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sábado, 12 de outubro de 2002

Fátima Mendonça, 1996 (Arte Periférica), 1998, 1999 (Fernando Santos), 2001 (Prémio Maluda), 2002 (111)

 Picture 3

2009: Exposição na Galeria 111, de 10 de Setembro a 7 de Novembro

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Escritos desde 1994

FÁTIMA MENDONÇA, Arte Periférica, Massamá
Expresso Cartaz de 17-09-1994

Um desenho que é aparentemente infantil para falar de experiências e violências físicas suporta a narração de histórias em que entram uma noiva, um bolo e um cão mau. São as grandes telas, onde um corpo flutua, exposto e pensado do interior, num espaço vago de manchas e rasuras, que melhor traduzem, depois de Dubuffet e Paula Rego, mas sem epigonismo, a energia de um discurso que aqui começa. Uma primeira individual que nos faz aguardar novos trabalhos. (Até 5 Out.)
 
FÁTIMA MENDONÇA, Arte Periférica/Belém
Cartaz Expresso 18-11-1995
Três telas de grande formato dão sequência a uma pintura que joga abertamente na criação de uma narrativa centrada numa personagem feminina e num quotidiano de aspirações comuns, convenções, desejos e alegrias, medos e protestos — «estórias da menina mal-amada», no título da apresentação de Rocha de Sousa. O uso da cor vem agora dar uma outra intensidade a um grafismo aparentemente ingénuo, próximo do graffiti, enquanto as anotações escritas («ela explicava ao cão que era uma rapariga sincera», «descobrira-lhe mais de dez namoradas iguais a ela», «ela esforçava-se muito por lhe agradar») recriam episódios de uma intimidade ficcionada de menina ou noiva «saloia», entre formas de bolos e «suspiros», que também pode surgir travestida de toureira. As histórias são mais sangrentas do que parecem.
 
1997
"A sedução e a culpa"

Cartaz Expresso 11 Jan. 1997

Arte Periférica, Dez. 1996 / Jan. 97

Pela terceira vez consecutiva (em 1994, na galeria de Massamá), Fátima Mendonça mostra no final do ano como cresce regularmente a sua pintura. Não quanto aos formatos, sempre largos como paredes, mas na consolidação de um discurso, dos seus recursos, dos seus personagens e da marca distintiva de uma autoria, talvez ficcional, talvez confessional — questão adiada ou sem sentido.
A ideia de parede confirma-se na dispersão das notações, desenho e escrita, deixadas sobre a tela, repetidas, recomeçadas, distribuídas como se de um quarto fechado se tratasse, obsessivamente preenchido pelos «graffitti» de um preso, e como se esse fosse o diálogo possível com os outros, sempre através do espelho de si mesmo. As quatro telas-paredes expostas fecham-se, de facto, como um quarto, mas uma delas é ocupada por um corpo nu de criança, imperfeitamente feminino, oferecido, exposto e inseguro, a crescer nos seus sapatos altos de mulher. Ou é de um desenho infantil que se trata, retrato incerto (menina ou mãe, boneca), memória reaprendida de uma idade de terrores e fantasias?
Os sapatos altos estão também, isolados, noutro quadro e vinham já de trás, da série exposta em 95, como acontece com as formas dos bolos e o rabo de touro, que agora se alinham a preencher outras duas paredes. Nas «estórias da menina mal-amada», como então as apresentava Rocha de Sousa, a criança-mulher surgira travestida de toureira, a ocupar o centro da arena, enfrentando o medo, fazendo-se temer.
«Ela esforçava-se muito por lhe agradar», «ele enchia-a de mimos», «A saloia», «A toureira a agradecer», «O baile», «manso, sem casta», «Ela explicava ao cão que era uma rapariga sincera», ía-se escrevendo, repetidas vezes, de quadro em quadro. Mas não há um fio narrativo a decifrar como chave de uma história-enigma contada por imagens; é a intimidade de um universo que se propõe ou enfrenta ora como memória, ora como sonho, ora como interpretação dos seus nós significantes, ou como a dramaturgia de um exercício de pintura, calculadamente elaborado no seu jogo de verdade ou fingimento. E os desenhos que se expõem numa parede exterior da galeria, aberta à rua, isolam os diferentes motivos-sentidos recorrentes num inventário de sinais, marcando, por exemplo, a passagem de um suspiro (bolo) à forma de um sexo feminino, ou acrescentando outras referências gráficas ainda imprecisas no seu curso.
O quarto é casa, «A casa do desarranjo» (título geral), e é cozinha, «a cozinha da minha mãe», com as formas dos bolos e os camarões, recheio culinário com uma presença invasora e grafismo obsessivo, com as receitas escritas e a contabilidade das vendas («ela fazia bolos sem parar»). Exercício de servidão ou castigo, modo de sedução, enquanto os rabos de boi se terão de ver como selvagem acção castradora («manso, sem casta, sem investida»), é sempre de um mundo de terrores e desejos que se trata («o medo, «malpropreté», «la douleur», «a doidita»), de um corpo que se observa, entre convenções e protestos, entre alimentos e fluidos, num espaço da ordem doméstica que é também o lugar da identificação sexual.
Sobre cada tela, o desenho e a escrita visíveis são como um véu último sobre uma sedimentação de ensaios apagados ou recobertos por sucessivas velaturas, como camadas sucessivas vindas à consciência, rasuradas ou expostas.

1998

Fátima Mendonça
Casa Fernando Pessoa - 14-02-98

O programa de ocupações do Quarto do poeta prossegue e, neste caso, a «instalação» volta a prolongar-se de modo invasor por outros espaços da Casa. Em vez de uma situação ilustrativa, F.M. construiu um quarto de criança/casa de bonecas que é um espaço de paredes integralmente desenhadas: cenário onde se instalam motivos conhecidos de obras da artista, referidos a um imaginário infantil e feminino cujo obsessivo devaneio se apresenta (ou se ficciona) como íntima viagem de aprofundamento das dependências parentais e da descoberta do corpo próprio. É a partir do Quarto que ganham sentido outras peças expostas, pinturas sobre tela e uma «instalação» onde cinco gaiolas encerram os corpos giratórios de uma menina-boneca que se expõe e esconde, nua, sob o voo de uma bruxa (imagem de condenação ou de desafio?). Sob o título «Camara Lenta», Fátima Mendonça procede a uma teatralização do mundo ambiguamente privado da sua pintura, oferecendo-o com humor ao mesmo tempo que refere numa citação do catálogo o Desassossego de Bernardo Soares. (Até 15 Mar.)

"Fátima, Joana, Sofia"
Três exposições de mulheres artistas põem em questão a ideia de pintura feminina

Expresso Cartaz de 23-10-98
NÃO existe certamente a pintura feminina, nem as três exposições estabelecem entre si naturais relações de afinidade. Se duas delas se prestam à leitura de uma auto-representação mais ou menos ficcionada ou fantasmática e de uma atitude confessional como exibição mais ou menos teatralizada, a terceira, onde a pintura se dirá abstracta, segue outro caminho das imagens, sem se poder ler como expressividade intimista. Nesta conjunção guiada pelos acasos da programação não comparece nenhuma atitude mais friamente analítica, mas esta também existe em obras femininas, e as generalizações serão sempre improcedentes. As individualidades, em casos de género ou geração, importam mais que a lógica do grupo. Mas pode notar-se que é a urgência mais imediata e livre do desenho que preside às três mostras.

Fátima Mendonça volta a convocar a pista de circo como lugar de exposição aos olhares alheios, como fizera há pouco tempo na Casa Fernando Pessoa, então com peças tridimensionais em que o «chapiteau» era também gaiola e a personagem dos seus quadros uma boneca giratória. Antes colocara-a numa outra arena como menina-toureira. Agora ela agradece desajeitada a ovação, atravessa o espaço em equilíbrio no arame, segura um cão certamente morto, vindo também de outros quadros, ou mostra-se de coração nas mãos, num outro «estudo para um grande amor», e como patinho feio em mais uma tela.
Existe uma absoluta continuidade narrativa no trabalho de F. M., construída pela intimidade de um universo povoado por referências recorrentes, e o uso da escrita sublinha mais ainda essa dimensão literária, que já não é objecto de desconfiança para a crítica «pura». Reconhece-se em algumas obras femininas uma radical capacidade de auto-exposição e intimidade, mas o exercício da projecção também se confunde com o gosto da teatralização, e entre exorcismo e fingimento não há aqui lugar para a ideia de verdade (ou de retrato e biografia), mas sim para a de construção de uma obra.
No trabalho de Joana Rosa surge uma nítida vertente confessional, sobre a persistência de um desenho espontâneo e compulsivo, o «doodle», mantendo-se esta denominação para novos trabalhos («Secrets») habitados por dois personagens de um teatro privado, a bailarina e a fada, enquanto a escrita passa a ter uma intervenção importante. A exposição, aliás, estabelece com nitidez, mas algum excesso de peças (o desenho é compulsivo...), a passagem das grandes composições de fragmentos cobertos pela grafite para essa produção mais recente.
«Yes Y want to look like this forever» é um comentário que, com variantes, acompanha os exercícios de uma bailarina-ginasta, desenhada com a elegância de um corpo de modelo, por vezes vulnerável à deformação, à queda (alguns corpos que se levantam lembram curiosamente os de Maria Beatriz) e também ao ridículo de um estereótipo – «No no she is ridiculous, but I like her hand...». A escrita que acompanha a imagem identifica a relação com o corpo próprio, ameaçado pelo tempo, enquanto a inclusão de desenhos infantis é justificada por uma muito concreta relação entre mãe e filha: «My daughter Madalena did this to help me...». Noutros trabalhos, J.R. usa a figura da fada importada do mesmo diálogo com a filha, assumindo-a como projecção de sonhos e terrores que não são apenas infantis. Uma última série de trabalhos radicaliza ainda a presença do texto (...a carta ou o diário), jogando com a colagem, a ocultação e a transparência, com a leitura fragmentária e a ilegibilidade.
No trabalho de Sofia Areal não está presente a figura e a escrita, mas não será inútil precisar que a actual exposição parte da colaboração num espectáculo teatral de Jorge Silva Melo, sem sujeição a um texto prévio mas como comentário de um tema, a alegria de viver. Mais concretamente, informa o encenador, «sobre a mão» e a «feitura da alegria» («a mão que faz a alegria» segundo o belo título da nota de catálogo). Dos cinco painéis verticais que então desciam da teia, mostram-se apenas dois, acompanhados por uma série de desenhos de varias dimensões que os quiseram continuar.
Não se tratou, é obvio, de ilustrar a alegria, mas, de algum modo, de tomá-la por programa ou disciplina, referindo-a num exercício de aparentemente despreocupada liberdade da mão, com uma expontânea expressividade que é também acaso calculado e secreta sabedoria, para entregar ao espectador a impossível e inútil tarefa de localizar um sol, uma flor, uma asa, talvez um riso. Poderá ser mesmo na impossibilidade da palavra perante uma explosão vermelha, uma onda azul, uma fresta negra, uma diferença entre brancos, que reside essa alegria.
A pintura de S. A. exercita-se sem rede e sem norma, correndo sempre o risco de desafiar a necessidade de uma razão justificativa, mas «no fundo, a questão é saber qual o significado do significado – há perguntas que não se fazem; há coisas que não se dizem», como se lia, a propósito de um espectáculo de Bob Wilson num texto da anterior «Revista».

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1999

Fatima 99
«Gosto da Minha Casinha 9», 1999

"Três artistas no Porto"
Expresso Cartrtaz de 27 de Novembro de 1999

CARLOS CARREIRO, Árvore (até 7 de Dezembro)
FÁTIMA MENDONÇA, Gal. Fernando Santos (até 31 Dez.)
PEDRO CABRITA REIS, Museu de Serralves (até 23 Jan.)

NENHUM comum ar do tempo percorre as muitas exposições inauguradas no Porto, nem se detectam sinais que sustentem identificações geracionais ou análises conjuntas. Às desigualdades entre programações somam-se as opções individualizadas dos artistas mais as variações de ritmo e risco das respectivas carreiras. Destacar as mostras de Carreiro, Fátima Mendonça e Cabrita Reis decorre de critérios que serão pessoais mas assumem a responsabilidade de justificar as qualidades reconhecidas a cada um, sem pretender atenuar as diferenças de direcção dos seus trabalhos.
E é uma mera coincidência, mas uma curiosa coincidência, que o primeiro seja um nome que se destaca entre os artistas surgidos em anos tão pouco favoráveis a consagrações como os 70; que a segunda chegue numa posição de amplo reconhecimento ao final desta década, contrariando os estereótipos com que se pretenderam identificar os jovens dos anos 90; que o terceiro seja uma figura central entre os artistas dos 80 que hoje lutam por sustentar a notoriedade alcançada, esquecendo-se tantas vezes que as obras se constroem em itinerários em geral longos e atravessados por altos e baixos, convulsões e viragens.

Carlos Carreiro dá às suas pinturas um título geral, «Dos Truques do Adamastor à Vingança dos Perus», que as situa de imediato no seu terreno habitual da celebração do imaginário, onde impera a fantasia, o humor e também algum comentário corrosivo. Com as novas obras, que, entre outras motivações pessoais, terão tido algum ponto de partida concertado com o calendário comemorativo dos Descobrimentos – lá estão, na tela maior que é referida na primeira metade do título geral, as caravelas e bandeiras pátrias, uma torre de Belém de barbatanas a tentar andar em direcções opostas, um Adamastor marionetista (seria imperdoável que este exemplo excepcional de «pintura de historia» no presente não tivesse destino institucional,... mas não podemos ter ilusões sobre os museus que temos) –, assiste-se a mais uma inflexão fortemente afirmativa do trajecto de pintor, prosseguido como um percurso original e solitário, marginal, se se usar o termo com sentido positivo face a valores correntes e dominantes.

A sua figuração luxuriante e minuciosa constroi-se como uma agregação interminável de personagens (históricos ou actuais, humanos ou animais) e de objectos (de consumo, máquinas e plantas, reais ou de fantasia – sem esquecer as metamorfoses entre personagens e objectos), em situações e lugares imbrincados num contexto narrativo absurdo e sem leituras unívocas. Em vários quadros, a acumulação de figuras e histórias organiza-se seguindo uma pista de flipper que pode transformar-se em estrada, filme ou intestino, numa sequência vertiginosa de invenções e citações (de estilos e de imagens, populares e eruditas), distribuída num espaço indefinível e labiríntico, ao mesmo tempo exterior e interior, de paisagem sonhada ou cartografia alucinada. Com barcos-vagens, carros-lulas, químicos e alquimistas, personagens de animação e BD, tigres gulosos, células invasoras, universos subterrâneos, flores e borboletas.

Reciclando com uma nova inventividade toda a obra anterior, a renovação de Carreiro passa agora pelo abandono da coloração fria da sua fase anterior, quase uniformemente azul com incrustações de objectos de cores «pop», na explosão de uma policromia com intensidades mais quentes, percorrida por estranhas constelações de pontos de luz. Talvez não seja impossível comparar a sua pintura à de Clovis Trouille, pintor maldito que os surrealistas anexaram em 1930 e é agora objecto de retrospectiva em Paris. Também inclassificável, Trouille associou a veia libertária a uma pintura de aparência académica, falsamente «naïf», em cenas eróticas de sentido anticlerical e antimilitarista; Carreiro serve-se livremente de todas as convenções antigas e modernas, passa do «kitsch» à ficção científica, e pratica o humor e a poesia com uma soberana ironia.

Fátima Mendonça estabelece com a série de telas «Gosto da Minha Casinha» um momento forte de continuidade e abertura no curso da sua pintura, identificada como a exploração mais ou menos ficcionada de um coerente imaginário pessoal de infância ou adolescência feminina, mas onde agora será talvez possível reconhecer a abordagem de outros tópicos ou tempos menos referenciáveis, sempre associados a um discurso narrativo supostamente autobiográfico que continua a surgir caligrafado sobre a tela.
É a paisagem – «simultaneamente, o mundo exterior e o mapa interior» (Ruth Rosengarten no catálogo) – que predomina na nova série, em obras em geral de grande e muito grande formato. Por duas vezes vista em panorâmicas sem linha de horizonte, focadas sobre campos estriados que marcam uma volumetria imaginária de colinas muito verdes (quatro linhas atravessam o quadro repetindo «errei»), ou de onde emergem plantas rapidamente esboçadas («minha flor») – noutro quadro um idêntico espalhamento distribui sapatos altos de mulher pelo espaço-campo quase liso da tela (mas a intervenção escrita refere couves e «o teu jardim»). Em mais duas telas a casinha do título é vista à distância, centrada entre árvores e montes, em imagens de um grafismo falsamente escolar imerso em manchas de cores doces e «ingénuas». Mas o mundo pode ser também cruel e incendiado (os coelhos embrulhados, a floresta em chamas).
Usando o óleo em barra para desenhar e colorir, ou o óleo muito diluído em manchas de ténues transparências, Fátima Mendonça oferece com ironia, desde o título, as pistas da leitura psicanalítica de que pode precisar-se para «explicar» a sua pintura. Mas os quadros sustentam com notório êxito uma visibilidade menos literária e redutora: eles inventam novas paisagens, contam histórias visuais, deslumbram e inquietam.

Pedro Cabrita Reis é objecto de uma antologia que estabelece a exacta sucessão desde a mostra do CAM, em 94, retomando três obras então expostas (colecção de Serralves ou aí em depósito) e acrescentando informação sobre um itinerário posterior que foi pouco visto em Portugal e contou com participações nas Bienais de Veneza e São Paulo, fora das representações oficiais portuguesas.
Quatro lugares decisivos marcam a montagem: uma construção no pátio de acesso ao Museu, cuja longa parede articulada e encimada por guaritas, recoberta por tela metalizada de alcatrão – Cidades Cegas # 5 / o Eco –, é associável a memórias de campos de concentração (Auschwitz, muro de Berlim, talvez os condomínios privados do presente); já na sala central, Sem Título, uma outra guarita com um mastro de bandeira derrubado e um feixe de lâmpadas de néon; depois, o corredor interior do Museu percorre-se entre construções de alumínio e cartão, elevadas e adossadas às paredes, lembrando habitações precárias ou também postos de vigilância (Cidades Cegas # 2); por fim, Catedral # 3, intervenção na grande galeria final do percurso que rasga as paredes brancas de Siza com o início de quatro outras paredes de tijolo só precariamente aparelhadas.
Concebidas ou readaptadas em função do espaço físico onde se mostram, são também peças arquitectónicas em si mesmo, como quase desde o início sucedeu com a escultura de Cabrita Reis. Porém, enquanto as peças anteriores faziam referência a modelos arquetípicos (poço, fonte, canal, mesa, casa) ou se viam como construções enigmáticas (lugares de concentração de energias, de observação cósmica, etc), as novas arquitecturas podem ver-se como comentários sobre a cidade actual, evocando lugares concentracionários ou de vigilância, ao mesmo tempo que se referem, especialmente através dos materiais empregues e das soluções construtivas (tijolo, cartão usado e tábuas, caixilharia, etc), às arquitecturas improvisadas das marquises e dos bairros de lata. São obras que ocupam com grande força cenográfica os lugares de exposição, respondendo de modo afirmativo (enfático, por vezes) às solicitações das grandes mostras internacionais onde imperam as montagens «in situ», as estratégias instaladoras e a grande escala dos objectos, até como condição de visibilidade, ao mesmo tempo que parecem assumir uma dimensão crítica sobre o estado do mundo, com referências à pobreza, exclusão e repressão.
Entretanto, a antologia dá também largo espaço ao que pode continuar a chamar-se pintura, embora se deva notar que a pintura actual de Cabrita Reis transporta igualmente poderosos vínculos com a arquitectura, desde logo pelo uso pictural de materiais ou equipamentos de construção. Dobles Pinturas Negras #2 e #4 (Madrid), de 98, serão mais uma contribuição para a linhagem do monócromo, em dípticos de placas de vidro, rectângulos ou círculos, onde a aplicação de pintura negra se faz, em cada elemento, sobre ou sob a superfície do suporte – elas decorrem da apropriação de caixilhos de portas encontrados e da montagem de vidros com aplicação de esmalte dos Lisbon Gates mostrados no CCB em 97 («For Heinner Muller»). Cabinet d'amateur #1 (Serralves) é uma disposição de inúmeros dípticos formados por campos de cor lisa, onde é a cenografia que volta a sustentar a eficácia das partes. Sempre com uma energia reconhecidamente intensa, com uma elegância certa, as últimas obras (vejam-se a grande porta de Table Dance e a pintura Flor Negra, em confronto com a menoridade de «Os Últimos», pequenos auto-retratos desenhados) estão às vezes à beira da facilidade retórica e de um uso defensivo das grandes escalas.

Nota: Chegam este fim de semana ao seu termo as exposições de António Júlio Duarte e Augusto Alves da Silva, de fotografia e vídeo, apresentadas pelo Centro Português de Fotografia na Cadeia da Relação; referidas em artigo anterior, são outros dois grandes momento do programa expositivo do Porto, que parece impor-se já como capital cultural. Assine-se, entretanto, a saída do livro Peepshow, de A. J. Duarte, que se impõe como uma das melhores edições do CPF.

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24 Novembro 2001

Prémio Maluda para Fátima Mendonça
Na terceira edição do prémio anual de pintura atribuído a uma jovem artista

Fátima Mendonça venceu a terceira edição do Prémio Maluda, instituído por um legado testamentário desta pintora e destinado a galardoar anualmente um artista com menos de 40 anos por uma exposição individual de pintura realizada em Lisboa na anterior temporada. Depois de Ana Vidigal e Cristina Valadas, o prémio voltou a distinguir uma mulher, apesar dessa não ser uma condição do regulamento. Com uma dotação de cinco mil contos, trata-se de um dos mais importantes prémios artísticos nacionais, de valor igual ao Prémio EDP de pintura, recentemente atribuído a Pedro Calapez, e muito superior ao prémio oficial AICA-MC, concedido também anualmente pelo Ministério da Cultura por escolha de um júri da Associação Internacional de Críticos de Arte (AICA), com características de consagração de carreira. O júri foi constituído por José Augusto França e Fernando de Azevedo e por mais dois críticos da AICA cooptados por estes, Luísa Soares de Oliveira e Cristina Azevedo Tavares, além de José João Brito em representação da Sociedade Nacional de Belas Artes, que presidiu, conforme as disposições estabelecidas pelo legado. Fátima Mendonça foi premiada, por unanimidade, pela exposição que realizou em Junho na Galeria 111, a que deu o título «Eu Tenho Medo: lá, lá, lá, lá, lá...», sendo o respectivo catálogo prefaciado por Carlos França.
Tendo exposto regularmente, desde 1994, na Galeria Arte Periférica, a pintora fizera também uma exposição individual em 1999, no Porto, na Galeria Fernando Santos, que apresentou os seus trabalhos nas feiras de Madrid, Lisboa e Colónia. Nascida em Lisboa em 1964, Fátima Mendonça licenciou-se em Pintura na Escola de Belas Artes desta cidade, em 1990.  De acordo com a acta divulgada, o júri considerou «uma pintura de agilidade discursiva e provocatória servida por uma expressão pessoal impulsiva em que se confrontam duas realidades, uma imaginária e outra de conteúdo crítico.»
A artista apresentara pinturas e desenhos de grande formato onde dava sequência a uma produção de reconhecível teor narrativo, construída com referências a situações relacionais de infância e de afirmação feminina, onde o enfrentamento conflitual com o mundo é vivido entre a sedução e a culpa, o desafio e o pesadelo, enquanto a inscrição de palavras e frase lhes confere a sugestão de um diário emocional, de cunho confessional ou ficcionado.
Uma frequente evocação do espaço doméstico (a casa, a cozinha, que antes se alargara a um original tratamento da paisagem) surgiu nessa última exposição dramatizada por uma veemência gestual inesperada, enquanto uma iconografia recorrente - bolos, coelhos, corações, sexos - assumia uma intensidade expressiva de apocalíptica, em cenários interiores claustrofóbicos ou incendiados. Em alguns trabalhos, a arena de circo ou de tourada (e a figura de uma mulher toureira ou equilibrista, enquanto personagem auto-referencial) voltavam a estar presentes como metáforas de um mundo de espectáculo e lutas cruéis.
Com um percurso individual e de crescente notoriedade, Fátima Mendonça é um dos artistas que mais se destacaram ao longo dos anos 90, embora à distância do que alguma crítica e as instituições dominantes (onde nunca expôs, aliás) procuraram estabelecer como as tendências características da década, das quais quase sempre se pretendeu excluir a prática da pintura. Mas por vezes, como agora sucedeu, reconhece-se que é à margem dos estilos colectivos que se constroem as obras que mais importam, as criações pessoais, independentes e originais.
 

 
"Com papas e bolos..."
Mais um episódio da história que Fátima Mendonça vem contando em pintura
2002 Expresso Cartaz de 12 Outubro 2002
 
Galeria 111, Porto, até 9 de Novembro

Foto «Para te fazer não tem nada que saber III», 2002, pastel de óleo e lápis de cor sobre papel

«O pai, o João, eu com o meu vestido de couves e a mãe arranjados para a fotografia». Retrato de família, portanto, da fotografia à pintura, protagonizado por um eu-menina onde a pintora se projecta, devassando memórias e fantasias de infância ou tecendo-as como uma ficção continuada, com que nos enleia de exposição em exposição, crescendo como pintora. Em vez de cabeças, quatro grandes sacos de bolos sobre o fundo quase branco, apenas esboçado, todos cheios de doces redondos com uma cereja em cima. Retrato paródico ou cruel que prolonga um grande desenho da exposição anterior, onde uma menina-bailarina dançava entre coelhos, com a sua cabeça de bolos, segurando duas bandarilhas-espetos com mais bolos, a enfrentar a vida - «eu tenho muito medo», lia-se. As bandarilhas vinham de uma menina-toureira deixada sozinha na arena, que noutros quadros passou a ser pista de circo, e então a menina-acrobata equilibrava-se sobre o arame com as suas asas feitas de bolos, «do tamanho de pequenos punhos de criança», numa exibição mais que desajeitada («andar e voar e fazer có, có, cócó», escreveu ela numa das obras desse ciclo, não fossemos não querer reconhecer o que víamos). Os dejectos, envoltos em invólucros ovais, em ovos, aparecem agora a preencher o espaço imenso (mais de dois por três metros) de uma tela que já se vira na Arco, em versão entretanto retrabalhada, toda ela rodeada por um mimoso folho de tecido e lã, onde, entretanto, à referência à «casa cagalhona» se somou o subtítulo «Incubadora».
A forma redonda da arena das touradas, da pista do circo, da gaiola que prendia a menina-pássaro, da rede circular onde, na exposição de há um ano, se acumulavam corações bem vermelhos («eu tenho de chorar mas esqueço-me porquê»), da forma (fôrma) de bolos e da grelha do fogão, é agora incubadora e dela nascem «meninos com creme de chocolate e meninas com doce de morango» («bolos para te agradar»). São as novas personagens das mais recentes obras de Fátima Mendonça, «bolos de pão, como filhos», acompanhados pela respectiva receita e pelo registo laborioso das centenas de unidades diariamente produzidas na fábrica doméstica, a cozinha de tantos outros quadros: «Para te fazer não tem nada que saber», afirma o título da exposição.

Os bolos-filhos surgem bem reais como pães comestíveis numa instalação-montra e também em vários grandes desenhos a pastel de óleo, saindo de uma grande forma de bolos que se prolonga em vestido de menina (a mesma rede circular, prisão, casulo e ventre) visto pendurado num cabide ou, noutro caso, desajeitadamente envergado («o vestido do inferno») - e aí, decifrando as garatujas e percorrendo os escritos, vêem-se sexos femininos, «as minhas vergonhas» de outros quadros, urinando para o ar («como um rapaz»). Não estamos na cozinha, de facto, mas na vida, a enfrentar o mundo com terrores e desejos, escavando a memória entre o exorcismo e a ironia.
«Deixar que este universo mental tenha uma vida visual, que encarne uma turbulência que não se limite a desenvolver um relato literário ou memorial é o desafio permanente desta obra em cada momento que ela se revela», escreve Celso Martins no seu prefácio para o catálogo. Desafio vencido. A narrativa não se substitui ao que está a acontecer sobre a tela ou o papel, fixada antes de surgirem (como sucede na ilustração e na pintura literária) os desenhos pintados com a urgência aqui visível das suas grandes pinceladas negras e das manchas invasoras, de vermelho-sangue: o que importa passa-se à nossa frente, no espaço branco do suporte, como um desafio oferecido à nossa própria capacidade de imaginar. É o impacto visual de cada obra, tantas vezes com a violência do grito, que nos faz precisar de um fio narrativo que «explique» o que vemos, obrigando-nos, para segurança nossa, a decifrar as anotações escritas ou rasuradas, a reconhecer personagens e a inscrevê-las na «estória» já longa da obra de Fátima Mendonça, que não importa se é ou não a sua história pessoal, íntima. Como acontece com Louise Bourgeois (a mãe-aranha, a oficina doméstica de restauro de tapeçarias, o quarto-cela) e com Paula Rego, por exemplo, mas os exemplos seriam quase todos femininos, o teatro do mundo está muito próximo da vida, a arte conduz-nos por abismos e sonhos reais, tão fundos que raramente os podemos ver.

sábado, 13 de novembro de 1999

1999, AURÉLIO DA PAZ DOS REIS, Palácio Foz

 À procura de um autor 

13-11-99


AURÉLIO DA PAZ DOS REIS

Palácio Foz

(Até 5 de Dezembro)


 PIONEIRO do cinema, em 1896, fotógrafo amador, até cerca de 1920, floricultor premiado e comerciante, político republicano, Aurélio da Paz dos Reis (1862-1931) é um curioso personagem portuense. A exposição que o Centro Português de Fotografia lhe dedicou há tempos, na Cadeia da Relação, chegou a Lisboa abreviada, numa apresentação que sublinha o interesse documental das imagens que deixou mas que não permite ainda conhecer, de facto, o que foi a respectiva obra e o lugar que ocupou na fotografia do seu tempo.


 Fazem parte do espólio que lhe sobreviveu 2464 positivos e 9260 negativos, em geral chapas de vidro estereoscópicas, que permitiam a visão binocular em relevo, embora ele também as usasse para obter panorâmicas ou captar duas imagens diferentes. É através das provas originais (que não se expõem), das vistas estereoscópicas que produziu e comercializou (mas que aqui não se dão a ver), dos postais que editou e das fotografias que expôs e com que ganhou prémios nos Salons ou que publicou na imprensa (duas das fotos expostas, sobre o Carnaval dos Fenianos, foram editadas na «Ilustração Portuguesa», em 1906) que a sua actividade poderia ser conhecida e localizada na sua época histórica – que já é a da plena maturidade da fotografia e não a era dos pioneiros.


 


Aurélio da Paz dos Reis (1862-1931), um portuense ilustre


 

 A opção seguida, mostrando apenas tiragens de 1998 impressas a partir dos negativos originais (de muito boa qualidade mas com escassas referências técnicas), transforma radicalmente as condições de visibilidade e exposição da sua produção fotográfica, por via de uma prática que poderia ser designada por arqueologia criativa. Existem certamente dois Paz dos Reis: o que foi visto no seu tempo e o que é recriado a partir do seu espólio de negativos – proporcionar esse confronto seria de grande interesse.


 Sucede que a fotografia estereoscópica, divulgada a partir da Exposição Universal de Londres de 1851, se vulgarizou nas duas décadas seguintes como entretenimento social e instrumento de divulgação (antes da multiplicação das edições em formato «carte de visite»), mas perdeu depois quase todo o seu impacto perante a novidade do cinema, ficando no final do século restrita a alguns grupos de amadores especializados (ver, por exemplo, La Photographie Stéréoscopique sous le Second Empire, Biblioteque Nationale de France, 1995). Paz dos Reis ter-se-á mantido até ao final fiel a esse processo já anacrónico.


 As imagens estereoscópicas caracterizavam-se em geral por uma ambição de realismo (de início recreado em estúdio) que se acentuava pela presença da terceira dimensão, funcionando como «tranches de vie» de um mundo em rápida mudança. Aparentemente, o realismo das imagens recuperadas de Paz dos Reis tem essa mesma origem, já em alternativa ao documentarismo cinematográfico, que ele rapidamente abandonou, faltando demonstrar que as provas fotográficas que o próprio imprimiu e divulgou (e não só as que agora se retiram do seu espólio de negativos, com maior ou menor arbitrariedade) se afastavam deliberadamente do gosto salonista da época para tirar partido estilístico ou estético do instantâneo documental, quase cinematográfico, que mais tarde se viria a apreciar.


 As desfocagens parciais, os enquadramentos instáveis e desiquilibrados, a sugestão do movimento, que são atraentes nas imagens aqui expostas, antecipando o fotojornalismo posterior – como em Carnaval dos Girondinos, 1906; as Batalhas de Flores no Palácio de Cristal e em Espinho, 1907; a Visita de D. Manuel II ao Porto, 1908; os retratos de António José de Almeida, Bernardino Machado, etc –, tinham curso apenas no âmbito do espectáculo das vistas estereoscópicas ou eram aceites pelo autor nas suas provas impressas?


 Ficam por esclarecer algumas questões determinantes, enquanto o material original não for estudado e exposto, e permanece a dúvida, com a recuperação dos negativos que tem vindo a ser feita, quanto a estar-se perante uma recreação ou manipulação das imagens fotográficas e das suas condições de exposição. A exposição do Porto levava ao excesso essa intervenção criativa, com a apresentação de montagens sequenciais e caixas de luz, e o catálogo, entretanto, orienta-se para a narrativa biográfica e histórica, deixando por analisar a prática fotográfica.


 Entretanto, tem de sublinhar-se o contributo testemunhal das imagens expostas sobre a vida quotidiana no início do século, especialmente a da sua cidade do Porto: as ruas, as festividades e os acontecimentos políticos (os comícios, o 5 de Outubro em Lisboa), a actividade comercial, os transportes, a vida social e cultural (o Photo-Velo Club, de 1900, por exemplo), os desportos, etc, com extensão a Paris, na Exposição Universal de 1900. É um imenso património iconográfico que assim se põe em circulação, mesmo que se desconheça ainda se essas imagens têm, de facto, um ou vários autores.

sábado, 16 de outubro de 1999

1999, "O SÉCULO DO CORPO", CULTURGEST

 Os corpos do século 

16-10-99


O SÉCULO DO CORPO

Culturgest/CGD (Até 29 de Dezembro)

SEM catálogo, a exposição da Culturgest é um corpo amputado. Não se exigia um álbum luxuoso, que só os direitos de autor tornariam de preço proibitivo, uma vez que esta é uma mostra inédita e não uma co-produção com circulação internacional assegurada. Também não é só uma questão de princípio: são tão poucas as imagens que se viram, é tão grande a carência de traduções das obras de referência e mesmo tão escassa a circulação de catálogos estrangeiros, que inevitavelmente faltam as referências indispensáveis para saber situar, associar e atribuir sentido às obras que se mostram.

O «jornal» editado para a ocasião não chega a servir de guia aos núcleos da montagem (também não há textos de parede), não identifica como autores, quando não se trata de imagens anónimas, os fotógrafos expostos (as tabelas ficam-se pelos dados mínimos) e nem mesmo se deixa um registo das peças mostradas que nos venha a garantir que, antes do século ter terminado, se expôs em Lisboa o Adão e Eva de Frank Eugene, de 1905, publicado na «Camera Work» nº 30, em 1910, ou o auto-retrato de Lee Friedlander Canyon of Chelly, Arizona, 1983. O propósito foi meritório mas teria sido preferível que se adequasse a dimensão do projecto aos meios disponíveis e, se estes não chegavam para um século, mostrassem-se só duas ou três décadas nas adequadas condições, sem cortar em informação e ensaios. (Em tempo: durante dois anos a Culturgest tentou, de facto, produzir o catálogo em questão.)




Lee Friedlander, «Nu, Phoenix, Arizona, 1978»

 

Feito o aviso, deve dizer-se que o espectáculo das imagens – o espectáculo dos corpos exibidos, esplendorosos ou mortificados, e também o das fotografias expostas – é aliciante.

Um século de fotografias, sintetizado em 540 obras, podia apresentar-se num alinhamento monótono de cronologias ou disciplinas. Em vez disso, a arquitectura difícil da Culturgest foi transformada num percurso animado por sucessivos espaços e núcleos diferenciados. O tema geral fragmenta-se em capítulos que vão renovando sempre as pistas de abordagem e confrontando datas, linguagens e géneros (temáticos e sexuais), com uma desordem aparente que estimulará a perspicácia do espectador. A fotografia – se existe uma entidade única que agregue a infinidade dos processos técnicos e dos usos das imagens fotográficas – expõe-se em toda a sua imensa diferença de técnicas, suportes, formatos, intenções e destinos sociais.

Mostram-se fotogravuras, uma ou outra albumina, alguns postais, platinas, cópias de transparências para lanternas de projecção, as habituais provas de halogenetos de prata, cibachromes, impressões de polaroides gigantes, um tapete de revistas de moda, um poster de Olivero Toscani para a Benetton. E também reproduções fotográficas de imagens científicas obtidas em ecrãs electrónicos por novos meios de diagnóstico ou investigação, como os ultra-sons e as ressonâncias magnéticas. Mostram-se imagens de circulação clandestina, fotografias que desde o início foram candidatas à condição da arte (destinadas à exposição) e outras reconhecidas como tal depois de terem cumprido a sua função primeira, a publicação na imprensa periódica, nos casos da moda, do desporto ou da reportagem – as imagens terríveis dos campos de concentração, de Lee Miller, Prisioneiros com restos humanos, Buchenwald, 1945, e John Phillips, Danzig, Polónia: o fim da guerra pára a transformação de corpos em sabão, 1945).

Na concepção e na montagem, «O Século do Corpo» recorda «À Prova de Água», que a Expo'98 e Jorge Calado mostraram no CCB, e valerá a pena, porque houve catálogo (embora tardio), revisitar alguns dos núcleos onde o corpo era o fio condutor: «Na Praia», «Natação», «Lavagens» e «Águas Humanas». Tal como então sucedia, o itinerário é balizado por instalações fotográficas: «Microcosmos (O Corpo Torna-se Corpo)» – começa-se com a formação da vida e a evidência neutra do corpo físico (Chuck Close), as novas possibilidades e escalas do olhar, a arte e a ciência; adiante Mar de Sol, do escultor (?) inglês Andrew Sabin, é uma construção labiríntica que representa a «Mente (O Labirinto da Memória)»; depois, a passagem nocturna e a paisagem «abstracta» do interior do corpo, «Investigação (Os Olhos da Ciência)»; por fim, «Macrocosmos (Corpos Celestes»), de Pierre Radisic, fazendo do erotismo da pele a promessa dos céus. A marcar emblematicamente o acesso à mostra há ainda o voyeurismo genial de Helmut Newton (o díptico Elas Avançam, Nuas e Vestidas, Paris, 1981), a sublinhar outro dos pares essenciais, nu e vestido, num trajecto que se fará sempre entre dualidades e cruzamentos: homem e mulher, vida e morte, juventude e velhice, público e privado, prazer e dor, exterior e interior, matéria e espírito, apolíneo e dionisíaco, etc.




Clarence H. White e Alfred Stieglitz, «Torso», 1909 (fotogravura publicada na revista «Camera Work»),

 

Entretanto, sucedem-se os capítulos decisivos da mostra, estruturados por tópicos que se abrem sempre a leituras plurais. Primeiro, «O Olhar (O Espelho da Alma») e «Carne (A Condição Universal»: o retrato e a identidade pessoal, o rosto e o corpo inteiro, reais ou manipulados; depois, a materialidade física, até ao informe (Leon Levinstein, Conney Island, c. 1950). Mas as pistas baralham-se e ambas as secções dedicam especial atenção à passagem e efeitos do tempo (Nicholas Nixon e Giacomelli, Avedon e os retratos do pai, em «O Olhar»), ou às idades do corpo sentidas na intimidade dos laços pessoais com os modelos (Emmet Gowin e Sally Mann).

Adiante, «Ícone (Ídolos e Ideais)» percorre uma galeria de paradigmas da beleza, do nu simbolista aos corpos míticos do cinema e da moda, passando pelos cultos da forma física (o método Desbonnet e o naturismo). Faltam aqui os corpos maquínicos e urbanizados dos anos 20 (Rodchenko e Moholy-Nagy, dois ausentes) e a sua conversão em heróis do povo ou da raça. «Gesto (A Linguagem do Corpo)» vai das tatuagens e das máscaras, SM ou étnicas, com trânsito pelo desporto e a dança, até à área da «body art» (o pioneiro Schwarzkogler, accionista vienense), destacando os rituais fotográficos de Dietter Appelt e a experiência da natureza do finlandês Arno Rafael Minkkinen.

«Desejo (Eros e Vénus)» concentra-se nas convenções e descobertas do erotismo (Christer Stromholm, Sem Título, c. 1955), enquanto «Dor (O Corpo Atormentado)» e «Poder (O Corpo como Campo de Batalha») fazem a chamada à realidade do corpo vulnerável à doença e ao mal, mostrando que este foi o século das mais extremas formas de aniquilamento, desde as trincheiras de 14-18 até aos campos de extermínio. Entretanto, se esses núcleos acentuam a condição social do corpo, «Forma (Objectos de Beleza)» faz o inventário das suas modalidades mais formalmente fotográficas, por uma longa sequência de sub-capítulos: «Fragmentos», «Figuras Humanas», «Geometrias», «Metamorfoses» e «Prazeres». Por fim, «Ficção (O Sonho do Corpo)» propõe-nos os espelhos do imaginário. Mas as secções nunca são estanques e muitas das imagens poderiam trocar de lugar.




Imogen Cunningham, «Nu, 1932»

 

As fotografias, provas de época e peças de colecção (não as habituais reproduções que uniformizam as dimensões e as qualidades materiais das imagens) vieram de museus, galerias e acervos particulares de todo o mundo e também dos artistas. Por exemplo, do Musée de L'Elysée de Lausanne – de que William Ewing (1), o comissário da mostra, é director (sucedendo a Charles-Henri Favrot) – , da Maison Européenne de Paris, do Museu Nicéphore Niépce de Chalons-sur-Saône, do Met de Nova Iorque, da National Gallery de Ottava, do Museu Ludwig de Colónia, do Fotomuseum/Stadtmuseum de Munique, etc. De Portugal, apenas uma fotografia, de José Manuel Rodrigues (Odivelas, 1997), a recordar com toda a justiça a sua recente retrospectiva na Culturgest (mas teria sido positivo se W. Ewing, que trouxe tantos fotógrafos suíços, aproveitasse a missão para lançar um olhar exterior sobre os nossos corpos e «corpus» fotográficos).

A propósito, convém assinalar a opção centralista e eurocêntrica que marca esta exposição – algo distanciada da lógica multiculturalista da programação da própria Culturgest («Uma Casa do Mundo») e também contrária, aliás, à acertada atenção às diferenças dos olhares sobre o corpo que guiou o projecto, nomeadamente quanto às que terão por origem ou por projecto assumido a diversidade dos sexos e das opções sexuais.

No século XIX, a fotografia é quase sempre uma actividade profissional ou artística masculina (Lady Hawarden e Julia Margaret Cameron foram casos raríssimos) e por maioria de razão o foi a fotografia do nu, que como «modelos para artistas» ou com intenção manifestamente «licenciosa» punha em cena os códigos do erotismo masculino com recurso a modelos profissionais e prostitutas. O corpo do homem foi mais raramente representado e o homoerotismo teve presença ambígua em algumas «academias» ou «nus estéticos», tornando-se mais explícito, nos anos 80, em Wilhelm von Gloeden (vejam-se ainda os adolescentes pseudo-clássicos de Sem título, c. 1910).




Arno Rafael Minkkinen, «Krupio, Finlândia, 1987»

 

A desigualdade sexual começou a mudar com o modernismo picturialista – com Gertrud Käsebier, Alice Boughton (Areia e Rosas Selvagens, 1909, da «Camera Work») e Anne Brigman (Alma do Pinheiro Destruído, 1907) – e muda mais radicalmente com o modernismo realista de Imogen Cunningham (que principiou por ser também picturialista e de que a exposição exibe cinco provas, reconhecendo-lhe o lugar magistral) ou, por exemplo, das não representadas Margarethe Mather e Tina Modoti (fotógrafas, modelos e amantes de Edward Weston). O reconhecimento do pleno estatuto artístico da fotografia e a admissão frequente do nu nas exposições foram coincidentes no tempo, e, ainda que começassem por seguir-se as regras de composição e os padrões simbólicos legitimados pela pintura, há uma evolução essencial da representação dos corpos que tem a ver com a possibilidade de se substituir os modelos profissionais, com as suas poses estereotipadas, por modelos ocasionais e «amadores», de quem é legítimo supor a cumplicidade e mesmo a co-autoria dos resultados fotográficos.

O Torso de 1907 («Camera Work», 1909) de Clarence H. White e Alfred Stieglitz é uma obra marcante; uma década depois, Stieglitz abandona a caução simbolista pela abordagem realista e «puramente» fotográfica, mas também já cruamente sexuada, da longa série de retratos de Georgia O'Keeffe, que viria a ser sua mulher e pintora de consagrada carreira (a sua ausência na exposição, como, mais tarde, de Kiki de Montparnasse, se não erro, é a vários títulos lamentável). Essas fotografias estão na origem dos nus de Weston (mostram-se três ou quatro das suas fotografias de 1936, feitas com Charis Wilson em Oceano e Santa Mónica), numa direcção que será ainda aprofundada genialmente por Lee Friedlander (Nu, Phoenix, Arizona, 1978). Já com outra lógica, o sentido da intimidade com os modelos, como se de fotografias de família se tratasse, continuará com Harry Callaham (Eleanor, Aix-en-Provence, c.1958) e Emmet Gowin (Edith e Elijah, Newtown, Pensilvânia, 1974) e também com Nicholas Nixon e Sally Mann. Por outro lado, os enquadramentos muito fechados praticados por Stieglitz são paradigmáticos da estratégia do fragmento explorada pelo modernismo vanguardista (o capítulo dedicado ao fragmento começa com fotografias médicas de 1925).

Parte substancial da exposição é dedicada à fotografia feita por mulheres (outros nomes: Claude Cahun, Laure Albin-Guillot, Helen Levitt, Dianne Arbus, Francesca Woodman, Nam Goldin, Ann Mandelbaum). Passam por elas a desconstrução das imagens idealizadas ou dominadoras e diferentes relações entre sujeito e objecto, mesmo se não será viável isolar um modo de olhar feminino. Uma outra linha de afirmação de diferenças é a que se estabelece através da larga presença da visão erótica homossexual masculina, desde Wilhelm Plüschow e Vicenzo Galdi, com a produção da Western Photo Gilde, depois através de grandes nomes da fotografia de moda como George Hoyningen-Huené, Horst P. Horst, George Platt Lynes, Herbert List, até Mapplethorp (faltando Bruce Weber).


É todo um outro campo de necessárias diferenciações, o dos olhares exteriores ao centralismo ocidental, que a exposição deixa por explorar, com a excepção breve de alguns japoneses (Eikoh Hosoe, Araki e poucos mais), Alvarez Bravo, evidentemente, e as participações isoladas do cubano Julio Mitchel ou da colombiana Lucana. A fotografia etnográfica e/ou exótica foi muito abundante no séc. XIX, mas, para além de George Rodger e Leni Riefenstahl, as fronteiras do mundo continuaram ainda a abrir-se com Pierre Verger, em África e no Brasil, a descoberta do paraíso amazónico fez-se com José Medeiros, Maureen Bisilliat ou Claudia Andújar, surgiram fotógrafos africanos como Malick Sibidé, Samuel Fosso ou Rotimi Fani-Kayode. Na América Latina, o trabalho escultural feito com o corpo é diferente nas fotografias de Mário Cravo Neto, Gerardo Suter, Luis González Palma ou Marta Maria Paráez Bravo.

Por último, há ainda que questionar a legitimidade do título. Este não foi, de facto, «O Século do Corpo», o qual já tinha sido exaustivamente explorado e consumido no séc. XIX, logo a partir de 1840 com os primeiros daguerreotipistas. Na pintura e na escultura, o rosto e o corpo fazem uma travessia do século em grande parte subterrânea, ocultados pela iconoclastia da abstracção e recalcados pelas idealizações das vanguardas, como mostrou a decisiva exposição de Jean Clair, em 1995, na Bienal de Veneza. Os muitos corpos fotográficos do século são os da proliferação da imagem impressa, durante muitas décadas essencialmente empenhada no inventário e denúncia das desordens do mundo e da opressão dos povos; só a partir de meados dos anos de 70, o trabalho sobre e com o corpo voltou a ocupar um largo lugar (predominantemente narcísico) na criação fotográfica. O título proposto é mais mediático que justo.


(1) Autor do livro The Body (Photoworks of the Human Form), ed. Thames and Hudson, 1994. 


Organizada em doze secções - Microcosmos, O Olhar, Carne, Mente, Ícone, Gesto, Desejo, Forma, Dor, Poder, Investigação e Ficção – a mostra percorre as diversas áreas em que a fotografia se relaciona com o corpo, como a dança e o desporto, a medicina, a antropologia, a publicidade, a reportagem, a arte, num panorama que inclui muitos dos melhores fotógrafos do século. 

sábado, 26 de junho de 1999

1999, Madrid, PHotoEspaña 99, «Sangre Caliente»

 Sangue quente em Madrid 

26-06-1999



Peter Beard, «Khadija com o meu jornal» (polaroid a cores de grande formato)


 

 LISBOA já teve o seu Mês da Fotografia, em 1993, mas a experiência, em geral bem sucedida, ficou sem continuidade. Madrid começou em 1998 e já vai na segunda edição. Por cá, a iniciativa pertenceu à Câmara. Em Espanha, trata-se de um projecto particular, dinamizado por uma empresa cultural, La Fabrica, que conseguiu associar aos patrocínios do Ministério de Educação e Cultura e do Ayuntamento de Madrid a colaboração de museus, fundações, centros de arte e de mais 46 galerias e dez outros espaços. No total, «PHotoEspaña 99», com cem milhões de pesetas de orçamento, apresenta 93 exposições que se distribuem pela secção oficial, nas instituições estatais ou mecenáticas distribuídas ao longo do Eixo da Castellana, do Centro Rainha Sofia à torre Caja Madrid; por «salas convidadas», mais afastadas dessa via central; e pelo «festival off», incluindo as galerias. É um longo itinerário a atravessar a cidade e a diversidade da fotografia que se prolonga até 18 de Julho. Na Internet conta com um site muito eficaz: www.photoes.com.


 «Sangre Caliente» foi o título escolhido para o segundo festival, que aposta abertamente na pluralidade da fotografia, na abolição das fronteiras convencionais entre arte e fotografia bem como na conquista de um público alargado (terão sido cerca de 500 mil os visitantes das 71 exposições da primeira edição). A denominação não significa a adopção de um condicionamento temático, mas antes uma aposta na «emoção como um instrumento essencial da criação»«pela paixão contra o aborrecimento», como diz um dos títulos do primeiro número do «PHotoPeriódico», o suplemento semanal de «El Periódico del Arte» que é dedicado ao festival.


 Alejandro Castellote, o director artístico, dá um tom polémico ao programa quando afirma que «os canais de difusão da arte estão maioritariamente habitados por uma oferta endogâmica: arte para artistas e para os profissionais que circundam o mundo da cultura. Os resultados costumam ser propostas ilegíveis para os não iniciados». A alternativa procurada ao que se diz ser «o esgotamento estético da cultura gerada no Ocidente» ou a «frieza e hermetismo das novas correntes», não é o populismo e a banalização, mas «a reivindicação da emoção na arte», «o uso da fotografia como instrumento de compromisso social» e a atenção às propostas diferentes vindas de outros continentes.


 


Weegee, «Billie Dausha e Mabel Sidney», Nova Iorque 1944


 

 Entre outros encontros programados, com Martin Parr e Andrés Serrano, por exemplo, o debate continua num seminário da Universidade Complutense, dirigido por Santiago B. Olmo, que tratará o tema «Quente e frio. Estratégias da emoção e da razão: Atitudes na fotografia actual». Apresentada no Museu Rainha Sofia, em últimos dias (só até 29), «Fotografia Pública / Photography in Print. 1919-1939», é uma notável exposição sem provas fotográficas originais. Organizada pelo historiador Horacio Fernández, debruça-se sobre a publicação e reprodução da fotografia por meios mecânicos, em foto-livros, revistas e jornais, cartazes, folhetos publicitários ou propagandísticos, explorando as transformações que conheceu a fotografia entre as duas guerras, quando nasce a «Nova Visão» e explodem os grandes meios da comunicação de massas que associaram a renovação da tipografia à imagem impressa. Atenção à posterior itinerância por Bilbao e La Rioja, Logroño, a partir de Setembro, e, em especial ao livro homónimo, com cerca de 650 reproduções de fotografias impressas e um dicionário de autores, tantas vezes simultaneamente fotógrafos, fotomontadores, designers e também artistas plásticos.


 A rectaguarda histórica (ou vanguarda, se se quiser) continua no programa com um conjunto de excelentes mostras retrospectivas, dedicadas a André Kertész, com «Ma France», a exposição da Mission du Patrimoine Photographique que os Encontros de Braga mostraram em 1993 (até 30 Jul.), e também a Weegee, numa produção do International Center of Photography (ICP), de Nova Iorque (até 1 Agosto), para além de um panorama do neo-realismo fotográfico italiano (até 29 de Agosto) e outro dedicado à Photo League, a associação de fotógrafos de Nova Iorque de intenção social, activa desde 1936 até 1951, extinta pelas perseguições do maccartismo. Comissariada por Naomi Rosenblum, com provas em muitos casos «vintage» da Howard Greenberg Gallery, reúne 41 autores que alargam em muito o leque dos nomes mais conhecidos de Berenice Abbott, Lewis Hine, Eugene Smith ou Lou Stettner.


 


André Kertész, «Hotel des Terrasses», Paris 1926


 

 Outras projectos em que o compromisso social e a tradição documental se prolongam na actualidade encontram-se na colectiva «Imagens para a Dignidade», na estação da Renfe Nuevos Ministerios (e também nos comboios), com imagens de Sebastião Salgado, Cristina Garcia Rodero, Zwelethu Mitheta (África do Sul), Christine Spengler (Kabul) e outros, e também na edição de 99 do World Photo Press, mostrada na Fundação La Caixa (até dia 29). Entretanto, outros projectos temáticos, como «Elogio de la Pasion» ou «Afinidades Dispersas», apresentam jovens autores, estabelecendo cruzamentos com as estratégias da arte mais recente ou com os novos media, enquanto propõem pontes entre o social e a intimidade.


 Outros nomes em destaque no programa são os de Peter Beard (NI, 1938), com as suas imagens de África mostradas no Museu Nacional de Ciências Naturais – é um inclassificável autor de fotografias de animais e de empenhamento ecológico, bem como de moda e de charme, indissociáveis como exercício de vida dos seus impressionantes «diários» feitos de colagens, desenhos e objectos –; de Seydou Keïta (c. 1921) e Malick Sidibé (1936), fotógrafos do Mali que se dedicaram ao retrato e, o segundo, também ao testemunho da modernização da vida urbana africana, fotografando o quotidiano e as festas nocturnas (Real Jardim Botânico até 31 Jul.); ou da brasileira Claudia Andujar, com a antologia do seu trabalho com os Yanomami recentemente mostrada em Braga.


 Quanto à produção espanhola, o destaque histórico irá para José Ortiz Echagüe (1886-1980), estranha figura de um pioneiro da aviação e da modernização industrial espanhola que praticou toda a vida uma fotografia arcaizante, usando processos dos picturialistas (Carbono-Fresson) para registar os «tipos y trajes», «pueblos y paysajes» de uma «España Mística». Será mostrado no Rainha Sofia de 13 de Julho a 13 de Setembro. Outro histórico, mais recente, é Ramón Masats, fotógrafo catalão nascido em 1931, renovador da reportagem nos anos 50-60. Mas a actualidade da fotografia espanhola está presente por toda a parte, desde a colectiva oficial «Propuesta 99» às inúmeras mostras individuais: Javier Vallhonrat e Miguel Trillo (em La Fabrica), Isabel Muñoz (em três mostras), Tony Catany, Xurxo Lobato, Manuel Sonseca, José Ramón Bas (presente em Braga, em 99), Antoni Abad, Chema Alvargonzález e Alicia Martín (na galeria Oliva Aruna), etc, etc. A vitalidade do panorama (que parece, no entanto, mais prolixo que exaltante), prolonga-se em termos editoriais com a «Colecção PHotoBolsillo», a publicar um livro por mês e já com Humberto Rivas, Koldo Chamorro, Francesc Catalá-Roca, Gabriel Cualladó, Vallhonrat, Trillo e outros.


 Diversificando ainda mais a oferta, assinale-se a presença dos arquitectos-artistas Diller+Scofidio, de Nova Iorque; de Francis Giacobetti, retratando Francis Bacon seis semanas antes de morrer em Madrid; do guatemalteco Luis González Palma, que trabalha um repertório mitológico local com os meios da colagem e da montagem. Dez fotógrafos peruanos e os argentinos Marcelo Brodsky e Matías Costa alargam o trânsito ibero-americano.


 Nas galerias, a diversidade é absoluta, quanto a géneros, temas e também fronteiras nacionais (embora a ausência de quaisquer nomes portugueses no programa não deva deixar de ser notada, tanto mais que a «invasão» contrária se tornou uma constante). Citem-se entre os mais conhecidos, Robert Mapplethorpe (as flores), os pintores Davis Salle e Juan Uslé (na Solelad Lorenzo e, o segundo, também em Estiarte), ou Allen Jones, artista inglês associado à Pop; a jovem francesa Rebecca Bournigaul; as colectivas com Gursky, Ruff, Ruscha e Serrano ou Thomas Joshua Cooper, Gunther Förg, Axel Hütte e Olafur Eliasson.


 Entretanto, é fora do programa PHotoEspaña que se encontra uma das mais importantes exposições madrilenas: os «Cantos do Deserto» de Richard Misrach no Canal Isabel II (até 29 de Agosto). Aí se expõe uma síntese de vinte anos de trabalho e de muitos milhares de imagens dedicadas às paisagens desérticas norte-americanas.


 Herdeiro da grande tradição paisagística americana e também da sua renovação pelos «novos topógrafos» de 1975 (Robert Adams, Lewis Baltz, Frank Gohlke, Stephen Shore, etc), Misrach utiliza a cor e o grande formato num trabalho que é uma aventura pessoal, uma celebração dos grandes espaços e também uma denúncia da degradação da natureza.


 A mostra de Mishari veio já de Granada e segue com destino à sala Rekalde de Bilbao: é mais uma oportunidade para reflectir sobre a estranha distância que nos separa das circulações peninsulares. (Em tempo: a pintura de Morandi passa o Verão no Museu Thyssen.)