A propósito do Museu Boijmans de Roterdão, e de Rembrandt, vindos ao
Porto em 2001, e a Serralves, numa desperdiçada ou tosca oportunidade.
EXPRESSO ACTUAL de 20/1/2001
"O bazar pós-moderno"
Paisagens e outras imagens da Natureza vindas do Museu Boijmans de Roterdão para Serralves
«IN THE ROUGH»
Imagens da Natureza Através dos Tempos na Colecção do Museu Boijmans Van Beuningen (Roterdão) Museu de Serralves
Quando o
Museu de Arte Antiga se apresentou na galeria federal de Bona, em 1999,
escolheu, de entre as obras que podiam viajar, o património mais
significativo, do duplo ponto de vista do interesse internacional e da
representação da arte portuguesa. Quando o Museu Gulbenkian levou uma
selecção do seu acervo ao Metropolitan de Nova Iorque, fez deslocar
peças de primeira escolha, sob um título, «Only the Best», que já
correspondera à divisa do fundador. O melhor não é nunca um dado
invariável, mas é uma regra exigente quando os museus viajam.
É outro o
caso da colaboração entre Serralves e o Museu Boijmans Van Beuningen.
Não por se ter adoptado um tema específico para a embaixada vinda de
Roterdão (a paisagem e outras «imagens da natureza através dos tempos»),
mas por se trocar a escolha das melhores obras por uma representação
onde cabem obras maiores e menores, peças de excepção e curiosidades, a
excelência e o «kitsch». O título em inglês, «In the Rough», traduz-se
por «em bruto» ou «em tosco» e deve ser interpretado à letra. Note-se,
porém, que o universo das imagens da natureza vindas da colecção de
Roterdão se restringe à produção dos sécs. XVII-XX, no Ocidente, na área
das artes eruditas e sumptuárias.
O que se
expõe, sob a dupla responsabilidade de Piet de Jonge e de Vicente
Todoli, é um bazar pós-moderno. Um enorme «puzzle» onde nenhuma
informação orienta ou esclarece o visitante, sem qualquer ordenação ou
categorização inteligível dos objectos.
Tornaram-se
frequentes nos últimos anos as exposições e montagens de museus (por
exemplo, as Tates de Londres) onde se sucedem, à margem da cronologia e
em torno de um determinado tópico, peças de diversos períodos, técnicas e
estilos e também de diferentes padrões de qualidade, às vezes incluindo
o académico, o «kitsch» e o trivial para ilustrar a produção corrente, a
decadência dos estilos ou a diversidade social dos gostos.
Pode
tratar-se de um modo experimental de reexaminar cronologias e
classificações tradicionais, explorando direcções esmagadas pelas
tendências dominantes ou valorizando a observação desprevenida das obras
face às explicações aprendidas. Mas ao pôr em questão o evolucionismo
esquemático da história das formas que se associou à afirmação da arte
moderna – da representação naturalista à abstracção e desta ao fim da
pintura… -, algumas montagens deitam fora o discurso da história e todas
as outras condições de inteligibilidade que se esperam de um museu. O
que pode proporcionar leituras renovadoras, quando estão em causa breves
períodos históricos e pistas temáticas consistentes, toma o carácter de
um jogo aleatório, indecifrável e arrogante, ou a marca de uma moda.
Em geral,
esse tipo de montagens é apoiado pela presença (demasiado insistente) de
textos de parede e longas tabelas das obras, e também por roteiros e
audioguias que vão balizando e «explicando» as obras essenciais. Em
Serralves, a total ausência de informações (que se prolonga no catálogo)
deixa o espectador à deriva entre obras de diferentes séculos, de
distintos ramos da criação (pintura e desenho, artes decorativas e
«objectos de arte», fotografia contemporânea), de diferentes tradições
culturais, de artistas por vezes totalmente desconhecidos (ou de fases
incaracterísticas de outros: as flores de Mondrian, a paisagem de
Gauguin).
Obras que
pontuam alguns capítulos determinantes da arte ocidental – o paisagismo
holandês da idade do ouro e a afirmação da paisagem como o género
determinante da evolução da pintura no séc. XIX (Barbizon,
impressionistas, etc.) – perdem-se numa sequência indistinta, «em
bruto», talvez ao acaso. E são igualmente dispersos e ilegíveis outros
episódios mais especificamente holandesa, com valores locais
qualificados e algumas marcas universais indeléveis, que aqui não se
mostram nem adivinham.
O silêncio
informativo que se soma à sequenciação caótica e à abundância do
«kitsch» talvez proporcione ao visitante erudito o prazer de construir a
sua própria decifração e o ordenamento mental da exposição. Também
eventuais visitas guiadas poderão proporcionar exercícios pedagógicos.
Mas não é essa a situação do espectador «médio», para quem a ausência de
sinalizações cronológicas e estilísticas favorece uma passagem
acelerada diante de obras que ele não pode referenciar nem interpretar.
Esse
trânsito indiferente que o museu pós-moderno propõe ao visitante tem
por modelo a insignificância de alguma arte actual e por projecto a sua
generalização. Bastará ler, noutro local, o texto de parede que
acompanha as paisagens fotográficas anónimas, «encontradas» por Júlia
Ventura, para saber que alguma arte contemporânea, aquela que Serralves
patrocina, «propositadamente se mostra inexpressiva e no limiar da
trivialidade».
É, de
facto, de um efeito geral de trivialização que se trata, de uma
indiferenciação de objectos, autorias, expressões, histórias, categorias
e estatutos. Talvez em nome de uma crítica da ideia aristocrática de
excelência, da rejeição de uma hierarquização entre obras ou artistas,
com que se reproduziriam mecanismos de distinção social. Através da
montagem em estilo bazar, o objectivo seria a desconstrução do museu
tradicional e burguês – selectivo, cronológico, hierarquizado, e, por
isso mesmo, autoritário e elitista -, mas é ao gabinete de curiosidades
que se regressa ou à galeria do antiquário, ao gosto de uma restrita
elite de agentes do mundo da arte e com total ausência de sentido para a
generalidade do público.
Não é por
acaso que há aqui uma presença tão constante do «kitsch», ostensivo nos
«objectos de arte» que acompanham a pintura (recusando a distinção de
significados e de importância entre consumos ostentatórios) e não menos
evidente noutras produções recentes, fotográficas por exemplo. É de uma
perspectiva antimoderna do pós-modernismo que se trata, como se torna
evidente pelo apagamento das questões associadas às raízes ou rupturas
da modernidade.
Veja-se, à entrada, um quadro de J. H. Weissenbruch
que parece oferecer-nos a Holanda de bilhete postal numa pintura de
convencional realismo, com o moinho à beira do canal e vacas que pastam
ou ruminam. Uma observação mais informada situará o artista entre a
Escola de Haia, que pretendeu, a partir de 1860, num estilo próximo do
«ar livre» de Barbizon, fazer renascer a tradição da paisagem holandesa
do séc. XVII, explorando a poética das variações da luz em diferentes
horas e climas, nas particulares condições paisagísticas da Holanda.
Como aí se reconhecerá pela luminosidade do largo céu carregado de
chuva, sobre a extensão plana feita das «nuances» de muitos verdes.
Tanto Van Gogh como Mondrian foram muito sensíveis a este tipo de
pintura que se afirmou como tendência nacional, mas que na viragem do
século começou a ser contrariada pelos simbolistas e logo depois pelos
«luministas» (procurem-se as obras de Leo Gestel e Slujters).
O visitante passa depois por uma porta giratória de Dan Graham, que
seria só um incómodo adereço se não assegurasse um posto de trabalho ao
vigilante que vai alertando para um obstáculo pouco visível (ah, o
imenso mercado de emprego que a cultura abre…). Que encontra ele na
primeira sala? Louças, pratas, mais candelabros e vasos pirosos numa
primeira barreira diante de quadros: paisagens de heteróclita
procedência e datação onde predominam cenários idealizados, céus
dramáticos, iluminações fantasistas, concluindo com as cores artificiais
do «kitsch» contemporâneo de Roger Brown e Salvo…
É
nas salas mais periféricas e mais íntimas que se encontrarão as
principais peças, por vezes integradas em sequências discretamente
significantes. Os desenhos de observação de Rembrandt; as telas de
Claude Lorrain e Jacob van Ruisdael, referências essenciais da pintura
de paisagem, clássica e idealizada no primeiro, e modelo holandês de
fidelidade à natureza o segundo. Um estudo rápido de Delacroix, um seco
esboço romano de Corot, o realismo prosaico de Courbet, a densidade
expressiva de Permeke. As três baías de Boudin, Daubigny e Monet, já
estereótipos. Os empastamentos luminosos de Diaz e Monticelli, de
destino mundano. Franz Marc, Kandinsky e De Kooning, a abstracção de
origem paisagística. Morandi e a visão despojada.
Consultando
o site do museu (www.boijmans.rotterdam.nl), encontram-se obras de
referência e textos breves que sustentariam um outro percurso menos
«tosco» sobre a paisagem. Identificando o seu aparecimento renascentista
como cenário de temas religiosos, com a Paisagem com Fuga do Egipto,
atribuída ao círculo de Patinir, e a sua importância em posteriores
composições com figuras, com o Rapaz com Cães numa Paisagem, do velho
Ticiano («in a roughly defined landscape»), ou o quadro de Munch, Duas
Raparigas e Macieira Florida, de 1905.
Duas outras
peças maiores da colecção de Roterdão, certamente transportáveis,
teriam estabelecido pistas decisivas para se entender as rupturas do
séc. XX com a representação naturalista, e dariam uma densidade mais
holandesa à exposição e a essa mesma viragem de século. Com a
Natureza-morta com Batatas, de 1885, de Van Gogh, a intensidade emotiva,
expressão pessoal e de revolta colectiva, inscrevia-se explicitamente
na maneira de descrever (interpretar) a realidade, também natural, de
uma refeição de pobre. De Mondrian, o museu possui uma magnífica
Composição com Amarelo e Azul, de 1929, uma tela abstracta de uma
economia e tensão formal que se poderia entender como consequência e fim
da pintura de paisagem. Um fim provisório.
(Museu de Serralves. Até 1 de Abril)
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E não sei se isto chegou a sair na mesma edição:
Porque é
que, tantas vezes, os textos «culturais» não se entendem? Porque é que,
demasiadas vezes, o que se escreve sobre arte não significa nada?
Sobre
«In the Rough» (em tosco?) existe um folheto de quatro páginas a que se
chama roteiro. Deveria guiar o itinerário por várias salas e cerca de
200 «imagens da natureza através dos tempos», sem qualquer sequência ou
organização inteligíveis. Mas a única página de texto é incompreensível.
Como exemplo, transcreve-se um parágrafo, na íntegra:
«Propõe-se
um jogo reflexivo: olhar e compreender realidades. Pela direcção do
olhar do artista é-nos devolvido o nosso próprio olhar. Assim,
demarca-se a necessidade de libertação dos limites da obra como objecto,
alargando a noção de paisagem através de uma interpenetração da obra e
da realidade. O que, desde logo, suscita uma exposição aberta e flexível
ao dinamismo do olhar.»
Se o nosso
olhar nos é devolvido pela direcção do olhar do artista, o que vemos?
Chama-se paisagem ao espaço ou panorama visto por um observador e também
à imagem (a obra) que eventualmente o representa ou fixa – são duas
distintas realidades. O que poderão ser a «libertação dos limites da
obra como objecto» e a «interpenetração da obra e da realidade»? A
passagem anterior não ajuda: «As visões imaginativas de muitas paisagens
diferentes executadas por artistas ao longo dos últimos séculos (…)
proporcionam um ponto de partida para “novas maneiras de ver” no início
do século XXI. Justapor conscientemente diferentes períodos, técnicas,
estilos é um modo de abordar a complexidade da obra de arte em relação à
mudança do papel de quem a vê.» Os outros parágrafos são idênticos, mas
o espaço para transcrições escasseia.
Porque
é que a exposição que inaugura a capital cultural não precisa de se
fazer compreender? O que é que, no Museu, se entende por cultura?