Mostrar mensagens com a etiqueta 1998. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta 1998. Mostrar todas as mensagens

sábado, 20 de setembro de 2025

EDUARDO BATARDA, 1998, Retrospectiva no CAM

 Falar de pintura pintando

09 Maio 98, Expresso Cartaz, pág. 25


No fim da retrospectiva de Eduardo Batarda


«Se o tema de um quadro se pudesse expressar por palavras, não teria havido necessidade de o pintar», escrevia Walter Sickert em 1910. O mesmo foi dito vezes sem conta, antes e depois (variando o que se entende por «subject»), e Batarda parece voltar a mostrá-lo nos seus quadros, renovando a diferença entre o olhar e o comentário («o completar de uma obra de arte inicia um desentendimento que' é eterno», escreveu em 1992). O comentário sobre o comentário poderá ser um caminho contra esse desentendimento?

Ao chegar ao fim a retrospectiva, é certamente curioso rever o texto de introdução ao respectivo catálogo, onde a obra de Batarda é apontada como uma das «mais marcantes e menos bem conhecidas da segunda metade do século em Portugal». Por um lado, é cada vez mais oportuno pôr a hipótese de que as obras maiores não são hoje as mais conhecidas, numa situação em que a circulação da informação parece ser total, globalizada e sem entraves, censórios ou outros. Esta semana, pôde constatar-se que um dos maiores artistas das últimas duas-três décadas, Avigdor Arikha, é um pintor desconhecido e cujo nome não faz parte da chamada cultura geral - e o próprio Arikha me indicou um pintor norte-americano, Rockstraw Downs, que ele situa entre os maiores (ou melhores, já que veio à Gulbenkian defender a possibilidade do critério da qualidade em pintura), mas não o encontro referido em qualquer livro ou dicionário, sem deixar por isso de atribuir a máxima credibilidade ao juízo do pintor e erudito israelita-parisiense.

Por outro lado, é significativo que se considere pouco conhecido um artista de quem se apresentam 200 números de catálogo que são propriedade de coleccionadores quase sempre particulares (a regra mais frequente das «antologias» é a atribuição à colecção do autor ou da galeria) e cuja exposição foi recebida com uma cobertura de imprensa (entrevistas, criticas, etc.) e uma atenção do público que se devem considerar muito pouco habituais. Esta passagem do catálogo parece assim interrogar o facto de Batarda ter estado ausente de todas as grandes representações institucionais que pontuaram a década («Tríptico», Europália'91; «10 Contemporâneos», Serralves 1992; «Depois de Amanhã», Capital Cultural 94; representações em bienais e outras). Ou seja, parece pôr em causa o mecanismo dominante das escolhas públicas, uma vez que a estas se associa uma certa ideia de visibilidade ou «conhecimento».


Carlinga , 3 (Small egg-shaped tartan ptg - verde, 1991, 90x60cm.
 
Outro ponto interessante da mesma introdução assinada pelos directores do CAM, que é um texto penetrante e uma boa síntese das interpretações da obra de Batarda, é a ideia - formulada com referências a Jasper Johns e a Beckett, por sinal, nomes de primeira importância - de que «a pintura-pintura» de Batarda «nos fala da impossibilidade de falar seja do que for». Na realidade, há um «excesso» de palavra na obra de Batarda (as inscrições explícitas nas aguarelas, as palavras muitas vezes cifradas dos acrílicos, os títulos dos quadros) e também à sua volta (os seus textos expostos, os prefácios às exposições, as entrevistas, críticas, etc.), que não nos permite admitir «a impossibilidade de falar seja do que for», o que é manifestamente possível, mas, muito precisamente, apontam a dificuldade (ou impossibilidade, no limite) de falar sobre a pintura.

Existia no primeiro período da obra de Batarda a possibilidade de um equívoco: o de se crer que a pintura «fala», de se entender «o discurso pictórico como realidade linguística» (na mesma introdução) ou de se ver uma pintura como uma imagem para «ler», no caso presente, como um comentário crítico (que também era) sobre a actualidade política, cultural e artística. O próprio autor, com o seu gosto pela autodenegação, autorizou essa «leitura» que reduz a linguagem pictural ao assunto, esvaziando o «como» na enunciação de «o quê». 

\Na segunda parte da carreira de Batarda acentuar-se-á «um trabalho ainda mais hermético e codificado sobre a pintura e os seus mecanismos»? Redondamente, não. Por isso, nas exposições de 1982-3, os acrílicos apareceram genericamente intitulados «Candeeiros, Cubismos, Cães e Colunas», o que devia servir de explicação bastante. Por isso, o prefácio de 1985 se intitulava «Decorações» e nele se afirma: «Falava de pintura pintando. Nunca eu quis fazer outra coisa»; «Os quadros são (...) o seu próprio manifesto, são afinal parábolas morais...»; são aquilo que «estão a ver», etc. Já contra a ideia da descodificação - ou seja, de uma leitura «mais preocupada com os aspectos analógicos, psicológicos ou sociais do que com os aspectos visuais» (citando agora Avigdor Arikha) -, Batarda acrescentava em 1986: «Valha-me Deus, as coisas que as coisas que as coisas lhes (nos?) parecem!»

Entretanto, também não é de «abstracção» que se trata, no sentido da procura de uma transcendência para além da representação do real visível ou de uma interrogação formal sobre os meios da linguagem pictural (a paródica inscrição «École de Paris» alertava repetidamente contra esses erros de leitura). «Destituídos de reconhecibilidade, sem sentido, os quadros "têm que ser" indiferentes, indeterminados, e, ao mesmo tempo, manifestam que existem, eles próprios, como dúvidas» (1992 - com data de 1892 e, por isso, antes do modemismo ... ). Indiferença é a palavra-chave (mas não a chave de qualquer saber hermético e codificado) que acompanhava então um diálogo pictural evidente com o Duchamp de 1913-17 (não com a sua revisão nos anos 60) - «pelo menos um objecto reconhecível da tradição modernista»: Fontaine, Séchoir à Bouteilles, 3 Stopages-Étalon (?).
Indiferença em vez de indizível, ou, por outras palavras, «ironia, distância, saber» (92). Depois disso, tornou-se-lhe possível abrir o seu trabalho em diversificadas direcções, como aconteceu.

Ao falar de pintura pintando, possibilidade sempre reafirmada em pintura - a que não convém chamar «pintura-pintura» -, Batarda dá-nos a ver que a relação com a pintura é uma experiência do olhar (retiniana, depois de Duchamp). Martin Avillez, no catálogo, diz a mesma coisa ao escrever que «a sua pintura foi e é uma pintura sobre as possibilidades de apreciar e julgar». Mas não é possível falar de «pintura sobre», no caso de tratar-se, como é o caso, de grande pintura.

Interior, 1992, 130 x 95 cm


Duas notas

7 Março 98, Expresso Cartaz Exposições, pág. 19
A relação com o museu marca a pintura de Batarda e a primeira  retrospectiva, 25 anos de trabalho, comprova-o plenamente, desde logo pela extensão do trabalho mostrado. Valeu a pena tirar partido das  circunstâncias da produção (comissariada por Alexandre Melo) e contrariar as regras de bom gosto do «design» expositivo para submergir o CAM com uma obra que inclui o excesso, a diferença e a provocação entre as suas marcas próprias. A última individual foi em 1992 e com o intervalo ganhou-se um efeito ainda mais «esmagador».

01 Maio 98 pp. 28-29
Batarda «coloca-se no centro do seu próprio sistema de crítica». A frase constitui um dos mais penetrantes comentários que a retrospectiva motivou, assinada por João Pinharanda («Público», 27/3/98). Poderia pensar-se que essa era a condição obrigatória para o reconhecimento de uma autoria, mas, afirmada como diferença chocante, perante a habitual dependência da informação e do gosto dominantes ou a gestão de traduções estilísticas correntes para português, ela vale como demarcação do projecto excepcional de uma obra.
É num sentido próximo que se pode entender Martim Avillez, num dos ensaios do catálogo, quando considera que a pintura de Batarda «é uma pintura sobre as possibilidades de apreciar e julgar». Trata-se, por um lado, de um importante deslocamento desde anteriores interpretações, favorecidas pelo próprio pintor, segundo a qual a sua pintura constituía um «comentário permanente ao estado actual das artes visuais» (1975), «fazendo coisas contra» («foi esse o meu programa desde sempre», dizia Batarda, ainda em 1992).
À hipótese de uma produção reactiva, que se oferecia como pista de compreensão (o comentário sardónico da actualidade política e artística inscrito no imaginismo narrativo da pintura sobre papel; a resposta ao jogo das conjunturas, com o ocultar da figuração nos acrílicos dos anos 80, etc), foi-se substituindo a distância e a indiferença, numa pintura que sabe, cada vez mais, que «a oposição à estupidez não tem que ter sucesso» (92) e que diz admitir «a incapacidade, a inoperância e o não-valor da pintura e da arte» (entrevista de E. Batarda no «Cartaz» de 14/3/98), continuando a praticá-las e, mais ainda, constituindo-se como centro de um «sistema de crítica» e repensando «as possibilidades de apreciar e julgar».
Contrariando a hipótese de niilismo levantada também por J. Pinharanda, esta pintura, que, de facto, se foi tornando mais erudita do que crítica, está do lado de uma vontade de reconstrução dos saberes, dos recursos e dos poderes da pintura. O enfrentamento com Duchamp que marcou a sua exposição de 1992, dominada pelo tomar dos dois «ready made» essenciais como assuntos da pintura, sujeitando-os à exploração de sucessivos desvios interpretativos, não tinha outro sentido.

sexta-feira, 19 de setembro de 2025

Entrevista de Eduardo Batarda (1998): «Custa-me deitar fora o pouco que sei»

 

Batarda_capa

Foi uma das poucas capas do Cartaz do Expresso dedicada a uma exposição: a 14 de Março de 1998, por ocasião da retrospectiva no CAM. Sempre achei que raramente se justificava uma tal escolha, mesmo que as outras secções procurassem promover "obras primas" todos os meses.

 

«Custa-me deitar fora o pouco que sei»

Expresso Cartaz, 14 de Março de 1998
Na capa: Eduardo Batarda, Obras (in)completas

CAM, 3 de março a 10 de maio de 1998

Comissário (e texto do catálogo): Alexandre Melo

pp. 18/20: entrevista: «Custa-me deitar fora o pouco que sei» + «A pintura não é programável» (e também o texto crítico de José Luís Porfírio: “O olhar devorador”, esquecido na bibliografia do catálogo editado por Serralves em 2012)

Com uma entrada comum: "O percurso vertiginoso de uma obra que desde os primeiros trabalhos, nos anos 60, ocupa uma posição destacada e sempre polémica no panorama nacional. Eduardo Batarda, a pintura e a palavra"

A entrevista não vem incluída na Bibliografia passiva ("Publicações periódicas e monográficas"), pp. 357-359 do catálogo, mas aparece referida  numa "Bibliografia - selecção" que antecede a "Lista de Obras", nas pp. 329-330. Não se percebe o critério, mas adiante.



BATARDA faz a primeira retrospectiva com 33 anos de pintura, à beira de fazer 55 de idade. Na década anterior fez exposições quase anuais e esteve no centro das atenções de quem produzia ou acompanhava a mudança do panorama das artes, ou, melhor, era um eixo maior das transformações que pareciam suceder-se.
Depois, em torno da exposição de 1992 <Galeria 111>, fez-se um estranho silêncio e os poderes emergentes prescindiram da sua obra nos eventos com que se celebraram. O intervalo até à retrospectiva só tornou mais esmagador o trabalho que agora se mostra com a coerência e originalidade da sua inteira continuidade.
Sempre o considerei um dos três ou quatro artistas mais significativos, na conveniente destrinça entre excepções e praticantes regulares ou agentes hábeis. A obra não é amável nem facilita o seu êxito pelas regras dos circuitos dominantes e a entrevista demonstra que a palavra - abreviada para o lugar disponível - também é sempre demasiado informada, reflectida, sibilina e inoportuna. A retrospectiva, que alguns consideram «excessiva», aí está. Batarda fornece algumas pistas para quem a quiser ver.

Estão na moda as antologias em vez das retrospectivas, e a montagem carregada da exposição infringiria o bom gosto das instalações feitas nos museus.
E.B. - Nunca ninguém me disse que era suposto ser outra coisa que não uma retrospectiva e 33 anos de trabalho não pode ser pouca coisa. Apareceram muitos trabalhos, que podem dar uma ideia razoável do que foi a minha produção, mas também faltam alguns outros e não é porque tenha tentado escamoteá-los. Eu julgava que uma retrospectiva é não esconder coisas. O CAM não pode inventar mais espaço e, portanto, a minha retrospectiva, feita com o que apareceu e que tinha, em princípio, de ir para a parede, tem falta de espaço, o que não é assacável a ninguém. Mas eu não funciono só por reflexos condicionados e pelo que vejo serem as normas de certos museus: não se trata de ver os espaços entre e de os comentar em termos de fica bem ou fica mal. Não partilho o entendimento de toda e qualquer exposição como instalação, nem pretendi aplicar outras regras que não sejam a hipótese de olhar para os quadros um a um; os trabalhos sobre papel, pressupõem uma relação de continuidade de leitura, de páginas e de texto, com o espectador à distância de dois palmos, e não exigem os tais espaços de parede. Vi com algum gozo a possibilidade de a montagem ser interpretada como contestação - contestação inofensiva, a não ser para mim, mas paciência... Pode ser um pouco fora de moda, mas eu continuaria a perguntar: a pintura, o trabalho, vale alguma coisa, serviu para alguma coisa?

Há, desde as primeiras obras, linhas de continuidade que atravessam as diferentes fases. A presença da palavra, por exemplo...
- Como qualquer outra pessoa, estou constantemente a reciclar o que me entra cá por cima e essa reciclagem não pode excluir aquilo que fiz: há coisas que são autocitacionais, depois há outras que penso serem ideossincráticas, que não posso evitar. Suponho que os factores mais contínuos são os de autonegação, auto-ironia, autocontestação, ou seja, de qualquer coisa encontrar sempre o seu outro lado, a sua ironia ou caricatura, mesmo a caricatura da caricatura, que é como quem diz: um lado absolutamente insincero no qual eu sou completamente sincero. Desde a adolescência, não se tratava já, entre amigos, de falar sinceramente, mas de ter consciência que estávamos sempre a citar alguma coisa ou alguém, ou a caricaturar as hipóteses possíveis em relação a cada situação.

O que significa fazer arte sobre a arte, o que é, aliás, próprio da produção artística, pelo menos nos últimos séculos.
- Não diria que a minha arte é sobre a arte: é sobre a minha (arte), inevitavelmente, e muitas vezes sobre generalidades da arte. Estava mesmo a falar sobre a possibilidade da sinceridade, e por tabela da sinceridade em arte, o que desde o princípio tinha a ver com a negação da grandiloquência, da pesporrência ou do «interessanting» artístico, que já era, à partida, uma coisa aviada. Quanto à arte sobre a arte, é evidentemente uma coisa que anda a girar há séculos e suponho que o séc. XX não é o mais educado, nem o mais sofisticado ou o mais complexo.

No seu trabalho existe também a relação com as conjunturas. Começou no ambiente Pop e nos finais de 60 a sua produção figurativa estava já em oposição ao clima conceptual-minimal.
- Põe-se o problema do fazer a seguir, ou do fazer antes, ou do fazer ao mesmo tempo, ou do comentário. Tudo isso é verdade ao mesmo tempo. Há coisas em que qualquer pessoa - e porque não eu? - se antecipa, nem que seja um décimo de segundo; há coisas em que estamos sempre a seguir e há coisas em que julgamos antecipar-nos e estamos apenas a pensar que inventámos a pólvora. Quanto às aguarelas, convém lembrar os "Great Moments in Conceptual Projects" (nº 50), que era sobre papel e sobre o papel do papel. Era óbvio que eu estava ao contrário e era tudo tão ao contrário que parecia um programa. Mas a arte conceptual é uma arte de papel, vive de documentos e memórias de papel, e é também com isso que eu brinco, no papel milimétrico desenhado por mim...

É uma das situações em que o seu trabalho está contra ou à margem...
- Francamente não sei. Toda a gente se sente original e inventor, e muita gente se sente à margem, o que é uma situação curiosa, hoje em dia, já que a instituição, o «stablishment», o circuito, o «art world», etc., coordena as actuações de uma quantidade de pessoas que, ao ouvi-las, gostariam de continuar a fazer-se passar por marginais, quando são de facto a instituição. O estatuto de marginalidade, de contra, de subversão, é hoje muito difícil de analisar, e seria apressado demais defini-lo num sistema de convergência ou conflito de interesses em que a pose de marginal se faz confundir com o conformismo mais radical. A actuação das pessoas em termos de reflexos condicionados está patente em todas as exposições, em termos do que se faz e não se faz, nos preceitos habitualmente aplicados às exposições, etc.

Nos anos 70 atravessou a vaga de rejeição da pintura e em finais de 80, outro aparente fim da pintura, está presente nos seus quadros uma ideia da morte que tanto é a morte física como a morte da pintura, ou da arte.
- Maria vai com as outras, ou não. Há coisas que estão sempre presentes e a que não se foge, uma delas é a morte. Outra é a de que a morte é mais comum como tema a partir de uma certa idade. Outra coisa ainda é que a morte foi diferente nos anos 80: o tema da morte, a morte das pessoas e a de artistas, esteve sempre presente e veio a par com o tema da morte da arte. Chame-lhe folclore, mas é um facto. Se me põem a funcionar apenas como mais um dos que usou, explorou e abusou do tema da morte - da pintura e da arte, da crise da sida, etc. - é evidente... sou capaz de ter caído nesse oportunismo, mas há coisas que nos preocupam mesmo e a que, por muito que a pose seja de cinismo, não conseguimos fugir. Muitos quadros têm o tema da morte, a ideia de terminal, e a ideia do trocadilho (por muito mau gosto...) não foi só minha. Suponho que os clichés à volta da morte e da arte podem também andar à volta do cliché principal, que é saber se existe alguma coisa para além de..., isto é, existe pintura depois da pintura? Para além disso, não posso negar que a depressão, a ausência, o não aparecer, o fugir a aparecer têm a ver com o medo, e o medo com o medo da morte - tudo isso estava muito ligado, nas peças dos anos 80-90. Eu não tenho grandes esperanças no regresso da pintura. Repare que, desde as primeiras coisas, há uma dúvida muitíssimo forte, senão mesmo uma certeza, sobre a incapacidade, a inoperância e o não-valor da pintura e da arte...

As aguarelas, que parecem histórias e acontecimentos da actualidade, já eram um exercício irónico sobre a impossibilidade da arte mudar o mundo.
- Mas não sobre a impossibilidade de eu os absorver e os comentar. Intervir é uma coisa, intervir mudando o mundo é outra. Falar deles, poder exercitar sobre eles aquilo que serão as minhas capacidades, é um assunto completamente diferente: é a possibilidade de que um, ou uma, entre alguns entendidos ou amigos, me possa entender num exercício gratuito de - como se diz nas escolas - complexidade gradualmente aumentada. A ideia talvez seja essa: um exercício individual de educação, de aprendizagem, de estudo e de superação. O que está dito está dito, mas isto, que é a mesma coisa, que parece a mesma coisa, por que é que não é a mesma coisa? Um homem chamado Weininger Otto W., 1880 -1903, que De Chirico citou, disse que o único crime é a repetição. A questão é essa: a repetição e a mudança, o dizer a mesma coisa ou o dizer diferente através daquilo que parece a mesma coisa. Se se puder repetir o mesmo sem ser uma segunda via... possivelmente estamos a dizer outra coisa.

As aguarelas dão passagem a um mais evidente tratamento de questões formais. As mesmas formas elípticas são sucessivamente coisas diferentes: a incerteza de um gesto, as águas do Monet, vórtices e abismos...
- ... ou pias baptismais, ou bandejas, com a cabeça de São João... Aquilo que eu, em última análise ou último destino, quero dizer, francamente não sei. Sei que as aguarelas começaram por ser muito mais obviamente inocentes, mais perto de um jogo improvisativo, de um surrealismo de carregar pela boca, mais ou menos bem dispostas, como quando se faz uma ilustração, para passarem a ser mais ambiciosas e informadas, o que tem a ver com o meu processo de educação e com estar em Londres, mas não concordo que tenham ganho só em proficiência técnica. Primeiro eram mais próximas de um «bluff» sobre arte, com o estudo e a perda de algumas inocências passam de uma forma mais autêntica a ser comentários sobre arte. As formas que se vão aproximando das elipses nas últimas aguarelas e as tais elipses nos primeiros acrílicos dos anos 80 têm a ver com outra coisa, se calhar muito saloia. São uma espécie de demonstração de conhecimentos. Se havia alguma ambição de comentário estético e sociológico sobre o mundo das artes, havia também a necessidade de comprovar o meu conhecimento, daí que usasse de forma muito visível as analogias formais e as alusões, literárias ou não, a coisas de iconografia. A elipse, que tinha a ver com o jogo e o trajecto, com o jogo da glória e o mapa do tesouro, depois com as iconografias altas e baixas, era o uso multiforme do mesmo objecto: o que servia para um halo ou para a luz ao fundo do túnel é também bandeja, sinal da desorientação, turbilhão ou pedrada no charco - literalmente: quantas vezes as minhas primeiras exposições foram comentadas como pedradas no charco -, é símbolo de luz, e é sempre a mesma coisa....

É uma abordagem mais formalista, a exploração de tópicos formais?
- É mostrar a versatilidade da minha interpretação, pretensiosamente: vejam como eu sei todas as conotações desta forma tão simples - e se calhar não sei, ou só sei 0,001 por cento... -, vejam como eu me esforço por saber o máximo, vejam como este tipo que sabe tanto, aparentando que não sabe nada, faz sabatinas sobre elipses, sobre estrelas, caneluras, colunas, fustes, sobre impressionismo, em quadros que transportam imagens de tanques ou barcos blindados armados com canhões sem recuo, sobrepostos ao punhal de um chinês, com o cabo, além, agarrado na mão, mais um tripé com alguma coisa e a estrela internacional...

Mas estes quadros supõem a decifração e o reconhecimento por parte do espectador?
- Suponho que tudo é reconhecível, está lá tudo e está muito à vista. A única coisa que eu peço às pessoas é aquilo que elas só dão se quiserem, tempo: dê-me dois minutos do seu tempo...

As palavras pintadas e títulos são uma ajuda ao observador?
- Às vezes são imediatamente descritivas, às vezes são metafóricas, ou são títulos encontrados na véspera da exposição, a situação varia muitíssimo. Mas são sempre ajudas, mesmo quando são absurdas ou quando são manifestamente a etiqueta para uma figuração que não está lá. Alguém pode procurar o que está e o que não está, com tempo, dois minutos, vá lá, dez minutos... A pintura é para olhar, depois é para falar, antes disso é para escrever. Parece uma máxima, mas foi dito por acaso.

Na última exposição, a cabeça, que era também urna, carlinga, etc., parecia remeter para a ideia ou o projecto do retrato.
- Sempre apareceram cabeças, já nas aguarelas, sobrepostas a uma quantidade de outras coisas, e nos primeiros acrílicos, a cabeça de cão. Qualquer pessoa que faça quadros parte de um capital de conhecimentos, conhece o Géricault, o Alien, o filme, as cabeças pré-colombianas, com aquele «mosaico» de jade. Aqui ("Morto em 1998, 2") há relações com um batráquio, com desenhos do Alfred Kubin, com a decomposição das superfícies do Klint: é uma cabeça e o dispositivo é parecido com o de duas salas antes, é um capitel, mas é também a luz... mas talvez convenha não emprestar à coisa tanto símbolo. A cabeça, elmo, urna, ou armadura de sado-masoquistas, gaiola de torturas, carlinga, são herdeiros das histórias dos capitéis, das colunas, que já eram os cubismos e as cabeças de cão, etc., mas há quem só veja em tudo a Vieira da Silva. Eu faço isto com a educação que tenho, não sou culto nem deixo de ser, faço o que posso, mas custa-me muito deitar fora as poucas coisas que sei.

A cabeça é também o retrato como género da tradição da pintura? Os romanos são pintura de história, o «grande género»?
- O título «Candieiros, Cubismos, Cães e Colunas» exposição de 1982 espelhava já isso: é sobre os géneros, e daí ter metido os cubismos como se fosse um objecto, tanto como um candieiro ou uma coluna, ou tão reconhecível como um cão, sabendo que as imagens de uns e outros se interpenetravam ou, quase sistematicamente, eram a mesma imagem podendo ser interpretada como uma coisa à cubista, que era um cão mas era uma coluna, etc., etc. Portanto, o reconhecimento dos géneros, dos estilos, das histórias, das formas recorrentes está também aqui. Verifico, identifico, registo e confirmo: estes tipos existem. Se a pergunta é se eu algum dia seria capaz de vir a fazer um retrato, suponho que não; hoje em dia, há alguns retratistas admissíveis no largo espectro da arte contemporânea, mas são muito poucos. Os romanos são uma alusão à pintura de história, à história, à treta... é um contar coisas.

+

«A pintura não é programável»

FRAGMENTOS de declarações de Eduardo Batarda, à passagem pelas suas obras mais recentes:
«Depois de um certo sucesso de esperanças da exposição de 1992 e de um longo processo de depressão, que tem a ver com o conhecimento de que o meu trabalho não é aprovado, estimado, apreciado - e quando isso acontece é muitas vezes por equívoco, ou equivocamente por gente equívoca -, a parte bem disposta do trabalho para o Metropolitano permitiu-me sair de uma coisa um bocado tumba, que foram os meus pouquíssimos trabalhos de 94-95. Eram já coisas mesmo pretas, invisíveis, carregadas de verniz, sem sinais, em que tudo era tapado, tapado e tapado.

Volto a pintar no fim de 96. Muito prosaicamente, percebi que não tinha nada a perder. Despreocupei-me, incorporei uma certa descontracção, que foi renovada talvez pelos desenhos do Metropolitano. A pintura que eu faço agora também é improvisada, e é improgramável porque eu não consigo programá-la, ou seja, a pintura não é um processo susceptível de grandes planeamentos estratégicos. Por muito que eu quisesse, não seria capaz de programar a pintura para fazer uma exposição cujo processo de lançamento ou cujo êxito pudessem ser previsíveis, e ter logo a segunda e a terceira exposições programadas. Sobretudo, fazendo coincidir isso com um esvaziamento das coisas que eu posso pôr em cada quadro, incluindo o divertimento. Tomara eu, gostava muito, até podia mandar fazer os quadros a assistentes. Mas não percebo o que ganhava com isso.

Não me importo de ter géneros, entre aspas, ainda mais divergentes ou ainda mais desconchavados do que em exposições anteriores. Desde os romanos aos trabalhos autoderrogativos, às radiografias, mapas de batalhas, quadros letristas, etc., mas isto não são só reciclagens de coisas anteriores. É evidente que são e não são. A primeira coisa que eu fiz já reciclava coisas, e também já tinha feito romanos - basta ver o Longinus lá em cima, com o saio de centurião que aparece aqui.

Mas os hábitos invisuais estão fortemente enraizados, e há quem os interprete como regressos irremediáveis, dizendo que nada disto inventa seja o que for. O Doctor B ou o No Name Boys seriam ampliações de coisas anteriores, aquela espécie de estrada de montanha [Talvez Sim (Straight & Narrow)] seria um tema que vem dos anos 80 - se calhar confundem-na com as elipses -, os romanos são as aguarelas dos anos 70 outra vez, o Nothing Really e Début du Siècle são iguais aos dos princípios dos anos 80, com a coluna ao centro. Seriam a mesma coisa antes de eu os pintar com aquele branco translúcido e depois os transformar, por cima do branco translúcido, em coisas monocromáticas. O que eu digo é exactamente isso: muitos dos quadros anteriores tiveram aquele aspecto, mais ou menos acabado, com imagens mais ou menos definidas, e eram depois encobertos, e o preto e as cores escuras iam buscar, reinventar ou descobrir, fazer o mapa, com exclusões ou com novas descobertas, do que estava por baixo. Só o facto de eu não encobrir isto - lá porque eram as coisas que estavam por baixo e eram eventualmente semelhantes a coisas que eu fazia (mas eu fazia-as como parte do trabalho...) -, se agora não cubro de branco e o trabalho não continua a ser depois reencoberto, então é porque isto é diferente... Estes [(Nunca Fui) Art. Pop, 1 e 2] são simples, porque são feitos com as letras do título, são trabalhos letristas...»

Capa do catálogo e design gráfico de Beatriz Gentil (a Batika)

Catálogo: Eduardo Batarda, "Revista" / 
Martim Avilez, "Pintar em Portugal, Anos 60, Eduardo Batarda"; 
A.M. "Algumas hipóteses especulativas"
Antologia de textos de E.B. 159-175; de textos sobre E.B.
E.B. "Aguns textos "Sempre Fixe", 11/1974 a 08Ω÷1975. p. 203 a 242.



terça-feira, 16 de setembro de 2025

Augusto Alves da Silva, "Pasage", 1998, ed. Universidade de Salamanca // Imago 98

 



Pasage

Harrogate Lisboa London Lousã Madrid Marbella Paris Pico Tokyo


76 pag., 32 fotografias cor, sem legendas, 24 x 28.5cm


Design e paginação: AAS


1989 Ediciones Universidad de Salamanca / Centro de Fotografia de la Universidade de Salamanca - Colección Campo de Agramante: [CA] | 25 (Com logotipo do Centro Porrtugês de Fotografia / MC no frontispicio)

12€

+ Folha de informação do editor.


a colecção  Campo de Agramante (69 números)

https://eusal.es/eusal/catalog/series/campoagramante/2


https://sac.usal.es/publicaciones/campo-de-agramante/



É o primeiro (e único) livro de AAS independente de uma exposição ou de uma encomenda documental. É o livro ou photobook mais livre, como um objecto autónomo de que é autor por inteiro, incluindo o design e a paginação.

Pasage é um livro de viagens, ou melhor, de passagens, enumerando-se logo na contra-capa e no frontispício os lugares visitados, mas sem identificar as fotografias com os respectivos lugares, percorridos e fotografados ao longo de quatro anos, informação acima, e eventualmente deslocadas de diferentes trabalhos ou projectos. A secção inicial da retrospectiva de Serralves, designada como "Síntese", procede a algo de semelhante, é um trânsito entre trabalhos / obras, desligados das sequências ou das exposições em que antes se mostraram. Também o livro La Gomera, de 2003, embora fotografado numa única ilha das Canárias, percorrendo um só território limitado, é um jogo de passagens, de trânsitos, onde os nexos, os tópicos temáticos possíveis se descobrem, ou não, no percurso do livro, extenso e sem ordem aparente, mas aí ritmados por quase repetições.

Aqui, o jogo entre a capa, apenas o estore descido, e a contra-capa com as referências discretamente escritas, os lugares, aponta para a prioridade das imagens face ao texto, à legenda, à informação escrita.
Seguimos então entre o que vemos (ou não vemos no estore descido que é a capa) e o que não sabemos por que razão o fotógrafo viu, fotografou e editou, num discurso de imagens sem palavras.

A informação editorial acima copiada, que certamente o artista aceitou, com mais ou menos gosto, sugere que "Pasage é uma proposta que gira em torno da ambiguidade do reconhecimento" - poderia dizer-se a ambiguidade do conhecimento; de facto, "o autor joga sobre (com) a dúvida da identificação", antes de ser reconhecimento. 
 Mas não se trata de propor enigmas ou apelar à identificação, o que seria um puzzle redutor, dos lugares de observação, nem de interpretar o que está apenas "escrito" na sequência das imagens, cada uma independente ou autónoma. Trata-se de declarar e expor uma autoria, um eu que vê, e um eu 'voyeur' (como se verá adiante) que reconheceremos como autor. "O livro, a sequência de imagens, é o lugar (el ámbito) onde se produz a modificação do sentido", ou onde ocorre, antes, a produção do sentido - se quisermos procurar e se encontrarmos um eventual sentido. No entanto, talvez não haja um sentido ou um significado - não é disso que se trata.
Propõe-se "a reflexão sobre o papel da fotografia nas situações que regista", como sugere o editor? A "proposta" do autor seria a de "uma reflexão sobre a nossa capacidade de percepção e sobre o uso da fotografia na época da imagem técnica"? São mais que frases feitas?
Julgo que o que se propõe é a observação do que foi observado, escolhido e publicado pelo autor, como uma prática do ver e uma suspensão de sentidos, no que se reconhece como uma vontade de comunicação. Vejam o que eu vi.

Poderia ser street photography, mas Pasage escapa à classificação, a todas as classificações, não é documentário, viagem nem diário.
É o espaço quase sempre urbano que é visto, a rua e edifícios, a arquitectura, com transeuntes em geral em movimento, imprecisos, como os automóveis que circulam desfocados.
As montras, os manequins, femininos sempre, a passagem de modelos (?), o corpo das mulheres (partes dce corpos), até ao show erótico explícito que por sinal se segue ao estore descido, já visto na capa. Mas também uma cabeleira loura de costas e antes a mulher num bar, vista de lado, sem rosto sob o cabelo negro. Visões fugazes.
Os cartazes, a publicidade, as marcas, palavras em geral incompreensíveis, sinais, as imagens dentro da imagem, e sempre imagens de mulheres.
Também o avião em que se viaja, exterior e interior. A margem do mar, depois de um tubarão mergulhado num mar azul.
O azul predominante e as linhas paralelas horizontais que vêm também já da capa, e marcam edifícios e riscam a estrada.
Não se põe a questão do sentido das imagens e da sequência, mas apenas ver, ou seja, a inquietação e o prazer de ver, partilhados.  






#

AAS participou com fotografias de Pasage nos Encontros / Enquentros IMAGO 98, com catálogo editado.




sábado, 12 de outubro de 2002

Fátima Mendonça, 1996 (Arte Periférica), 1998, 1999 (Fernando Santos), 2001 (Prémio Maluda), 2002 (111)

 Picture 3

2009: Exposição na Galeria 111, de 10 de Setembro a 7 de Novembro

#

Escritos desde 1994

FÁTIMA MENDONÇA, Arte Periférica, Massamá
Expresso Cartaz de 17-09-1994

Um desenho que é aparentemente infantil para falar de experiências e violências físicas suporta a narração de histórias em que entram uma noiva, um bolo e um cão mau. São as grandes telas, onde um corpo flutua, exposto e pensado do interior, num espaço vago de manchas e rasuras, que melhor traduzem, depois de Dubuffet e Paula Rego, mas sem epigonismo, a energia de um discurso que aqui começa. Uma primeira individual que nos faz aguardar novos trabalhos. (Até 5 Out.)
 
FÁTIMA MENDONÇA, Arte Periférica/Belém
Cartaz Expresso 18-11-1995
Três telas de grande formato dão sequência a uma pintura que joga abertamente na criação de uma narrativa centrada numa personagem feminina e num quotidiano de aspirações comuns, convenções, desejos e alegrias, medos e protestos — «estórias da menina mal-amada», no título da apresentação de Rocha de Sousa. O uso da cor vem agora dar uma outra intensidade a um grafismo aparentemente ingénuo, próximo do graffiti, enquanto as anotações escritas («ela explicava ao cão que era uma rapariga sincera», «descobrira-lhe mais de dez namoradas iguais a ela», «ela esforçava-se muito por lhe agradar») recriam episódios de uma intimidade ficcionada de menina ou noiva «saloia», entre formas de bolos e «suspiros», que também pode surgir travestida de toureira. As histórias são mais sangrentas do que parecem.
 
1997
"A sedução e a culpa"

Cartaz Expresso 11 Jan. 1997

Arte Periférica, Dez. 1996 / Jan. 97

Pela terceira vez consecutiva (em 1994, na galeria de Massamá), Fátima Mendonça mostra no final do ano como cresce regularmente a sua pintura. Não quanto aos formatos, sempre largos como paredes, mas na consolidação de um discurso, dos seus recursos, dos seus personagens e da marca distintiva de uma autoria, talvez ficcional, talvez confessional — questão adiada ou sem sentido.
A ideia de parede confirma-se na dispersão das notações, desenho e escrita, deixadas sobre a tela, repetidas, recomeçadas, distribuídas como se de um quarto fechado se tratasse, obsessivamente preenchido pelos «graffitti» de um preso, e como se esse fosse o diálogo possível com os outros, sempre através do espelho de si mesmo. As quatro telas-paredes expostas fecham-se, de facto, como um quarto, mas uma delas é ocupada por um corpo nu de criança, imperfeitamente feminino, oferecido, exposto e inseguro, a crescer nos seus sapatos altos de mulher. Ou é de um desenho infantil que se trata, retrato incerto (menina ou mãe, boneca), memória reaprendida de uma idade de terrores e fantasias?
Os sapatos altos estão também, isolados, noutro quadro e vinham já de trás, da série exposta em 95, como acontece com as formas dos bolos e o rabo de touro, que agora se alinham a preencher outras duas paredes. Nas «estórias da menina mal-amada», como então as apresentava Rocha de Sousa, a criança-mulher surgira travestida de toureira, a ocupar o centro da arena, enfrentando o medo, fazendo-se temer.
«Ela esforçava-se muito por lhe agradar», «ele enchia-a de mimos», «A saloia», «A toureira a agradecer», «O baile», «manso, sem casta», «Ela explicava ao cão que era uma rapariga sincera», ía-se escrevendo, repetidas vezes, de quadro em quadro. Mas não há um fio narrativo a decifrar como chave de uma história-enigma contada por imagens; é a intimidade de um universo que se propõe ou enfrenta ora como memória, ora como sonho, ora como interpretação dos seus nós significantes, ou como a dramaturgia de um exercício de pintura, calculadamente elaborado no seu jogo de verdade ou fingimento. E os desenhos que se expõem numa parede exterior da galeria, aberta à rua, isolam os diferentes motivos-sentidos recorrentes num inventário de sinais, marcando, por exemplo, a passagem de um suspiro (bolo) à forma de um sexo feminino, ou acrescentando outras referências gráficas ainda imprecisas no seu curso.
O quarto é casa, «A casa do desarranjo» (título geral), e é cozinha, «a cozinha da minha mãe», com as formas dos bolos e os camarões, recheio culinário com uma presença invasora e grafismo obsessivo, com as receitas escritas e a contabilidade das vendas («ela fazia bolos sem parar»). Exercício de servidão ou castigo, modo de sedução, enquanto os rabos de boi se terão de ver como selvagem acção castradora («manso, sem casta, sem investida»), é sempre de um mundo de terrores e desejos que se trata («o medo, «malpropreté», «la douleur», «a doidita»), de um corpo que se observa, entre convenções e protestos, entre alimentos e fluidos, num espaço da ordem doméstica que é também o lugar da identificação sexual.
Sobre cada tela, o desenho e a escrita visíveis são como um véu último sobre uma sedimentação de ensaios apagados ou recobertos por sucessivas velaturas, como camadas sucessivas vindas à consciência, rasuradas ou expostas.

1998

Fátima Mendonça
Casa Fernando Pessoa - 14-02-98

O programa de ocupações do Quarto do poeta prossegue e, neste caso, a «instalação» volta a prolongar-se de modo invasor por outros espaços da Casa. Em vez de uma situação ilustrativa, F.M. construiu um quarto de criança/casa de bonecas que é um espaço de paredes integralmente desenhadas: cenário onde se instalam motivos conhecidos de obras da artista, referidos a um imaginário infantil e feminino cujo obsessivo devaneio se apresenta (ou se ficciona) como íntima viagem de aprofundamento das dependências parentais e da descoberta do corpo próprio. É a partir do Quarto que ganham sentido outras peças expostas, pinturas sobre tela e uma «instalação» onde cinco gaiolas encerram os corpos giratórios de uma menina-boneca que se expõe e esconde, nua, sob o voo de uma bruxa (imagem de condenação ou de desafio?). Sob o título «Camara Lenta», Fátima Mendonça procede a uma teatralização do mundo ambiguamente privado da sua pintura, oferecendo-o com humor ao mesmo tempo que refere numa citação do catálogo o Desassossego de Bernardo Soares. (Até 15 Mar.)

"Fátima, Joana, Sofia"
Três exposições de mulheres artistas põem em questão a ideia de pintura feminina

Expresso Cartaz de 23-10-98
NÃO existe certamente a pintura feminina, nem as três exposições estabelecem entre si naturais relações de afinidade. Se duas delas se prestam à leitura de uma auto-representação mais ou menos ficcionada ou fantasmática e de uma atitude confessional como exibição mais ou menos teatralizada, a terceira, onde a pintura se dirá abstracta, segue outro caminho das imagens, sem se poder ler como expressividade intimista. Nesta conjunção guiada pelos acasos da programação não comparece nenhuma atitude mais friamente analítica, mas esta também existe em obras femininas, e as generalizações serão sempre improcedentes. As individualidades, em casos de género ou geração, importam mais que a lógica do grupo. Mas pode notar-se que é a urgência mais imediata e livre do desenho que preside às três mostras.

Fátima Mendonça volta a convocar a pista de circo como lugar de exposição aos olhares alheios, como fizera há pouco tempo na Casa Fernando Pessoa, então com peças tridimensionais em que o «chapiteau» era também gaiola e a personagem dos seus quadros uma boneca giratória. Antes colocara-a numa outra arena como menina-toureira. Agora ela agradece desajeitada a ovação, atravessa o espaço em equilíbrio no arame, segura um cão certamente morto, vindo também de outros quadros, ou mostra-se de coração nas mãos, num outro «estudo para um grande amor», e como patinho feio em mais uma tela.
Existe uma absoluta continuidade narrativa no trabalho de F. M., construída pela intimidade de um universo povoado por referências recorrentes, e o uso da escrita sublinha mais ainda essa dimensão literária, que já não é objecto de desconfiança para a crítica «pura». Reconhece-se em algumas obras femininas uma radical capacidade de auto-exposição e intimidade, mas o exercício da projecção também se confunde com o gosto da teatralização, e entre exorcismo e fingimento não há aqui lugar para a ideia de verdade (ou de retrato e biografia), mas sim para a de construção de uma obra.
No trabalho de Joana Rosa surge uma nítida vertente confessional, sobre a persistência de um desenho espontâneo e compulsivo, o «doodle», mantendo-se esta denominação para novos trabalhos («Secrets») habitados por dois personagens de um teatro privado, a bailarina e a fada, enquanto a escrita passa a ter uma intervenção importante. A exposição, aliás, estabelece com nitidez, mas algum excesso de peças (o desenho é compulsivo...), a passagem das grandes composições de fragmentos cobertos pela grafite para essa produção mais recente.
«Yes Y want to look like this forever» é um comentário que, com variantes, acompanha os exercícios de uma bailarina-ginasta, desenhada com a elegância de um corpo de modelo, por vezes vulnerável à deformação, à queda (alguns corpos que se levantam lembram curiosamente os de Maria Beatriz) e também ao ridículo de um estereótipo – «No no she is ridiculous, but I like her hand...». A escrita que acompanha a imagem identifica a relação com o corpo próprio, ameaçado pelo tempo, enquanto a inclusão de desenhos infantis é justificada por uma muito concreta relação entre mãe e filha: «My daughter Madalena did this to help me...». Noutros trabalhos, J.R. usa a figura da fada importada do mesmo diálogo com a filha, assumindo-a como projecção de sonhos e terrores que não são apenas infantis. Uma última série de trabalhos radicaliza ainda a presença do texto (...a carta ou o diário), jogando com a colagem, a ocultação e a transparência, com a leitura fragmentária e a ilegibilidade.
No trabalho de Sofia Areal não está presente a figura e a escrita, mas não será inútil precisar que a actual exposição parte da colaboração num espectáculo teatral de Jorge Silva Melo, sem sujeição a um texto prévio mas como comentário de um tema, a alegria de viver. Mais concretamente, informa o encenador, «sobre a mão» e a «feitura da alegria» («a mão que faz a alegria» segundo o belo título da nota de catálogo). Dos cinco painéis verticais que então desciam da teia, mostram-se apenas dois, acompanhados por uma série de desenhos de varias dimensões que os quiseram continuar.
Não se tratou, é obvio, de ilustrar a alegria, mas, de algum modo, de tomá-la por programa ou disciplina, referindo-a num exercício de aparentemente despreocupada liberdade da mão, com uma expontânea expressividade que é também acaso calculado e secreta sabedoria, para entregar ao espectador a impossível e inútil tarefa de localizar um sol, uma flor, uma asa, talvez um riso. Poderá ser mesmo na impossibilidade da palavra perante uma explosão vermelha, uma onda azul, uma fresta negra, uma diferença entre brancos, que reside essa alegria.
A pintura de S. A. exercita-se sem rede e sem norma, correndo sempre o risco de desafiar a necessidade de uma razão justificativa, mas «no fundo, a questão é saber qual o significado do significado – há perguntas que não se fazem; há coisas que não se dizem», como se lia, a propósito de um espectáculo de Bob Wilson num texto da anterior «Revista».

#

1999

Fatima 99
«Gosto da Minha Casinha 9», 1999

"Três artistas no Porto"
Expresso Cartrtaz de 27 de Novembro de 1999

CARLOS CARREIRO, Árvore (até 7 de Dezembro)
FÁTIMA MENDONÇA, Gal. Fernando Santos (até 31 Dez.)
PEDRO CABRITA REIS, Museu de Serralves (até 23 Jan.)

NENHUM comum ar do tempo percorre as muitas exposições inauguradas no Porto, nem se detectam sinais que sustentem identificações geracionais ou análises conjuntas. Às desigualdades entre programações somam-se as opções individualizadas dos artistas mais as variações de ritmo e risco das respectivas carreiras. Destacar as mostras de Carreiro, Fátima Mendonça e Cabrita Reis decorre de critérios que serão pessoais mas assumem a responsabilidade de justificar as qualidades reconhecidas a cada um, sem pretender atenuar as diferenças de direcção dos seus trabalhos.
E é uma mera coincidência, mas uma curiosa coincidência, que o primeiro seja um nome que se destaca entre os artistas surgidos em anos tão pouco favoráveis a consagrações como os 70; que a segunda chegue numa posição de amplo reconhecimento ao final desta década, contrariando os estereótipos com que se pretenderam identificar os jovens dos anos 90; que o terceiro seja uma figura central entre os artistas dos 80 que hoje lutam por sustentar a notoriedade alcançada, esquecendo-se tantas vezes que as obras se constroem em itinerários em geral longos e atravessados por altos e baixos, convulsões e viragens.

Carlos Carreiro dá às suas pinturas um título geral, «Dos Truques do Adamastor à Vingança dos Perus», que as situa de imediato no seu terreno habitual da celebração do imaginário, onde impera a fantasia, o humor e também algum comentário corrosivo. Com as novas obras, que, entre outras motivações pessoais, terão tido algum ponto de partida concertado com o calendário comemorativo dos Descobrimentos – lá estão, na tela maior que é referida na primeira metade do título geral, as caravelas e bandeiras pátrias, uma torre de Belém de barbatanas a tentar andar em direcções opostas, um Adamastor marionetista (seria imperdoável que este exemplo excepcional de «pintura de historia» no presente não tivesse destino institucional,... mas não podemos ter ilusões sobre os museus que temos) –, assiste-se a mais uma inflexão fortemente afirmativa do trajecto de pintor, prosseguido como um percurso original e solitário, marginal, se se usar o termo com sentido positivo face a valores correntes e dominantes.

A sua figuração luxuriante e minuciosa constroi-se como uma agregação interminável de personagens (históricos ou actuais, humanos ou animais) e de objectos (de consumo, máquinas e plantas, reais ou de fantasia – sem esquecer as metamorfoses entre personagens e objectos), em situações e lugares imbrincados num contexto narrativo absurdo e sem leituras unívocas. Em vários quadros, a acumulação de figuras e histórias organiza-se seguindo uma pista de flipper que pode transformar-se em estrada, filme ou intestino, numa sequência vertiginosa de invenções e citações (de estilos e de imagens, populares e eruditas), distribuída num espaço indefinível e labiríntico, ao mesmo tempo exterior e interior, de paisagem sonhada ou cartografia alucinada. Com barcos-vagens, carros-lulas, químicos e alquimistas, personagens de animação e BD, tigres gulosos, células invasoras, universos subterrâneos, flores e borboletas.

Reciclando com uma nova inventividade toda a obra anterior, a renovação de Carreiro passa agora pelo abandono da coloração fria da sua fase anterior, quase uniformemente azul com incrustações de objectos de cores «pop», na explosão de uma policromia com intensidades mais quentes, percorrida por estranhas constelações de pontos de luz. Talvez não seja impossível comparar a sua pintura à de Clovis Trouille, pintor maldito que os surrealistas anexaram em 1930 e é agora objecto de retrospectiva em Paris. Também inclassificável, Trouille associou a veia libertária a uma pintura de aparência académica, falsamente «naïf», em cenas eróticas de sentido anticlerical e antimilitarista; Carreiro serve-se livremente de todas as convenções antigas e modernas, passa do «kitsch» à ficção científica, e pratica o humor e a poesia com uma soberana ironia.

Fátima Mendonça estabelece com a série de telas «Gosto da Minha Casinha» um momento forte de continuidade e abertura no curso da sua pintura, identificada como a exploração mais ou menos ficcionada de um coerente imaginário pessoal de infância ou adolescência feminina, mas onde agora será talvez possível reconhecer a abordagem de outros tópicos ou tempos menos referenciáveis, sempre associados a um discurso narrativo supostamente autobiográfico que continua a surgir caligrafado sobre a tela.
É a paisagem – «simultaneamente, o mundo exterior e o mapa interior» (Ruth Rosengarten no catálogo) – que predomina na nova série, em obras em geral de grande e muito grande formato. Por duas vezes vista em panorâmicas sem linha de horizonte, focadas sobre campos estriados que marcam uma volumetria imaginária de colinas muito verdes (quatro linhas atravessam o quadro repetindo «errei»), ou de onde emergem plantas rapidamente esboçadas («minha flor») – noutro quadro um idêntico espalhamento distribui sapatos altos de mulher pelo espaço-campo quase liso da tela (mas a intervenção escrita refere couves e «o teu jardim»). Em mais duas telas a casinha do título é vista à distância, centrada entre árvores e montes, em imagens de um grafismo falsamente escolar imerso em manchas de cores doces e «ingénuas». Mas o mundo pode ser também cruel e incendiado (os coelhos embrulhados, a floresta em chamas).
Usando o óleo em barra para desenhar e colorir, ou o óleo muito diluído em manchas de ténues transparências, Fátima Mendonça oferece com ironia, desde o título, as pistas da leitura psicanalítica de que pode precisar-se para «explicar» a sua pintura. Mas os quadros sustentam com notório êxito uma visibilidade menos literária e redutora: eles inventam novas paisagens, contam histórias visuais, deslumbram e inquietam.

Pedro Cabrita Reis é objecto de uma antologia que estabelece a exacta sucessão desde a mostra do CAM, em 94, retomando três obras então expostas (colecção de Serralves ou aí em depósito) e acrescentando informação sobre um itinerário posterior que foi pouco visto em Portugal e contou com participações nas Bienais de Veneza e São Paulo, fora das representações oficiais portuguesas.
Quatro lugares decisivos marcam a montagem: uma construção no pátio de acesso ao Museu, cuja longa parede articulada e encimada por guaritas, recoberta por tela metalizada de alcatrão – Cidades Cegas # 5 / o Eco –, é associável a memórias de campos de concentração (Auschwitz, muro de Berlim, talvez os condomínios privados do presente); já na sala central, Sem Título, uma outra guarita com um mastro de bandeira derrubado e um feixe de lâmpadas de néon; depois, o corredor interior do Museu percorre-se entre construções de alumínio e cartão, elevadas e adossadas às paredes, lembrando habitações precárias ou também postos de vigilância (Cidades Cegas # 2); por fim, Catedral # 3, intervenção na grande galeria final do percurso que rasga as paredes brancas de Siza com o início de quatro outras paredes de tijolo só precariamente aparelhadas.
Concebidas ou readaptadas em função do espaço físico onde se mostram, são também peças arquitectónicas em si mesmo, como quase desde o início sucedeu com a escultura de Cabrita Reis. Porém, enquanto as peças anteriores faziam referência a modelos arquetípicos (poço, fonte, canal, mesa, casa) ou se viam como construções enigmáticas (lugares de concentração de energias, de observação cósmica, etc), as novas arquitecturas podem ver-se como comentários sobre a cidade actual, evocando lugares concentracionários ou de vigilância, ao mesmo tempo que se referem, especialmente através dos materiais empregues e das soluções construtivas (tijolo, cartão usado e tábuas, caixilharia, etc), às arquitecturas improvisadas das marquises e dos bairros de lata. São obras que ocupam com grande força cenográfica os lugares de exposição, respondendo de modo afirmativo (enfático, por vezes) às solicitações das grandes mostras internacionais onde imperam as montagens «in situ», as estratégias instaladoras e a grande escala dos objectos, até como condição de visibilidade, ao mesmo tempo que parecem assumir uma dimensão crítica sobre o estado do mundo, com referências à pobreza, exclusão e repressão.
Entretanto, a antologia dá também largo espaço ao que pode continuar a chamar-se pintura, embora se deva notar que a pintura actual de Cabrita Reis transporta igualmente poderosos vínculos com a arquitectura, desde logo pelo uso pictural de materiais ou equipamentos de construção. Dobles Pinturas Negras #2 e #4 (Madrid), de 98, serão mais uma contribuição para a linhagem do monócromo, em dípticos de placas de vidro, rectângulos ou círculos, onde a aplicação de pintura negra se faz, em cada elemento, sobre ou sob a superfície do suporte – elas decorrem da apropriação de caixilhos de portas encontrados e da montagem de vidros com aplicação de esmalte dos Lisbon Gates mostrados no CCB em 97 («For Heinner Muller»). Cabinet d'amateur #1 (Serralves) é uma disposição de inúmeros dípticos formados por campos de cor lisa, onde é a cenografia que volta a sustentar a eficácia das partes. Sempre com uma energia reconhecidamente intensa, com uma elegância certa, as últimas obras (vejam-se a grande porta de Table Dance e a pintura Flor Negra, em confronto com a menoridade de «Os Últimos», pequenos auto-retratos desenhados) estão às vezes à beira da facilidade retórica e de um uso defensivo das grandes escalas.

Nota: Chegam este fim de semana ao seu termo as exposições de António Júlio Duarte e Augusto Alves da Silva, de fotografia e vídeo, apresentadas pelo Centro Português de Fotografia na Cadeia da Relação; referidas em artigo anterior, são outros dois grandes momento do programa expositivo do Porto, que parece impor-se já como capital cultural. Assine-se, entretanto, a saída do livro Peepshow, de A. J. Duarte, que se impõe como uma das melhores edições do CPF.

#

24 Novembro 2001

Prémio Maluda para Fátima Mendonça
Na terceira edição do prémio anual de pintura atribuído a uma jovem artista

Fátima Mendonça venceu a terceira edição do Prémio Maluda, instituído por um legado testamentário desta pintora e destinado a galardoar anualmente um artista com menos de 40 anos por uma exposição individual de pintura realizada em Lisboa na anterior temporada. Depois de Ana Vidigal e Cristina Valadas, o prémio voltou a distinguir uma mulher, apesar dessa não ser uma condição do regulamento. Com uma dotação de cinco mil contos, trata-se de um dos mais importantes prémios artísticos nacionais, de valor igual ao Prémio EDP de pintura, recentemente atribuído a Pedro Calapez, e muito superior ao prémio oficial AICA-MC, concedido também anualmente pelo Ministério da Cultura por escolha de um júri da Associação Internacional de Críticos de Arte (AICA), com características de consagração de carreira. O júri foi constituído por José Augusto França e Fernando de Azevedo e por mais dois críticos da AICA cooptados por estes, Luísa Soares de Oliveira e Cristina Azevedo Tavares, além de José João Brito em representação da Sociedade Nacional de Belas Artes, que presidiu, conforme as disposições estabelecidas pelo legado. Fátima Mendonça foi premiada, por unanimidade, pela exposição que realizou em Junho na Galeria 111, a que deu o título «Eu Tenho Medo: lá, lá, lá, lá, lá...», sendo o respectivo catálogo prefaciado por Carlos França.
Tendo exposto regularmente, desde 1994, na Galeria Arte Periférica, a pintora fizera também uma exposição individual em 1999, no Porto, na Galeria Fernando Santos, que apresentou os seus trabalhos nas feiras de Madrid, Lisboa e Colónia. Nascida em Lisboa em 1964, Fátima Mendonça licenciou-se em Pintura na Escola de Belas Artes desta cidade, em 1990.  De acordo com a acta divulgada, o júri considerou «uma pintura de agilidade discursiva e provocatória servida por uma expressão pessoal impulsiva em que se confrontam duas realidades, uma imaginária e outra de conteúdo crítico.»
A artista apresentara pinturas e desenhos de grande formato onde dava sequência a uma produção de reconhecível teor narrativo, construída com referências a situações relacionais de infância e de afirmação feminina, onde o enfrentamento conflitual com o mundo é vivido entre a sedução e a culpa, o desafio e o pesadelo, enquanto a inscrição de palavras e frase lhes confere a sugestão de um diário emocional, de cunho confessional ou ficcionado.
Uma frequente evocação do espaço doméstico (a casa, a cozinha, que antes se alargara a um original tratamento da paisagem) surgiu nessa última exposição dramatizada por uma veemência gestual inesperada, enquanto uma iconografia recorrente - bolos, coelhos, corações, sexos - assumia uma intensidade expressiva de apocalíptica, em cenários interiores claustrofóbicos ou incendiados. Em alguns trabalhos, a arena de circo ou de tourada (e a figura de uma mulher toureira ou equilibrista, enquanto personagem auto-referencial) voltavam a estar presentes como metáforas de um mundo de espectáculo e lutas cruéis.
Com um percurso individual e de crescente notoriedade, Fátima Mendonça é um dos artistas que mais se destacaram ao longo dos anos 90, embora à distância do que alguma crítica e as instituições dominantes (onde nunca expôs, aliás) procuraram estabelecer como as tendências características da década, das quais quase sempre se pretendeu excluir a prática da pintura. Mas por vezes, como agora sucedeu, reconhece-se que é à margem dos estilos colectivos que se constroem as obras que mais importam, as criações pessoais, independentes e originais.
 

 
"Com papas e bolos..."
Mais um episódio da história que Fátima Mendonça vem contando em pintura
2002 Expresso Cartaz de 12 Outubro 2002
 
Galeria 111, Porto, até 9 de Novembro

Foto «Para te fazer não tem nada que saber III», 2002, pastel de óleo e lápis de cor sobre papel

«O pai, o João, eu com o meu vestido de couves e a mãe arranjados para a fotografia». Retrato de família, portanto, da fotografia à pintura, protagonizado por um eu-menina onde a pintora se projecta, devassando memórias e fantasias de infância ou tecendo-as como uma ficção continuada, com que nos enleia de exposição em exposição, crescendo como pintora. Em vez de cabeças, quatro grandes sacos de bolos sobre o fundo quase branco, apenas esboçado, todos cheios de doces redondos com uma cereja em cima. Retrato paródico ou cruel que prolonga um grande desenho da exposição anterior, onde uma menina-bailarina dançava entre coelhos, com a sua cabeça de bolos, segurando duas bandarilhas-espetos com mais bolos, a enfrentar a vida - «eu tenho muito medo», lia-se. As bandarilhas vinham de uma menina-toureira deixada sozinha na arena, que noutros quadros passou a ser pista de circo, e então a menina-acrobata equilibrava-se sobre o arame com as suas asas feitas de bolos, «do tamanho de pequenos punhos de criança», numa exibição mais que desajeitada («andar e voar e fazer có, có, cócó», escreveu ela numa das obras desse ciclo, não fossemos não querer reconhecer o que víamos). Os dejectos, envoltos em invólucros ovais, em ovos, aparecem agora a preencher o espaço imenso (mais de dois por três metros) de uma tela que já se vira na Arco, em versão entretanto retrabalhada, toda ela rodeada por um mimoso folho de tecido e lã, onde, entretanto, à referência à «casa cagalhona» se somou o subtítulo «Incubadora».
A forma redonda da arena das touradas, da pista do circo, da gaiola que prendia a menina-pássaro, da rede circular onde, na exposição de há um ano, se acumulavam corações bem vermelhos («eu tenho de chorar mas esqueço-me porquê»), da forma (fôrma) de bolos e da grelha do fogão, é agora incubadora e dela nascem «meninos com creme de chocolate e meninas com doce de morango» («bolos para te agradar»). São as novas personagens das mais recentes obras de Fátima Mendonça, «bolos de pão, como filhos», acompanhados pela respectiva receita e pelo registo laborioso das centenas de unidades diariamente produzidas na fábrica doméstica, a cozinha de tantos outros quadros: «Para te fazer não tem nada que saber», afirma o título da exposição.

Os bolos-filhos surgem bem reais como pães comestíveis numa instalação-montra e também em vários grandes desenhos a pastel de óleo, saindo de uma grande forma de bolos que se prolonga em vestido de menina (a mesma rede circular, prisão, casulo e ventre) visto pendurado num cabide ou, noutro caso, desajeitadamente envergado («o vestido do inferno») - e aí, decifrando as garatujas e percorrendo os escritos, vêem-se sexos femininos, «as minhas vergonhas» de outros quadros, urinando para o ar («como um rapaz»). Não estamos na cozinha, de facto, mas na vida, a enfrentar o mundo com terrores e desejos, escavando a memória entre o exorcismo e a ironia.
«Deixar que este universo mental tenha uma vida visual, que encarne uma turbulência que não se limite a desenvolver um relato literário ou memorial é o desafio permanente desta obra em cada momento que ela se revela», escreve Celso Martins no seu prefácio para o catálogo. Desafio vencido. A narrativa não se substitui ao que está a acontecer sobre a tela ou o papel, fixada antes de surgirem (como sucede na ilustração e na pintura literária) os desenhos pintados com a urgência aqui visível das suas grandes pinceladas negras e das manchas invasoras, de vermelho-sangue: o que importa passa-se à nossa frente, no espaço branco do suporte, como um desafio oferecido à nossa própria capacidade de imaginar. É o impacto visual de cada obra, tantas vezes com a violência do grito, que nos faz precisar de um fio narrativo que «explique» o que vemos, obrigando-nos, para segurança nossa, a decifrar as anotações escritas ou rasuradas, a reconhecer personagens e a inscrevê-las na «estória» já longa da obra de Fátima Mendonça, que não importa se é ou não a sua história pessoal, íntima. Como acontece com Louise Bourgeois (a mãe-aranha, a oficina doméstica de restauro de tapeçarias, o quarto-cela) e com Paula Rego, por exemplo, mas os exemplos seriam quase todos femininos, o teatro do mundo está muito próximo da vida, a arte conduz-nos por abismos e sonhos reais, tão fundos que raramente os podemos ver.

sábado, 13 de abril de 2002

1998, 2002, 2004, Culturgest, Colecção CGD

 1998