Joshua Benoliel - Repórter Fotográfico
Cordoaria (até 21 de Agosto)
Joshua Benoliel continua a ser um fotógrafo desconhecido 
Expresso Actual de 04-06-2005   
É chocante notar que vêm dos arquivos de «L’Illustration», de Paris, e «ABC», de Madrid, quase todas as provas de época expostas na mostra dedicada a Benoliel, para além de dois álbuns do Arquivo Histórico Militar, com milhares de provas de contacto sobre os preparativos da intervenção na I Guerra. Se fica documentada a actividade do correspondente internacional, com originais cheios de anotações, retoques e marcas editoriais («L’Illustration»), também se ilustra o desprezo nacional pelo património fotográfico.
Benoliel é uma das vítimas dessa fatalidade, apesar de ter gozado em vida, e depois dela, dum imenso prestígio. É provável que não se tenha esgotado a hipótese de descobrir outras provas de particulares e instituições (o Paço de Vila Viçosa tem mais de duas centenas que não foram cedidos para a exposição da Cordoaria). Mas no caso dum foto-repórter com tão grande obra impressa, principal intérprete da aparição da imprensa ilustrada com os progressos fotomecânicos no início do século XX, não há que fetichizar as edições «vintage». As imagens publicadas devem ser vistas neste caso como originais (com as soluções gráficas que nesse tempo se inventavam - expondo-se edições e não fac-similes colados nas paredes). E os negativos sobreviventes são sempre um manancial para reimpressões.
Joshua Benoliel (1873- 1932) reuniu um espólio de mais de 60 mil 
negativos em cerca de 30 anos de trabalho, mais intenso de 1906 a 1918 
como colaborador principal do magazine semanal de «O Século», a 
«Ilustração Portuguesa». Era o «filme da vida duma nação», «o 
documentário da nossa vida política, social, mundana, desportiva, 
teatral, etc.», dizia a promoção do Arquivo Gráfico da Vida Portuguesa 
1903-1918, História da Vida Nacional em Todos os seus Aspectos, que 
Rocha Martins prefaciou em 1933 com um texto que continua a ser a quase 
única fonte de informação sobre o homem e o fotógrafo («Os grandes 
objectivos duma objectiva célebre», ver História da Imagem Fotográfica 
em Portugal, de António Sena).
Quando a edição se interrompeu ao cabo de seis fascículos, não saíra 
da 1ª Parte, «Os últimos anos de um reinado» (D. Carlos). Começa com «As
 viagens dos chefes de Estado a Portugal», desde Eduardo VII e Afonso 
XIII, em 1903, e junta no 2º capítulo «A viagem de D. Carlos a Espanha» 
(1906) e «O Movimento Operário em Portugal», sobre o comício socialista 
do 1º de Maio de 1907. Aí figuram as notáveis fotografias das mesas dos 
oradores, com Azedo Gneco, e da Imprensa, improvisadas sobre carroças. 
Depois passa às «Procissões», desde 1903, com observações atentas de 
grupos de mulheres nos passeios, e o capítulo 4º intitula-se «Cascais, 
Corte da Saudade»: «grupos de elegantes» na praia, tiro aos pombos e 
ténis, «As Gincanas de Automóveis». O exótico alinhamento prossegue com 
destaque para a rebelião do Cruzador D. Carlos (1906) e «Os 
Intransigentes de 1907» (a revolta académica, com «Os que furam a 
greve», «O julgamento dos díscolos», a solidariedade dos liceus 
lisboetas, até à bela imagem final da despedida de Paulo Quartim expulso
 de Coimbra, já dentro do comboio.
As circunstâncias políticas de 33 ou as dificuldades económicas da 
edição ditaram o seu fim. Depois, o arquivo foi-se dispersando, vendido a
 diversas entidades pelo seu filho Judah Benoliel (também destacado 
foto-repórter), em tempos de crise, e mais tarde por outros herdeiros. 
«O Século» veio a receber uns milhares de chapas de vidro que passaram 
para o Centro Português de Fotografia e estarão na Torre do Tombo (9334 
negativos, ou cerca de 12 mil, segundo diferentes fontes), e o Arquivo 
Municipal conserva entre 4500 e 3500, entre outras colecções de menor 
vulto.
Por ocasião da Europália‘91, Benoliel foi apresentado por uma 
selecção de 34 fotografias, quase todas reimpressões modernas. A escolha
 de A. Sena afastou-se da abordagem cronológica e descritiva para 
ensaiar uma aproximação à singularidade do fotógrafo e de um olhar capaz
 de ser muitas vezes original, irreverente e poético. Foi a primeira e 
até agora única ocasião para se ver que, para além da quantidade e da 
importância documental do acervo do antigo «Século», o melhor trabalho 
fotográfico e gráfico de Benoliel escapa às rotinas e rituais do 
fotojornalismo, inventando outros momentos e pontos de vista, nos quais 
se desenham interesses e sentidos que só viriam a ter expressão 
significativa após as mutações da década de 20 (com a «nova visão», a 
Leica e a seguinte vaga de magazines ilustrados). Ao contrário das 
outras mostras que se repetiram em Portugal, esta ficou por Charleroi, 
acompanhada por um catálogo truncado.
De nacionalidade britânica (nascido em Lisboa de pais vindos de 
Gibraltar), judeu praticante, monárquico (Stuart caricatura-o em 1916 
com uma coroa no alfinete da gravata azul e branca), viajado e culto (o 
padre Miguel A. de Oliveira, no Arquivo Gráfico, recorda-o em Sevilha e 
na Bélgica «explicando os segredos artísticos de Murillo e Van Dyck»), 
despachante de alfândega e bibliófilo, Benoliel é decididamente um 
personagem singular.
Não é conhecido o que pensava da fotografia, senão através da obra 
que iniciou quando as práticas amadoras e profissionais se tinham já 
banalizado e alguns aficionados cosmopolitas se interessavam pela «arte 
fotográfica» picturialista. Terá publicado a primeira reportagem em 1898
 na revista «Tiro Civil», sobre as «Regatas do Centenário», e continuava
 a dedicar-se a temas desportivos e a frequentar a Corte («El Rei», em 
«Tiro e Sport», 1904) quando entrou como «free-lancer» para a 
«Ilustração Portuguesa» e se tornou o cronista dos últimos anos 
conturbados da Monarquia e dos primeiros da República. Terá apenas 
participado numa exposição beneficente de amadores em Cascais, com D. 
Carlos e a «alta sociedade», em 1903, e manteve-se depois à margem dos 
salões da fotografia artística (mesmo do que a «Ilustração» promoveu em 
1910), mas as suas reportagens estiveram presentes na 1ª Exposição de 
Artes Gráficas, em 1913, e no ano seguinte numa mostra idêntica em 
Leipzig.
Gérard Castello-Lopes chamou-lhe «o único génio da fotografia 
portuguesa». Ian Jeffrey considerou-o «sem igual entre os pioneiros do 
fotojornalismo» (Time Frames: The Story of Photography, 1998, citado por
 Nuno Avelar Pinheiro em Pelos Séculos d’O Século, Torre do Tombo, 
2002).
A actual exposição adopta uma lógica de arquivo, em resistência à 
consideração museológica e estética da fotografia utilitária ou 
vernacular (reservada à que enuncia a intencionalidade artística, 
seguindo cânones das artes plásticas). O que significa, em primeiro 
lugar, desvalorizar a possibilidade de reconhecer uma marca autoral, um 
estilo, um olhar próprio, uma qualidade fotográfica, no que se quer ver 
só como resposta técnica e ideológica às novas necessidades da imprensa 
ilustrada. O tema vem de Rosalind Krauss e liga-se à cegueira 
«ontológica» fixada na cesura ou corte, fingindo ignorar que as escolhas
 do enquadramento e do ponto de vista são fundamentos da originalidade 
da fotografia. A reflexão crítica de Szarkowski e os catálogos do MoMA 
são mais produtivos para a prática e a cultura fotográficas do que o 
marxismo académico da revista «October»: a questão também é política.
O que importa à comissária Emília Tavares é «desconstruir o mito» 
Benoliel, segundo disse à «Visão». Daí a quase ausência de escolha das 
fotografias «mais eloquentes», mais belas e significativas, e a 
insistência na quantidade, uniformizada por impressões demasiado 
escuras, de bordos negros como radiografias, sem interpretação de 
valores lumínicos, mesmo quando se conhecem as suas versões impressas. 
Daí a quase total ausência da visão inovadora com que Benoliel construiu
 as imagens da nova urbanidade do seu tempo (os aviões e automóveis, os 
desportos, os e as «elegantes» das avenidas, os ofícios urbanos, os 
ambulantes e os ociosos, a confluência das várias classes no espaço 
público - algumas dessas imagens essenciais são projectadas à entrada da
 mostra). Daí a concentração sobre temas da história política 
enquadrados por fórmulas ideológicas de suposto alcance universal.
Os capítulos sobre o regicídio (e a falsa questão do «instante 
perdido»), a implantação da República (e «a política das imagens»), que 
se prolonga nas variações obsessivas sobre «Imagem e Poder» e «Caos e 
Ordem», propõem a ideia que o fotógrafo é um mero instrumento da 
propaganda (burguesa), uma peça do discurso segregado pela imprensa 
ilustrada ao serviço dos vários poderes. Depois, «Geometria da Cidade» é
 um exercício de esteticismo anacrónico.
As multidões, os grupos (de grevistas ou de citadinos) e as figuras 
solitárias têm nas fotografias de Benoliel, com o seu sentido da 
profundidade de campo e do pormenor, uma presença que é, nas imagens 
mais conseguidas, e algumas podem descobrir-se na Cordoaria, a mais 
exaltante visão (encontrada e construída) do dinamismo urbano, nos 
trânsitos de um olhar atento à expressão das massas e à intimidade dos 
indivíduos, e à possível tensão entre elas. Com a liberdade e a verdade 
de que as melhores imagens podiam então ser testemunho, Benoliel 
deixou-nos um breve estado de graça da fotografia portuguesa. A herança 
continua a ser delapidada.
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Uma carta a propósito, da Comissária Emília Tavares, e a breve resposta
JOSHUA BENOLIEL 
EXPRESSO, Actual de 18-06-2005
É sempre 
gratificante que um crítico de arte, com uma conhecida reputação, como é
 o caso de Alexandre Pomar, faça eco público das dificuldades dos 
investigadores (na verdade, os únicos que diariamente se confrontam com o
 património fotográfico nacional e o conhecem) sobre a falta de uma 
política de conservação e preservação desse mesmo património.
Quanto aos comentários acerca da exposição, torna-se necessário tecer
 algumas rectificações e esclarecimentos. Génio ou Mito? Parece-me uma 
questão estafada, secundária e muito antiga, que em nada abona para o 
conhecimento do trabalho de Joshua Benoliel, que Pomar parece não rever 
na exposição apresentada. É natural, já que algumas noções fundamentais 
sobre o que é o espólio fotográfico de um autor e a metodologia que deve
 ser empregue no seu estudo não estão, nem têm que estar, na base da sua
 formação, o que já é mais lamentável é que discorra acerca delas sem 
esse conhecimento, ou pelo menos não procure informação credível.
Comecemos precisamente pela questão de «lógica de arquivo, em 
resistência à consideração museológica e estética». Perante qualquer 
espólio fotográfico, a metodologia universal a adoptar é antes de mais a
 sua inventariação, separação por suportes e formatos, técnicas, estados
 de conservação e indexação dos seus conteúdos. Este trabalho 
arquivístico, que Pomar parece desprezar, é fundamental para discernir 
no conjunto global de imagens a construção da tal marca autoral, que não
 se prende a códigos lineares e obtusos sobre quem é génio e quem não é.
Estamos perante o trabalho de um foto-repórter, qualquer consideração
 estética não pode deixar de se colocar em confronto com este facto 
intrínseco e rearticulação ontológica do seu trabalho. «Cegueira 
ontológica» é querer instalar o trabalho de Benoliel num registo de 
genialidade estética novecentista, não atendendo à projecção que a sua 
obra teve no desenvolvimento de algo mais abrangente do que uma autoria,
 isto é, uma nova cultura visual.
A «concentração sobre temas da história política» apenas é 
demonstrativa e equitativa em relação ao conjunto geral do espólio e à 
sua qualidade. «Imagem e Poder» e «Caos e Ordem» são a análise latente 
de um período em que toda a construção política das imagens tem o seu 
início. Benoliel não é apenas, mas é também, um instrumento de 
construção de significados políticos e ideológicos, uma vez que a 
manipulação editorial das suas imagens foi sempre um exercício que 
extravasa o significado original das mesmas.
A questão só pode mesmo ser também política, quando falamos de imagem
 fotográfica e cultura de massas, mas Pomar terá de ampliar muito a sua 
bibliografia para a compreender, uma vez que essa questão surge muito 
antes do «marxismo académico da revista ‘October’» ou de Rosalind 
Krauss. Daí que o crítico considere que houve «fetichização das edições 
vintage», não compreendendo que essas mesmas edições são documentos 
absolutamente inéditos, que permitem entender todo o trabalho editorial 
sobre o «enquadramento e ponto de vista» do fotógrafo, obrigando-nos, no
 mínimo, a redimensionar o significado dos «fundamentos da originalidade
 da fotografia». Quanto às imagens publicadas existem nesta exposição, e
 em número muito superior aos fac-similes, que se resumem a 6, enquanto 
que são apresentadas 19 edições originais.
Pomar considera que a minha escolha de imagens deixou de fora as 
«mais eloquentes, mais belas e significativas», adjectivos e apreciação 
que só poderei discutir com o crítico quando souber quantas imagens, das
 13 mil que constituem o espólio do fotógrafo, já viu, sem serem as 
publicadas e para além da selecção de 34 que António Sena realizou para a
 Europália 91. Custa-me a crer que o historiador, com o rigor que lhe é 
conhecido, tenha considerado que em 34 imagens estava resumida e 
totalmente abordada a originalidade do trabalho de Benoliel, conforme o 
faz Pomar.
Quanto às críticas à impressão das provas actuais, devia o crítico 
ter-se informado sobre o estado de conservação dos negativos originais, 
uma vez que esse aspecto técnico tem toda a relevância na produção das 
referidas impressões. Os negativos apresentam problemas diversos de 
deterioração, impossibilitando tecnicamente qualquer aproximação a 
impressões originais, e obrigando a um apurado trabalho para retirar o 
máximo de informação dos mesmos, que Paula Campos executou de forma 
irrepreensível e correcta. Além do mais, alimenta a inocente ilusão de 
que as edições originais ou as «vintage» constituem documentos fiáveis 
para comparação, ignorando que qualquer delas apresenta estados de 
deterioração da imagem, que falseiam os tão apreciados «valores 
lumínicos originais». O que Pomar confunde com uma radiografia é a 
impressão integral do negativo, conferindo-lhe uma identificação 
matérica, tantas vezes subvalorizada na abordagem fotográfica, e 
garantindo uma reprodução integral do enquadramento executado pelo 
autor.
A história da fotografia portuguesa é parca e inconsistente, 
precisamente porque se têm perdido demasiados anos a perseguir génios 
fotográficos, em detrimento do estudo articulado das suas obras, assim 
como permanecerá um beco sem saída, enquanto um certo caciquismo 
emplumado imperar, delapidando os empreendimentos que não possuem uma 
suposta autoridade intelectual histórica a apadrinhá-los. Deste modo, 
continua a ignorar-se o trabalho anónimo e desvalorizado desenvolvido em
 muitas instituições de ensino, museus e, de modo particular, por 
investigadores competentes.
A exposição de Benoliel, na Cordoaria, não pretendeu nunca ser um 
projecto arrogante e fechado sobre si mesmo, deseja-se que outros 
investigadores tenham a oportunidade de contribuírem com abordagens 
diferentes e complementares. Muitas outras questões ficam por discutir 
sobre a presente exposição, mas espero que o catálogo da mesma, a editar
 em final de Junho, possa desenvolver novas matérias para um debate 
construtivo e mais informado.
EMÍLIA TAVARES, comissária da exposição «Joshua Benoliel - Repórter Fotográfico»
N.R. 
Alguns pormenores, entre muitas tergiversações: Não considerei que na
 exposição houvesse qualquer «fetichização das edições vintage»; a 
comissária é que agora sobrevaloriza o ineditismo das provas com 
retoques e marcas editoriais. A referência à «lógica de arquivo» e a 
Rosalind Krauss alude ao artigo sobre a fotografia do séc. XIX e de 
Atget incluído em «Le Photographique», como será óbvio para qualquer 
leitor informado (deixemos em paz a aura de Benjamin). Não pus em causa a
 qualidade do trabalho de impressão de Paula Campos, mas as opções que 
teve de seguir; com os «problemas diversos de deterioração» dos 
negativos, mais difícil terá sido cumprir a exigência de uniformizar as 
provas modernas.
A.P.