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sábado, 27 de agosto de 2005

2005, Shogi Ueda em Madrid, La Caixa

 Japão por perto

Shogi Ueda em Madrid

«Uma Linha Subtil, Shoji Ueda (1913-2000)», Madrid, La Caixa, 2005

Ueda_zuroku

 

O fotógrafo Shoji Ueda numa retrospectiva em digressão por Espanha 


EXPRESSO Actual de 27-08-2005

   

 

 

«Quatro Raparigas em Pose», 1939

 


Há muito tempo que é uma banalidade chamar ao Japão o «país da fotografia», e não só por de lá virem quase todas as câmaras, mas continuamos a conhecer muito pouco as suas imagens. Embora o mundo seja hoje global, os canais de circulação são quase exclusivamente ocidentais e a dificuldade da língua também não ajuda a reter os nomes dos fotógrafos, das exposições e livros ou dos inúmeros grupos e revistas regionais. Araki e Sujimoto já foram expostos em tempos mais favoráveis, e na colectiva «À Prova d’Água», a pretexto da Expo’98, Jorge Calado incluiu 21 japoneses. Depois, têm-se perdido outras oportunidades, como a de trazer à Europa a grande retrospectiva norte-americana de Shomei Tomatsu, considerado o fundador da fotografia japonesa moderna, ou mesmo só de fazer passar a fronteira a antologia de Shoji Ueda que a Fundação la Caixa apresentou em Junho-Julho em Madrid e pôs em circulação, em colaboração com o Museu de l’Élysée, de Lausanne. Está até Outubro em Palma de Maiorca e em Janeiro-Fevereiro transfere-se para Málaga (onde se poderá aproveitar para visitar o simpático Museu Picasso) - encontra-se ainda por confirmar uma anterior passagem por Córdova. Seguirá depois para a Suíça e por Roterdão e Paris numa digressão de dois anos. O desinteresse das instituições é tanto mais estranho quanto os comissários Gabriel Bauret e William Ewing, o director daquele museu, tiveram já diversas colaborações com os Encontros de Coimbra e com a Culturgest.


Shoji Ueda (1913-2000) é talvez o mais singular dos fotógrafos japoneses e aquele cuja carreira, sempre discreta, atravessou um horizonte temporal mais longo e diversificado, desde a «fotografia artística» de inspiração pictorialista, que no Japão se prolongou pelos anos 30, até ao fim da década de 90. A 2ª Guerra Mundial, ou Guerra do Pacífico (1941-45), foi só um intervalo na sua obra, quando escasseava o material fotográfico e era recrutado por duas vezes para o Exército, só por brevíssimos períodos devido a debilidade física. Logo que o conflito termina, Ueda regressa aos seus cenários de areia e às composições encenadas com figuras, imobilizadas como objectos, desenvolvendo o seu «Teatro das Dunas» com um humor e uma serenidade totalmente à margem do fotojornalismo documental que orientava então a fotografia japonesa. Hiroshi Hamaya (1915-1999) era um exacto contemporâneo dedicado ao documentário humanista e membro da Magnum, enquanto a ocupação norte-americana e as marcas deixadas por Hiroxima e Nagazaki iam servindo de desafio para a renovação radical que a agência Vivo e a revista «Provoke» protagonizaram, com Tomatsu, Eikoh Hosoe e Daido Moryama. Mas é também no pós-guerra, isolado na sua região de Tottori, que começa a trajectória profissional heterodoxa de Ueda, como que indiferente às mudanças de tempos e centrada na intimidade de um universo imóvel.


Edward Steichen, que o descobriu por altura da digressão de «The Family of Man», incluiu-o numa mostra do MoMA, em 1960. Quando as suas exposições e publicações se sucediam no Japão, redescobrindo-se o seu percurso solitário, Arles mostrou-o pela primeira vez em 1978 (voltou em 87) e o Photo Fest de Houston homenageou-o em 88. Em 1995 inaugurou-se o Museu da Fotografia Shoji Ueda em Houki-cho, nas imediações das dunas de Tottori e do Monte Daisen, com as 12 mil imagens que doou e um notável projecto premiado do arquitecto Shin Takamatsu - um dos seus quatro corpos é ocupado por uma câmara escura gigante que projecta a imagem invertida do monte sagrado. Daí procedem todas as fotografias desta primeira grande retrospectiva fora do Japão, e quase todas são provas de época com uma fabulosa qualidade de impressão a preto e branco.


 

FOTOS SHOJI UEDA OFFICE, TOKIO

 

«Lago», 1959

 

A mostra intitulada «Uma Linha Subtil, Shoji Ueda (1913-2000)», reúne 151 fotografias de 70 anos de trabalho (1929-1999), o que corresponde a uma carreira paralela à de Álvarez Bravo, tão idiossincrática e localmente universal como a do mexicano (embora um dos textos do catálogo, de Iizawa Kôtarô, lhe aponte como característica a «falta de nacionalidade»). Se é usual atribuir-lhe um «estilo único», é mais a forma muito pessoal como se relacionou com as grandes tendências da fotografia, apropriando-se delas com a segurança e independência de um projecto íntimo, que marca o seu percurso.


As primeiras fotografias expostas, feitas a partir dos 16 anos, alternam os pigmentos a óleo pictorialistas com as experiências do fotograma, da solarização, do contraluz forte e das perspectivas picadas ou dos pontos de vista rasantes ao chão, circulando entre o gosto dominante nos concursos e a informação internacional de vanguarda (a exposição «Film und Foto» chegou em 1931 ao Japão). Aos 19 anos (1932), depois de uma breve formação em Tóquio, logo que acabou os estudos secundários, abriu o seu primeiro estúdio (e loja) de fotografia, permanecendo quase sempre na sua região de Tottori, em ligação com círculos de amadores. Aliás, Ueda continuou depois a definir-se como «um fotógrafo rural amador», lembrando o universo dos clubes e salões da «fotografia artística» em que se integrou muito cedo. Numa entrevista confessou a admiração por Jacques-Henri Lartigue, o mestre a quem elogiou a ilimitada curiosidade.


A informação surrealista, que teve largo curso no Japão, está presente numa natureza morta de 1937 que junta um manequim e um guarda-chuva a chapéus voadores; mais tarde é óbvia a relação com as paisagens de objectos de Tanguy (Pequenos Náufragos, 1950) e também com Magritte, através dos retratos com acessórios imprevistos e dos jogos espaciais de escalas e perspectivas irrealistas, servindo-se do cenário abstracto e sem profundidade das dunas, de uma luminosidade pura e transparente. Otto Steinert incluiu-o na versão japonesa da «Fotografia Subjectiva», em 1956, e as paisagens de neve e as superfícies de águas, ou as posteriores «Visões da Paisagem», de 1970-80, possuem o sentido apurado da pesquisa formal da abstracção norte-americana (Siskind, Callaham), mas o seu grafismo tem a nudez poética e a subtileza interior da sensibilidade japonesa mais antibarroca. O provinciano da remota região de Izumo, na costa interior do Mar do Japão, nascido em Saikaminato, é um fotógrafo bem informado, que deixou os processos pré-modernistas sem nunca se prender a correntes vanguardistas, tão inclassificável como os seus temas, colhidos no quotidiano e nas imediações da sua casa.


Seis núcleos traçam a continuidade da sua obra em sequência cronológica: as primeiras fotografias (1929-1940), onde já surgem as encenações de figuras nos espaços desérticos da praia; o mais famoso «Teatro das Dunas» (1945-51), com retratos e auto-retratos com adereços; «Da natureza morta à paisagem», anos 50; o «Calendário das Crianças» através da variação das estações do ano, de 1955-1970; «Paisagens e Memórias», 1970-85, com as séries «Visões da Paisagem», 1970-80; «Pequena Biografia», 1974-85; «Recordações sem Som», com imagens de uma viagem pela Europa, de 1972-73. Por fim, o humor do «Regresso às Dunas», 1980-99, com o trabalho de encomenda «Moda nas Dunas», e as últimas imagens, as «Ondas Negras» em homenagem ao monge budista chinês Ganjin, descendo a noite sobre o mar.

shoji ueda office


sábado, 12 de março de 2005

2005, Stieglitz em Madrid

 Diálogos americanos 

Expresso  12-03-2005


Stieglitz em Madrid. O fotógrafo e o agente artístico 


«Nova York e a Arte Moderna - Alfred Stieglitz e o Seu Círculo (1905-1930)»


Às duas grandes exposições da agenda de Madrid, uma centrada na figura do fotógrafo, editor e galerista nova-iorquino Alfred Stieglitz (no Museu Rainha Sofia até 16 de Maio) e outra dedicada ao centenário do grupo expressionista alemão Die Brücke (Museu Thyssen, 15 de Maio), veio juntar-se esta semana uma grande mostra de desenhos de Dürer vindos do Museu Albertina de Viena (Museu do Prado, 29 de Maio). É uma conjunção rara em qualquer capital, a reafirmar o poder de um centro cultural que ultrapassou a sua área peninsular de influência.


Stieglitz (1864-1946), além de fotógrafo com uma obra longa e muito influente, percorrendo diferentes e até contraditórias orientações, foi um decisivo activista da afirmação da fotografia como arte e um agente determinante na abertura dos Estados Unidos à arte moderna, mas é certamente o pólo menos conhecido desse triângulo de exposições madrilenas. Vinda do Museu de Orsay, numa co-produção que foi o grande acontecimento do Mês da Fotografia de Paris em 2004, é uma exposição que pela primeira vez apresenta largamente a sua obra fotográfica na Europa e um precioso panorama sobre os artistas e os acontecimentos que marcaram a modernização artística norte-americana, a que em geral não se tem acesso directo fora dos Estados Unidos.


«Nova York e a Arte Moderna - Alfred Stieglitz e o Seu Círculo (1905-1930)» toma como ponto de partida a inauguração da galeria - The Little Galleries of the Photo-Secession - que fundou num pequeno prédio com o nº 291 na 5ª Avenida, com o também fotógrafo Edward Steichen (1879-1973), que viria muito mais tarde a dirigir o departamento fotográfico do MoMA e a organizar a muito discutida exposição «The Family of Man» (1955). Essa opção cronológica deixa em parte na sombra a carreira anterior de Stieglitz, que se integrara, desde os anos 1880, nos círculos da fotografia picturialista europeia, em crescente sintonia com as correntes simbolistas. Ainda que a sua obra pessoal, pelo predomínio do olhar fotográfico face às manipulações picturais e pelo interesse nas abordagens naturalistas da paisagem e das figuras, não exprimisse a ambição visionária do simbolismo mais extremo, é esta a orientação dominante tanto dos fotógrafos da Photo-Secession, que Stieglitz reúne em Nova Iorque em 1902, como dos primeiros anos da revista «Camera Work», que dirige de 1903 até 1917, e também da galeria, que ficou conhecida pelo número 291 e encerrou no mesmo ano devido às dificuldades da I Guerra Mundial.


Em 1908, Stieglitz faz escândalo ao expor os desenhos eróticos de Rodin e desenhos e esculturas de Matisse, a que se seguem as primeiras apresentações na América de Cézanne, Picasso e Brancusi, antecipando o grande choque cultural que foi a exposição do Armory Show (1913). Ao mesmo tempo, começava a apresentar artistas americanos dos meios vanguardistas de Paris, como John Marin, Max Weber, Marsden Hartley e Arthur Dove, a que se junta, já em 1917, a jovem pintora Georgia O’Keeffe, com quem viria a casar. Toda essa abertura de Nova Iorque às revoluções da arte moderna é em geral documentada na exposição através das próprias obras expostas e coleccionadas por Stieglitz.


Ainda que a «Camera Work» e a galeria 291 continuassem, cada vez mais esporadicamente, a mostrar os grandes nomes do picturialismo, como Steichen, o barão Adolf de Meyer, Clarence White e Gertrude Käsebier, Stieglitz vai-se desligando dos meios fotográficos e volta-se para os artistas mais inovadores, sob a influência de Max Weber e do caricaturista e escritor mexicano Marius de Zayas. Embora muito influente, essa sua aproximação às novas tendências é, em geral, ainda moldada por um modelo esteticista de inspiração simbolista que o leva a entender o cubismo como caminho para a abstracção, aceitando esta por analogia com a música e vendo a arte como expressão do «élan vital» bergsoniano e do eu profundo de cada criador.


Entretanto, Stieglitz começara a modificar a sua obra pessoal numa direcção mais ancorada no real, ainda que continuasse a rejeitar as orientações do realismo social de um Lewis Hine (bem como a pintura reformadora e antiacadémica de Robert Henri e John Sloan). Fotografa a transformação arquitectónica de Nova Iorque e defende através da «pureza» dos processos da fotografia «straight» uma nova concepção formalista da autonomia do médium. No último número da «Camera Work» publica a obra de Paul Strand como expoente desse novo modernismo fotográfico, ao mesmo tempo que inicia a série admirável de retratos de Georgia O’Keeffe. Num percurso sempre surpreendente, a sua última fase reencontrar-se-ia com uma perspectiva simbólica da abstracção, em séries de fotografias de nuvens de analogia musical, «equivalentes» a uma identificação espiritualista com a natureza. Como galerista (The Intimate Gallery e An American Place), ao longo das décadas de 20 a 40, Stieglitz passou a apresentar apenas artistas norte-americanos, numa busca da «americanidade», antieuropeia e distante das mutações trazidas pela Grande Depressão, que viria a ser uma das raízes da abstracção expressionista dos anos 50.


Entre estes dois períodos, diferentes mas unidos por uma subterrânea coerência idealista, Stieglitz foi uma das figuras da agitação protodadaísta em Nova Iorque, em cumplicidade principal com Picabia e Duchamp (para quem fotografou a famosa Fonte assinada por R. Mutt). Esses anos de efervescência cosmopolita que se seguiram ao Armory Show e ao início da I Guerra Mundial, num tempo de radical mudança do mundo, são outro dos grandes capítulos desta extensa e sempre surpreendente exposição.

sábado, 23 de fevereiro de 2002

2002, Arco, Madrid

 Expresso Revista de 23/2/2002

"Os artistas do momento"

Mais do que uma feira de arte, a Arco é um desígnio político e um acontecimento cultural de massas

A Arco é a feira de arte mais importante, porque fica a poucas centenas de quilómetros de Lisboa e Porto. A peregrinação anual está enraizada e são milhares de portugueses, jovens ou não, que percorrem as exposições de Madrid e enchem as livrarias, a pretexto da feira. Ouve-se falar português em toda a parte e é-se interpelado na rua por gente à procura do Museu Thyssen ou do Palácio de Cristal. Certamente se perguntarão por que é tão diferente o programa dos museus do outro lado da fronteira, confrontando Braque, Kokoschka, De Kooning e Panamarenko, com os cromos obscenos do CCB ou as páginas secas das vanguardas académicas que expõe Serralves. Respira-se outra atmosfera, mesmo se a Arco não é mais que um artifício de política cultural.


Enquanto panorama da arte internacional e das chamadas novas tendências, a feira de Madrid é um duplo logro, porque elas estão escassamente presentes e uma feira não é o lugar adequado para as conhecer. Sustentada pelos poderes públicos para contrariar a debilidade do mercado interno (0,6% do mercado mundial de arte) e promovida como acontecimento cultural de massas, a Arco é um caso sem paralelo entre as feiras internacionais, que vivem das forças do mercado e se dirigem a públicos restritos de coleccionadores e profissionais. Há que entendê-la como um instrumento de coesão numa Espanha ameaçada pelas tensões nacionalistas, reforçando a centralidade de Madrid e a atracção dos seus três museus nacionais, e também como um continuado desígnio de afirmação cultural voltado para a projecção do país no exterior e para a recuperação do atraso existente no domínio da criação actual e das estruturas artísticas.

Convidam-se 240 coleccionadores de todo o mundo, com quatro dias de luxuosas estadas oferecidas, e mais largas dezenas de nomes do «mundo da arte» a pretexto de um programa de conferências ou como comissários das várias secções da Arco organizadas por convites («Cutting Edge» e «Project Rooms»). O resultado, porém, é uma feira esmagadoramente espanhola, onde comparecem algumas galerias «históricas» (Gmurzynska, de Colónia, com Soutine; Lelong, de Paris, com Hockney) mas quase não se vislumbram as galerias e artistas envolvidos nas dinâmicas que ditam as notoriedades actuais em Nova Iorque e Londres (aos Estados Unidos e Grã-Bretanha cabem 57 e 30% do mercado de arte, incluindo leilões). O voluntarismo dos organizadores prolonga-se numa cobertura mediática esmagadora (ao contrário da escassa atenção que merecem as outras grandes feiras de arte) e totalmente esquizofrénica: publicam-se textos de críticos responsáveis apontando as carências da feira ao lado de páginas e páginas que elogiam os seus supostos méritos e os «artistas do momento», admirável designação para uma arte descartável ao ritmo das estações. Os suplementos culturais dos diários distribuem-se já no dia da inauguração, escritos sobre os «press-releases» (é a cultura de massas).

Mas se para o público português o panorama extra-Arco é uma oportunidade para se rasgarem outros horizontes, a feira não deixa de ser um palco essencial à visibilidade dos artistas nacionais e a sua entrada no mercado espanhol, galerístico e institucional, vem sendo uma positiva realidade. Para além de alguns casos excepcionais de circulação extra-peninsular, a Espanha surge como a possibilidade de alargamento do estreito mercado interno.

A comprovar essa circulação notava-se a presença das pinturas brancas de Julião Sarmento nas galerias Joan Prats e Polígrafa (Barcelona) e Pepe Cobo (Sevilha), bem como na Lisson de Londres e na brasileira Fortes Vilaça. Fernanda Fragateiro é representada por Elba Benítez (Madrid), que também expôs Joana Vasconcelos. Pedro Calapez era mostrado na Luis Adelantado (Valência) e Bores & Mallo (Cáceres, a anunciar a abertura de um espaço em Lisboa), na qual também se viam M. João Salema, José Lourenço e Baltazar Torres, este igualmente presente na Artinprogress, de Berlim. Mais Croft na VGO (Vigo), Rui Chafes na Juana de Aizpuru, Pedro Proença na Siboney (Santander), Helena Almeida na Helga de Alvear, João Onofre na Pepe Cobo, numa lista decerto incompleta. A que se somavam Pomar na Trigano, de Paris; Molder na Marília Razuk, São Paulo; Sobral Centeno na Michael Schultz, Berlim; e ainda René Bertholo na parisiense 1900-2000, com obras dos anos 60 e 70.

Importa dizer, porém, que essa plataforma espanhola tem sido menosprezada pelas instituições nacionais, por sobranceria e outras equívocas razões. O acordo tripartido do Estado com a Gulbenkian e a Fundação Luso-Americana deixou de apoiar as galerias na Arco e as tentativas de promoção da arte portuguesa voltaram-se para acções pontuais em destinos mais remotos e quase sempre mais inacessíveis. É incompreensível a ausência de espaços portugueses entre as representações institucionais que se promovem na Arco, também como destinos turísticos, e é significativo que a única mostra de artistas nacionais visível em Madrid fosse da iniciativa do MEIAC de Badajoz. Talvez a visita à Arco da actual direcção do Instituto de Arte Contemporânea permita rever essas (des)orientações.

Quanto à presença das galerias nacionais, anote-se a estreia de Lisboa Vinte, uma empresa sem espaço próprio que produz exposições em variados locais, convidada do programa de «arte pública» com projecções de vídeos de Jorge Molder (Linha no Tempo, protagonizado pelo próprio a percorrer uma velha casa em ambiente de ficção policial ou reencontro com memórias pessoais), e Augusto Alves da Silva (Linha Branca, uma obra radicalmente pictural, quase «abstracta», citando certamente Barnett Newman na filmagem fixa da colagem da mancha vermelha de um cartaz eleitoral). Outra aposta forte no vídeo foi feita por Cristina Guerra, também presente pela primeira vez, destacando-se Lull, de Filipa César (longa cena de sala de espera, com uma rigorosa montagem visual e sonora).

As galerias Filomena Soares e Mário Sequeira tiveram presenças duplas, em stands colectivos e entre os «Project Rooms», e foram ambas premiadas com aquisições da Fundação Coca-Cola, de uma fotografia em caixa de luz de Luís Palma, na primeira, e de trabalhos de Helena Almeida e da jovem pintora Natacha Marques, na segunda. Quanto às montagens individuais, tratou-se, pela mesma ordem, de um vídeo monocordicamente operático de Vasco Araújo e de uma escultura da sempre divertida Joana Vasconcelos: uma «burka» afegã sobre sete saias que era elevada por um guindaste e caía com um estrondo de guilhotina. Ambas faziam suficiente ruído para despertar atenções. Entretanto, Mário Sequeira comparecia com peças internacionais de grande vulto, de Baselitz, Paladino, Alex Katz e Richard Long, além de uma notada nova tela de Sara Maia.

A Porta 33, do Funchal, apresentou uma instalação de Pedro Cabrita Reis (Cabinet d'Amateur #2), com duas paredes de pinturas monocromas disponíveis a retalho - à facilidade do conceito juntava-se a evidência mercantil, mas feira é feira... Entretanto, João Graça foi a única participação no sector «Cutting Edge/Crossroads», com Inês Pais e a nigeriana de Nova Iorque Fatimah Tuggar (comprada pela Fundação Arco).

Presentes com os seus artistas habituais, a Quadrado Azul (com grandes esculturas de Croft, Sanches e Susana Solano em destaque), 111 (a única no pavilhão «histórico» da feira, com Pomar, Batarda, Graça Morais, Fátima Mendonça, etc.), Fernando Santos (mais internacional, com Tàpies, Schnabel, Carmen Calvo e Santiago Ydáñez, um jovem pintor de grandes cabeças «expressionistas» pinceladas a preto e branco, muito premiado e vendido), Pedro Oliveira, Canvas e ainda a Ara, apostando em jovens artistas (Ricardo Angélico, José Lourenço, Rui Macedo). A que se somam a Arte Periférica (o «ABC» cotou-a entre as dez melhores galerias, apesar de, ou graças a, um excessivo gosto «kitsch») e a Minimal. Outras galerias com importância não se candidataram e algumas não foram aceites, como é natural acontecer; nas que compareceram, a oferta terá sido, em geral, menos saliente que em 2001 e os resultados também acusaram algum recuo, mas ninguém quer ouvir falar de recessão... O facto de haver 14 presenças nacionais e só três da Grã-Bretanha (foi o país convidado em 2001) estabelece um retrato objectivo da Arco, no seu ano mais internacional de sempre, diz a promoção.

A Austrália, em destaque nesta edição, mostrou-se em 14 galerias com artistas aborígenes promovidos a contemporâneos e outros de origens ou contactos orientais, entre uma produção mais ou menos indiferenciada (presentes os fotógrafos Tracey Moffatt e Bill Henson, enquanto Max Pam se podia ver numa galeria de Paris). Fora da feira, o Palácio Velazquez mostrou artesanato aborígene e arte de aeroporto, enquanto uma colectiva fotográfica (Canal Isabel II) contou com quatro trabalhos interessantes - velhas minas abandonadas de Martin Walch, os ócios contemporâneos de Anne Zahalka, os subúrbios perdidos de Glenn Sloggett, os sonhos melancólicos de Pat Brassington - entre 16 expostos, o que não deixa de ser uma boa marca. Para o ano é convidada a Suiça, que nesta edição teve duas galerias - a arte da Arco é um desígnio político.

sábado, 26 de junho de 1999

1999, Madrid, PHotoEspaña 99, «Sangre Caliente»

 Sangue quente em Madrid 

26-06-1999



Peter Beard, «Khadija com o meu jornal» (polaroid a cores de grande formato)


 

 LISBOA já teve o seu Mês da Fotografia, em 1993, mas a experiência, em geral bem sucedida, ficou sem continuidade. Madrid começou em 1998 e já vai na segunda edição. Por cá, a iniciativa pertenceu à Câmara. Em Espanha, trata-se de um projecto particular, dinamizado por uma empresa cultural, La Fabrica, que conseguiu associar aos patrocínios do Ministério de Educação e Cultura e do Ayuntamento de Madrid a colaboração de museus, fundações, centros de arte e de mais 46 galerias e dez outros espaços. No total, «PHotoEspaña 99», com cem milhões de pesetas de orçamento, apresenta 93 exposições que se distribuem pela secção oficial, nas instituições estatais ou mecenáticas distribuídas ao longo do Eixo da Castellana, do Centro Rainha Sofia à torre Caja Madrid; por «salas convidadas», mais afastadas dessa via central; e pelo «festival off», incluindo as galerias. É um longo itinerário a atravessar a cidade e a diversidade da fotografia que se prolonga até 18 de Julho. Na Internet conta com um site muito eficaz: www.photoes.com.


 «Sangre Caliente» foi o título escolhido para o segundo festival, que aposta abertamente na pluralidade da fotografia, na abolição das fronteiras convencionais entre arte e fotografia bem como na conquista de um público alargado (terão sido cerca de 500 mil os visitantes das 71 exposições da primeira edição). A denominação não significa a adopção de um condicionamento temático, mas antes uma aposta na «emoção como um instrumento essencial da criação»«pela paixão contra o aborrecimento», como diz um dos títulos do primeiro número do «PHotoPeriódico», o suplemento semanal de «El Periódico del Arte» que é dedicado ao festival.


 Alejandro Castellote, o director artístico, dá um tom polémico ao programa quando afirma que «os canais de difusão da arte estão maioritariamente habitados por uma oferta endogâmica: arte para artistas e para os profissionais que circundam o mundo da cultura. Os resultados costumam ser propostas ilegíveis para os não iniciados». A alternativa procurada ao que se diz ser «o esgotamento estético da cultura gerada no Ocidente» ou a «frieza e hermetismo das novas correntes», não é o populismo e a banalização, mas «a reivindicação da emoção na arte», «o uso da fotografia como instrumento de compromisso social» e a atenção às propostas diferentes vindas de outros continentes.


 


Weegee, «Billie Dausha e Mabel Sidney», Nova Iorque 1944


 

 Entre outros encontros programados, com Martin Parr e Andrés Serrano, por exemplo, o debate continua num seminário da Universidade Complutense, dirigido por Santiago B. Olmo, que tratará o tema «Quente e frio. Estratégias da emoção e da razão: Atitudes na fotografia actual». Apresentada no Museu Rainha Sofia, em últimos dias (só até 29), «Fotografia Pública / Photography in Print. 1919-1939», é uma notável exposição sem provas fotográficas originais. Organizada pelo historiador Horacio Fernández, debruça-se sobre a publicação e reprodução da fotografia por meios mecânicos, em foto-livros, revistas e jornais, cartazes, folhetos publicitários ou propagandísticos, explorando as transformações que conheceu a fotografia entre as duas guerras, quando nasce a «Nova Visão» e explodem os grandes meios da comunicação de massas que associaram a renovação da tipografia à imagem impressa. Atenção à posterior itinerância por Bilbao e La Rioja, Logroño, a partir de Setembro, e, em especial ao livro homónimo, com cerca de 650 reproduções de fotografias impressas e um dicionário de autores, tantas vezes simultaneamente fotógrafos, fotomontadores, designers e também artistas plásticos.


 A rectaguarda histórica (ou vanguarda, se se quiser) continua no programa com um conjunto de excelentes mostras retrospectivas, dedicadas a André Kertész, com «Ma France», a exposição da Mission du Patrimoine Photographique que os Encontros de Braga mostraram em 1993 (até 30 Jul.), e também a Weegee, numa produção do International Center of Photography (ICP), de Nova Iorque (até 1 Agosto), para além de um panorama do neo-realismo fotográfico italiano (até 29 de Agosto) e outro dedicado à Photo League, a associação de fotógrafos de Nova Iorque de intenção social, activa desde 1936 até 1951, extinta pelas perseguições do maccartismo. Comissariada por Naomi Rosenblum, com provas em muitos casos «vintage» da Howard Greenberg Gallery, reúne 41 autores que alargam em muito o leque dos nomes mais conhecidos de Berenice Abbott, Lewis Hine, Eugene Smith ou Lou Stettner.


 


André Kertész, «Hotel des Terrasses», Paris 1926


 

 Outras projectos em que o compromisso social e a tradição documental se prolongam na actualidade encontram-se na colectiva «Imagens para a Dignidade», na estação da Renfe Nuevos Ministerios (e também nos comboios), com imagens de Sebastião Salgado, Cristina Garcia Rodero, Zwelethu Mitheta (África do Sul), Christine Spengler (Kabul) e outros, e também na edição de 99 do World Photo Press, mostrada na Fundação La Caixa (até dia 29). Entretanto, outros projectos temáticos, como «Elogio de la Pasion» ou «Afinidades Dispersas», apresentam jovens autores, estabelecendo cruzamentos com as estratégias da arte mais recente ou com os novos media, enquanto propõem pontes entre o social e a intimidade.


 Outros nomes em destaque no programa são os de Peter Beard (NI, 1938), com as suas imagens de África mostradas no Museu Nacional de Ciências Naturais – é um inclassificável autor de fotografias de animais e de empenhamento ecológico, bem como de moda e de charme, indissociáveis como exercício de vida dos seus impressionantes «diários» feitos de colagens, desenhos e objectos –; de Seydou Keïta (c. 1921) e Malick Sidibé (1936), fotógrafos do Mali que se dedicaram ao retrato e, o segundo, também ao testemunho da modernização da vida urbana africana, fotografando o quotidiano e as festas nocturnas (Real Jardim Botânico até 31 Jul.); ou da brasileira Claudia Andujar, com a antologia do seu trabalho com os Yanomami recentemente mostrada em Braga.


 Quanto à produção espanhola, o destaque histórico irá para José Ortiz Echagüe (1886-1980), estranha figura de um pioneiro da aviação e da modernização industrial espanhola que praticou toda a vida uma fotografia arcaizante, usando processos dos picturialistas (Carbono-Fresson) para registar os «tipos y trajes», «pueblos y paysajes» de uma «España Mística». Será mostrado no Rainha Sofia de 13 de Julho a 13 de Setembro. Outro histórico, mais recente, é Ramón Masats, fotógrafo catalão nascido em 1931, renovador da reportagem nos anos 50-60. Mas a actualidade da fotografia espanhola está presente por toda a parte, desde a colectiva oficial «Propuesta 99» às inúmeras mostras individuais: Javier Vallhonrat e Miguel Trillo (em La Fabrica), Isabel Muñoz (em três mostras), Tony Catany, Xurxo Lobato, Manuel Sonseca, José Ramón Bas (presente em Braga, em 99), Antoni Abad, Chema Alvargonzález e Alicia Martín (na galeria Oliva Aruna), etc, etc. A vitalidade do panorama (que parece, no entanto, mais prolixo que exaltante), prolonga-se em termos editoriais com a «Colecção PHotoBolsillo», a publicar um livro por mês e já com Humberto Rivas, Koldo Chamorro, Francesc Catalá-Roca, Gabriel Cualladó, Vallhonrat, Trillo e outros.


 Diversificando ainda mais a oferta, assinale-se a presença dos arquitectos-artistas Diller+Scofidio, de Nova Iorque; de Francis Giacobetti, retratando Francis Bacon seis semanas antes de morrer em Madrid; do guatemalteco Luis González Palma, que trabalha um repertório mitológico local com os meios da colagem e da montagem. Dez fotógrafos peruanos e os argentinos Marcelo Brodsky e Matías Costa alargam o trânsito ibero-americano.


 Nas galerias, a diversidade é absoluta, quanto a géneros, temas e também fronteiras nacionais (embora a ausência de quaisquer nomes portugueses no programa não deva deixar de ser notada, tanto mais que a «invasão» contrária se tornou uma constante). Citem-se entre os mais conhecidos, Robert Mapplethorpe (as flores), os pintores Davis Salle e Juan Uslé (na Solelad Lorenzo e, o segundo, também em Estiarte), ou Allen Jones, artista inglês associado à Pop; a jovem francesa Rebecca Bournigaul; as colectivas com Gursky, Ruff, Ruscha e Serrano ou Thomas Joshua Cooper, Gunther Förg, Axel Hütte e Olafur Eliasson.


 Entretanto, é fora do programa PHotoEspaña que se encontra uma das mais importantes exposições madrilenas: os «Cantos do Deserto» de Richard Misrach no Canal Isabel II (até 29 de Agosto). Aí se expõe uma síntese de vinte anos de trabalho e de muitos milhares de imagens dedicadas às paisagens desérticas norte-americanas.


 Herdeiro da grande tradição paisagística americana e também da sua renovação pelos «novos topógrafos» de 1975 (Robert Adams, Lewis Baltz, Frank Gohlke, Stephen Shore, etc), Misrach utiliza a cor e o grande formato num trabalho que é uma aventura pessoal, uma celebração dos grandes espaços e também uma denúncia da degradação da natureza.


 A mostra de Mishari veio já de Granada e segue com destino à sala Rekalde de Bilbao: é mais uma oportunidade para reflectir sobre a estranha distância que nos separa das circulações peninsulares. (Em tempo: a pintura de Morandi passa o Verão no Museu Thyssen.)