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quarta-feira, 27 de agosto de 2025

Entrevista com João Fernandes, director de Serralves, em 2003

 

Enquanto a Administração de Serralves dá espectáculo pouco decente, recordo o tempo de  João Fernandes, segundo director (2003-2012) "

 

"Abrir um caminho contra o isolamento"

Expresso Cartaz de 15-02-2003, pág. 8/9 (o texto foi algo abreviado na versão publicada)

Os objectivos e a estratégia do Museu de Serralves explicados por João Fernandes, continuador do projecto de Vicente Todolí

(estávamos no momento Bacon, um episódio excêntrico na programação do museu, que não por acaso propiciou a ida de Todolí para a Tate Britain - sobre esta e outras exposições que foram sucessos de público, ouvia-se dizer: de vez em quando é preciso dar um rebuçado. Bacon foi entendida como uma exposição-rebuçado e foi um episódio muito discutível de integração de várias obras rejeitadas pelo pintor que então entravam no mercado.)

 

João Fernandes sucedeu a Vicente Todolí na direcção do Museu de Arte Contemporânea de Serralves, depois de com ele ter colaborado desde 1996. É a continuidade que defende ao definir o seu projecto.

A expectativa que acolheu Bacon têm a ver com a escassez de nomes históricos e grandes obras na programação dos museus portugueses, e de Serralves em particular?

Acho que não tem a ver com o nome ser mais ou menos histórico. Em Portugal é muito difícil avaliar quais são os nomes que podem ser considerados históricos ou conhecidos pela sua própria história.

Bacon não é só mais histórico, é um artista maior.

É um daqueles nomes universais e inquestionáveis, plenamente afirmado, que foi objecto de estudos exaustivos e múltiplas exposições. É um artista que já está feito. O grande desafio é criar um ponto de vista singular sobre a sua obra. Tomámos a opção de não repetir coisas que já foram feitas.

O grande desafio é mostrar Bacon em Portugal.

Acho que não compensa fazer uma exposição para Portugal e só para Portugal. Trabalhar com um artista como Bacon é também uma questão de afirmação do museu. É um objectivo do programa deste museu não fazer em Portugal o que os outros já fizeram lá fora. Podemos associar-nos a outros museus, mas o que importa não é seguir o modelo de outros, é criar o próprio museu e com isso conquistar o respeito internacional e uma singularidade.

O público precisa de ver os artistas que cá nunca foram expostos. 

Há um outro factor a ter em conta. Não é possível de um momento para o outro resolver todas as lacunas do passado. Serralves pode contribuir para dar algumas respostas a essas lacunas, mas não pode responder a todas as omissões do passado institucional português e à inexistência de um contexto institucional para a arte contemporânea em Portugal durante grande parte do séc. XX. Isso faz com que, quando programamos o nosso calendário de exposições, o objectivo não seja olhar para o contexto internacional e dizer: o que é que vamos agora trazer a Portugal? O que procuramos, em função dos nossos critérios próprios de actuação, é criar uma programação heterogénea e diversificada - porque este não é um museu de tendência, que nunca defenderá que a arte deve ser de uma determinada maneira… Bacon ou Lissitsky e Mondrian, que mostrámos com A. Souza-Cardoso, são nomes históricos e afirmados, mas sobre os quais é possível acrescentar um novo ponto de vista. É essa a ambição do projecto, porque fazer aquilo que já foi feito em Paris ou Londres, e bem feito, só para o fazer em Portugal, não se justifica. É possível o confronto com essas experiências através do livros, da pesquisa e da informação, e gostariamos que houvesse um contexto à volta, através do sistema de ensino, das bibliotecas e das várias instituições…

Os livros não se substituem às obras.

Fazer um museu como Serralves no contexto português não é a mesma coisa que fazer um museu noutra parte do mundo, e esse é um dilema a que importa responder com grande oportunidade. Fazer um museu para todo o mundo e fazer um museu em Portugal são dois factores indissociáveis. Qualquer coisa que aconteça aqui é dirigida quer ao contexto português quer ao contexto internacional, em simultâneo, e achamos que não devemos fazer coisas paternalistas para o contexto português ou coisas apenas circunscritas ao contexto português. Obviamente que temos em conta o contexto português na definição da programação, mas é-nos impossível contar a história do séc. XX aos portugueses desde o início.

Não dá demasiado peso à ideia de projectar Serralves entre os museus de ponta internacionais?

Há dois objectivos: um é integrar Serralves no contexto dos museus internacionais que acrescentam pontos de vista sobre a arte do nosso tempo, outro é afirmar o projecto de um museu de arte contemporânea em Portugal junto do público português. São objectivos indissociáveis e o sucesso de um implica o outro. A programação de um museu deve ser sensível aos contextos, nunca dependente deles. Uma programação não deve ser fabricada nem para o contexto internacional nem para o contexto português; afirma-se sendo sensível aos horizontes de recepção, que devem ser indissociáveis o mais possível, para evitar aquilo que até agora acontecia - a definição de estratégias apenas para o contexto português, que contribuíam para o seu isolamento, ou só para o contexto internacional, contribuindo também para o isolacionismo. As duas coisas têm de ir a par. Temos uma opção de programação com maior número de exposições de artistas estrangeiros que portugueses, o que achamos importante para os situar numa programação e numa colecção internacional. Se esta lógica fosse invertida, Serralves era mais um museu nacional, que seria relativizado no contexto internacional, enquanto assim, pelo menos, cria-se um espaço onde tudo quanto acontece, e também a arte portuguesa quando acontece, pode vir a ser objecto de uma atenção que não é filtrada pelo localismo ou pelo nacionalismo. Num país que esteve tantas vezes isolado, o problema da relação nacional-internacional coloca-se sempre, é um problema endémico da cultura portuguesa do séc. XX, mas não se pode ter uma estratégia proteccionista, que conduziria pura e simplesmente ao isolamento.

Serralves não conseguiu ainda levar exposições de artistas portugueses ao estrangeiro.

Já conseguiu, com Cabrita Reis, numa produção com o Museu Ludwig, mas por ser um artista conhecido internacionalmente e não por ser Serralves a apresentá-lo. O trabalho de um museu, em qualquer parte do mundo, não é a exportação dos artistas do seu contexto nacional. Deve criar possibilidades de outros conhecerem e se interessarem pelas suas obras e poderem vir a trabalhar com eles. Se um director de um museu inglês ou norte-americano me apresenta um artista pela sua relevância no contexto nacional, isso não é argumento para o programar em Serralves. As opções dos museus têm de vir dos seus próprios programadores e não de uma relação negocial de importação-exportação ou de troca.

Têm-se trocado exposições com vários museus, mas não de portugueses.

Não fazemos troca pela troca, intercâmbio pelo intercâmbio. O contexto do intercâmbio cultural é criado por contextos políticos, e nas programações dos museus isso não existe. Temos de ser respeitados na nossa programação e respeitamos os outros. O que pretendemos é que, com as exposições, os catalogos e a visibilidade que damos aos artistas portugueses, as suas obras tenham condições para serem conhecidos dentro e fora do pais. Se isso obedecesse a uma estratégia, não resultaria, porque nenhum museu que se preze programa na base da decisão política ou da relação inter-institucional.

Alguns museus espanhóis, de Badajoz e Santiago, têm feito circular mais artistas portugueses que as instituções nacionais. Serralves dialoga com um núcleo restrito de museus, mas há outras redes com maior abertura.

Achamos que uma programação interessante não depende de factores exógenos às obras dos artistas, e os artistas não se devem afirmar por factores exógenos. Há muitas exposições de intercâmbio entre embaixadas e governos, mas nunca é a exploração desses canais institucionais político-diplomáticos que pode afirmar a obra de um artista ou um contexto nacional. É claro que há factores geoculturais e geopolíticos na difusão de determinados artistas do nosso tempo, e o facto de haver centros políticos e económicos no mundo faz com que também haja centros artísticos; ao longo da história da arte isso sempre aconteceu. Seria altamente negativo se um museu estrangeiro programasse um artista português por um intercâmbio negocial. Portugal foi um país muito isolado e as pessoas conhecem mal o contexto português, há poucos coleccionadores de artistas estrangeiros, não há uma rede de museus e centros de arte que crie uma relação estrutural com o universo da arte contemporânea, e não é o aparecimento de um museu, mesmo com a projecção internacional de Serralves, que consegue de um momento para o outro redimir todo o isolamento do passado, mas estamos a criar condições para ele deixar de existir. Hoje já é muito mais fácil a um artista de vinte e tal anos ser convidado para uma exposição internacional do que aconteceu com gerações anteriores. Há condições para abrir um caminho, não para impor um caminho.

Falemos brevemente da colecção. Bacon não foi incluído na exposição «Circa 68», que definiu o programa do Museu e o modelo da colecção. Não está no programa das aquisições?

É um artista que não faz parte daquilo que assumimos como uma profunda renovação das linguagens artísticas que ocorre na década de 60; nessa década Bacon continua uma obra que aparece e se afirma na década de 40. O programa de aquisições está em grande parte delineado desde a inauguração. Decidimos começar a colecção a partir de meados da década de 60 e tomámos a opção de constituir um núcleo histórico que constitua uma identidade e um ponto de partida da colecção.

Mas é nas décadas de 60 e 70 que Bacon se afirma internacionalmente e são desses anos as suas melhores obras.

Achamos que é um artista que vem de um contexto de problematização da arte e de fazer arte que não é característico dessa época, que já vem vem no passado, se bem que seja uma obra sempre viva, como podemos ver neste momento. Há muitas obras do passado que gostaríamos de poder ter na colecção e confesso que a decisão de periodizar a colecção desta maneira também é decorrente das possibilidades orçamentais que temos. Mas é também uma leitura sobre a história da arte do séc. XX, obviamente.

Essa leitura implica a convicção de que houve uma mutação de linguagens que exclui linguagens como a do Bacon, que continuaram activas, e que são prosseguidas hoje por outros artistas?

Podemos expô-los em mostras temporárias, como agora estamos a fazer. Comprar um quadro do Bacon significa que o nosso orçamento para cinco anos seria gasto numa só obra. Achamos não é melhor maneira de construir uma colecção em Portugal.

São critérios de ordem estética ou financeira? O que chama as novas linguagens são as mais baratas, são o que resta quando se não pode comprar mais caro e melhor?

Os dois convergem, mas não estamos a falar do que resta, estamos a falar de poder criar novos pontos de vista. Esta colecção não pretende fazer em Portugal o que outros museus já fizeram. Não estamos interessados em mais uma caixa Brillo do Andy Warhol ou em repetir o que se passou nos museus europeus em relação ao impressionismo, em que cada museu local do centro da Europa tem o seu núcleo impressionista. A ideia é que esta colecção acrescente um pouco às colecções que já existem.

Que existem lá fora… Há uma fatalidade portuguesa que impede que haja no país um núcleo impressionista ou clássicos do séc. XX?

Será muito difícil encontrarem-se condições na sociedade portuguesa para isso. Portugal perdeu a contemporaneidade durante grande parte da sua história e não tem neste momento contexto económico-financeiro para a resgatar de um momento para o outro.

sábado, 29 de setembro de 2001

2001, Porto, Museu Soares dos Reis

 Soares dos Reis, “Museu ao fundo” em 2001

EXPRESSO 29/9/2001

Museu ao fundo

O IPM pretendia apresentar recurso no caso do Museu Soares dos Reis (o Ministério preferiu pagar uma fortuna à outra srª: dava um romance da Agustina)

Dois meses depois de reaberto, o Museu Nacional Soares dos Reis, no Porto, mergulha numa nova crise devido ao afastamento da sua directora, Lúcia Almeida Matos, que conduziu durante dois anos (feitos no dia 24) o relançamento de uma instituição há muito arredada de um papel central na vida cultural da cidade, e não só pelo seu longo período de encerramento para renovação das instalações. A realização das importantes exposições ainda previstas no programa da capital cultural não deverá, entretanto, ser posta em risco. Mas, num mar encapelado pelas limitações orçamentais do Ministério da Cultura, particularmente gravosas para o funcionamento corrente dos museus oficiais, a dinâmica global de renovação vivida nos anos recentes sofre um inesperado abalo.

A nova situação resulta de o Ministério não ter recorrido do acórdão do Tribunal Central Administrativo (TCA) que, por ocasião da reinauguração do Museu – intrigante coincidência -, se pronunciou pela não aceitação da candidatura de Lúcia A. Matos ao concurso realizado para a respectiva direcção, em 1999. Em consequência, a anterior directora, Mónica Baldaque, que ficara em segundo lugar nas provas e accionara o recurso para o tribunal, pode vir a ocupar o cargo, embora um novo concurso venha a ter lugar já no próximo ano.

O MC recusou-se a prestar quaisquer esclarecimentos sobre as razões jurídicas, técnicas ou políticas que o levaram a prescindir do recurso, limitando-se a informar que foi acatada a decisão do tribunal. Esse silêncio é tanto mais estranho quanto o incidente é considerado em meios ligados aos museus e às artes como uma grave quebra de solidariedade em relação a anteriores decisões do Ministério e dos responsáveis pela política de museus.

Sem desmentir essa interpretação, Raquel Henriques da Silva, directora do Instituto Português de Museus (IPM), em declarações ao Expresso, optou por frisar que «esta decisão não foi do IPM, nem seria a do IPM; foi do secretário de Estado (que tem a tutela sobre esta área) e do ministro». Para o IPM, acrescenta, «havia substância e conteúdo para accionar o recurso». Na sua opinião, «a própria sentença do TCA abre um espectro de admissibilidade ao concurso por parte dos docentes universitários, independentemente do seu tipo de contrato, que o anterior parecer não vinculativo da Direcção-Geral da Administração Pública (DGAP) não contemplava», pelo que um tal recurso «tinha fundamento jurídico e era formalmente admissível, mesmo se não era certo que ganhasse».

Num esclarecimento da directora do IPM, já publicado no «Público» (dia 17), foi transcrito um passo do acórdão que parece justificar essa alegação: «para efeito de recrutamento para o cargo de director de serviços (…) haverá de reputar-se como 'funcionário' todo o pessoal docente integrado nesta carreira de regime especial que, independentemente da categoria e forma de provimento, assegura funções correspondentes a necessidades permanentes de serviço».

Por outro lado, Raquel Henriques da Silva lamenta que o processo não tenha sido «conduzido até ao fim, o que permitiria que outros aspectos contestados por Mónica Baldaque fossem apreciados». Recorde-se que esta invocara igualmente a existência de parcialidade no concurso e favorecimento na análise do «curriculum» de Lúcia A. Matos – matéria sobre a qual o acórdão não se pronunciou -, pretendendo dar sequência ao caso nos tribunais com base nesse tipo de considerações, que a directora do IPM liminarmente rejeita.

Segundo uma fonte próxima de Mónica Baldaque, ouvida também pelo Expresso, esta «vai recorrer a outras instâncias judiciais para apurar as responsabilidades dos diversos intervenientes no concurso, isto é, se agiram ou não de maneira culposa». Entretanto, «vai esperar que lhe comuniquem se toma ou não posse, e quando». O incidente está assim longe de poder considerar-se encerrado, mas a posição dos agentes do Estado terá sido enfraquecida.

Na base da questão encontra-se o facto de Lúcia Almeida Matos ser, à data do concurso, assistente contratada, em consequência de atraso na prestação de provas de doutoramento. Esse é um estatuto controverso, tal como o dos professores convidados, cuja equiparação ao funcionalismo público ficou por dirimir, sabendo-se no entanto que, por exemplo, a passagem ao escalão seguinte da carreira determina a contagem desse tempo de serviço. A actual directora do Soares dos Reis cumprira já 12 anos de serviço continuado como assistente com horário completo, plenamente integrada na carreira docente.

Entretanto, uma análise de todo o conflito deverá incidir sobre diversos aspectos. A substituição da direcção do Soares dos Reis insere-se numa dinâmica que envolve os 29 museus do IPM por via da aplicação da lei geral sobre directores de serviços, a qual conduziu a uma profunda renovação dos seus dirigentes, apesar de limitada pelas restrições legais que reduzem o recrutamento a funcionários públicos e equiparados. Outros episódios ocorridos, com contestações ou com implicações humanas e profissionais, não tiveram a projecção deste.

É possível que o ministro tenha desejado encerrar um conflito herdado da gestão de Manuel Maria Carrilho, e outras interpretações recordam também que Mónica Baldaque é filha de Agustina Bessa Luís, a qual, durante o mesmo mandato, fora afastada de um cargo quase só honorífico no Teatro D. Maria II, o que a levaria a supor-se vítima de uma dupla perseguição. É também provável que um propósito de pacificação de conflitos nas vésperas de eleições tenha orientado a decisão política, embora criando outros contenciosos internos. Na ausência de respostas do Ministério da Cultura, o caso fica com contornos nebulosos ou mesmo inquietantes.
(com a colaboração de Valdemar Cruz)


sábado, 7 de dezembro de 1996

Fernando Calhau, 1996, ENTREVISTA (na criação do Instituto de Arte Contemporânea)