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sábado, 8 de maio de 1999

1999 Encontros de Braga: Louis Faurer, Claudia Andujar, John Max, Virxilio Vieitez. Martin Parr. "Retrato do Século"

 "Encontros e descobertas" 

Expresso 08-05-99

ENCONTROS DA IMAGEM

13ºs Encontros da Imagem, Vários locais, Braga, Guimarães e Famalicão (Até dia 30)


 TEM havido, em Braga, anos melhores e anos piores, mas esta 13ª edição dos Encontros da Imagem será seguramente a mais forte de sempre. Quatro nomes bastam – os de Louis Faurer, Claudia Andujar, John Max, Virxilio Vieitez – para assegurar a importância do programa: os dois primeiros são grandes fotógrafos pouco conhecidos ou pouco vistos, John Max é um canadiano que esteve esquecido, Vieitez é um galego recentemente descoberto.


 Várias outras exposições incluídas numa programação extensa e diversificada (descentralizada por Guimarães e Famalicão) merecem igualmente ser destacadas: a participação de Martin Parr entre quatro fotógrafos convidados a trabalhar em Braga; a exposição «O Estado do Tempo», original revisão do séc. XX português até ao 25 de Abril, através de uma pesquisa por vários arquivos fotojornalísticos; a apresentação do madrileno Alberto García-Alix no recém-inaugurado Museu da Imagem; a retrospectiva de Gabor Szilasi, outro canadiano. Entretanto, sem que com estes nomes se esgotem os motivos de interesse, fica claro por esta selecção que os Encontros não conseguiram ainda ser uma plataforma de divulgação e de afirmação da fotografia portuguesa: a Braga acorrem os responsáveis por numerosos festivais internacionais (de onde vêm, em geral, as mostras apresentadas), mas não há um esforço sério para propor fotógrafos nacionais para a troca.


 


Claudia Andujar, Índio Yanomami, 1977 (no Mosteiro de Tibães)


 

 Louis Faurer (mostrado na Casa dos Crivos) é um norte-americano nascido em 1916, de pais polacos, que os Encontros de Coimbra já tinham incluído brevemente, em 95, numa mostra colectiva sobre os «fotógrafos de rua» dos anos 40 e 50 em Nova Iorque. Algumas dezenas de reimpressões recentes, vindas da Galeria Howard Greenberg, mostram-no como um dos maiores desses fotógrafos, à altura de Robert Frank, com quem se encontrou logo em 1947, nos estúdios do «Harper's Bazar» dirigidos por Alexei Bogdanovitch, e de quem se tornou amigo e foi colega de laboratório.


 A sua obra iniciara-se em 1937, nas ruas de Filadélfia, desde logo sensível às figuras anónimas e desencantados que povoam as franjas da sociedade de consumo que então despontava, mas tornou-se mais rara a partir de 52, talvez por dificuldade de a conciliar com o trabalho profissional na área da moda, ou porque o clima político se tornara hostil aos olhares mais cépticos sobre os caminhos da «american way of life» (recorde-se que The Americans foi primeiro editado na Europa). Presente em «In and Out of Focus», organizada por Steichen no MoMA, em 48, e ainda em «The Family of Man», em 55, foi pouco publicado nesses anos; só a partir de 1977, graças a sucessivas bolsas, é que Louis Faurer passou a dedicar-se à reimpressão dos antigos trabalhos, que se foram descobrindo em várias exposições.


 Interessavam-lhe os vultos singulares dos transeuntes e as sombras da noite recortadas pelos reflexos das montras e dos automóveis, enquanto as solidões que se perdiam no ritmo frenético da cidade encontravam no seu olhar uma atenção cúmplice. Louis Faurer fotografava «à luz hipnótica do crepúsculo» (são palavras suas) a aceleração e a energia que se apossava do espaço urbano, em imagens duras e fraternas que reflectem a crescente inquietação da vida citadina.


 



Louis Faurer, «Rua 42, Nova Iorque, 1948» (Casa dos Crivos, Braga)


 

 Os fotógrafos de Nova Iorque descobriam então a nova estética da grande cidade com o poder revelador dos seus olhares fugitivos, trocando o rigor estático dos anteriores documentos pela velocidade da imagem insegura de um pequeno aparelho furtivamente levado na mão. Nas suas fotografias abundam os letreiros e painéis da publicidade luminosa (Faurer começara por ser pintor de tabuletas), os cromados dos automóveis, as «colagens» construídas pela sobreposição dos reflexos nas montras, imprimindo a alguns rostos estranhas metamorfoses. Robert Frank iria então definir um projecto mais político e depois voltou-se para a autobiografia; Faurer testemunhava os tempos de mudança com um olhar magoado que recusava a sátira sem nunca se tornar complacente.


 Da selva urbana pode passar-se ao coração da última das florestas, mas não se encontrará nas fotografias de Claudia Andujar a mitificação de qualquer paraíso perdido. Na única exposição albergada no Mosteiro de Tibães (devido às obras de recuperação em curso), exibe-se uma vasta síntese recente de um trabalho que se desenvolveu desde os anos 70 entre os índios Yanomami, prolongando sempre a fotografia com o activismo em defesa de um povo ameaçado de genocídio, cujo território só foi demarcado em 1992.


 A dimensão documental, que foi a base de anteriores exposições e livros, adquire aqui o carácter intimista de quem revê o que foi a implicação de uma vida, como se se tratasse de uma viagem iniciática: «Foi através da imagem do Outro que cheguei a conhecer-me», diz a fotógrafa. A informação etnográfica sobre a cultura indígena, embora não deixe de estar presente num trabalho que partiu do registo exaustivo do seu quotidiano, parece dar lugar à memória pessoal e à experiência da comunhão com uma outra realidade e concepção do mundo, preservada na sua diferença radical como algo que não é possível decifrar inteiramente, enquanto mero objecto antropológico, e que também não deve ser subjugado por uma abordagem esteticista ou pela atracção do exotismo.


 



John Max, sem título (Paço dos Duques, Guimarães)


 

 Nascida na Suíça em 1931, educada na Hungria e nos Estados Unidos, radicada no Brasil desde 1957 e naturalizada brasileira, oriunda de uma família judia desaparecida nos campos de concentração, Claudia Andujar anula a distância de um observador neutral para mergulhar no mundo dos Yanomami, partilhando em imagens de um preto e branco muito contrastado, misteriosamente iluminado (e em muitos casos manipulado a partir dos diapositivos de cor), as sombras da floresta, os fantasmas dos seus rituais mais secretos e também as ameaças que cercam este povo.


 Regresso à cidade. Periferia da grande metrópole. John Max (exposto nos Paços dos Duques, em Guimarães, a par de Gabor Szilasi) é um fotógrafo de Montreal, nascido em 1936 de pais ucranianos, que caíra quase no esquecimento depois de ter exposto e publicado Open Passport em 1972-73. Tinha começado a fotografar nos anos 50 nos meios «underground» e era marginal aos projectos documentais que então interrogavam a identidade do Canadá. Em 1997 voltaram a expor-se algumas dessas imagens e o Museu de Charleroi (Bélgica) ampliou a selecção para as trazer à Europa. Radicalmente subjectiva e autobiográfica, centrada na presença dos amigos e familiares, a obra de John Max expõe-se sem quaisquer datas ou referências, embora se reconheçam os retratos de Robert Frank, Frank Zappa e Leonard Cohen.


 Paralelo à deriva intimista de Frank, menos narcísico e sem montagens nem inscrições escritas, este trabalho poderá ver-se como antecessor da vaga recente das narrativas confidenciais, mas fica a grande distância do que nestas é banalização e irrelevância da exibição da privacidade. As suas fotografias são secretas deambulações pelos rostos das pessoas e os corpos das mulheres, fragmentos de paisagens habitadas ou de espaços domésticos, possíveis momentos de viagem, como um inventário de encontros fulgurantes e precários, sempre de composição instável e recortadas por negros profundos, mas sem nunca se fixarem numa regra ou num estilo. São imagens que tanto podem associar-se numa sequência de retratos, como exibir-se num painel heteróclito ou mostrar-se isoladamente, que se reconhecerão como totalmente privadas e indecifráveis, sem que a falta de um código as torne por isso inacessíveis ou indiferentes, oferecendo-se com uma constante intensidade explosiva.


 


Virxilio Vieitez, retrato (Fundação Cupertino de Miranda, Famalicão)


 

 Virxilio Vieitez (Fundação Cupertino de Miranda, Famalicão) é um fotógrafo popular galego descoberto na Fotobienal de Vigo em 98 e logo levado à galeria da agência Vu, em Paris, por Christian Caujolle, e aí acolhido com páginas inteiras dos jornais. Nasceu em 1930 em Soutelo de Montes, entre Pontevedra e Ourense, começou a fotografar num estúdio da Catalunha e estabeleceu-se na sua terra em meados dos anos 50, trabalhando como profissional de retratos durante três décadas. Em 97, Keta Vieitez, fotógrafa e filha, fez-lhe a primeira exposição, na sua aldeia, e é agora a sua impressora.


 Pouco interessado na imobilidade do estúdio, preferia trabalhar em exteriores e percorreu de Lambretta e depois de carro as aldeias da região (com incursões em Portugal, lembra-se o fotógrafo). Para além dos retratos «tipo passe» que agora se mostram ampliados, para os quais usava o sol e um fundo de pano branco (são os primeiros tempos da obrigatoriedade dos bilhetes de identidade), as fotografias destinadas aos parentes emigrados são parte essencial da sua actividade, incluindo casamentos, comunhões e funerais, estes para efeitos de partilhas. Trabalhava com composições frontais, dispondo com autoridade os modelos entre a vegetação ou junto dos grandes automóveis dos emigrantes, e outras vezes ainda no cemitério; a solenidade da ocasião impunha os melhores fatos e uma imensa gravidade nos olhos das crianças.


 O espólio poderia ser apenas um grande inventário de fisionomias e grupos populares, mas Vieitez é um grande fotógrafo, aplicado e original, com um extraordinário sentido da pose, dos olhares e da construção do espaço, cuja obra se encontra espontaneamente com August Sander ou Diane Arbus, e também com a serena estranheza de Meatyard, para lá da proximidade com os retratistas africanos revelados em anos recentes. Caujolle cita ainda Paul Strand, W. Evans, Dorothea Lange, Penn e Avedon.



 

Martin Parr, Braga («Memórias da Cidade», Museu dos Biscainhos)


 

 «Memória da Cidade» reúne no Museu dos Biscainhos quatro encomendas sobre Braga passadas a Martin Parr, José Manuel Rodrigues, Olívia Silva e Frédéric Bellay. Este, conhecido dos Encontros de Coimbra, refaz um levantamento topográfico e arquitectónico da cidade em transformação, com imagens geometrizadas e despojadas pela luz da noite. Olívia Silva prolonga o seu projecto de trabalho sobre o retrato de vendedores de mercados, usando a cor num estúdio improvisado e também a divertida cumplicidade dos seus modelos, com novas modalidades de instalação. Em José M. Rodrigues, a descoberta sensível da cidade é também o encontro consigo mesmo e com os temas que circulam noutras imagens de diferentes lugares – vejam-se a estufa arruinada (a construção humana que o tempo vai devorando) ou o auto-retrato diante da fonte (onde a água sai dos olhos de um rosto de pedra que a sombra da sua mão acaricia). Notem-se também as curiosas coincidências com Martin Parr, na imagem do talho com o borrego pendurado e no encontro com o fotógrafo ambulante.


 Quanto ao fotógrafo inglês que revolucionou <... confrontou> a tradição da Magnum, de quem os Encontros já tinham mostrado selecções de fotografias de The Last Resort (de 1986) e The Cost of Living (89), as suas imagens de Braga estão entre as mais fortes que se apresentam nesta edição, arruinando as «linguagens contemporâneas» que se mostram no Museu D. Diogo de Sousa. Como nas suas fotografias recentes (West Bay, de 97, exposto na Gal. Palmira Suso, ou Common Sense, já de 99), Parr volta a fazer um uso prodigioso das cores saturadas, do flash e da desfocagem selectiva, com a qual isola pormenores e os faz dialogar com os planos gerais deixados imprecisos. Neste caso, o teor crítico que é usual nas suas imagens, particularmente interessadas em denunciar a globalização massificadora do consumismo, dá lugar a uma observação mais serena e muito menos cáustica, marcada por uma evidente atenção ao lugar – é um trabalho muito diferente do exercício de um estilo adquirido, como é habitual neste tipo de encomendas. Ninguém viu assim os puxos entrançados das mulheres – ou as carecas dos homens – nas ruas de Braga, nem surpreendeu aqueles sábios diálogos entre humanos e animais (nas imagens do galo e do borrego esfolado).


2


Retrato do século 

Expresso 15-05-99

O ESTADO DO TEMPO

Encontros da Imagem — Fábrica Confiança, Braga (Até dia 30)

 ESTA exposição não se extinguirá com o termo da 13ª edição dos Encontros da Imagem e deveria partir de Braga para uma demorada circulação pelo país. É um retrato caleidoscópico de Portugal ao longo do século XX (o primeiro integralmente coberto pela fotografia), ainda que a mostra se encerre em 1974, com uma imagem única do 25 de Abril.

 É uma gritante chamada de atenção para a enorme riqueza desconhecida que se deposita nos arquivos fotográficos nacionais e um alerta para o trabalho de investigação e divulgação que está quase inteiramente por fazer. E é também um manifesto acerca da fotografia (da arte da fotografia), mostrando como o respectivo universo é igualmente o das imagens funcionais, anónimas e vernaculares, realizadas com fins práticos (no caso, a Imprensa) por artesãos dedicados que não tiveram por primeiro objectivo fazer arte ou declararem-se artistas.


 


Encerramento do Parlamento em 31 de Maio de 1926 (Arquivo do «Diário de Notícias»)


 

Durante cerca de dez meses, Rui Prata (um dos dois directores dos Encontros de Braga) e Manuel Miranda (que foi um dos fundadores dos Encontros de Coimbra) seleccionaram em alguns arquivos fotográficos - em geral, a partir dos ficheiros de provas de contacto - as imagens que pudessem sumariar o curso da história portuguesa ao longo de três quartos do século, período a que corresponde o início e a generalização da imagem fotográfica publicada na imprensa de massas (até que se libertasse a concorrência da televisão). Fugiram «à pura ilustração dos grandes eventos, à imagem institucionalizada dos regimes políticos e da sua entronização cerimonial», trocando a cronologia dos acontecimentos e das figuras oficiais por imagens que concedessem «a máxima visibilidade aos modelos comportamentais, aos sentimentos e emoções, aos valores e estados de ânimo colectivos, captados pela fotografia», como avisa Manuel Miranda na introdução ao catálogo.


 É, naturalmente, uma escolha guiada pela história, mas também, com proveito suplementar, pela procura das «fotografias com alguma expressão», ou seja, conduzida por um critério informado pela cultura fotográfica e, por isso mesmo, atento à originalidade do olhar ou à sensibilidade do fotógrafo (um autor, mesmo que seja em geral anónimo e não se reconheça como artista), alguém que soube acrescentar à banalização dos testemunhos mecanicamente registados a eventual curiosidade por um tema invulgar ou a diferença da densidade significante que é assegurada por um ponto de vista e uma composição particulares. O que não significa o mesmo que procurar sobrepor uma intenção - ou atribuir um sentido - esteticizante à actividade documental, mas antes partir do conhecimento de que não existem diferenças, essenciais ou «a priori», entre fotografia de arte e fotografia vernacular.


 «From the Picture Press», uma exposição organizada em 1973 no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque, por John Szarkowski, que foi uma pioneira aproximação crítica à fotografia de imprensa, já mostrara que o seu «tema essencial não era o momentâneo e o excepcional, mas o típico e o ritualístico», como escreveu Peter Galassi na apresentação de outra mostra, «Picture of the Times», que o mesmo museu dedicou em 1987 ao fotojornalismo do «The New York Times». «O Estado do Tempo» segue a lição dessas duas exposições do MoMA.


 São cinco os arquivos que se encontram representados nesta antologia, com destaque natural para os do «Diário de Notícias» e de «O Século» - este até há pouco integrado na Fototeca do Palácio Foz e agora depositado na Torre do Tombo, no recém-criado Arquivo de Fotografia de Lisboa, dependente do Centro Português de Fotografia. Cada um deles inclui também os espólios dos respectivos magazines fotográficos, o «Notícias Ilustrado» (fundado em 1928 por Leitão de Barros) e o «Século Ilustrado» (a partir de 1938), que acompanharam a seu modo a renovação do fotojornalismo internacional nas décadas entre as duas grandes guerras.


 


Peregrinos na Cova da Iria, Fátima, 13.10.1951 (Arquivo de «O Século»)


 

 Até aos anos 70 e 80, os arquivos dos jornais não referenciavam os nomes dos seus foto-repórteres, e a identificação da autoria de Joshua Benoliel (com 13 fotografias expostas) é praticamente um caso único, só acompanhado por duas imagens, de 1921, atribuídas a C. Garcês, aliás magníficas. Mas estão certamente representados outros nomes da mal conhecida história da fotografia portuguesa, como os de Deniz Salgado, Salazar Dinis, Marques da Costa (Júlio e Firmino - qual será o autor do notável álbum anónimo Alguns Aspectos da Viagem Presidencial às Colónias, em 1938-39, revelado há anos pela Ether?), António Novaes, José Lobo e até Augusto Cabrita e Eduardo Gageiro, já nos anos 60.


 Os outros acervos investigados permitiram descentralizar convenientemente as imagens do país, com base no Arquivo Abel Resende (1901-1994), de um profissional instalado em Aveiro, onde ainda cobriu o Congresso da Oposição Democrática, e no Arquivo «Formidável», alcunha de Fernando Marques (1911-1996), cauteleiro e fotógrafo, cujo espólio está preservado na Imagoteca Municipal de Coimbra. O último e mais recente arquivo utilizado foi o do fotojornalista Alfredo Cunha.


Com um total de 248 imagens, todas elas cuidadosamente reimpressas para a ocasião (grande parte em Paris), a mostra constitui um longo itinerário que nunca se torna rotineiro ou enfadonho, fraccionado em três grandes capítulos históricos, interrompido por algumas ampliações em grande formato que introduzem rupturas temáticas ou cronológicas (por exemplo, o achado dos pintores das tabuletas de trânsito dizendo «PELA DIREITA desde 1 de Junho», com o patrocínio do «Diário de Notícias» e da Vaccum Oil Company, fotografados dois anos depois do 28 de Maio de 1926) e, em geral, ordenado por grupos em que alternam os casos da actualidade política com os temas sociais e o quotidiano. Entretanto, o percurso é também balizado por numerosas imagens que se destacam da sequência expositiva para tomarem lugar no «corpus» ideal da fotografia portuguesa, em igualdade de condições com as melhores fotografias de qualquer autor mais reverenciado.


 No catálogo, onde se reproduzem todas as fotos expostas, um prefácio de Jorge Calado («As Imagens da Nossa Vida») é um instrumento precioso que servirá de guia à leitura mais atenta das fotografias e do seu itinerário, lançando as pontes necessárias para outros mundos e outros fotógrafos (desde os grandes pioneiros como John Thompson, Jacob Riis e Lewis Hine, que não foram artistas mas activistas e reformadores, ou os editores como Stefan Lorent). Sobre os autores desconhecidos que a exposição apresenta, Jorge Calado observa que «à semelhança do que aconteceu com os artistas medievais e outros mestres de Igrejas, vamos ter de identificar alguns dos fotógrafos anónimos como o senhor da escola de 'O Século', o fotojornalista à maneira de fulano, o mestre da fotografia da 'Chegada do Duque de Edimburgo ao Aeroporto do Montijo onde se encontrou com a Rainha Isabel II de Inglaterra'».


 Tudo começa com as «Décadas Vorazes» (1900-1933, embora as mais antigas fotografias sejam datadas de 1907); segue-se «O Poder das Sombras» (1933-1961) e depois o «Compasso de Espera» (1961-1974), até ao «Abril em Portugal», numa solitária fotografia do arquivo de «O Século», de Alberto Gouveia, Militares postados na montra do jornal «Época» no 25 de Abril: dois soldados de armas na mão postados no ressalto da montra enquanto três transeuntes se detêm a observar as fotografias aí expostas, de propaganda colonial. Aos emigrantes e bombistas da primeira etapa, sucederam os desfiles dos legionários, os caminhos de Fátima, as diversões da Feira Popular e os dramas dos cais de Belém. Uma pesada ordem reinou também sobre a fotografia.



sábado, 22 de maio de 1993

1993, André Kertész, "Ma France", Encontros da Imagem de Braga

 Encontros da Imagem de Braga 1993

“Mestre Kertész”


EXPRESSO/Revista 22/05/1993, pp 46-47



HÁ DOIS encontros de fotografia nos Encontros da Imagem de Braga. Dois modos de divulgação da fotografia, apenas coincidentes no tempo desta 7ª edição: Kertész e os outros.

André Kertész, que é habitual considerar um dos maiores fotógrafos de sempre (ou mesmo o maior), é apresentado pela exposição «Ma France», uma selecção das fotos que realizou em Paris entre 1925 e 1936, associadas a algumas outras com datas que vão de 1948 a 1984, resultantes de episódicos regressos a França. Pierre Bonhomme, o comissário, estruturou-a numa sequência de núcleos temáticos que se distribuem pelas pequenas salas do Museu dos Biscainhos: retratos dos amigos húngaros também exilados, retratos de artistas e escritores e fotografias dos cafés ou ateliers parisienses (Mondrian, Chagall, Zadkine, Foujita, Lurçat, Mac Orlan...), reportagens publicadas na imprensa da época, fotografias escolhidas pelo próprio autor para exposições nos anos 20 e 30, a série das «Distorções», as vistas de Paris, etc. Por outro lado, colocou em contiguidade, no interior de algumas das séries, fotografias com quase seis décadas de distância — e só as legendas permitem em muitos casos distingui-las. 

A mostra foi acompanhada pela importação de alguns exemplares do livro-catálogo com o mesmo título (Ma France, «Collection Donations», volume 2, coedição La Manufacture e Ministère de la Culture, Paris, 1990; 276 págs., 395 FF, 10. 000$00). Além de ser um album belíssimo, onde se segue a mesma ordenação da exposição, com mais imagens e mais documentação, os textos de Isabelle Jammes, Jean-Claude Lemagny, Michel Frizot e em especial Sandra Phillips constituem uma contribuição importante para enquadrar o itinerário francês do fotógrafo. Exposição e livro resultam dos primeiros anos de trabalho sobre o espólio de Kertész, confiado à Mission du Patrimoine Photographique (da Direction du Patrimoine, Paris), que tem precisamente por atribuição a prospecção, a conservação, o estudo e a divulgação das doações fotográficas feitas ao Estado, e de que Pierre Bonhomme é o director. 


NASCIDO em Budapeste em 1894, André Kertész chegou a Paris com 31 anos, já como fotógrafo publicado e premiado, e integrou-se rapidamente nos meios da vanguarda artística e literária do tempo, ao mesmo tempo que começava a colaborar como «freelancer» em revistas franceses e alemães. Em 1928 trocou os seus pequenos aparelhos pelos 35 mm da Leica e foi um dos primeiros fotógrafos a explorar as possibilidades mecânicas e estéticas da nova câmara, que lhe permitia associar a declarada atitude de amador com a expontaneidade do olhar e a velocidade do registo, transportando-as para um novo estilo de magazines. 

Fundador da fotografia moderna, Kertész foi nesses anos, simultaneamente, o passeante disponível para os encontros de acaso, que Breton teorizava, e o turista guiado nas ruas de Paris pela curiosidade e pelo pitoresco; foi o repórter, o publicitário e o artista que fundia numa mesma prática da fotografia um olhar avesso a todos os sistemas: «entre uma fotografia de ilustração e uma fotografia estritamente pessoal, a diferença está sobretudo no uso que delas se faz; ninguém já as separa uma da outra, nem as hierarquiza», escreve Pierre  Bonhomme (Ma France, pág. 12). Com ele, que foi o primeiro a introduzir o humor na fotografia, como notou Pierre de Fenoyl, o onírico surrealista nunca se transformou em receita de escola, a estruturação pós-cubista da composição não se encerrou na pesquisa formalista, a atenção ao imprevisto não se prendeu à busca do anedótico, e a relação calorosa com o mundo não se fixou no humanismo sentimental que marcou grande parte do realismo francês.  

Nos retratos e fotografias de atelier, por exemplo, a aproximação ao universo próprio de cada um dos artistas materializa-se ora no rigor da espacilidade recticulada de Mondrian, ora na presença ondulante e evanescente do casal Chagall. O interesse pela construção geométrica da imagem não limita a discrição do concreto; o sentido dos espaços e o gosto pelo pormenor, a elegância gráfica, a preocupação pela captação das matérias e das estruturas é simultânea com a permanente relação sentimental com o real; o rigor plástico, que pode fazer da fotografia publicitária um radical momento de estudo das formas (La fourchette, 1928), exprime uma certa arte de viver. Kertész não teoriza nem se fixa numa atitude; inventa e abre caminhos sem criar uma escola; ensina a ver e estabelece um catálogo de temas que outros explorarão. «Eu sou... um amador e tenciono permanecer um amador toda a minha via», dizia em 1930 (cit. pág. 65).

Em 1936, no entanto, Kertész aceitou um contrato com a agência Keystone, em Nova Iorque, e iniciou então um longo e amargo exílio americano que durou até à morte em 1985. Só em 1962, ao abandonar um contrato de exclusividade com o grupo Condé Nast, para quem fez fotografia de moda e de arquitectura interior, voltou a dedicar-se livremente à sua obra pessoal, já com 68 anos; no ano seguinte recebeu a medalha de ouro da Bienal de Veneza e conseguiu recuperar os negativos húngaros e parisienses deixados em França e escondidos durante a guerra. Obtivera a nacionalidade americana em 1944 e a partir dos anos 60 conheceu um segundo período de reconhecimento (MoMA, 1964), mas, ainda em memória dos seus anos mais felizes e fecundos de Paris, acabou por doar em 1984 todos os seus negativos (100 000), documentação e correspondência ao «povo francês». (A colecção pública — e secreta — da SEC possui duas fotografias de Kertész, Distorção # 76, de 1933, e Brick Walls, de 1961).


TEM SIDO muito rara, em Portugal, a possibilidade de contacto directo com a obra dos criadores essenciais da história da fotografia, através de exposições monográficas acompanhadas por catálogos que as estudem e que coloquem as imagens à disposição de olhares mais demorados. As instituições públicas (Gulbenkian, Serralves...) e os encontros de fotografia (Coimbra, Braga, etc) têm dispersado a sua actividade por figuras laterais ou tidas por mais modernas, com algumas excepções meritórias; mais raramente ainda completam a exibição efémera das fotografias com a realização ou importação de catálogos. Também por esse motivo, a exposição Kertész deve ser saudada como um acontecimento excepcional. 

Mas o facto de se tratar de uma retrospectiva (onde faltam, naturalmente, as fotografias feitas na Hungria desde 1912 e toda a produção americana) não remete esta antologia para um qualquer distante limbo da História, nem autoriza uma abordagem historicista que se estabeleça em contraposição ao que seria o presente da fotografia. 

Se a obra de Kertész atravessa todo o século e se ele é o mestre reconhecido de tantos outros criadores (de Brassaï, de Cartier-Bresson, da fotografia humanista francesa, de Gibson, etc), poderá reconhecer-se também que a sua produção das últimas décadas não é o prolongamento de um estilo, a mera sobrevivência de um modo ou de um olhar. É a obra da maturidade de um grande artista, mesmo quando, em Nova Iorque, depois de duas agressões, já quase só fotografava a partir da janela da sua casa, ou quando, em 1984, revisitava em Paris as «Distorções» que publicara em 1933 por encomenda do jornal «Le Sourire». Não foi por acaso que na edição do EXPRESSO/Revista comemorativa dos 150 anos da fotografia (7.10.1989) Jorge Calado escolheu uma fotografia de Kertész para documentar a década de 60. 

É que a fotografia não se deixa apreender segundo o modelo historicista reinante nas artes plásticas e, como diz, por exemplo, Jean-Marie Sheaffer e esta exposição de Kertész plenamente demonstra, «pode colocar-se lado a lado uma imagem dos anos 40 do século XIX e uma fotografia contemporânea sem se experimentar um desvío histórico de princípio» ou de «horizonte semiótico» (L'Art de l'Âge Moderne, 1992, pág. 366). «O ritmo da evolução da fotografia não é o de uma progressão» e nada confirma as teses de «uma evolução teleológica que iria de um realismo mais ou menos ingénuo para uma espécie de meta-fotografia que acabaria por absorver a fotografia nas artes plásticas» (idem). 

No entanto, é esse tipo de discurso, banalizado por certa crítica que serve de caução à ignorância de muitos fotógrafos e ao regresso actual a novas (?) modalidades de «fotografia artística» e de maneirismo conceptual ou picturialista, o que impera na rede internacional dos Encontros de fotografia e se manifesta, em Braga, na generalidade das exposições, conferências (como as de Manuel Vilariño e Michael Kohler, no dia 9) ou textos de catálogo. Um exemplo apenas dos múltiplos erros em circulação, colhido na apresentação destes Encontros: «É sabido que apenas a partir dos finais da década de 70 a fotografia, enquanto projecto artístico, começa a ter, em Portugal, um corpo regular de criadores» (a afirmação tem, pelo menos, um século de atraso).


PARA além de comprovar a ineficácia da ideia de uma progressão temporal da fotografia equiparada à lógica da sucessão dos estilos e das rupturas das artes plásticas (o que não significa ignorar a evolução de problemáticas, dos modos de circulação e de recepção, e, em especial, os progressos técnicos), a obra de Kertész é também excepcional na relação que estabelece com a ideia de estilo em fotografia. Sucede, de facto, que a caracterização da sua produção levanta o exemplar problema da impossibilidade de definir facilmente uma «maneira» pessoal, uma linguagem, uma autoridade feita de uma estratégia conceptual ou formal estabelecida — e é a busca imediata dessa facilidade, a coberto de uma qualquer «vontade de arte» ou «projecto artístico», que caracteriza a maior parte da fotografia que se expõe na nova modalidade de salões de arte fotográfica que são a generalidade dos Encontros. 

Como sintetiza Jean-Claude Lemagny, repetindo muitos outros observadores precedentes, «a obra de Kertész parece recusar-se a dar oportunidade à análise crítica porque ela não deixa isolar nenhum acento dominante que permita a fixação dos comentadores» (Ma France, pág. 105). E Kertész é um fotógrafo maior precisamente porque o contacto imediato que estabelecemos com as suas imagens, graças a uma relação sempre disperta e calorosa com o mundo, que é descoberta pessoal e comunicabilidade, se prolonga nessa dificuldade de abordagem do discurso crítico, incapaz de arrumar a sua fotografia na gaveta de uma escola ou fórmula ou período.

Num terceiro nível, a exposição Kertesz é ainda exemplar. Ela vem dar conta de um entendimento da fotografia que se consolidou já na sua dimensão patrimonial e museológica, através de estruturas oficiais que a conservam, estudam, expõem e põem em circulação. A França está actualmente na dianteira dessa actividade, ao cabo de uma década de sólidos investimentos públicos, e faz dela uma das armas mais poderosas da sua representação cultural no exterior. Em Portugal, todos os esforços se concentram ainda numa actividade efémera de divulgação, permanentemente recomeçada e incapaz de estruturar bases sólidas de investigação e difusão, tanto a nível público como de iniciativa local ou associativa. Parece que, em Braga, a Câmara já aprovou a instalação de um museu da fotografia que dê uma nova consistência ao esforço de divulgação empreendido pelos encontros — aguarda-se que a concretização dessa promessa pioneira sobreviva ao ano de eleições.