Um lugar na cidade
3-V-97 Cartaz
JOÃO CUTILEIRO prepava-se há perto de 40 anos para fazer uma estátua equestre — uma pequena maquete em bronze, de 1962, pensada precisamente para aquele lugar foi mostrada em Lagos, quando, a propósito dos 20 anos do D. Sebastião (1973-1993), se puderam rever os seus projectos de esculturas para espaços públicos. Agora, porém, optou por destruir o plinto que existia no cimo do Parque Eduardo VII, para onde se chegaram a prever, no regime anterior, as figuras de Nuno Álvares Pereira ou D. João I. O cavaleiro que alguém terá ainda de encomendar ao escultor irá para outro lado.
Ali, no exacto enfiamento do Marquês de Pombal e do obelisco do Rossio, sobre o panorama da cidade e do Tejo, que é também um lugar fisicamente marcado pela monumentalidade do regime anterior (nas colunas de directa referência nazi <quando muito fascista, mas é mais romana e imperial> e, através desta, de invocação de uma mitificada ordem clássica — recorde-se, por exemplo, o projecto de Albert Speer para as portas de Salzburgo, de 37, incluindo um plinto-altar vazio), Cutileiro instalou uma fonte que é, ao mesmo tempo, monumento evocativo e anti-monumento. Não se tratava de substituir os emblemas de um regime pelos de outro, mudando apenas de sinal um acto de celebração do poder (questão ideológica e ético-artística essencial), mas de evocar o 25 de Abril no seu sentido mais decisivo de deposição de uma ditadura e de início de um projecto de democracia que será «o que nós quisermos», como diz o escultor.
Como diz Cutileiro, o 25 de Abril, data histórica, «é anti-monumental por definição», no acto do derrubar um regime imóvel e autoritário (como um monumento) e de recolocar um destino colectivo nas mãos de um povo. E a sua intervenção de escultor também não quis ser um monumento no sentido tradicional de consagração de um momento congelado no tempo e de sacralização da distância entre os símbolos de um poder, divino ou heróico, e o espaço comum da cidade. A sua «Evocação do 25 de Abril», título presente na necessária lápide inaugural, é uma fonte, tipologia construtiva em que, neste caso, se põe em evidência quer o significado da permanente agitação da água em movimento quer a ideia de que «a fonte é a origem» (J.C.).
A abordagem dos emblemas formais e dos seus sentidos — a fonte e o cravo, o derrubar de uma forma prévia autoritária, a ideia de inacabamento de um processo sempre em construção, a recusa de uma «mensagem» escrita (mas estão lá as marcas de trabalho trazidas da pedreira), a instalibilidade da água, a forma fálica presente em qualquer obelisco ou coluna, mas que aqui remete para a configuração dos megalitos alentejanos — seria inesgotável e prolonga-se com absoluta coerência no equacionar da problemática da escala. A opção do escultor foi a de contrapor uma dimensão humana ao gigantismo autoritário das colunas pré-existentes, transformando um lugar votado à representação do poder (com maiúscula, tal de usa em algumas concepções da arte) num espaço de uso público, de lazer e de prazer: os degraus que limitam um dos lados do lago são um convite directo a mergulhar os pés na frescura da água corrente; o arranjo do espaço envolvente é propício à permanência, inventando uma praça num lugar previlegiado da cidade mais ainda inóspito. Às memória romanas que as colunas transportam, com sentido imperial, contrapõe-se a lembrança das fontes de Roma, despidas das suas mitologias de Neptunos e criaturas marinhas, que também não teriam lugar na evocação do 25 de Abril.
A intervenção de João Cutileiro, com o sentido político da sua reflexão sobre a data e sobre ideia de monumento, com a ironia inerente a uma modernidade que já não quer ser construtora de mitos (ao contrário dos modernismos vanguardistas), exercida na inteligência das formas e também dos seus sentidos, está, como sempre, à beira do escândalo. Como o seu D. Sebastião de Lagos, estátua de menino e equívoco herói nacional, a fonte-evocação do 25 de Abril é um monumento controverso. O que significa, se for necessário dizê-lo, que o escultor não se limita a gerir a sua própria consagração, que a sua obra continua a ser inventiva e problemática.
Vale a pena, por isso, considerar uma primeira explicitação pública das resistências com que a obra de Cutileiro se enfrenta, já expressas num texto de Rúben de Carvalho («Capital, 29 de Abril) — mas sem de modo algum pôr em dúvida o seu «direito a dar opinião», por falta de uma qualquer especialização. O que importa é ver como é decisiva a questão da escala na procura de uma monumentalidade que, sob a aparência de um problema de dimensões, tem a ver com significados, concepções de poder e autoridade, com ideologias.
«O problema do monumento ao 25 de Abril é que não tem o tamanho, a envergadura, a proporção, o significado do sítio onde está», diz R.C. Duas afirmações anteriores valem como sintomas de uma recusa mais profunda: por um lado, considera que as duas colunas (talvez por efeito de uma contradição entre a encomenda fascista e a autoria democrática de Keil do Amaral, a qual seria essencialmente decisiva, embora sem tradução formal) «têm equilíbrio, proporção, dignidade, coerência, ao nosso lado acompanham na sua altura os quilómetros de vista...». Esses atributos são as de uma ordem que é a da autoridade e não a da vida, são pretensas marcas de um poder que se afirma na arrogância da altura. Noutro passo, atribui ao D. Sebastião, apesar da sua pequena escala, «o fascínio e a grandeza de um monumento» — é a recusa a entender a mesma condição de anti-monumento com que Cutileiro soube sublinhar o sentido mais radical da sua última obra.