou podia ser explorado - , e que achei melhor não nomear (embora o tenha feito indirectamente nos títulos: " o náufrago", "figura a observar um naufrágio", "no mediterrâneo", "sob as ondas").
Agrada-me também, como lhe disse, esse desafio de deixar, dando algumas pistas, que o espectador entre no jogo, em vez de explicar e dissecar por completo as imagens (prefiro que elas interpelem o espectador, que criem um diálogo). Interessa-me no fundo que as imagens vivam por si e sejam eficazes, e que não sejam meras ilustrações de uma ideia inicial ou literária. E daí as pinturas evocarem o drama dos naufrágios sem reproduzirem ou partirem das imagens deles com que somos regularmente confrontados (a construção no atelier destas amálgamas de corpos e ondas, em substituição dos reais, acaba por não me parecer menos trágica e inquietante). São no fundo coisas muito fora de moda e nada contemporâneas: símbolos, alegorias. Um pouco como as estátuas dos "duplos" do antigo Egipto.
Mais do que o drama específico no Mediterrâneo talvez seja a morte, e o tempo, um dos fios condutores da exposição. Ela aparece em algumas das paisagens (as paisagens onde surgem caveiras aludem às fantásticas imagens, maioritariamente medievais/renascentistas, do juízo final, onde o inferno é mostrado muitas vezes como um monstro de enorme boca aberta por onde entram as pobres almas condenadas....); no "Lázaro", que estando morto volta à vida; nas velas, acesas ou apagadas; nas flores, frescas ou murchas, reais ou artificiais; no Mársias, esfolado vivo como castigo; no próprio painel "mille-fleurs", no diálogo entre os animais mortos e as flores aparentemente vivas (ainda, mas isso é um jogo antigo da pintura de naturezas-mortas....).
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Sem título - mille-fleurs (1. pinceladas numa paisagem/ 2. Lázaro / 3. as pinceladas flutuantes / 4. debaixo das ondas), 2018

E leia-se a "folha de sala" escrita pelo João Francisco:

mille-fleurs
O assunto que talvez possa agregar o conjunto de pinturas recentes que aqui se apresentam é o da paisagem. Apesar de serem assumidamente naturezas-mortas, na medida em que consistem em objectos reais, dispostos e observados, estas imagens olham para o exterior, lá para fora. Falam de montanhas e desertos, do mar e de florestas, de ruínas, de jardins. Olham também através deles para o interior (não serão as paisagens aí ainda mais perigosas e sombrias?).
O título da exposição e muitas das peças apresentadas partem de um tema que importa explicar: mille-fleurs ou mil flores. É o termo utilizado para agrupar um conjunto de tapeçarias produzidas no norte da França e na Flandres sensivelmente entre o final da Idade Média e o início do Renascimento. O que as torna num grupo específico é o uso que fazem, de forma repetitiva e obsessiva, da representação de flores e plantas que, rodeando por completo os elementos em destaque (que podem ir de damas com unicórnios a caçadores, personagens galantes ou mitológicas), criam um espaço mais mítico que natural, mais caracterizado por uma exuberância decorativa que pela sugestão de uma paisagem real onde as figuras se inserem. Estas representações de flora, a que muitas vezes é também adicionada a presença de pequenos animais, são no entanto extremamente fiéis: são reconhecíveis com facilidade as espécies de planta selvagens e de cultivo doméstico, o que anuncia a cultura humanista e científica do Renascimento.

Realizado ao longo de vários meses o vasto conjunto de pequenas pinturas mille-fleurs pode ser entendido simultaneamente como memória desse tempo que passa, e como retrato de um espaço específico, de um jardim, registando e mostrando o que lá cresceu e morreu. Assimilando a estrutura formal das referidas tapeçarias em que as plantas se encadeiam de forma regular criando como que uma grelha, esta peça é uma afirmação do fascínio que a natureza, por mais remota ou doméstica, real ou mítica que seja, continua a realizar.
A descoberta fortuita de um conjunto numeroso de esquissos utilizados para bordar despoletou outro conjunto de peças: nessa memória ou fantasma dos desenhos que foram passados para um outro suporte têxtil, reconheci a dos “cartões” das tapeçarias, modelos em tamanho real do que iria ser tecido e que, devido à constante e violenta utilização, raramente sobreviveram (e de que os cartões para os Actos dos apóstolos de Rafael são uma notável excepção). Criando um fundo relativamente homogéneo a colagem destes desenhos, todos referentes com graus diversos de realismo e estilização a plantas, permitiu a construção de um campo onde a pintura acontece. É neste jogo entre o que se oculta e o que permanece visível que estas páginas encontram sentido.
Falando das paisagens em si talvez as vejamos como pessimistas e escuras. Por vezes inquietantes e inóspitas. Possivelmente também irónicas ou ridículas. Talvez tenham de ser assim. Fazendo minhas as palavras de Bernard: (...) e saí para a rua sozinho, de impermeável vestido, e as montanhas eternas fizeram-me sentir enjoado e nada sublime (Virginia Woolf, As Ondas)."

Se o João Francisco fosse um candidato a artista minimal-conceptual diria, ele ou algum curador por ele, que "reflecte sobre"... Mas ele não diz, nem sugere, pelo contrário, entrega-nos à nossa eventual vontade de atenção / interpretação ou à nossa cegueira. Quem pensará que uma obra de arte aborda (trata de..., tem por tema) assuntos sérios, e não é só a apropriação indiferente de uma imagem mediática ou um 'mero' exercício auto-referencial, dedicado à ideia de arte e à tradição da sucessão de formas (novas?), referido à 'soberania' da arte e ao 'Mundo da Arte' (como se lê com maíuscula e aparente convicção à entrada do ex-CAM, actual Museu Gulbenkian - "Anos 2000", dizem eles).

O João Francisco não explica sobre (o) que 'reflecte'; pelo contrário, vai apontando para outras pistas, que teremos de seguir antes e depois de descobrirmos o assunto mais forte das suas obras recentes.
Ele não refere os retratos e auto-retratos que lá estão; não sinaliza as 'vanitas' (variedade de naturezas-mortas que nos confrontam com a morte); não fala de pintura de história, que já não se povoa de mitologias e realezas mas se enfrenta ao quotidiano, à política, à história em que vivemos.
Alguém terá já tratado em pintura os dramas dos migrantes e refugiados africanos que se afundam no Mediterrâneo? É o que faz o João Francisco. E é muito forte.

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IMG_9366 Sem título - nas ondas / um náufrago / a torrente, 2008


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"Sem título - Tempestade em Trouville - para E. Boudin", 2008, óleo sobre tela, 160 x 180 cm.
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