Falar de pintura pintando
09 Maio 98, Expresso Cartaz, pág. 25
«Se o tema de um quadro se pudesse expressar por palavras, não teria havido necessidade de o pintar»,
 escrevia Walter Sickert em 1910. O mesmo foi dito vezes sem conta, 
antes e depois (variando o que se entende por «subject»), e Batarda 
parece voltar a mostrá-lo nos seus quadros, renovando a diferença entre o
 olhar e o comentário («o completar de uma obra de arte inicia um desentendimento que' é eterno», escreveu em 1992). O comentário sobre o comentário poderá ser um caminho contra esse desentendimento? 
Ao
 chegar ao fim a retrospectiva, é certamente curioso rever o texto de 
introdução ao respectivo catálogo, onde a obra de Batarda é apontada 
como uma das «mais marcantes e menos bem conhecidas da segunda metade do século em Portugal».
 Por um lado, é cada vez mais oportuno pôr a hipótese de que as obras 
maiores não são hoje as mais conhecidas, numa situação em que a 
circulação da informação parece ser total, globalizada e sem entraves, 
censórios ou outros. Esta semana, pôde constatar-se que um dos maiores 
artistas das últimas duas-três décadas, Avigdor Arikha, é um pintor 
desconhecido e cujo nome não faz parte da chamada cultura geral - e o 
próprio Arikha me indicou um pintor norte-americano, Rockstraw Downs, 
que ele situa entre os maiores (ou melhores, já que veio à Gulbenkian 
defender a possibilidade do critério da qualidade em pintura), mas não o
 encontro referido em qualquer livro ou dicionário, sem deixar por isso 
de atribuir a máxima credibilidade ao juízo do pintor e erudito 
israelita-parisiense. 
Por outro lado, é significativo que se 
considere pouco conhecido um artista de quem se apresentam 200 números 
de catálogo que são propriedade de coleccionadores quase sempre 
particulares (a regra mais frequente das «antologias» é a atribuição à 
colecção do autor ou da galeria) e cuja exposição foi recebida com uma 
cobertura de imprensa (entrevistas, criticas, etc.) e uma atenção do 
público que se devem considerar muito pouco habituais. Esta passagem do 
catálogo parece assim interrogar o facto de Batarda ter estado ausente 
de todas as grandes representações institucionais que pontuaram a década
 («Tríptico», Europália'91; «10 Contemporâneos», Serralves 1992; «Depois
 de Amanhã», Capital Cultural 94; representações em bienais e outras). 
Ou seja, parece pôr em causa o mecanismo dominante das escolhas 
públicas, uma vez que a estas se associa uma certa ideia de visibilidade
 ou «conhecimento».
Carlinga , 3 (Small egg-shaped tartan ptg - verde, 1991, 90x60cm.
 
Outro ponto interessante da mesma introdução
 assinada pelos directores do CAM, que é um texto penetrante e uma boa 
síntese das interpretações da obra de Batarda, é a ideia - formulada com
 referências a Jasper Johns e a Beckett, por sinal, nomes de primeira 
importância - de que «a pintura-pintura» de Batarda «nos fala da impossibilidade de falar seja do que for».
 Na realidade, há um «excesso» de palavra na obra de Batarda (as 
inscrições explícitas nas aguarelas, as palavras muitas vezes cifradas 
dos acrílicos, os títulos dos quadros) e também à sua volta (os seus 
textos expostos, os prefácios às exposições, as entrevistas, críticas, 
etc.), que não nos permite admitir «a impossibilidade de falar seja do 
que for», o que é manifestamente possível, mas, muito precisamente, 
apontam a dificuldade (ou impossibilidade, no limite) de falar sobre a 
pintura. 
Existia no primeiro período da obra de Batarda a 
possibilidade de um equívoco: o de se crer que a pintura «fala», de se 
entender «o discurso pictórico como realidade linguística»
 (na mesma introdução) ou de se ver uma pintura como uma imagem para 
«ler», no caso presente, como um comentário crítico (que também era) 
sobre a actualidade política, cultural e artística. O próprio autor, com
 o seu gosto pela autodenegação, autorizou essa «leitura» que reduz a 
linguagem pictural ao assunto, esvaziando o «como» na enunciação de «o 
quê». 
\Na segunda parte da carreira de Batarda acentuar-se-á «um trabalho ainda mais hermético e codificado sobre a pintura e os seus mecanismos»?
 Redondamente, não. Por isso, nas exposições de 1982-3, os acrílicos 
apareceram genericamente intitulados «Candeeiros, Cubismos, Cães e 
Colunas», o que devia servir de explicação bastante. Por isso, o 
prefácio de 1985 se intitulava «Decorações» e nele se afirma: «Falava de pintura pintando. Nunca eu quis fazer outra coisa»; «Os quadros são (...) o seu próprio manifesto, são afinal parábolas morais...»; são aquilo que «estão a ver», etc. Já contra a ideia da descodificação - ou seja, de uma leitura «mais preocupada com os aspectos analógicos, psicológicos ou sociais do que com os aspectos visuais» (citando agora Avigdor Arikha) -, Batarda acrescentava em 1986: «Valha-me Deus, as coisas que as coisas que as coisas lhes (nos?) parecem!» 
Entretanto,
 também não é de «abstracção» que se trata, no sentido da procura de uma
 transcendência para além da representação do real visível ou de uma 
interrogação formal sobre os meios da linguagem pictural (a paródica 
inscrição «École de Paris» alertava repetidamente contra esses erros de 
leitura). «Destituídos de reconhecibilidade, sem sentido, os 
quadros "têm que ser" indiferentes, indeterminados, e, ao mesmo tempo, 
manifestam que existem, eles próprios, como dúvidas» (1992 - 
com data de 1892 e, por isso, antes do modemismo ... ). Indiferença é a 
palavra-chave (mas não a chave de qualquer saber hermético e codificado)
 que acompanhava então um diálogo pictural evidente com o Duchamp de 
1913-17 (não com a sua revisão nos anos 60) - «pelo menos um objecto reconhecível da tradição modernista»: Fontaine, Séchoir à Bouteilles, 3 Stopages-Étalon (?). 
Indiferença em vez de indizível, ou, por outras palavras, «ironia, distância, saber» (92). Depois disso, tornou-se-lhe possível abrir o seu trabalho em diversificadas direcções, como aconteceu. 
Ao falar de pintura pintando, possibilidade sempre reafirmada em pintura - a que não convém chamar «pintura-pintura»
 -, Batarda dá-nos a ver que a relação com a pintura é uma experiência 
do olhar (retiniana, depois de Duchamp). Martin Avillez, no catálogo, 
diz a mesma coisa ao escrever que «a sua pintura foi e é uma pintura sobre as possibilidades de apreciar e julgar». Mas não é possível falar de «pintura sobre», no caso de tratar-se, como é o caso, de grande pintura.
Interior, 1992, 130 x 95 cm
Duas notas
7 Março 98, Expresso Cartaz Exposições, pág. 19
A relação com o museu marca a pintura de Batarda e a primeira  retrospectiva, 25 anos de trabalho, comprova-o plenamente, desde logo pela extensão do trabalho mostrado. Valeu a pena tirar partido das  circunstâncias da produção (comissariada por Alexandre Melo) e contrariar as regras de bom gosto do «design» expositivo para submergir o CAM com uma obra que inclui o excesso, a diferença e a provocação entre as suas marcas próprias. A última individual foi em 1992 e com o intervalo ganhou-se um efeito ainda mais «esmagador».
01 Maio 98 pp. 28-29
Batarda «coloca-se no centro do seu próprio sistema de crítica». A frase constitui um dos mais penetrantes comentários que a retrospectiva motivou, assinada por João Pinharanda («Público», 27/3/98). Poderia pensar-se que essa era a condição obrigatória para o reconhecimento de uma autoria, mas, afirmada como diferença chocante, perante a habitual dependência da informação e do gosto dominantes ou a gestão de traduções estilísticas correntes para português, ela vale como demarcação do projecto excepcional de uma obra.
É num sentido próximo que se pode entender Martim Avillez, num dos ensaios do catálogo, quando considera que a pintura de Batarda «é uma pintura sobre as possibilidades de apreciar e julgar». Trata-se, por um lado, de um importante deslocamento desde anteriores interpretações, favorecidas pelo próprio pintor, segundo a qual a sua pintura constituía um «comentário permanente ao estado actual das artes visuais» (1975), «fazendo coisas contra» («foi esse o meu programa desde sempre», dizia Batarda, ainda em 1992).
À hipótese de uma produção reactiva, que se oferecia como pista de compreensão (o comentário sardónico da actualidade política e artística inscrito no imaginismo narrativo da pintura sobre papel; a resposta ao jogo das conjunturas, com o ocultar da figuração nos acrílicos dos anos 80, etc), foi-se substituindo a distância e a indiferença, numa pintura que sabe, cada vez mais, que «a oposição à estupidez não tem que ter sucesso» (92) e que diz admitir «a incapacidade, a inoperância e o não-valor da pintura e da arte» (entrevista de E. Batarda no «Cartaz» de 14/3/98), continuando a praticá-las e, mais ainda, constituindo-se como centro de um «sistema de crítica» e repensando «as possibilidades de apreciar e julgar».
Contrariando a hipótese de niilismo levantada também por J. Pinharanda, esta pintura, que, de facto, se foi tornando mais erudita do que crítica, está do lado de uma vontade de reconstrução dos saberes, dos recursos e dos poderes da pintura. O enfrentamento com Duchamp que marcou a sua exposição de 1992, dominada pelo tomar dos dois «ready made» essenciais como assuntos da pintura, sujeitando-os à exploração de sucessivos desvios interpretativos, não tinha outro sentido.


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