textos do arquivo . história da fotografia, Portugal (2005)
LisboaPhoto
Benoliel, Joshua
Benoliel - Génio ou mito?
Joshua Benoliel continua a ser um fotógrafo desconhecido
Expresso Actual de 04-06-2005
É chocante notar que vêm dos arquivos de «L’Illustration», de Paris, e
«ABC», de Madrid, quase todas as provas de época expostas na mostra
dedicada a Benoliel, para além de dois álbuns do Arquivo Histórico
Militar, com milhares de provas de contacto sobre os preparativos da
intervenção na I Guerra. Se fica documentada a actividade do
correspondente internacional, com originais cheios de anotações,
retoques e marcas editoriais («L’Illustration»), também se ilustra o
desprezo nacional pelo património fotográfico.
Benoliel é uma das vítimas dessa fatalidade, apesar de ter gozado em
vida, e depois dela, dum imenso prestígio. É provável que não se tenha
esgotado a hipótese de descobrir outras provas de particulares e
instituições (o Paço de Vila Viçosa tem mais de duas centenas que não
foram cedidos para a exposição da Cordoaria). Mas no caso dum
foto-repórter com tão grande obra impressa, principal intérprete da
aparição da imprensa ilustrada com os progressos fotomecânicos no
início do século XX, não há que fetichizar as edições «vintage». As
imagens publicadas devem ser vistas neste caso como originais (com as
soluções gráficas que nesse tempo se inventavam - expondo-se edições e
não fac-similes colados nas paredes). E os negativos sobreviventes são
sempre um manancial para reimpressões.
Joshua Benoliel (1873- 1932) reuniu um espólio de mais de 60 mil
negativos em cerca de 30 anos de trabalho, mais intenso de 1906 a 1918
como colaborador principal do magazine semanal de «O Século», a
«Ilustração Portuguesa». Era o «filme da vida duma nação», «o
documentário da nossa vida política, social, mundana, desportiva,
teatral, etc.», dizia a promoção do Arquivo Gráfico da Vida Portuguesa
1903-1918, História da Vida Nacional em Todos os seus Aspectos, que
Rocha Martins prefaciou em 1933 com um texto que continua a ser a quase
única fonte de informação sobre o homem e o fotógrafo («Os grandes
objectivos duma objectiva célebre», ver História da Imagem Fotográfica
em Portugal, de António Sena).
Quando a edição se interrompeu ao cabo de seis fascículos, não saíra
da 1ª Parte, «Os últimos anos de um reinado» (D. Carlos). Começa com «As
viagens dos chefes de Estado a Portugal», desde Eduardo VII e Afonso
XIII, em 1903, e junta no 2º capítulo «A viagem de D. Carlos a Espanha»
(1906) e «O Movimento Operário em Portugal», sobre o comício socialista
do 1º de Maio de 1907. Aí figuram as notáveis fotografias das mesas dos
oradores, com Azedo Gneco, e da Imprensa, improvisadas sobre carroças.
Depois passa às «Procissões», desde 1903, com observações atentas de
grupos de mulheres nos passeios, e o capítulo 4º intitula-se «Cascais,
Corte da Saudade»: «grupos de elegantes» na praia, tiro aos pombos e
ténis, «As Gincanas de Automóveis». O exótico alinhamento prossegue com
destaque para a rebelião do Cruzador D. Carlos (1906) e «Os
Intransigentes de 1907» (a revolta académica, com «Os que furam a
greve», «O julgamento dos díscolos», a solidariedade dos liceus
lisboetas, até à bela imagem final da despedida de Paulo Quartim expulso
de Coimbra, já dentro do comboio.
As circunstâncias políticas de 33 ou as dificuldades económicas da
edição ditaram o seu fim. Depois, o arquivo foi-se dispersando, vendido a
diversas entidades pelo seu filho Judah Benoliel (também destacado
foto-repórter), em tempos de crise, e mais tarde por outros herdeiros.
«O Século» veio a receber uns milhares de chapas de vidro que passaram
para o Centro Português de Fotografia e estarão na Torre do Tombo (9334
negativos, ou cerca de 12 mil, segundo diferentes fontes), e o Arquivo
Municipal conserva entre 4500 e 3500, entre outras colecções de menor
vulto.
Por ocasião da Europália‘91, Benoliel foi apresentado por uma
selecção de 34 fotografias, quase todas reimpressões modernas. A escolha
de A. Sena afastou-se da abordagem cronológica e descritiva para
ensaiar uma aproximação à singularidade do fotógrafo e de um olhar capaz
de ser muitas vezes original, irreverente e poético. Foi a primeira e
até agora única ocasião para se ver que, para além da quantidade e da
importância documental do acervo do antigo «Século», o melhor trabalho
fotográfico e gráfico de Benoliel escapa às rotinas e rituais do
fotojornalismo, inventando outros momentos e pontos de vista, nos quais
se desenham interesses e sentidos que só viriam a ter expressão
significativa após as mutações da década de 20 (com a «nova visão», a
Leica e a seguinte vaga de magazines ilustrados). Ao contrário das
outras mostras que se repetiram em Portugal, esta ficou por Charleroi,
acompanhada por um catálogo truncado.
De nacionalidade britânica (nascido em Lisboa de pais vindos de
Gibraltar), judeu praticante, monárquico (Stuart caricatura-o em 1916
com uma coroa no alfinete da gravata azul e branca), viajado e culto (o
padre Miguel A. de Oliveira, no Arquivo Gráfico, recorda-o em Sevilha e
na Bélgica «explicando os segredos artísticos de Murillo e Van Dyck»),
despachante de alfândega e bibliófilo, Benoliel é decididamente um
personagem singular.
Não é conhecido o que pensava da fotografia, senão através da obra
que iniciou quando as práticas amadoras e profissionais se tinham já
banalizado e alguns aficionados cosmopolitas se interessavam pela «arte
fotográfica» picturialista. Terá publicado a primeira reportagem em 1898
na revista «Tiro Civil», sobre as «Regatas do Centenário», e continuava
a dedicar-se a temas desportivos e a frequentar a Corte («El Rei», em
«Tiro e Sport», 1904) quando entrou como «free-lancer» para a
«Ilustração Portuguesa» e se tornou o cronista dos últimos anos
conturbados da Monarquia e dos primeiros da República. Terá apenas
participado numa exposição beneficente de amadores em Cascais, com D.
Carlos e a «alta sociedade», em 1903, e manteve-se depois à margem dos
salões da fotografia artística (mesmo do que a «Ilustração» promoveu em
1910), mas as suas reportagens estiveram presentes na 1ª Exposição de
Artes Gráficas, em 1913, e no ano seguinte numa mostra idêntica em
Leipzig.
Gérard Castello-Lopes chamou-lhe «o único génio da fotografia
portuguesa». Ian Jeffrey considerou-o «sem igual entre os pioneiros do
fotojornalismo» (Time Frames: The Story of Photography, 1998, citado por
Nuno Avelar Pinheiro em Pelos Séculos d’O Século, Torre do Tombo,
2002).
A actual exposição adopta uma lógica de arquivo, em resistência à
consideração museológica e estética da fotografia utilitária ou
vernacular (reservada à que enuncia a intencionalidade artística,
seguindo cânones das artes plásticas). O que significa, em primeiro
lugar, desvalorizar a possibilidade de reconhecer uma marca autoral, um
estilo, um olhar próprio, uma qualidade fotográfica, no que se quer ver
só como resposta técnica e ideológica às novas necessidades da imprensa
ilustrada. O tema vem de Rosalind Krauss e liga-se à cegueira
«ontológica» fixada na cesura ou corte, fingindo ignorar que as escolhas
do enquadramento e do ponto de vista são fundamentos da originalidade
da fotografia. A reflexão crítica de Szarkowski e os catálogos do MoMA
são mais produtivos para a prática e a cultura fotográficas do que o
marxismo académico da revista «October»: a questão também é política.
O que importa à comissária Emília Tavares é «desconstruir o mito»
Benoliel, segundo disse à «Visão». Daí a quase ausência de escolha das
fotografias «mais eloquentes», mais belas e significativas, e a
insistência na quantidade, uniformizada por impressões demasiado
escuras, de bordos negros como radiografias, sem interpretação de
valores lumínicos, mesmo quando se conhecem as suas versões impressas.
Daí a quase total ausência da visão inovadora com que Benoliel construiu
as imagens da nova urbanidade do seu tempo (os aviões e automóveis, os
desportos, os e as «elegantes» das avenidas, os ofícios urbanos, os
ambulantes e os ociosos, a confluência das várias classes no espaço
público - algumas dessas imagens essenciais são projectadas à entrada da
mostra). Daí a concentração sobre temas da história política
enquadrados por fórmulas ideológicas de suposto alcance universal.
Os capítulos sobre o regicídio (e a falsa questão do «instante
perdido»), a implantação da República (e «a política das imagens»), que
se prolonga nas variações obsessivas sobre «Imagem e Poder» e «Caos e
Ordem», propõem a ideia que o fotógrafo é um mero instrumento da
propaganda (burguesa), uma peça do discurso segregado pela imprensa
ilustrada ao serviço dos vários poderes. Depois, «Geometria da Cidade» é
um exercício de esteticismo anacrónico.
As multidões, os grupos (de grevistas ou de citadinos) e as figuras
solitárias têm nas fotografias de Benoliel, com o seu sentido da
profundidade de campo e do pormenor, uma presença que é, nas imagens
mais conseguidas, e algumas podem descobrir-se na Cordoaria, a mais
exaltante visão (encontrada e construída) do dinamismo urbano, nos
trânsitos de um olhar atento à expressão das massas e à intimidade dos
indivíduos, e à possível tensão entre elas. Com a liberdade e a verdade
de que as melhores imagens podiam então ser testemunho, Benoliel
deixou-nos um breve estado de graça da fotografia portuguesa. A herança
continua a ser delapidada.
Joshua Benoliel - Repórter Fotográfico
Cordoaria, até 21 de Agosto
#
Uma carta a propósito, da Comissária Emília Tavares, e a breve resposta
JOSHUA BENOLIEL
EXPRESSO, Actual de 18-06-2005
É sempre
gratificante que um crítico de arte, com uma conhecida reputação, como é
o caso de Alexandre Pomar, faça eco público das dificuldades dos
investigadores (na verdade, os únicos que diariamente se confrontam com o
património fotográfico nacional e o conhecem) sobre a falta de uma
política de conservação e preservação desse mesmo património.
Quanto aos comentários acerca da exposição, torna-se necessário tecer
algumas rectificações e esclarecimentos. Génio ou Mito? Parece-me uma
questão estafada, secundária e muito antiga, que em nada abona para o
conhecimento do trabalho de Joshua Benoliel, que Pomar parece não rever
na exposição apresentada. É natural, já que algumas noções fundamentais
sobre o que é o espólio fotográfico de um autor e a metodologia que deve
ser empregue no seu estudo não estão, nem têm que estar, na base da sua
formação, o que já é mais lamentável é que discorra acerca delas sem
esse conhecimento, ou pelo menos não procure informação credível.
Comecemos precisamente pela questão de «lógica de arquivo, em
resistência à consideração museológica e estética». Perante qualquer
espólio fotográfico, a metodologia universal a adoptar é antes de mais a
sua inventariação, separação por suportes e formatos, técnicas, estados
de conservação e indexação dos seus conteúdos. Este trabalho
arquivístico, que Pomar parece desprezar, é fundamental para discernir
no conjunto global de imagens a construção da tal marca autoral, que não
se prende a códigos lineares e obtusos sobre quem é génio e quem não é.
Estamos perante o trabalho de um foto-repórter, qualquer consideração
estética não pode deixar de se colocar em confronto com este facto
intrínseco e rearticulação ontológica do seu trabalho. «Cegueira
ontológica» é querer instalar o trabalho de Benoliel num registo de
genialidade estética novecentista, não atendendo à projecção que a sua
obra teve no desenvolvimento de algo mais abrangente do que uma autoria,
isto é, uma nova cultura visual.
A «concentração sobre temas da história política» apenas é
demonstrativa e equitativa em relação ao conjunto geral do espólio e à
sua qualidade. «Imagem e Poder» e «Caos e Ordem» são a análise latente
de um período em que toda a construção política das imagens tem o seu
início. Benoliel não é apenas, mas é também, um instrumento de
construção de significados políticos e ideológicos, uma vez que a
manipulação editorial das suas imagens foi sempre um exercício que
extravasa o significado original das mesmas.
A questão só pode mesmo ser também política, quando falamos de imagem
fotográfica e cultura de massas, mas Pomar terá de ampliar muito a sua
bibliografia para a compreender, uma vez que essa questão surge muito
antes do «marxismo académico da revista ‘October’» ou de Rosalind
Krauss. Daí que o crítico considere que houve «fetichização das edições
vintage», não compreendendo que essas mesmas edições são documentos
absolutamente inéditos, que permitem entender todo o trabalho editorial
sobre o «enquadramento e ponto de vista» do fotógrafo, obrigando-nos, no
mínimo, a redimensionar o significado dos «fundamentos da originalidade
da fotografia». Quanto às imagens publicadas existem nesta exposição, e
em número muito superior aos fac-similes, que se resumem a 6, enquanto
que são apresentadas 19 edições originais.
Pomar considera que a minha escolha de imagens deixou de fora as
«mais eloquentes, mais belas e significativas», adjectivos e apreciação
que só poderei discutir com o crítico quando souber quantas imagens, das
13 mil que constituem o espólio do fotógrafo, já viu, sem serem as
publicadas e para além da selecção de 34 que António Sena realizou para a
Europália 91. Custa-me a crer que o historiador, com o rigor que lhe é
conhecido, tenha considerado que em 34 imagens estava resumida e
totalmente abordada a originalidade do trabalho de Benoliel, conforme o
faz Pomar.
Quanto às críticas à impressão das provas actuais, devia o crítico
ter-se informado sobre o estado de conservação dos negativos originais,
uma vez que esse aspecto técnico tem toda a relevância na produção das
referidas impressões. Os negativos apresentam problemas diversos de
deterioração, impossibilitando tecnicamente qualquer aproximação a
impressões originais, e obrigando a um apurado trabalho para retirar o
máximo de informação dos mesmos, que Paula Campos executou de forma
irrepreensível e correcta. Além do mais, alimenta a inocente ilusão de
que as edições originais ou as «vintage» constituem documentos fiáveis
para comparação, ignorando que qualquer delas apresenta estados de
deterioração da imagem, que falseiam os tão apreciados «valores
lumínicos originais». O que Pomar confunde com uma radiografia é a
impressão integral do negativo, conferindo-lhe uma identificação
matérica, tantas vezes subvalorizada na abordagem fotográfica, e
garantindo uma reprodução integral do enquadramento executado pelo
autor.
A história da fotografia portuguesa é parca e inconsistente,
precisamente porque se têm perdido demasiados anos a perseguir génios
fotográficos, em detrimento do estudo articulado das suas obras, assim
como permanecerá um beco sem saída, enquanto um certo caciquismo
emplumado imperar, delapidando os empreendimentos que não possuem uma
suposta autoridade intelectual histórica a apadrinhá-los. Deste modo,
continua a ignorar-se o trabalho anónimo e desvalorizado desenvolvido em
muitas instituições de ensino, museus e, de modo particular, por
investigadores competentes.
A exposição de Benoliel, na Cordoaria, não pretendeu nunca ser um
projecto arrogante e fechado sobre si mesmo, deseja-se que outros
investigadores tenham a oportunidade de contribuírem com abordagens
diferentes e complementares. Muitas outras questões ficam por discutir
sobre a presente exposição, mas espero que o catálogo da mesma, a editar
em final de Junho, possa desenvolver novas matérias para um debate
construtivo e mais informado.
EMÍLIA TAVARES, comissária da exposição «Joshua Benoliel - Repórter Fotográfico»
N.R.
Alguns pormenores, entre muitas tergiversações: Não considerei que na
exposição houvesse qualquer «fetichização das edições vintage»; a
comissária é que agora sobrevaloriza o ineditismo das provas com
retoques e marcas editoriais. A referência à «lógica de arquivo» e a
Rosalind Krauss alude ao artigo sobre a fotografia do séc. XIX e de
Atget incluído em «Le Photographique», como será óbvio para qualquer
leitor informado (deixemos em paz a aura de Benjamin). Não pus em causa a
qualidade do trabalho de impressão de Paula Campos, mas as opções que
teve de seguir; com os «problemas diversos de deterioração» dos
negativos, mais difícil terá sido cumprir a exigência de uniformizar as
provas modernas.
A.P.