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sábado, 28 de agosto de 2004

2004, Serralves, "Circa 1968" 3, Arte e Política (Interfunktionen)

 Expresso 28-08-2004

"Arte e política"


Os anos conturbados de 1968 a 1975 revistos numa perspectiva que dissocia a vanguarda artística e o envolvimento político

Cinco anos depois da exposição que inaugurou o Museu de Serralves, regressa-se a «Circa 68», ou seja, a algumas das manifestações artísticas de um tempo de todas as contestações, quando terminava a era de optimismo e desenvolvimento acelerado que, nos países do Ocidente, se seguiu ao fim da II Guerra Mundial. Após a exacerbação da Guerra Fria, com a edificação do Muro de Berlim, em 1961, a crise dos mísseis em Cuba, no ano seguinte, e o envolvimento militar no Vietname, em 1964, tem início um década de radicalização política e social que extravasa os quadros partidários e parlamentares, prolongando-se nos movimentos antiautoritários e num contexto de «mal-estar cultural» antiburguês de profundas consequências. Os ecos da Revolução Cultural na China e o terceiro-mundismo da «tricontinental» de Havana, a partir de 1966, as revoltas estudantis e Maio de 68, os diversos esquerdismos e a passagem à guerrilha urbana e ao terrorismo (a fracção Exército Vermelho, na Alemanha, e as Brigadas Vermelhas, em Itália, a partir de 1970), a invasão da Checoslováquia (68) e o golpe de Estado que derruba Allende (73) são alguns marcos essenciais.

Nada ou quase nada desse muito conturbado mundo político está explicitamente presente na actual mostra (a excepção, sem a pretensão de ter assistido a todas as projecções, será um filme de Wolf Vostell, de 1969, onde se vêem apenas as palavras «estado de emergência» projectadas sobre as paredes de Munique ao longo de sete soporíferos minutos). Poderá dizer-se que, nesta recuperação museológica dos objectos e documentos das acções artísticas destes anos de revolta, a arqueologia oculta a história.

«Por Trás dos Factos», título que no Porto não se traduziu (ao contrário do que aconteceu em Barcelona), sugere uma ligação subterrânea ou oculta da arte com os acontecimentos sociais e políticos. Mas é, de facto, a um fechamento da arte sobre si mesma que quase sempre se assiste, enquanto experiência dos seus limites (a inovação, ainda) e fronteiras (incluindo tudo o que poderia ainda ser não-arte), «reflexão» sobre a identidade essencial do fazer artístico, os seus códigos linguísticos e o contexto da circulação dos objectos (por exemplo, Hans Haacke apresenta os sucessivos proprietários de um quadro de Seurat), ou como a sua própria autocontestação («a arte corrompe», dizia Jochen Gerz; é «objectivamente reaccionária», insistia Buren).

Observa-se em paralelo uma ensimesmada e narcísica exposição do artista em si mesmo, do seu rosto e corpo, muitas vezes nu e em vários casos em acções autosacrificiais (Gunther Brus e Valerie Export), que podem ter a interacção com o espectador como pretexto ou privilegiar o exame conceptual do «eu» físico e psíquico no espaço fechado do estúdio (nas impressivas obras de Bruce Nauman). Preferindo os comportamentos artísticos às obras, numa lógica de recusa da autonomia do objecto de arte e do seu destino mercantil, «há um deslocamento da obra dita aurática para o artista aurático... a dessacralização da arte culmina na fetichização/histerização do artista», como escreve Birgit Pelzer num importante texto do catálogo que foi traduzido em A Obra de Arte sob Fogo. Inovações Artísticas 1965-1975 (co-edição de Serralves com o jornal «Público»).

No entanto, ao contrário do que leva a supor a escolha das obras e documentos expostos (sempre de artistas que colaboraram na revista alemã «Interfunktionen», mas sem coincidirem com as aí reproduzidas), os anos em causa são marcados por uma tendência generalizada da arte para a sua politização, o que, entre muitas intervenções de circunstância (e de instrumentalização da arte), inclui o uso militante das imagens e várias formas críticas de realismo.

A alegada neutralidade da pop é interrompida em 1965 pelo F-111 de Rosenquist, Rauschenberg utiliza imagens da actualidade serigrafadas, Kienholz é um crítico violento da sociedade americana, Golub e Nancy Spero são artistas políticos, Mark Di Suvero desenha a monumental Tower for Peace em Los Angeles onde se acumularam pequenos quadros de 400 artistas (1966) e exila-se depois em Itália, as «Angry Arts Week’s» sucedem-se em 1967, a Art Workers Coalition é criada em 1969, etc. Muitas obras de Öyvind Falström têm um explícito conteúdo militante, a Figuração Crítica francesa organiza em 69 a Sala Vermelha pelo Vietname, e o Salon de la Jeune Peinture declara-se ao lado da classe operária; na Alemanha, em 1970, grandes colectivas intitulam-se «Funções da Arte na Nossa Sociedade» e «Arte e Política»; o Equipo Crónica intervém na Espanha franquista; Baselitz e Schonebeck, Lupertz e Penk enfrentam o passado alemão, Polke propõe com ironia o Realismo Capitalista. A cronologia publicada em Face à l’Histoire (Centre Pompidou/Flammarion, 1996) é eloquente.

Dedicando-se às neovanguardas dos anos 60/70, circunscrevendo um universo de experimentação interdisciplinar com diferentes «media» e formas artísticas em que o vídeo toma um papel cada vez maior entre as linguagens artísticas, a abordagem da exposição toma a condição de vanguarda como um valor intrínseco, desfazendo-se das formas intervenientes do compromisso político. O ponto de vista «artistically correct», que dissocia a vanguarda artística e a política, pretende ser também uma forma de localizar nessa década os inícios da arte actual: «Foi em 1968 que se inventou um fenómeno ao qual se deu o nome de ‘arte contemporânea’», diz o agressivo marketing de Serralves.

Behind the Facts. Interfunktionen 1968-75
Museu de Arte Contemporânea de Serralves, Porto, até 3 de Outubro

Keith Arnatt, «I’m a Real Artist», 1969-72
«Salsicha de Literatura», de Dieter Roth, 1969   

II

Expresso 04-09-2004

"Comércio de ruínas"
Segunda visita aos vestígios das rupturas artísticas de 1968

Esta exposição não se percorre numa circulação mais ou menos contemplativa por entre objectos. Em princípio não há, não deveria haver, objectos, mas sim acções e comportamentos, embora estes, recuperados como história, se assemelhem perigosamente a obras de museu. À contemplação, alegadamente passiva, de objectos de arte autónomos, desligados das circunstâncias do seu tempo e lugar, deveria substituir-se a interacção, o envolvimento cúmplice ou reactivo com os propósitos críticos que os motivaram, enquanto arte ou não-arte, contra as convenções artísticas e sociais suas contemporâneas. Estamos, é preciso notar, não no terreno da criação artística especializada, onde a especulação formal levaria sempre mais longe a crítica da tradição, mas no campo da revolução artística, da utopia social e do radicalismo político.
Quando, como escrevia o crítico francês Jean Clay na revista «Studio International» em 1970, se assistia «à agonia do regime cultural mantido pela burguesia nas suas galerias e museus». Mais do que uma ou várias visitas, aliás, seria necessário viver no museu e transferir a realidade colectiva do quotidiano para o seu interior, porque a coincidência romântica entre a arte e a vida foi uma ambição das neovanguardas das décadas de 60/70. Ou, mais prosaicamente, porque assim o exigiria a extensão dos numerosos filmes e vídeos que se exibem - a experiência seria de um aborrecimento mortal.

Entre as projecções eternizadas em «loop» ou em exibição rotativa, não se percam os 96 minutos do filme de Mauricio Kagel, La Baignoire de «Ludwig van», de 1969, uma das mais importantes obras «expostas», discretamente situada no fim da ala direita do museu. Vale a pena acompanhar a câmara que visita a casa onde Beethoven supostamente nasceu, através dos quartos imaginados por Ursula Burghardt, Joseph Beuys, Robert Filliu, Diether Roth, Stephan Wewerka e o próprio Kagel (uma sala de música integralmente revestida por pautas), enquanto se ouve a peça que compôs a partir das sinfonias do seu antecessor.

Neste caso trata-se de um filme e não propriamente da exploração de novos «media», a qual constituía uma das orientações essenciais da revista alemã «Interfunktionen», de 1968-75, cuja evocação serve de argumento à exposição, mas o seu carácter interdisciplinar, em conformidade com o interesse de Kagel pelo teatro musical, satisfaz a defesa da abolição de fronteiras entre disciplinas artísticas. Esta ambição, que já não era inovadora, tinha então como referência mais directa o movimento Fluxus, criado em 1962 nos Estados Unidos, com origem no ensino de John Cage, mas que na Alemanha teve um desenvolvimento menos dadaísta e zen e mais retoricamente político, com Beuys e Wolf Vostell. Os dois tiveram uma influência preponderante nos primeiros tempos da revista de Colónia, e a exposição inclui igualmente obras de Maciunas (as suas latas de alimentos não são arte pop, mas a sua caricatura), George Brecht e D. Roth.

A música, entretanto, está especificamente presente através de obras de Philip Glass, Steve Reich, Kagel e Jon Gibson, que se podem ouvir em auscultadores. Mas são as imagens projectadas que predominam na exposição, continuada, aliás, pela apresentação simultânea da «galeria televisiva» de Gerry Schum. É através do filme e também da fotografia que podem entrar no museu as acções que pretenderam sair dos espaços fechados do atelier e da galeria, com o propósito de intervir na natureza, de a tomar directamente como material, de reviver a ideia de sublime nas imensas paisagens americanas e/ou recusar a recuperação mercantil dos objectos. Seria este último aspecto que mais aproximou a revista dos artistas que se identificam com a Earth Art ou Land Art, como Robert Smithson (a sua Spiral Jetty é tema de um filme), Walter de Maria ou Richard Long.

Outra corrente que está presente através da mediação do filme e da fotografia é a da arte corporal, onde o corpo é usado como objecto ou matéria, nas «missas negras» dos accionistas vienenses (Günther Brus e Valerie Export) ou em acções de Bruce Nauman, Vito Acconci e outros, identificados com a Body Art, enquanto em Rebecca Horn é essencial a criação de próteses ou adereços. Com o aparecimento do vídeo portátil, em 1965, passava-se do registo documental de «happenings» e rituais a outro tipo de «performances» que exploravam a interacção com a imagem espelhada no ecrã (Body Press, de Dan Graham). Entretanto, as correntes do cinema experimental dos anos 50 e o «underground» dos 60 (Robert Frank e a contracultura beat, os Fluxfilms, Warhol) prolongavam-se no cinema dito estruturalista ou conceptual com a desconstrução ou destruição das qualidades materiais do filme (Paul Sharits, George Landow e Wilhelm & Birgit Hein).

O diversificado panorama que a exposição propõe recorta a realidade dos anos 68-75 a partir do activismo da revista «Interfunktionen», surgida da contestação à IV Documenta de Kassel e da agitação da Academia de Dusseldorf, protagonizadas pelo movimento Lidl de Immendorff (as suas pinturas de 1974 pretendiam-se maoístas) e por Beuys, então afastado do ensino. Ao contrário da informação de Serralves, é errado atribuir uma «reaccionária concepção de arte» a uma Documenta inteiramente voltada para a actualidade, que expunha a pop, a arte cinética, instalações ou «environments» e incluía Edward Kienholz, Öyvind Fahlström e também D. Roth e Beuys. No entanto, é oportuno acompanhar algumas questões de fundo que se levantam no catálogo e no livro co-editado por Serralves e o «Público».

Ulrich Loock, director-adjunto do museu, refere que, «dado o fracasso do projecto político da ‘geração de 1968’, não surpreende que hoje se suspeite que a revolução aparentemente bem sucedida verificada na arte cerca de 1968 tenha, na verdade, sido uma revolução conservadora», remetendo para a análise crítica de Birgit Pelzer sobre «estes anos extremamente politizados, amargos, apaixonados, rebeldes, utópicos».

Perdidas as ruas, as neovanguardas ganhavam, a troco da sua neutralização política, a entrada nos museus e no mercado, passando das margens para os centros do poder. É o que sugere Birgit Pelzer: «Ao ratificarem o arbitrário e o absurdo de toda a problemática sobre o valor em arte, estas práticas interpretaram-na, em última análise, estritamente segundo os próprios termos do mercado, ao ponto de hoje anteciparem e explorarem a sua própria recuperação através desses mesmos mecanismos.»
«Instalações cada vez mais gadgetizadas, legitimando-se muitas vezes através de pseudoquestões sociopolíticas, introduzem o espectador numa cacofonia ensurdecedora e na sua própria obsolescência programada. Assistimos agora a eventos de marketing promocional para produtos de consumo em lugar de práticas de pesquisa, de experimentação, de laboratórios de preocupações e dúvidas.»

«Behind the Facts»
Museu de Serralves, até 3 Outubro

legendas
Joseph Beuys, cerimónia messiânica de um escultor social, xamã e activista político
Psicodrama sacrificial de Günther Brus   

sábado, 5 de junho de 1999

1999, Serralves: Circa 1968

 Expresso 5 Jun. 99

"Expor um paradigma"

A arte contemporânea começa em 68 ? O Museu de Serralves oferece obras e argumentos para o debate

«COM 'Circa 1968', a exposição inaugural do museu, apresenta-se um projecto museológico, uma filosofia de colecção e um conjunto de experiências artísticas que se definem pela superação dos limites de qualquer programa que as pretenda caracterizar e condicionar».
É assim que Vicente Todolí e João Fernandes definem sem definir, caracterizam sem caracterizar, a abertura das actividades do Museu de Serralves, num texto de introdução ao catálogo tão breve como conceptualmente fugidio.
O que seria uma biblioteca limitada a experiências literárias, uma temporada de concertos que só apresentasse experiências musicais? Felizmente, se os «experimentalismos» abundam no percurso da exposição inaugural – tantas vezes como vestígios de interrogações datadas, de contestações já descontextualizadas ou de tentativas de «superações de limites» –, há também algumas obras oferecidas ao olhar do visitante, algumas descobertas que se propõem à sua experiência sensível e intelectual, essa sim decisiva.

Ao fetichismo do experimental, que parece transferir para a criação artística o método das ciências, Picasso respondeu em 1923: «Tenho dificuldade em compreender a importância atribuída à palavra pesquisa (recherche) quando se trata de pintura moderna. Parece-me que procurar (chercher) não tem nenhum sentido em pintura. O essencial é encontrar (...) Quando pinto, o meu objectivo é mostrar o que encontrei e não aquilo de que estou à procura.» Não era só de pintura, obviamente, que Picasso falava.

Ter-se-á passado, entretanto, da arte moderna à arte contemporânea, como sucedeu ao nome do museu do Porto? Essa questão de mudança de eras tem-se posto com frequência, em torno de sucessivas datas, mas, sem o recuo do tempo, fazer história de arte a quente tem mais a ver com a vontade de administrar o presente do que com o rigor historiográfico ou crítico. Lembre-se que já se chamou Museu de Arte Contemporânea ao acervo quase só oitocentista que deu lugar ao Museu do Chiado.

O projecto actual de Serralves assenta na intenção de fazer vingar no campo das artes plásticas a teses de uma linha divisória «circa 1968», que não decorreria das turbulências políticas dos anos 60 – a contestação à guerra do Vietname, a Grande Revolução Cultural Proletária, as crises estudantis, etc – mas que de algum modo as acompanhou e simbolicamente reflectiu num processo de retorno ao activismo das vanguardas históricas dos anos 10 e de busca de diferentes modalidades de criação que não fossem recuperáveis pelo mercado e o museu (burgueses).
Foram anos de rápida sucessão de movimentos programáticos – arte minimal e pós-minimal, conceptual, «process art», «arte povera», «land art», «body art», etc –, em que a reactivação da ideia de vanguarda se identificou com estratégias ditas de anti-arte e não-arte: «o 'quase nada' do ascetismo abstracto, último reduto da essência da pintura, e o 'não importa o quê', herdeiro de Dada, última paródia da arte» (Raymonde Moulin, L'Artiste, L'Institution et le Marché, 1992).
Algumas grandes exposições, especialmente «Quando as Atitudes se Tornam Formas», dirigida por Harald Szeemann, em 1969 (em Berna, Krefeld e Londres), serviriam para marcar a ruptura contemporânea – e também uma das suas características decisivas, o predomínio do nome do comissário sobre os dos artistas e até mesmo dos estilos ou movimentos.

Dizem os directores de Serralves: «A partir da segunda metade da década de 60 questiona-se a autonomia e a 'essência' da obra de arte» (mas essas nunca foram noções fixas e sempre os artistas, ou alguns artistas, as questionaram nas suas obras); «assiste-se então à redefinição da condição da obra de arte, a um cruzamento de géneros formais, ao uso do filme, da fotografia e do texto como suportes de projectos conceptuais, a uma pesquisa das relações entre arte e vida que acompanham a agitação de novas ideias políticas e sociais, assim como a uma ruptura do conceito de moldura (...)» (só recobrindo a história anterior com o manto de uma mítica imobilidade da «tradição» é que alguma destas atitudes pode ser apresentada como alteração decisória); «o conceito de vanguarda torna-se globalizador, fazendo emergir na experiência artística aspectos globais da vida» (mas a vanguarda, que não é o mesmo que inovação, foi sempre globalizadora e em geral até totalitária).

Os comissários procuram tornar credível uma «mudança de paradigma», mas este termo tem de ser observado com radical desconfiança. É possível situar outras rupturas ou mudanças de paradigma nos anos 45-50, com a generalização da ideia de modernidade como encadeamento de inovações técnicas e estilísticas, e outra vez nos inícios de 60, com a internacionalização plena do campo artístico e o início da institucionalização da «tradição do novo» a cargo do Estado providência cultural.
A seguir a 68, logo outro paradigma surgiu nos finais dos anos 70, com a rejeição pósmoderna da visão teleológica das vanguardas e, depois dos «experimentalismos», a revalorização das disciplinas tradicionais.
No final do século revê-se a sua história sabendo que os grandes artistas participaram (ou não) nos movimentos de vanguarda mas conseguiram sempre escapar-lhes, construindo obras próprias que lhes são irredutíveis; revalorizam-se os períodos tardios e as carreiras solitárias, contrárias ao historicismo vanguardista e exteriores à actual academização das «linguagens experimentais», que é simétrica ao conservadorismo dos Salões do século anterior. A arte mais viva do presente segue outros caminhos e os museus centrais já não o ignoram.

O que importa nesse limiar proposto «circa 68» é o ritmo actual da rotação dos revivalismos, que recuperam e fetichizam como tradição o que a quis contestar. É também o peso das limitações dos meios financeiros postos à disposição da colecção, demasiado exíguos para disputar no mercado peças de períodos anteriores, mesmo do início dos anos 60 (todos os outros «paradigmas» são mais caros). E é, em especial, espelhando em 1968 os gostos institucionais de 1999, o propósito de usar o museu como pólo administrativo da criação.
Cite-se outra vez Raymonde Moulin, que é uma socióloga incontestada e não um crítico panfletário da «arte contemporânea»: «A arte orientada para o museu é uma arte que possui as características sociológicas da arte de vanguarda: define-se por uma dupla contestação, a da arte e a do mercado. Intelectual e hermética, é sustentada à partida pela comunidade artística e pelo círculo restrito dos profissionais da arte. Sobretudo, é uma arte assistida, cujos preços directores são os preços-museus, um termo de grande ambiguidade» (op. cit., pág 68).

Seria oportuno, entretanto, analisar detidamente o afirmado programa de «diálogo entre os contextos artísticos nacional e internacional», para notar como se utilisa a abstracção «arte internacional» (existe uma literatura ou um cinema internacionais?). A mitificação do internacional, tomando um regime de circulação como fórmula de valoração de artistas, certificada por uma rede de «especialistas» também internacionais, sustenta a antiga lógica do evolucionismo vanguardista mas nos moldes de uma degenerescência burocrática e faz ignorar quer a complexidade das relações entre centros e periferias quer o carácter local que marca a generalidade das dinâmicas criativas (os internacionais alemães são localizáveis em Dusseldorf ou em Berlim, entre os americanos distinguem-se os de Nova Iorque e os da costa Oeste, por exemplo).

Mas há aspectos positivos que devem ser realçados: uma ideia de colecção que não se interessa (exclusivamente) por «obras que sejam meras ilustrações de teorias», a escolha de algumas obras «mais íntimas» que divergem dos estereótipos e imagens de marca dos estilos, uma montagem que se distancia de «uma exposição de movimentos», através de salas que procuram uma lógica própria – segundo Todolí, a relação com a fotografia, o interesse pela paisagem, o espírito abstracto dos materiais, o paisagismo como auto-retrato, a redefinição da pintura, etc. Por outro lado, deverá notar-se a inclusão de obras que não se integram na lógica dominante do período de 1965-75, como são, no final, as notáveis pinturas de Georg Baselitz, Susan Rothemberg, A. R. Penck e Neil Jenney, artistas que já então subvertiam a tese da «mudança de paradigma», trabalhando sobre mais decisivas linhas de continuidade que atravessam todo o século.

II


Expresso 19-06-1999
Na inauguração do Museu de Serralves


"Despojos da luta e da festa"
As contestações dos anos 60 (e as modas dos 70) não resistem no espaço do museu. Os outros rebeldes menos efémeros foram excluídos

CIRCA 1968
Museu de Arte Contemporânea de Serralves, Porto (Até 29 de Agosto)

«NÃO TENHO nada contra os objectos de arte, simplesmente não tenho vontade de os fazer», dizia Lawrence Weiner, em 1969. Essa atitude de desqualificação da arte pode ter sido um exemplo particular, vivido em Nova Iorque, da ética cultural libertária do final dos anos 60, mas, três décadas depois, encontrar escrita na parede do museu a frase "Ao dobrar da esquina" / "Around the blend" é uma situação muito pouco estimulante.
Desacompanhada de informações sobre o contexto histórico e programático da arte conceptual, a «obra» é ilegível; integrada nesse contexto é uma mera informação sobre uma atitude, é um episódio anedótico e datado de um momento crítico da arte e da sociedade ocidental. Os slogans e cartazes de Maio de 68, ou de outras lutas da época, não se vêem nos museus de arte contemporânea, que são fiéis zeladores da autonomia e ensimesmamento da arte, ao contrário do que apregoam. Mas as «proposições» de Weiner encontram-se sempre em qualquer museu periférico e servem para os situar, aos olhos dos entendidos, numa rede de estabelecimentos elegantes que coleccionam «obras reveladoras de elementos de niilismo».


Lê-se no «Roteiro» oferecido aos visitantes de «Circa 1968»: «A montagem da exposição e os circuitos que nela são possíveis permitem ao visitante o confronto entre perspectivas, práticas e entendimentos diferenciados que sublinham o carácter disruptivo das obras que nela se apresentam».
Carácter disruptivo? Diz a 8ª edição do Dicionário da Porto Editora que o termo, em electrotecnia, refere o «salto de uma faísca entre dois corpos carregados de electricidade»; do latim «diruptio», «fractura, ruptura». O comissário Vicente Todolí parece usar a metáfora da faísca quando pretende que «as obras falam directamente ao espectador», o que justificará quer a exiguidade da informação disponível sobre a sua exposição – apenas uma lista de artistas por sala e um breve enunciado programático, pouco mais desenvolvido no catálogo – , quer a aparente arbitrariedade das escolhas e soluções de montagem. Se o visitante não notar a faísca (a aura dos objectos fetichizados), se não «ouvir» as obras expostos, sempre ficará a saber pelo folheto que «a exposição resulta das interrogações que cada obra suscita».

Quanto a rupturas, não há museu mais avançado que o do Porto. Procure-se em qualquer capital, Londres, Paris, Madrid, Nova Iorque, etc, e não se encontra uma tal dinâmica de «superação de ideias pré-estabelecidas e de preconceitos». Os grandes museus centrais ainda não dividiram o século XX em moderno e contemporâneo (pós-moderno?), nem deram conta da «mudança de paradigma» que ocorreu «circa 68», o que, pelo menos, lhes permitiria resolver o grave problemas das reservas superlotadas. Parece que ainda «pensam o museu como uma realidade estática», mas em Serralves já se sabe que «a arte é a busca ou o ultrapassar dos limites» e que o museu é «um novo fórum, um lugar de discussão e de superação dos limites dos indivíduos que nele coincidem» (cat.). Nunca se usaram as palavras de modo mais displicentemente terrorista para justificar os limites de uma visão restritiva da arte contemporânea.

O Centro Pompidou expõe Hockney e Robert Delaunay?, o Rainha Sofia mostra Roberto Matta e a arte cicládica?, a Tate Gallery revê Pollock e o círculo de Bloomsbury? Não se trata de um permanente reexame de fronteiras e valores, mas de meras concessões ao gosto do público e de sobrevivências das convenções estéticas e técnicas da tradição da arte (moderna). Em Serralves, a palavra-chave é «superação dos limites» e as obras que interessam são as que se caracterizam como «linguagens experimentais», revelam «elementos de niilismo», traduzem «uma subjectividade radicalmente livre» (a que se chamarão «obras idiossincráticas»), ou as que representam uma «traição estética» («até nos artistas mais conceptuais»).

O resultado global é um panorama onde, afinal, não há lugar para «o confronto entre perspectivas, práticas e entendimentos diferenciados», preenchido por uma produção em grande parte academizada no seu vanguardismo escolar e exangue, fechada sobre problemáticas que não são de modo algum contextualizadas, concentrada sobre os mesmos nomes de sempre (com três ou quatro desconhecidos que são irrelevantes), tantas vezes visível como a sacralização do quase nada, da banalidade e da insignificância, em oposição aos espaços criados por Álvaro Siza – sem faísca possível.
Um acervo árido, desvitalizado, autista e triste (o humor e a ironia, tal como o prazer, quase sempre foram banidos) em que quase nada faz reviver a agitação frenética, as lutas e as festas, dos anos 60. Uma selecção estereotipada e censória (as grandes alternativas do tempo estão ausentes), onde a arte se aplica em representar a sua desaparição, antecipando «a banalidade, o desperdício, a mediocridade como valor e como ideologia», para citar Baudrillard («Le Complot de l'Art», 1998).

No interior do terreno institucional da arte contemporânea, o museu, tudo é igualmente consagrado como arte e não resta ao espectador qualquer espaço livre «para questionar os limites do que poderá ou não ser considerado como arte», ao contrário do que se diz ser a proposta de «Circa 1968». A questão, aliás, é um logro, como Duchamp demonstrou de uma vez por todas. O que importa não é distinguir os objectos entre arte e não-arte, mas sim, num panorama em que tudo se equivale desde que cooptado pela área profissional da arte, experimentar e ajuizar a diferença de intensidades formais e significantes, de densidades estéticas e qualidades objectuais. Se tal distinção não pode ser universalmente provada, ela deve ser argumentável, ainda que o programa desta exposição vise destituir as condições possíveis de debate. Mas num dos textos do catálogo, Robert Pincus-Witten, o desencantado autor da etiqueta «pós-minimalismo», nota que, «ironicamente, quando a arte pós-moderna alcança alguma importância, a linguagem usada para a louvar é decalcada no discurso da pintura e da escultura – qualidade, beleza, originalidade, significado, termos de um género de facto proscrito à partida pelo debate pós-moderno».

Por vezes, consultando os escassos elementos disponíveis, parece sugerir-se uma sustentação teórica das escolhas na tese de uma mudança de paradigma que teria ocorrido em torno de 68, demonstrando as obras históricas da década de 65-75 uma ruptura substancial com que começaria o período da arte contemporânea. Mas Todolí corrige: não se trata de «a» história da arte que começa em torno de 68, mas de «uma história», a sua, «uma visão subjectiva e pessoal», estabelecida pelo comissário-artista: «nem a colecção nem a exposição inaugural têm a intenção de contar o que se passou – isso seria repetir a história ortodoxa ou fazer uma arqueologia» («El País»).

De facto, em «Circa 1968», proposta como «exposição-manifesto», «o ponto de partida é mais ou menos 1968, mas aquela época considerada do ponto de vista de agora»; «a base da selecção é a época de 60 vista a partir de hoje»; «as obras desta colecção, embora tenham sido feitas nesse período parecem feitas hoje». Para além da banalidade (uma história actual do impressionismo é feita a partir de hoje, necessariamente, revendo as histórias feitas antes) e do equívoco (são algumas obras de hoje que retomam as estratégias anteriores), trata-se de gerir uma rede ora idiossincrática ora institucionalmente consensual de exclusões e cooptações, através de uma selecção de objectos feita numa banda muito estreita da criação da época. A etiqueta «arte contemporânea» não é usada como uma marca cronológica em aberto, mas como um critério programático para recortar da pluralidade das práticas e das concepções artísticas de uma década anterior um segmento específico, quase sempre a sua área mais pobre e menos significante. Um segmento que é, no momento presente, tacticamente reciclado pelos gostos dominantes e oferecido à escassez de recursos do mercado institucional periférico, em oposição a outras e mais fortes realidades.

Quando Todolí diz da exposição e do museu que «não é uma colecção sobre movimentos» («a mim não me interessam os movimentos», etc), inviabiliza o entendimento das obras de um tempo que se caracterizou, de facto, pela emergência continuada e concorrencial de movimentos, e em que as obras, associadas a uma derradeira reactivação de lógicas vanguardistas, estiveram sempre intrinsecamente ligadas a tendências e teorias, quase sempre capitaneadas por críticos-ideólogos e apresentadas sob novas etiquetas estilísticas, com o seu cortejo de interditos e de formulários impositivos.

No contexto do decénio 65-75, grande parte da produção artística que se pretendeu de vanguarda sustentou-se numa intenção de prevalência da teoria sobre o objecto (opondo-se ao que seria, na «arte tradicional», a predominância do objecto sobre a teoria). Ao pretender, hoje, que as obras que escolheu «não são ilustrações de teorias», «não representam tendências», Todolí procede a uma operação radical de descontextualização que as transforma em objectos arbitrários e põe em prática uma concepção instrumental de fetichização de vestígios que é apenas uma lógica de administração do poder.

Sucede, porém, que a afirmação não é verdadeira e que «Circa 1968», no seu sector «internacional», é quase totalmente uma exposição de movimentos – de alguns movimentos –, estando ausentes os artistas exteriores a essa lógica da sucessão das tendências.

São «imagens de marca» ilustrativas da «arte povera» italiana as obras de Kounellis, Merz, Anselmo e Zorio, colocadas na sala central. Tal como são obras exemplares, quanto ao conglomerado «eccentric abstraction», «anti-form» ou «process art» que reage ao formalismo minimalista, as peças de Eva Hesse, Robert Morris, Bruce Nauman, Richard Serra e Barry Le Va. Mas, nas proximidades desta área norte-americana teriam uma densidade mais do que experimental obras de Louise Bourgeois, Kienholz ou Robert Ryman, e a oposição ao reducionismo ascético ou a implicação nas contestações políticas do tempo («circa 68») deveriam passar por Mark di Suvero, Kitaj, Peter Saul, Leon Golub e Nancy Spero, se não se preferisse o ensimesmamento à conflitualidade estética que mais radicalmente «questionou a autonomia e a 'essência' da obra de arte».

São ilustrações da arte conceptual mais anti-objectualista as presenças de Weiner e Mel Bochner, excluindo todavia a componente mais política do movimento (Victor Burgin e Art & Language, por exemplo) ou mais «linguística» (Kosuth). O mesmo sucede com as obras da «land art» e «arte ecológica», de Oppenheim e Smithson, Long e Fulton e suas variações regionais, com que se continua a percorrer um quadro arqueológico da época.

A alegada fuga às «imagens de marca» e a distância face aos movimentos é, de facto, tacticamente distribuída. Encontra-se no apagamento da arte Pop (e das suas sequelas «funk», «psicadelic», hiper-realismo), então dominante embora invisível na exposição, apesar da presença de Warhol e de Rosenquist (com um «ambiente» que é uma experiência exaltante, mas distanciada da matriz Pop). De Oldenburg, as peças compradas para a colecção são irrelevantes; de Rauschenberg, também anterior à Pop e um dos grandes artistas das rupturas pioneiras da década de 50 (com Cage e Merce Cunningham, Kaprow e Jim Dine, etc) mostram-se duas das mais fortes obras da exposição, na antiga Casa, onde a presença literal dos detritos se estrutura com a energia de uma disposição formal que não os anula enquanto objectos recuperados (é uma «traição estética»). Estão ausentes os realismos que se pretendiam críticos, a arte Op (MoMA, «The Responsive Eye», em 65), o cinetismo e em especial a arte minimal («Primary Structures», Jewis Museum, e «Systemic Painting», Guggenheim, N.I., 66), embora muitas das obras mostradas sejam apenas o seu negativo. Se a contestação radical do accionismo vienense não é evocada, o carácter extremo do «happening», «performance» e «body art» dilui-se em vestígios autistas ou é remetido para ciclos de vídeo; Fluxus, sem Nam June Paik e Wolff Vostell, com um Beuys funerário, perde o seu sentido interventivo. Muito do que os anos 60 tiveram de marcante assumiu com coerência o seu carácter efémero e só sobreviveu como informação; essa energia questionadora da arte e do mundo declinou com o final da década e fechou-se depois sobre a interrogação conceptual da natureza da arte ou a afirmação da subjectividade narcísica. Desapareceu a inquietação e a alegria desse tempo nos objectos congelados pelo museu.

Igualmente decisivo é observar como a atenção prestada ao uso da fotografia, numa sala própria, está presa a uma visão essencialista do uso dos «media», enquanto desqualificação e sucedâneo da pintura, nunca como abertura sobre os recursos da imagem e a presença do real, persistindo assim a fronteira aristocrática que sempre exclui a fotografia que não se reivindica da condição artística e do espaço da arte. É também por isso que a sala dedicada à «redefinição da pintura» não é muito mais que uma reconstituição do formalismo reducionista (embora se sigam Susan Rothenberg e Georg Baselitz).

Outro ponto marcante é a recuperação normalizadora do que foi a originalidade radical das duas exposições comissariadas por Harald Szeemann («Quando as Atitudes se Tornam Forma», em 69, e Documenta VII, em 72), que já então tinham carácter retrospectivo. Na segunda, aberta a obras «representantes de todas as imagens do mundo», compareciam «a arte conceptual e o hiper-realismo enquanto direcções apresentadas segundo pontos de vista formais», a par da linha das «mitologias individuais enquanto campos da criação subjectiva dos mitos», onde cabiam, justamente, mas com escândalo, as obras de doentes mentais e a arte religiosa popular.

Sobre o decénio em causa, dizia Szeemann, em 1991: «Hoje é possível ver a história dessa arte com recuo: a rebelião silenciosa e as primeiras manifestações, de 1966 a 1969, o estilo em 1971, a moda em 1973» (L'Art de L'Exposition, Ed. du Regard, 1998).

Uma diferente história de rebeldes, com Picasso (até 72), Balthus, Freud e Hockney e tantos outros fica por contar, e poderia ter em Philip Guston uma figura paradigmática, porque o seu regresso à figuração em 1966 foi um dos maiores choques do decénio, enfrentando com duradouras consequências o consenso vanguardista.

No início da década de 80, constatava-se que «a sobreacentuação da ideia de autonomia em arte que provocou o minimalismo e a sua consequência extrema, a arte conceptual, estava votada à esterilidade. Rapidamente, a vanguarda dos anos 70, com a sua concepção puritana, rígida, desprovida de qualquer alegria sensual, perdeu o seu impulso criativo e começou a estagnar», escrevia Christos M. Joachimides, ao apresentar a exposição «Um Novo Espírito da Pintura», em 1981.

A ocultação de obras e de memórias permite duvidosas operações. Mas talvez haja, de facto, uma perspectiva teórica subjacente à exposição, que pode ter a sua chave numa breve referência a um «conceito de vanguarda»: a selecção das obras realizadas em torno de 68 que parecem feitas hoje seriam as que «reapropriam interpretações particulares dos momentos euforizantes das experiências de vanguarda sucedidas entre meados dos anos 10 e meados dos anos 20». Que calendário é este que, além de tudo o resto, exclui o vanguardismo cubista, futurista, órfico, etc? Exactamente o que teria tido início com o dadaismo (Zurique, 1916), integra o construtivismo soviético, com ou sem o seu destino produtivista, e exclui o surrealismo (Paris, 1924). Desligado do seu contexto histórico, é um exercício de diletantismo pessoal e de arbitrariedade institucional. Soa terrivelmente datada outra frase de Todolí: «O modelo anterior – metafísico, do artista que está no estúdio – foi rejeitado. Os muros do estúdio tornaram-se falsos e a pergunta em questão é: se há limites e onde é que eles estão?» (entrevista ao «DN»).

Há, no entanto, outras situações onde a tese do paradigma e a exposição-manifesto aparecem justificadas por uma razão excessivamente prosaica: a falta de dinheiro para adquirir outras obras, para iniciar a colecção sobre outro «paradigma». «Tomando em conta as possibilidades, hoje, de começar uma colecção neste país, com um orçamento modesto em termos internacionais, percebemos à partida que ainda se podiam comprar coisas desta época – dos anos 60 – bastante em conta», diz Todolí («City»). De facto, uma tela de Lucian Freud (o retrato da mãe do pintor, de 1982) custou perto de 600 mil contos num leilão de 18 de Maio, o que equivale à verba total de três dos cinco anos de aquisições previstos para o museu do Porto.

O orçamento disponível e o programa do museu mantêm o círculo vicioso que desde sempre domina Serralves: sem meios financeiros e vontade política não há um programa museológico credível, e sem este (sem um projecto pluralista, não sectário, comunicativo e socialmente implantado, sustentado na possibilidade de fundamentar juízos de valor estético) nunca existirão os meios necessários, nem se justifica, aliás, que eles surjam.

EM PORTUGUÊS

A PRESENÇA portuguesa em «Circa 1968» deveria ter uma análise cuidada se não fosse por demais evidente que ela resulta em grande medida de uma mera gestão de compromissos e conveniências: por um lado excessiva – 37 para 70 estrangeiros –; por outro, em grande parte exterior ao tópico orientador da exposição, a tese da mudança de paradigma. Que fazem Fernando Lanhas, Paula Rego, Júlio Pomar, Jorge Martins, António Sena e outros em «Circa 1968», senão prosseguirem o que Todolí chama «a 'pintura de cavalete' não problematizada», quando «as obras começam a a sair para fora da tela» e tem lugar «a ruptura do conceito de moldura, o qual dá lugar à invasão do espaço interior e, por vezes, exterior...» (roteiro)?

Porque não estão representados Menez (que terá colaborado com João Vieira no quadro O Gato, de 67), João Cutileiro, Costa Pinheiro («Os Reis», em 1966; os projectos ambientais lúdicos de «Citymobil – arte-projecto», em 67-75) ou Eduardo Luís? Não importa. É bem melhor estarem ausentes, denunciando-se a arbitrariedade das escolhas, do que depositados numa cave mal iluminada e de acesso tortuoso, a sala nacional da exposição, porque não foi possível, disse-se, estabelecer pontos de diálogo com outros artistas – o que só significa que os grandes contemporâneos estrangeiros foram eliminados.

Entretanto, oferece-se a feliz oportunidade de observar como em tantos casos os artistas portugueses colocados em situação de «diálogo» internacional ficam tragicamente remetidos à situação de intérpretes menores do ar do tempo, de epígonos amaneirados de problemáticas alheias ou de «introdutores» em Portugal de qualquer estilo ou moda (desde os anos 50 que a crítica nacional foi assegurando esse método de avaliação e promoção de artistas, sempre de efeitos devastadores).

Não é esse o caso de Lourdes Castro, René Bertholo e Eduardo Batarda, a quem cabe, com o admirável e inclassificável Oyvind Fahlstrom (1928-1976), a representação exclusiva de um largo campo de trabalho em torno dos poderes e ilusões da imagem (chamou-se-lhe na altura neo-figuração, figuração narrativa, mitologias quotidianas, etc) que atravessou a década de 60.

Note-se ainda, por último, a aberrante representação da crítica portuguesa no catálogo, fazendo emparceirar os dois textos de protagonistas da época, Germano Celant e Robert Pincus-Witten, ou o estudo de Antje von Gravenitz sobre «O mito de '1968' na Alemanha», muito útil para entender o contexto regional dos alunos de Beuys, com uma prosa esforçadamente escolar de alguém que só podia ter um contacto indirecto com a época em causa e que a comenta com os piores vícios do academismo vanguardista.