Mostrar mensagens com a etiqueta Árvore. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Árvore. Mostrar todas as mensagens

sábado, 1 de dezembro de 2001

2001, Antonio Quadros

"Um universo maior"

Expresso Cartaz de 1/12/2001, pág 24

António Quadros não cabe de corpo inteiro na exposição que lhe foi dedicada pela Árvore

ANTÓNIO QUADROS, «O Sinaleiro das Pombas» (Árvore, Porto, até 12 de Dezembro)

O ritmo dos eventos da capital cultural não é propício a projectos retrospectivos, que desde a mostra inicial «Porto 60/90» se fizeram com atropelos de investigação e produção. É o que acontece com António Quadros (1933-1994), intrigante personagem que foi pintor e poeta - João Pedro Grabato Dias, entre vários heterónimos - e se dispersou enciclopedicamente por outros interesses, muitos deles levados à prática em Moçambique entre 1964 e 1984.

O programa da exposição foi assumido pela Árvore, que não tinha estruturas nem espaço para tal desafio; adiada até um fim de ano abreviado para outras iniciativas, ficou reduzida a uma convencional exibição da obra plástica e breve catálogo, comissariados por Laura Soutinho e Bernardo Pinto de Almeida, remetendo-se outra parte, presumivelmente mais alargada, para um livro de formato bancário (BPI) e intenção natalícia que só mais tarde terá, se tiver, circulação pública.

Justificava-se uma aproximação que cruzasse as várias vertentes de uma obra e actividade de ambição renascentista, servindo de exemplo a exposição que Serralves dedicou aos múltiplos rostos de Fernando Lanhas, reeditando a sua retrospectiva de 1988. 

Quadros foi um homem de temperamento difícil, sarcástico e talvez irascível, para quem o desafio feito aos «filósofos das brasileiras», logo no seu Manifesto da Pintura de 1958, não era só um arreganho juvenil. Animador de muitos projectos, provocador face aos pequenos poderes locais, foi muitas vezes esquecido, também como poeta, e não é fácil de classificar e conter em esquemas regras pré-definidas.

Expõem-se na sala maior da Árvore pinturas do percurso escolar e algumas outras mais, mas que não bastam para situar uma produção que teve na viragem dos anos 50/60 uma grande visibilidade, mesmo oficial. Não está lá por inteiro o pintor que expôs na última das Exposições Gerais, em 56; na 1ª da Gulbenkian, em 57 (um famoso nu frontal e impúdico, com um dos seus belos rostos amendoados); nos salões dos Artistas do Norte e depois nos Novíssimos, passando da SNBA ao SNI, na 1ª Bienal de Paris, em São Paulo e outros lugares, várias vezes premiado e logo adquirido pelo Museu Soares dos Reis dirigido por Salvador Barata Feyo.

A sua figuração visionária e em contacto com expressões populares (deve-se-lhe a «descoberta» de Rosa Ramalho, que levou a dar aulas na ESBAP, nos tempos de abertura da direcção de Carlos Ramos) podia ser praticada, no Porto, como uma afirmação inovadora já subsequente, como a de Eduardo Luiz, ao abstraccionismo da geração anterior dos Independentes (Lanhas, Nadir, Arlindo Rocha e até Resende), mesmo que não se adivinhasse a «nova-figuração» que se seguiria. Em Lisboa, as lides críticas regiam-se por categorizações e formalismos mais rígidos, opondo a abstracção ao fantasma do neo-realismo, face uma nova geração nascente - Bertholo, Lourdes Castro, Escada, Costa Pinheiro - com quem Quadros expôs na Galeria Pórtico e fora do país, antes e depois de todos estes emigrarem.

Recuperado como surrealista por Cesariny, em 73, o universo imaginário de Quadros participou de alguns climas poéticos de Chagall, com elegância gráfica e decorativa, também em gravura, ilustração e cerâmica, procurando o «potencial mágico» dos fabulários e da arte popular (ao tempo da Antologia da Música Regional e do Inquérito à Arquitectura) para «Pintar Pintura» em oposição «à forma lógica da escola francesa», como dizia no notável Manifesto já citado.

Semelhantes recursos às mitologias locais e aos bestiários fantásticos surgiam na América Latina, por exemplo, com Francisco Toledo e Jorge de la Vega, já depois de terem interessado os artistas Cobra.

Da estada africana o pintor trouxe uma linguagem menos estilizada e de mancha diluída pelo uso do aerógrafo, onde a efabulação é por vezes mais gravemente monstruosa ou ameaçadora. Se o humor não deixava de estar presente, desde logo em títulos como Senhora e Cabra em Ascensão, Dois Saltões, um Articulado, um Zambezelho e um Luso-mimético, aí sereconhece também uma diferente dimensão mais convulsiva e trágica.

#

António Quadros

Casa da Cerca, Almada 

Expresso de 9/2/2002 (nota)

Remontada num novo espaço, a exposição que o Porto 2001 dedicou a António Quadros ganhou uma dimensão totalmente diferente. Não se recuperaram as pinturas dispersas que deveriam testemunhar a grande visibilidade irreverente que o pintor teve em exposições e em representações internacionais na viragem dos anos 50/60, mas as mesmas peças disponíveis, diversamente organizadas em sucessivos núcleos, dão plenamente conta da originalidade do seu imaginário pessoal e de um caminho inquieto por múltiplas pesquisas, humores e referências.

Jogando ora na diversidade das técnicas e das direcções de trabalho — a cerâmica, a gravura, o desenho elegantemente estilizado, a pintura de experiência escolar, de inspiração popular ou submersa em lamas informes, os palimpsestos de fantasia e pesadelo (des)realizados pelo uso do aerógrafo —, ora na organização por interesses temáticos, juntando homens silvestres, lobos e lobisomens, cabras e outras «bichezas» imaginárias ou míticas, o itinerário segmentado da exposição, conduzido por uma criteriosa disposição que destaca as peças emblemáticas, tornou-se uma aventura ao encontro de um mundo poético irredutivelmente desalinhado das convenções formais predominantes.

Entretanto, foi publicado pela Árvore um álbum -  «O Sinaleiro das Pombas» -com textos de Amélia Muge, Bernardo Pinto de Almeida, António Cabrita e José Forjaz, onde à produção plástica se acrescentam abordagens dedicadas à produção do poeta Grabato Dias e às múltiplas actividades em Moçambique entre 1964 e 1984. (Até 10 Mar.)

sábado, 17 de fevereiro de 2001

2001, «Porto 60/70: Os Artistas e a Cidade»

 Ares dos tempos” 

 

As viragens dos anos 60 e 70 numa retrospectiva dupla do Porto 2001 

 

PORTO 60/70: OS ARTISTAS E A CIDADE (Museu de Serralves e Árvore, Porto. Até Abril) 

 Expresso 17/2/2001

 

Poderia ser só uma linha bairrista de programação da capital cultural, mas, através da revisão das décadas de 60 e 70 vividas a Norte, são algumas das raízes do actual cosmopolitismo da cidade que se recuperam e repensam. Outra mostra, que abriu a nova galeria municipal, faz o sumário dos grupos que agitaram a vida artística local ao longo de todo o século XX; lá para meados do ano, a reabertura do Museu Soares dos Reis porá em perspectiva a «Escola do Porto» no período anterior ao que é coberto por Serralves, fazendo da sua colecção permanente um outro pólo estruturante da cultura artística da cidade. Para além desta se rever e interrogar a si própria, serão contribuições para uma história geral pouco investigada e demasiado centrada no eixo que durante várias décadas ia do Palácio Foz à Sociedade Nacional de Belas Artes. 


«Porto 60/70: Os Artistas e a Cidade» inaugura um ciclo a que se deu o título «Artistas e Situações Afirmados no Porto da 2ª Metade do Século XX», que continuará com mostras dedicadas a Fernando Lanhas, Ângelo de Sousa e Albuquerque Mendes, em Serralves, e António Quadros, na Árvore. Divide-se já a presente mostra pelos dois lugares, o que tem um imediato conteúdo simbólico: da Árvore partiu a manifestação contra o imobilismo do Museu Soares dos Reis, no seio do qual Fernando Pernes veio a animar, entre 1976 e 80, o Centro de Arte Contemporânea que serviu de estímulo e embrião para o projecto de Serralves. Hoje, a aliança das duas entidades no programa de 2001 é também um gesto de compromisso entre diferentes sensibilidades e poderes da cidade, com o qual se partilham meios e silenciam tensões.


Entretanto, não poderia esperar-se que o contexto celebrativo sustentasse em exaustivo estudo crítico, histórico e sociológico o projecto retrospectivo sobre as rupturas e continuidades dos anos 60-70. Os dois comissários e autores de um estudo conjunto no catálogo, Fátima Lambert e João Fernandes (em substituição de Fernando Pernes, que assina outro texto memorialista), não iludem o carácter embrionário da iniciativa, considerando-a «um apelo a uma investigação mais aprofundada». Trata-se de lembrar e, em especial, de desenterrar materiais e documentos, mas é pena que o catálogo-álbum não inclua um instrumento tão indispensável como uma cronologia.


O núcleo mostrado na Árvore começa por ser a exposição do próprio lugar, fundado em 1963 na sequência da renovação da Escola de Belas-Artes (ESBAP), conduzida por Carlos Ramos no final da década de 50, e que então acolhia como docentes os alunos mais talentosos, numa dinâmica totalmente diversa da situação de rejeição da escola e de exílios que ocorria em Lisboa. Abertura da academia à cidade e ao mercado nascente, espaço de cruzamentos interdisciplinares, a Árvore foi também «um centro de oposição, quase às claras, ao regime», «um espaço de liberdade», para citar uma investigação de Gonçalo Pena que continua actual (publicada em «Anos 60, Anos de Ruptura», que António Rodrigues comissariou para a Lisboa'94). 


Cultivam-se, porém, velhos equívocos quando se apresenta a exposição como retrospectiva dos que «ousaram romper com o academismo e o atraso da cultura oficial do regime político de então» (segundo o prefácio institucional de V. Todoli e José Rodrigues). Nem é verdade que a cidade fosse um «verdadeiro deserto no que diz respeito à iniciativa institucional», nem deve esquecer-se que, nas artes plásticas e arquitectura, o binómio oposição-situação tinha aqui um entendimento próprio, avesso aos boicotes contra o SNI praticados em Lisboa. No Porto do início dos anos 60 já não seria possível traçar qualquer rígida demarcação entre cultura oficial e a «outra», o que pode ser visto como uma prova de pioneirismo. 

 

No microcontexto da cidade (que tanto se pode dizer «mais fervilhante que Lisboa» como caracterizar pelo «isolamento e o provincianismo desarmante», em «Anos 60»), Barata Feyo dirigia o Museu Soares dos Reis, de 1950 a 60, actualizando o seu acervo; mestres e alunos afirmavam-se nas Exposições Magnas e Extra-escolares da ESBAP, realizadas até 68; os discípulos mais brilhantes entravam para a docência e realizavam grandes mostras individuais na Escola (Quadros em 59; Ângelo e Jorge Pinheiro, 63; Armando Alves e Mouga, 64; Alberto Carneiro, 67); Resende e Lanhas representavam o país na Bienal de Veneza, em 1960, e os mais novos iam participando nas Bienais de Paris e São Paulo. Tem de referir-se já sem preconceitos a aparição dos artistas do Porto nas exposições dos Novíssimos e nos Salões Nacionais de Arte, de 1959 a 68, no SNI e no Soares dos Reis, sendo premiados, entre outros, Quadros (60 e 66, desenho), Nadir Afonso (1966, pintura), Areal e Carneiro (prémios nacionais de desenho e escultura em 1968). A seguir, será muito difícil quantificar o que nas rupturas de «circa 68» decorre do fim de Salazar, do crescimento do mercado de arte (até 73), da informação bruscamente actualizada em viagens de estudo e bolsas no estrangeiro ou tão só dos ares do tempo.


No núcleo da Árvore documentam-se diversas recolhas da cultura popular em extinção, numa séria contraposição ao populismo folclorista do SNI: discos de Michel Giacometti, obras de Rosa Ramalho e Franklin, o filme Auto de Floripes produzido pelo Cineclube do Porto e o inquérito à Arquitectura Popular - entretanto, com Álvaro Siza, começava a construir-se o que depois se designaria por «regionalismo crítico». É nesse contexto que é exposta a figuração imaginativa de António Quadros (personagem central da viragem da década, que em 63 parte para Moçambique), com destaque para a insólita presença de uma vitrina com cartões de boas festas gravados por Quadros e A. Alves. São testemunho de uma figuração muito presente no Porto em finais de 50 e em toda a primeira metade dos anos 60, que se encontrava já nas elegantes estilizações de Eduardo Luiz (fixado em Paris em 58) e que caracteriza as obras iniciais de Ângelo, J. Pinheiro e outros. É todo um campo que os dois núcleos da mostra não ilustram explicitamente e que, não se tratando de sobrevivência neo-realista, num ambiente bem informado do pioneiro abstraccionismo portuense, já era por vezes defendido como uma precoce «neofiguração». 


Também na Árvore se recorda o grupo Os Quatro Vintes (Ângelo, José Rodrigues, Pinheiro, A. Alves, 1968-72), associação bem mediatizada de bruscas rupturas pessoais resultantes da informação internacional, sintetizando referências que iam da abstracção «hard edge» (bordos nítidos) ao formalismo de Anthony Caro e da «New Generation» inglesa, da Pop à Op e aos «minimalismos». Os mesmos artistas ocupam o espaço mais amplo do núcleo de Serralves, acompanhados pela «eco-arte» conceptual de um Alberto Carneiro também regressado de Londres e já envolvidos por uma produção objectualista diversificada que dá conta da actualização escolar e experimentalista portuense.


Entretanto, no Museu, o facto de a visita se iniciar na Biblioteca adequa-se ao carácter histórico-documental da mostra: sucessivas vitrinas exibem programas do Cineclube (ilustrados por Ângelo, de Francesco, Manuel Pinto, etc.), catálogos das galerias Divulgação (1958-67), Alvarez (1954), Zen (1964), memórias do Teatro Experimental do Porto, revistas literárias, etc.


No itinerário foi reservada uma área de passagem a nomes vindos de anteriores gerações, como Lanhas, Nadir e Augusto Gomes, a que se segue Júlio Resende, entrando já noutro espaço mais sombrio e massificado, que inclui quer a pintura quer testemunhos de intervenções dos anos 70 (grupos, acções e manifestos). Aí confluem exemplos de itinerários autorais mais estruturados e também restos fugazes de inquietações e experiências que reagem ao 25 de Abril, se agregam na «Alternativa Zero» de Ernesto de Sousa ou se movimentam em torno de Jaime Isidoro, pintor eclético, «marchand» e animador de vanguardismos, verdadeiro Mr. Hyde e Dr. Jeckyl (in «Anos 60») que promove «happenings» na Casa da Carruagem de Valadares (desde 68?), os Encontros Internacionais de Arte (74-77) e depois as Bienais de Cerveira, pertencendo à sua colecção muitas das obras reunidas para a presente mostra. 


Ao chegar ao fim da década, esses anos de viragens decisivas na sociedade portuguesa e internacional, de «agitação» e utopias, desembocam não numa abertura mas no encerrar de um ciclo. A nova década vai desenhar outras rupturas.


Fotos : Escultura recortada de José Rodrigues (1968-70?), um dos «Quatro Vintes». E «Torre dos Clérigos», pintura colectiva do Grupo Puzzle, de 1976