A 49ª edição é frágil na mostra dos países, pelo menos aos olhos
estrangeiros a cada um deles. As atenções voltam-se para o «centro» e as
pulsões multiculturais ficam sempre por justificar-se, porque o
localismo dos grandes é muito mais poderoso. É o caso norte-americano,
onde Robert Gober aparece debilitado num exercício de espaços e objectos
perdidos. Ou da França de Pierre Huyghe, com jogo de luzes no tecto,
interactivo, e vídeo com heroína Manga.
Já o britânico Mark Walling (n. 1959) dispara uma rajada de ideias
jocosas com provocações à pátria e a Deus, desde a bandeira nacional de
cores trocadas (irlandesas) e a falsa fachada do pavilhão até ao
demasiado humano "Ecce Homo" moldado em resina com coroa de espinhos de
arame farpado dourado ou à música de Handel a acompanhar o trânsito em
«slow motion» por uma porta de aeroporto ("O Limiar do Reino"). Em "Anjo", o
próprio artista com bengala de cego vai descendo uma escada rolante que
sobe, entoando uma melopeia: fica ilustrada com humor bastante a
desrazão do mundo e da arte.
Mais sério é o pavilhão alemão (estilo imperial de 1938) onde uma
estreita porta, ao cabo de uma hora de espera, dá acesso a um velho
prédio que se percorre como um labirinto de espaços alterados, secretos e
absurdos, que desembocam em escadas e corredores cada vez mais
estreitos, em quartos despojados ou com estranho mobiliário, em portas
fechadas. Vem à memória o esconderijo de Anne Frank, mas a situação
ultrapassa todas as referências, partindo de um mundo pessoal e
proporcionando uma insólita experiência. Há vários anos que Gregor Schneider (n. 1969) tem recriado esse
espaço, já comparado à estrutura do inconsciente, agora premiado com um
justo Leão de Ouro para o melhor pavilhão.
Das periferias fica na memória o chão lavrado de pintura do polaco
Leon Tarasewicz, ambiente de cor a compensar a penúria da modalidade; o
humor do velho egípcio Ramzi Mostafa, pioneiro modernista em trânsito
entre culturas; a dureza auto-sacrificial dos vídeos de Ene-Liis Semper
(Estónia). O brasileiro Ernesto Neto é mais eficaz no Arsenal, com os
odores exóticos dos seus volumes-sacos de pano. Sem a ambição de se ver
tudo.

Entretanto, a mostra de Harald Szeemann é em si mesmo uma dupla volta
ao mundo: inventário dos temas que fazem o bom e mau humor da
Humanidade, mapa dos jogos e angústias que moldam o quotidiano vivido e
também a gratuitidade ou gravidade da arte. O projecto é em absoluto
generalista, reúne artistas de todas as idades e disciplinas, e o autor
atribuiu-lhe a ambição e o título de «Palco da Humanidade». Associou-o à
polémica exposição fotográfica «The Family of Man», de 1959, num apelo
«ao que há de eterno no homem, na base dos enraizamentos locais», e ao
programa humanista de «Identidade/Alteridade», de Jean Clair, Veneza'95,
mas recusando separar figuração e abstracção em arte. Chamou
«Plataforma do Pensamento» ao coração da mostra, onde colocou o "Pensador" e "O Homem que Marcha" de Rodin ao lado de esculturas populares ou
ingénuas e divindades hindus.
Mal recebida por alguns pelo seu ecletismo e, diz-se, por não trazer
nada de novo, a opção do velho comissário, que em 1969 e 72 («When
Attitudes Become Form» e Documenta de Kassel) ajudou a consagrar as
tendências mais radicais, parece voltar-se da arte para o mundo: «Não
estamos face a novas revoluções da arte, como no fim dos anos 60, mas
num clima de crescente interesse pela existência humana».
Apesar do predomínio do vídeo («a jovem geração exprime-se com a
imagem em movimento»), Szeemann fez saber do seu interesse em mostrar
pintura e lamentou que só pudesse dispor do pavilhão italiano para tal,
por razões de climatização. Aí juntou alguns nomes consagrados (Cy
Twombly, Gerhard Richter, Helmut Federle) e jovens como o filipino
Manuel Ocampo, o alemão Neo Rauch e o costa-riquenho Federico Herrero. E
ele próprio se distanciou do excesso de projecções, que constitui uma
queixa recorrente dos visitantes: «Espero que em breve haja menos vídeo,
porque começo a estar um pouco cansado...»
Claramente dirigida a um largo público, a mostra associa obras de
impacto certo, como os manequins de Ron Mueck, que levam a presença do
corpo ao extremo da incerteza entre ilusão e verdade, central a toda a
arte (construtor de bonecos para séries de TV, Mueck fez um Pinóquio
para servir de modelo a Paula Rego, de quem é genro, e nunca mais
parou), a peças de escândalo de recentes mostras londrinas (o papa caído
de Maurizio Cattelan, os «clips» eróticos de Chris Cunningham), mas
também a outras produções mais discretas ou poéticas, num percurso
estruturado por tópicos antropológicos, sem ser escolar ou demagógico.
Um núcleo aproxima figurações do corpo (realismo de Mueck e pequenos
monstros criados por Xiao Yu; vídeos contemplativos ou manipulados),
adiante há referências ao mundo colonial (imagens recuperadas e algum
exotismo multicultural), depois ao desporto (dois treinadores reagem a
um jogo invisível; um jogo de futebol disputado de fato completo; duas
equipas de futebol e basket no mesmo recinto, com referência a
segregações raciais). Diante de uma série fotográfica sobre Chernobil
estão os surpreendentes desastres de automóvel, desde os anos 50, de um
polícia suíço (Arnold Odermatt); diante dos corpos excessivos do cinema
de Cunningham está a observação microscópica e pictural do vídeo de Bill
Viola. A tradição da fotografia documental é recuperada num trabalho de
Cristina Garcia Rodero sobre cultos vudu e o fotógrafo Nick Wapplington
distribui posters de falsos portais da Internet pelos corredores.
Não se trata de sacrificar as obras às intenções da montagem, antes
de inseri-las em conjuntos significantes que as justificam ou valorizam,
mesmo quando é escasso o impacto individual. Por outro lado, o próprio
pluralismo temático e a diversidade das linguagens e das formas concede
ao espectador um lugar soberano onde o envolvimento emocional ou
intelectual com algumas obras pode coexistir com o desinteresse ou
rejeição de outras, sem quebra da relação de empatia habilmente tecida
por Szeemann, mesmo que pareça ceder a compromissos com vedetas (as
fotos de calendário de Vanessa Beecroft) ou acolha projectos infelizes <?>,
como a instalação final de Kabakov, "Nem Todos Serão Levados para o Futuro",
um apeadeiro com quadros caídos e o comboio que parte... Próxima, a
gigantesca espiral de oblíquas paredes de aço, de Richard Serra, é uma forma que
parece nascer do espaço fabril do Arsenal, mas provocar tonturas (a
alguns) é um destino pouco credível para uma escultura penetrável.
O lixo faz parte da actualidade artística que Szeemann condensa na
sua mostra (o saco de plástico passado a bronze de Gavin Turk, "Saco de lixo"). Um gesto de humor
sintetiza no quadrado de um púbis recortado um dos ícones que marcou o
século (Malevitch) e a carne sexuada que a abstracção construtiva
combateu: a obra de Tanja Ostojic, jugoslava, n. 1972, terá sido vista
por Szeemann, está reproduzida no catálogo mas não é «exposta». A
nostalgia e a caricatura da pintura ganham uma presença tão simbólica
quanto real com os dois operários que vão cobrindo sucessivamente de
branco e de preto, durante os cinco meses da Bienal, as paredes de uma
galeria (ideia do búlgaro Nedko Solakov, n. 1957).
Do impossível inventário ressalvem-se as presenças portuguesas: o
vídeo de João Onofre, Casting, e a instalação de Egon Ekoyan e Julião
Sarmento, na qual imagens fragmentadas de corpos se projectam num
estreito corredor onde o espectador quase esbarra no ecrã. Eficaz
provação oferecida ao voyeurismo de cada um e ruptura com a rotina da
passiva contemplação de tanto vídeo.
(Fotos: «Uma Vida (Preto e Branco)», de Nedko Solakov, com operários em
actividade durante cinco meses / «Sem Título (Rapaz)», de Ron Mueck /
«Saco de Lixo», em bronze pintado, de Gavin Turk / «Quadrado Negro
sobre Branco (no meu Monte de Venus)», de Tanja Ostojic / Espiral de
aço de Richard Serra/ «Anjo», vídeo de Mark Wallinger)
history-biennale-arte
The 49th International Art Exhibition took place from June 10 to November 4, 2001, under the title Plateau of Humankind.
It was directed, as the 1999 edition, by the Swiss critic Harald
Szeemann and attracted over 243,400 visitors. Szeemann said that “No set
theme was applied in choosing the artists; indeed, it is their work
which decides the dimension of the event. The Venice Biennale hopes to
serve as a raised platform offering a view over humankind”. A key work
by Joseph Beuys, The End of the Twentieth Century, was
exhibited. According to Szeemann, “It was Beuys above all who was the
indefatigable spokesman for the concept of liberty”. Alongside Beuys,
various other artists of the 20th century were exhibited: “Cy Twombly,
whose generous gestures restore myth to the modern world; Richard Serra,
the creator of a new concept of the monumental; Niele Toroni, the
champion of painting as trace. Then come a number of those contemporary
artists who have focused on the human figure – for example, Ron Mueck”.
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Expresso Cartaz Actual 9/6/2001
Prémios da Bienal de Veneza
Cy Twombly e Richard Serra distinguidos com dois Leões de Ouro
A
49ª edição da Bienal de Veneza, que hoje se inaugura, atribuiu dois
Leões de Ouro aos artistas norte-americanos Cy Twombly e Richard Serra,
designados como mestres da arte contemporânea. As distinções foram
concedidas por proposta de Harald Szeemann, director da Bienal e
comissário da exposição paralela «Palco da Humanidade», em que ambos
participam. Outros prémios são hoje anunciados, para o melhor pavilhão
nacional, para mais outros três artistas representados na Bienal e ainda
para quatro jovens participantes.
Cy Twombly nasceu em Lexington,
Virginia, em 1928, pertencendo à geração de Robert Rauschenberg e Jasper
Johns, marcada pelo expressionismo abstracto. A sua pintura,
inicialmente informal, caracteriza-se por uma despojada e elegante
escrita de sinais alusivos, próxima dos «graffiti», em que comparecem
gestos gráficos, letras e algarismos ou mais raras figuras, numa
aproximação gestual a símbolos culturais e temas da mitologia helénica. Depois de ter viajado por África, Espanha e Itália, deixando-se
marcar pelo fascínio da antiguidade clássica, instalou-se em Roma,em
1957, onde ainda reside. A sua obra, luminosa e discreta, influenciou os
pintores alemães e italianos revelados nos anos 70.
Richard Serra, escultor, nasceu em São Francisco em 1939, sendo
famoso pelas suas paredes ondulantes em aço industrial, com grandes
dimensões, de herança minimalista, onde se manifestam questões de escala
e equilíbrio. A sua colocação em espaços públicos foi várias vezes
objecto de contestação.
A Bienal de Veneza decorre até 4 de Novembro, com a presença de João
Penalva como representante oficial de Portugal, enquanto João Onofre,
com um vídeo, e Julião Sarmento, com um filme em colaboração com Atom
Egoyan, participam na exposição de Harald Szeemann.