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domingo, 15 de maio de 2016

Nuno Viegas 2001 2002 2003 2004 (Cascais) 2008 2009 (Arte Periférica) 2016 (Col. Cachola)

 Nuno Viegas desde 2001

2011 A de Animal

Arte Periférica 5 nov. CATÁLOGO (tx NV)

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05/15/2016

Nuno Viegas na Colecção Cachola

sábado, 12 de outubro de 2002

Fátima Mendonça, 1996 (Arte Periférica), 1998, 1999 (Fernando Santos), 2001 (Prémio Maluda), 2002 (111)

 Picture 3

2009: Exposição na Galeria 111, de 10 de Setembro a 7 de Novembro

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Escritos desde 1994

FÁTIMA MENDONÇA, Arte Periférica, Massamá
Expresso Cartaz de 17-09-1994

Um desenho que é aparentemente infantil para falar de experiências e violências físicas suporta a narração de histórias em que entram uma noiva, um bolo e um cão mau. São as grandes telas, onde um corpo flutua, exposto e pensado do interior, num espaço vago de manchas e rasuras, que melhor traduzem, depois de Dubuffet e Paula Rego, mas sem epigonismo, a energia de um discurso que aqui começa. Uma primeira individual que nos faz aguardar novos trabalhos. (Até 5 Out.)
 
FÁTIMA MENDONÇA, Arte Periférica/Belém
Cartaz Expresso 18-11-1995
Três telas de grande formato dão sequência a uma pintura que joga abertamente na criação de uma narrativa centrada numa personagem feminina e num quotidiano de aspirações comuns, convenções, desejos e alegrias, medos e protestos — «estórias da menina mal-amada», no título da apresentação de Rocha de Sousa. O uso da cor vem agora dar uma outra intensidade a um grafismo aparentemente ingénuo, próximo do graffiti, enquanto as anotações escritas («ela explicava ao cão que era uma rapariga sincera», «descobrira-lhe mais de dez namoradas iguais a ela», «ela esforçava-se muito por lhe agradar») recriam episódios de uma intimidade ficcionada de menina ou noiva «saloia», entre formas de bolos e «suspiros», que também pode surgir travestida de toureira. As histórias são mais sangrentas do que parecem.
 
1997
"A sedução e a culpa"

Cartaz Expresso 11 Jan. 1997

Arte Periférica, Dez. 1996 / Jan. 97

Pela terceira vez consecutiva (em 1994, na galeria de Massamá), Fátima Mendonça mostra no final do ano como cresce regularmente a sua pintura. Não quanto aos formatos, sempre largos como paredes, mas na consolidação de um discurso, dos seus recursos, dos seus personagens e da marca distintiva de uma autoria, talvez ficcional, talvez confessional — questão adiada ou sem sentido.
A ideia de parede confirma-se na dispersão das notações, desenho e escrita, deixadas sobre a tela, repetidas, recomeçadas, distribuídas como se de um quarto fechado se tratasse, obsessivamente preenchido pelos «graffitti» de um preso, e como se esse fosse o diálogo possível com os outros, sempre através do espelho de si mesmo. As quatro telas-paredes expostas fecham-se, de facto, como um quarto, mas uma delas é ocupada por um corpo nu de criança, imperfeitamente feminino, oferecido, exposto e inseguro, a crescer nos seus sapatos altos de mulher. Ou é de um desenho infantil que se trata, retrato incerto (menina ou mãe, boneca), memória reaprendida de uma idade de terrores e fantasias?
Os sapatos altos estão também, isolados, noutro quadro e vinham já de trás, da série exposta em 95, como acontece com as formas dos bolos e o rabo de touro, que agora se alinham a preencher outras duas paredes. Nas «estórias da menina mal-amada», como então as apresentava Rocha de Sousa, a criança-mulher surgira travestida de toureira, a ocupar o centro da arena, enfrentando o medo, fazendo-se temer.
«Ela esforçava-se muito por lhe agradar», «ele enchia-a de mimos», «A saloia», «A toureira a agradecer», «O baile», «manso, sem casta», «Ela explicava ao cão que era uma rapariga sincera», ía-se escrevendo, repetidas vezes, de quadro em quadro. Mas não há um fio narrativo a decifrar como chave de uma história-enigma contada por imagens; é a intimidade de um universo que se propõe ou enfrenta ora como memória, ora como sonho, ora como interpretação dos seus nós significantes, ou como a dramaturgia de um exercício de pintura, calculadamente elaborado no seu jogo de verdade ou fingimento. E os desenhos que se expõem numa parede exterior da galeria, aberta à rua, isolam os diferentes motivos-sentidos recorrentes num inventário de sinais, marcando, por exemplo, a passagem de um suspiro (bolo) à forma de um sexo feminino, ou acrescentando outras referências gráficas ainda imprecisas no seu curso.
O quarto é casa, «A casa do desarranjo» (título geral), e é cozinha, «a cozinha da minha mãe», com as formas dos bolos e os camarões, recheio culinário com uma presença invasora e grafismo obsessivo, com as receitas escritas e a contabilidade das vendas («ela fazia bolos sem parar»). Exercício de servidão ou castigo, modo de sedução, enquanto os rabos de boi se terão de ver como selvagem acção castradora («manso, sem casta, sem investida»), é sempre de um mundo de terrores e desejos que se trata («o medo, «malpropreté», «la douleur», «a doidita»), de um corpo que se observa, entre convenções e protestos, entre alimentos e fluidos, num espaço da ordem doméstica que é também o lugar da identificação sexual.
Sobre cada tela, o desenho e a escrita visíveis são como um véu último sobre uma sedimentação de ensaios apagados ou recobertos por sucessivas velaturas, como camadas sucessivas vindas à consciência, rasuradas ou expostas.

1998

Fátima Mendonça
Casa Fernando Pessoa - 14-02-98

O programa de ocupações do Quarto do poeta prossegue e, neste caso, a «instalação» volta a prolongar-se de modo invasor por outros espaços da Casa. Em vez de uma situação ilustrativa, F.M. construiu um quarto de criança/casa de bonecas que é um espaço de paredes integralmente desenhadas: cenário onde se instalam motivos conhecidos de obras da artista, referidos a um imaginário infantil e feminino cujo obsessivo devaneio se apresenta (ou se ficciona) como íntima viagem de aprofundamento das dependências parentais e da descoberta do corpo próprio. É a partir do Quarto que ganham sentido outras peças expostas, pinturas sobre tela e uma «instalação» onde cinco gaiolas encerram os corpos giratórios de uma menina-boneca que se expõe e esconde, nua, sob o voo de uma bruxa (imagem de condenação ou de desafio?). Sob o título «Camara Lenta», Fátima Mendonça procede a uma teatralização do mundo ambiguamente privado da sua pintura, oferecendo-o com humor ao mesmo tempo que refere numa citação do catálogo o Desassossego de Bernardo Soares. (Até 15 Mar.)

"Fátima, Joana, Sofia"
Três exposições de mulheres artistas põem em questão a ideia de pintura feminina

Expresso Cartaz de 23-10-98
NÃO existe certamente a pintura feminina, nem as três exposições estabelecem entre si naturais relações de afinidade. Se duas delas se prestam à leitura de uma auto-representação mais ou menos ficcionada ou fantasmática e de uma atitude confessional como exibição mais ou menos teatralizada, a terceira, onde a pintura se dirá abstracta, segue outro caminho das imagens, sem se poder ler como expressividade intimista. Nesta conjunção guiada pelos acasos da programação não comparece nenhuma atitude mais friamente analítica, mas esta também existe em obras femininas, e as generalizações serão sempre improcedentes. As individualidades, em casos de género ou geração, importam mais que a lógica do grupo. Mas pode notar-se que é a urgência mais imediata e livre do desenho que preside às três mostras.

Fátima Mendonça volta a convocar a pista de circo como lugar de exposição aos olhares alheios, como fizera há pouco tempo na Casa Fernando Pessoa, então com peças tridimensionais em que o «chapiteau» era também gaiola e a personagem dos seus quadros uma boneca giratória. Antes colocara-a numa outra arena como menina-toureira. Agora ela agradece desajeitada a ovação, atravessa o espaço em equilíbrio no arame, segura um cão certamente morto, vindo também de outros quadros, ou mostra-se de coração nas mãos, num outro «estudo para um grande amor», e como patinho feio em mais uma tela.
Existe uma absoluta continuidade narrativa no trabalho de F. M., construída pela intimidade de um universo povoado por referências recorrentes, e o uso da escrita sublinha mais ainda essa dimensão literária, que já não é objecto de desconfiança para a crítica «pura». Reconhece-se em algumas obras femininas uma radical capacidade de auto-exposição e intimidade, mas o exercício da projecção também se confunde com o gosto da teatralização, e entre exorcismo e fingimento não há aqui lugar para a ideia de verdade (ou de retrato e biografia), mas sim para a de construção de uma obra.
No trabalho de Joana Rosa surge uma nítida vertente confessional, sobre a persistência de um desenho espontâneo e compulsivo, o «doodle», mantendo-se esta denominação para novos trabalhos («Secrets») habitados por dois personagens de um teatro privado, a bailarina e a fada, enquanto a escrita passa a ter uma intervenção importante. A exposição, aliás, estabelece com nitidez, mas algum excesso de peças (o desenho é compulsivo...), a passagem das grandes composições de fragmentos cobertos pela grafite para essa produção mais recente.
«Yes Y want to look like this forever» é um comentário que, com variantes, acompanha os exercícios de uma bailarina-ginasta, desenhada com a elegância de um corpo de modelo, por vezes vulnerável à deformação, à queda (alguns corpos que se levantam lembram curiosamente os de Maria Beatriz) e também ao ridículo de um estereótipo – «No no she is ridiculous, but I like her hand...». A escrita que acompanha a imagem identifica a relação com o corpo próprio, ameaçado pelo tempo, enquanto a inclusão de desenhos infantis é justificada por uma muito concreta relação entre mãe e filha: «My daughter Madalena did this to help me...». Noutros trabalhos, J.R. usa a figura da fada importada do mesmo diálogo com a filha, assumindo-a como projecção de sonhos e terrores que não são apenas infantis. Uma última série de trabalhos radicaliza ainda a presença do texto (...a carta ou o diário), jogando com a colagem, a ocultação e a transparência, com a leitura fragmentária e a ilegibilidade.
No trabalho de Sofia Areal não está presente a figura e a escrita, mas não será inútil precisar que a actual exposição parte da colaboração num espectáculo teatral de Jorge Silva Melo, sem sujeição a um texto prévio mas como comentário de um tema, a alegria de viver. Mais concretamente, informa o encenador, «sobre a mão» e a «feitura da alegria» («a mão que faz a alegria» segundo o belo título da nota de catálogo). Dos cinco painéis verticais que então desciam da teia, mostram-se apenas dois, acompanhados por uma série de desenhos de varias dimensões que os quiseram continuar.
Não se tratou, é obvio, de ilustrar a alegria, mas, de algum modo, de tomá-la por programa ou disciplina, referindo-a num exercício de aparentemente despreocupada liberdade da mão, com uma expontânea expressividade que é também acaso calculado e secreta sabedoria, para entregar ao espectador a impossível e inútil tarefa de localizar um sol, uma flor, uma asa, talvez um riso. Poderá ser mesmo na impossibilidade da palavra perante uma explosão vermelha, uma onda azul, uma fresta negra, uma diferença entre brancos, que reside essa alegria.
A pintura de S. A. exercita-se sem rede e sem norma, correndo sempre o risco de desafiar a necessidade de uma razão justificativa, mas «no fundo, a questão é saber qual o significado do significado – há perguntas que não se fazem; há coisas que não se dizem», como se lia, a propósito de um espectáculo de Bob Wilson num texto da anterior «Revista».

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1999

Fatima 99
«Gosto da Minha Casinha 9», 1999

"Três artistas no Porto"
Expresso Cartrtaz de 27 de Novembro de 1999

CARLOS CARREIRO, Árvore (até 7 de Dezembro)
FÁTIMA MENDONÇA, Gal. Fernando Santos (até 31 Dez.)
PEDRO CABRITA REIS, Museu de Serralves (até 23 Jan.)

NENHUM comum ar do tempo percorre as muitas exposições inauguradas no Porto, nem se detectam sinais que sustentem identificações geracionais ou análises conjuntas. Às desigualdades entre programações somam-se as opções individualizadas dos artistas mais as variações de ritmo e risco das respectivas carreiras. Destacar as mostras de Carreiro, Fátima Mendonça e Cabrita Reis decorre de critérios que serão pessoais mas assumem a responsabilidade de justificar as qualidades reconhecidas a cada um, sem pretender atenuar as diferenças de direcção dos seus trabalhos.
E é uma mera coincidência, mas uma curiosa coincidência, que o primeiro seja um nome que se destaca entre os artistas surgidos em anos tão pouco favoráveis a consagrações como os 70; que a segunda chegue numa posição de amplo reconhecimento ao final desta década, contrariando os estereótipos com que se pretenderam identificar os jovens dos anos 90; que o terceiro seja uma figura central entre os artistas dos 80 que hoje lutam por sustentar a notoriedade alcançada, esquecendo-se tantas vezes que as obras se constroem em itinerários em geral longos e atravessados por altos e baixos, convulsões e viragens.

Carlos Carreiro dá às suas pinturas um título geral, «Dos Truques do Adamastor à Vingança dos Perus», que as situa de imediato no seu terreno habitual da celebração do imaginário, onde impera a fantasia, o humor e também algum comentário corrosivo. Com as novas obras, que, entre outras motivações pessoais, terão tido algum ponto de partida concertado com o calendário comemorativo dos Descobrimentos – lá estão, na tela maior que é referida na primeira metade do título geral, as caravelas e bandeiras pátrias, uma torre de Belém de barbatanas a tentar andar em direcções opostas, um Adamastor marionetista (seria imperdoável que este exemplo excepcional de «pintura de historia» no presente não tivesse destino institucional,... mas não podemos ter ilusões sobre os museus que temos) –, assiste-se a mais uma inflexão fortemente afirmativa do trajecto de pintor, prosseguido como um percurso original e solitário, marginal, se se usar o termo com sentido positivo face a valores correntes e dominantes.

A sua figuração luxuriante e minuciosa constroi-se como uma agregação interminável de personagens (históricos ou actuais, humanos ou animais) e de objectos (de consumo, máquinas e plantas, reais ou de fantasia – sem esquecer as metamorfoses entre personagens e objectos), em situações e lugares imbrincados num contexto narrativo absurdo e sem leituras unívocas. Em vários quadros, a acumulação de figuras e histórias organiza-se seguindo uma pista de flipper que pode transformar-se em estrada, filme ou intestino, numa sequência vertiginosa de invenções e citações (de estilos e de imagens, populares e eruditas), distribuída num espaço indefinível e labiríntico, ao mesmo tempo exterior e interior, de paisagem sonhada ou cartografia alucinada. Com barcos-vagens, carros-lulas, químicos e alquimistas, personagens de animação e BD, tigres gulosos, células invasoras, universos subterrâneos, flores e borboletas.

Reciclando com uma nova inventividade toda a obra anterior, a renovação de Carreiro passa agora pelo abandono da coloração fria da sua fase anterior, quase uniformemente azul com incrustações de objectos de cores «pop», na explosão de uma policromia com intensidades mais quentes, percorrida por estranhas constelações de pontos de luz. Talvez não seja impossível comparar a sua pintura à de Clovis Trouille, pintor maldito que os surrealistas anexaram em 1930 e é agora objecto de retrospectiva em Paris. Também inclassificável, Trouille associou a veia libertária a uma pintura de aparência académica, falsamente «naïf», em cenas eróticas de sentido anticlerical e antimilitarista; Carreiro serve-se livremente de todas as convenções antigas e modernas, passa do «kitsch» à ficção científica, e pratica o humor e a poesia com uma soberana ironia.

Fátima Mendonça estabelece com a série de telas «Gosto da Minha Casinha» um momento forte de continuidade e abertura no curso da sua pintura, identificada como a exploração mais ou menos ficcionada de um coerente imaginário pessoal de infância ou adolescência feminina, mas onde agora será talvez possível reconhecer a abordagem de outros tópicos ou tempos menos referenciáveis, sempre associados a um discurso narrativo supostamente autobiográfico que continua a surgir caligrafado sobre a tela.
É a paisagem – «simultaneamente, o mundo exterior e o mapa interior» (Ruth Rosengarten no catálogo) – que predomina na nova série, em obras em geral de grande e muito grande formato. Por duas vezes vista em panorâmicas sem linha de horizonte, focadas sobre campos estriados que marcam uma volumetria imaginária de colinas muito verdes (quatro linhas atravessam o quadro repetindo «errei»), ou de onde emergem plantas rapidamente esboçadas («minha flor») – noutro quadro um idêntico espalhamento distribui sapatos altos de mulher pelo espaço-campo quase liso da tela (mas a intervenção escrita refere couves e «o teu jardim»). Em mais duas telas a casinha do título é vista à distância, centrada entre árvores e montes, em imagens de um grafismo falsamente escolar imerso em manchas de cores doces e «ingénuas». Mas o mundo pode ser também cruel e incendiado (os coelhos embrulhados, a floresta em chamas).
Usando o óleo em barra para desenhar e colorir, ou o óleo muito diluído em manchas de ténues transparências, Fátima Mendonça oferece com ironia, desde o título, as pistas da leitura psicanalítica de que pode precisar-se para «explicar» a sua pintura. Mas os quadros sustentam com notório êxito uma visibilidade menos literária e redutora: eles inventam novas paisagens, contam histórias visuais, deslumbram e inquietam.

Pedro Cabrita Reis é objecto de uma antologia que estabelece a exacta sucessão desde a mostra do CAM, em 94, retomando três obras então expostas (colecção de Serralves ou aí em depósito) e acrescentando informação sobre um itinerário posterior que foi pouco visto em Portugal e contou com participações nas Bienais de Veneza e São Paulo, fora das representações oficiais portuguesas.
Quatro lugares decisivos marcam a montagem: uma construção no pátio de acesso ao Museu, cuja longa parede articulada e encimada por guaritas, recoberta por tela metalizada de alcatrão – Cidades Cegas # 5 / o Eco –, é associável a memórias de campos de concentração (Auschwitz, muro de Berlim, talvez os condomínios privados do presente); já na sala central, Sem Título, uma outra guarita com um mastro de bandeira derrubado e um feixe de lâmpadas de néon; depois, o corredor interior do Museu percorre-se entre construções de alumínio e cartão, elevadas e adossadas às paredes, lembrando habitações precárias ou também postos de vigilância (Cidades Cegas # 2); por fim, Catedral # 3, intervenção na grande galeria final do percurso que rasga as paredes brancas de Siza com o início de quatro outras paredes de tijolo só precariamente aparelhadas.
Concebidas ou readaptadas em função do espaço físico onde se mostram, são também peças arquitectónicas em si mesmo, como quase desde o início sucedeu com a escultura de Cabrita Reis. Porém, enquanto as peças anteriores faziam referência a modelos arquetípicos (poço, fonte, canal, mesa, casa) ou se viam como construções enigmáticas (lugares de concentração de energias, de observação cósmica, etc), as novas arquitecturas podem ver-se como comentários sobre a cidade actual, evocando lugares concentracionários ou de vigilância, ao mesmo tempo que se referem, especialmente através dos materiais empregues e das soluções construtivas (tijolo, cartão usado e tábuas, caixilharia, etc), às arquitecturas improvisadas das marquises e dos bairros de lata. São obras que ocupam com grande força cenográfica os lugares de exposição, respondendo de modo afirmativo (enfático, por vezes) às solicitações das grandes mostras internacionais onde imperam as montagens «in situ», as estratégias instaladoras e a grande escala dos objectos, até como condição de visibilidade, ao mesmo tempo que parecem assumir uma dimensão crítica sobre o estado do mundo, com referências à pobreza, exclusão e repressão.
Entretanto, a antologia dá também largo espaço ao que pode continuar a chamar-se pintura, embora se deva notar que a pintura actual de Cabrita Reis transporta igualmente poderosos vínculos com a arquitectura, desde logo pelo uso pictural de materiais ou equipamentos de construção. Dobles Pinturas Negras #2 e #4 (Madrid), de 98, serão mais uma contribuição para a linhagem do monócromo, em dípticos de placas de vidro, rectângulos ou círculos, onde a aplicação de pintura negra se faz, em cada elemento, sobre ou sob a superfície do suporte – elas decorrem da apropriação de caixilhos de portas encontrados e da montagem de vidros com aplicação de esmalte dos Lisbon Gates mostrados no CCB em 97 («For Heinner Muller»). Cabinet d'amateur #1 (Serralves) é uma disposição de inúmeros dípticos formados por campos de cor lisa, onde é a cenografia que volta a sustentar a eficácia das partes. Sempre com uma energia reconhecidamente intensa, com uma elegância certa, as últimas obras (vejam-se a grande porta de Table Dance e a pintura Flor Negra, em confronto com a menoridade de «Os Últimos», pequenos auto-retratos desenhados) estão às vezes à beira da facilidade retórica e de um uso defensivo das grandes escalas.

Nota: Chegam este fim de semana ao seu termo as exposições de António Júlio Duarte e Augusto Alves da Silva, de fotografia e vídeo, apresentadas pelo Centro Português de Fotografia na Cadeia da Relação; referidas em artigo anterior, são outros dois grandes momento do programa expositivo do Porto, que parece impor-se já como capital cultural. Assine-se, entretanto, a saída do livro Peepshow, de A. J. Duarte, que se impõe como uma das melhores edições do CPF.

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24 Novembro 2001

Prémio Maluda para Fátima Mendonça
Na terceira edição do prémio anual de pintura atribuído a uma jovem artista

Fátima Mendonça venceu a terceira edição do Prémio Maluda, instituído por um legado testamentário desta pintora e destinado a galardoar anualmente um artista com menos de 40 anos por uma exposição individual de pintura realizada em Lisboa na anterior temporada. Depois de Ana Vidigal e Cristina Valadas, o prémio voltou a distinguir uma mulher, apesar dessa não ser uma condição do regulamento. Com uma dotação de cinco mil contos, trata-se de um dos mais importantes prémios artísticos nacionais, de valor igual ao Prémio EDP de pintura, recentemente atribuído a Pedro Calapez, e muito superior ao prémio oficial AICA-MC, concedido também anualmente pelo Ministério da Cultura por escolha de um júri da Associação Internacional de Críticos de Arte (AICA), com características de consagração de carreira. O júri foi constituído por José Augusto França e Fernando de Azevedo e por mais dois críticos da AICA cooptados por estes, Luísa Soares de Oliveira e Cristina Azevedo Tavares, além de José João Brito em representação da Sociedade Nacional de Belas Artes, que presidiu, conforme as disposições estabelecidas pelo legado. Fátima Mendonça foi premiada, por unanimidade, pela exposição que realizou em Junho na Galeria 111, a que deu o título «Eu Tenho Medo: lá, lá, lá, lá, lá...», sendo o respectivo catálogo prefaciado por Carlos França.
Tendo exposto regularmente, desde 1994, na Galeria Arte Periférica, a pintora fizera também uma exposição individual em 1999, no Porto, na Galeria Fernando Santos, que apresentou os seus trabalhos nas feiras de Madrid, Lisboa e Colónia. Nascida em Lisboa em 1964, Fátima Mendonça licenciou-se em Pintura na Escola de Belas Artes desta cidade, em 1990.  De acordo com a acta divulgada, o júri considerou «uma pintura de agilidade discursiva e provocatória servida por uma expressão pessoal impulsiva em que se confrontam duas realidades, uma imaginária e outra de conteúdo crítico.»
A artista apresentara pinturas e desenhos de grande formato onde dava sequência a uma produção de reconhecível teor narrativo, construída com referências a situações relacionais de infância e de afirmação feminina, onde o enfrentamento conflitual com o mundo é vivido entre a sedução e a culpa, o desafio e o pesadelo, enquanto a inscrição de palavras e frase lhes confere a sugestão de um diário emocional, de cunho confessional ou ficcionado.
Uma frequente evocação do espaço doméstico (a casa, a cozinha, que antes se alargara a um original tratamento da paisagem) surgiu nessa última exposição dramatizada por uma veemência gestual inesperada, enquanto uma iconografia recorrente - bolos, coelhos, corações, sexos - assumia uma intensidade expressiva de apocalíptica, em cenários interiores claustrofóbicos ou incendiados. Em alguns trabalhos, a arena de circo ou de tourada (e a figura de uma mulher toureira ou equilibrista, enquanto personagem auto-referencial) voltavam a estar presentes como metáforas de um mundo de espectáculo e lutas cruéis.
Com um percurso individual e de crescente notoriedade, Fátima Mendonça é um dos artistas que mais se destacaram ao longo dos anos 90, embora à distância do que alguma crítica e as instituições dominantes (onde nunca expôs, aliás) procuraram estabelecer como as tendências características da década, das quais quase sempre se pretendeu excluir a prática da pintura. Mas por vezes, como agora sucedeu, reconhece-se que é à margem dos estilos colectivos que se constroem as obras que mais importam, as criações pessoais, independentes e originais.
 

 
"Com papas e bolos..."
Mais um episódio da história que Fátima Mendonça vem contando em pintura
2002 Expresso Cartaz de 12 Outubro 2002
 
Galeria 111, Porto, até 9 de Novembro

Foto «Para te fazer não tem nada que saber III», 2002, pastel de óleo e lápis de cor sobre papel

«O pai, o João, eu com o meu vestido de couves e a mãe arranjados para a fotografia». Retrato de família, portanto, da fotografia à pintura, protagonizado por um eu-menina onde a pintora se projecta, devassando memórias e fantasias de infância ou tecendo-as como uma ficção continuada, com que nos enleia de exposição em exposição, crescendo como pintora. Em vez de cabeças, quatro grandes sacos de bolos sobre o fundo quase branco, apenas esboçado, todos cheios de doces redondos com uma cereja em cima. Retrato paródico ou cruel que prolonga um grande desenho da exposição anterior, onde uma menina-bailarina dançava entre coelhos, com a sua cabeça de bolos, segurando duas bandarilhas-espetos com mais bolos, a enfrentar a vida - «eu tenho muito medo», lia-se. As bandarilhas vinham de uma menina-toureira deixada sozinha na arena, que noutros quadros passou a ser pista de circo, e então a menina-acrobata equilibrava-se sobre o arame com as suas asas feitas de bolos, «do tamanho de pequenos punhos de criança», numa exibição mais que desajeitada («andar e voar e fazer có, có, cócó», escreveu ela numa das obras desse ciclo, não fossemos não querer reconhecer o que víamos). Os dejectos, envoltos em invólucros ovais, em ovos, aparecem agora a preencher o espaço imenso (mais de dois por três metros) de uma tela que já se vira na Arco, em versão entretanto retrabalhada, toda ela rodeada por um mimoso folho de tecido e lã, onde, entretanto, à referência à «casa cagalhona» se somou o subtítulo «Incubadora».
A forma redonda da arena das touradas, da pista do circo, da gaiola que prendia a menina-pássaro, da rede circular onde, na exposição de há um ano, se acumulavam corações bem vermelhos («eu tenho de chorar mas esqueço-me porquê»), da forma (fôrma) de bolos e da grelha do fogão, é agora incubadora e dela nascem «meninos com creme de chocolate e meninas com doce de morango» («bolos para te agradar»). São as novas personagens das mais recentes obras de Fátima Mendonça, «bolos de pão, como filhos», acompanhados pela respectiva receita e pelo registo laborioso das centenas de unidades diariamente produzidas na fábrica doméstica, a cozinha de tantos outros quadros: «Para te fazer não tem nada que saber», afirma o título da exposição.

Os bolos-filhos surgem bem reais como pães comestíveis numa instalação-montra e também em vários grandes desenhos a pastel de óleo, saindo de uma grande forma de bolos que se prolonga em vestido de menina (a mesma rede circular, prisão, casulo e ventre) visto pendurado num cabide ou, noutro caso, desajeitadamente envergado («o vestido do inferno») - e aí, decifrando as garatujas e percorrendo os escritos, vêem-se sexos femininos, «as minhas vergonhas» de outros quadros, urinando para o ar («como um rapaz»). Não estamos na cozinha, de facto, mas na vida, a enfrentar o mundo com terrores e desejos, escavando a memória entre o exorcismo e a ironia.
«Deixar que este universo mental tenha uma vida visual, que encarne uma turbulência que não se limite a desenvolver um relato literário ou memorial é o desafio permanente desta obra em cada momento que ela se revela», escreve Celso Martins no seu prefácio para o catálogo. Desafio vencido. A narrativa não se substitui ao que está a acontecer sobre a tela ou o papel, fixada antes de surgirem (como sucede na ilustração e na pintura literária) os desenhos pintados com a urgência aqui visível das suas grandes pinceladas negras e das manchas invasoras, de vermelho-sangue: o que importa passa-se à nossa frente, no espaço branco do suporte, como um desafio oferecido à nossa própria capacidade de imaginar. É o impacto visual de cada obra, tantas vezes com a violência do grito, que nos faz precisar de um fio narrativo que «explique» o que vemos, obrigando-nos, para segurança nossa, a decifrar as anotações escritas ou rasuradas, a reconhecer personagens e a inscrevê-las na «estória» já longa da obra de Fátima Mendonça, que não importa se é ou não a sua história pessoal, íntima. Como acontece com Louise Bourgeois (a mãe-aranha, a oficina doméstica de restauro de tapeçarias, o quarto-cela) e com Paula Rego, por exemplo, mas os exemplos seriam quase todos femininos, o teatro do mundo está muito próximo da vida, a arte conduz-nos por abismos e sonhos reais, tão fundos que raramente os podemos ver.

sábado, 16 de junho de 2001

Veneza 2001: João Penalva, "R."

 "Um palácio em Veneza"

Expresso (Cartaz Actual de 16/6/2001, pp. 4 e 5, e antes/abaixo  19-08-2000)

Portugal em competição em Veneza com uma cenográfica instalação de João Penalva

Coexistem duas bienais em Veneza. Uma é a das representações nacionais, apresentadas quer em pavilhões próprios nos Jardins do Castelo, construídos desde 1907 numa bem curiosa sucessão de estilos arquitectónicos (a bienal seguiu o modelo das exposições universais), quer dispersas pela cidade em espaços variados, no caso dos países sem pavilhão. Outra bienal, a grande exposição do director de cada edição, que visa ser uma proposta cosmopolita sobre o estado da arte e o seu futuro. Esse diálogo, em grande medida um diálogo de surdos, entre valores nacionais e um ponto de vista internacional, no qual intervêm tanto os países do centro como as periferias mais distantes (excepto a África), é bem elucidativa das resistências à globalização da arte do mundo, que não é o mesmo que «o mundo da arte».

Candidato à construção de casa própria desde 1995, para o que foi convidado Álvaro Siza (mas nesse ano suspenderam-se todas as solicitações nacionais), Portugal é um dos exilados dos «Giardini», compensando a localização periférica com a dignidade de um palácio alugado e vontade de identificar-se com os valores dominantes do «art world». Depois de Julião Sarmento e Jorge Molder, em 97 e 99, é João Penalva quem ocupa o Palazzo Vendramin dei Carmini, por escolha do comissário nacional designado para este ano, Pedro Lapa, director do Museu do Chiado.





A palavra ocupar tem aqui pleno sentido porque a obra de Penalva se instala cenograficamente ao longo de cinco salas comunicantes entre si, configurando o espaço de um espectáculo sem actores, mas com projecções de vídeo, a percorrer demoradamente para que seja possível detectar e relacionar as pontas das numerosas histórias esboçadas pelo artista. Trata-se de uma instalação, onde a decoração do palácio é em parte utilizada no seu luxo decadente, em parte alterada e ocultada, para acolher três grandes ecrãs, vitrinas com objectos ou documentos, fotografias de grande formato, mobiliário e adereços diversos. Tudo peças de um vasto «puzzle» montado com ambição de obra de arte total (um conceito wagneriano), que por isso mesmo nunca se resolverá numa narrativa ou chave únicas.

O título, "R.", preserva o segredo sobre os «enredos» presentes. Saberão alguns, ou lerão na informação disponibilizada, que a inicial designava Richard Wagner nos diários de Cosima, e a obra do compositor alemão está presente através de "Os Mestres Cantores de Nuremberga" (Die Meistersinger von Nürnberg). As duas salas sem ecrãs são-lhe dedicadas - sem música, mas invadidas pelo som (e diálogos) dos vídeos -, com material gráfico (imagem e texto: retratos de cantores, fotografias de cena, fragmentos do libretto, etc) e adereços que se dispõem nas vitrinas e nas paredes, ocupando espaços da decoração mural. Na mais pequena, apenas um idêntico expositor com bolas de papel: «Cinco críticas muito más a produções de "Os Mestres Cantores"». A citação de Wagner também referirá a relação pessoal de Penalva com os (alguns) críticos. No modelo e uso das vitrinas pode reconhecer-se a referência a Joseph Beuys.

Mais do que a homenagem a Wagner, importa aqui o argumento daquela ópera e também o trânsito entre identidade artística e intimidade pessoal, fazendo um desvio da obra do compositor para a relação com a sua mulher, da arte à vida. "Os Mestres Cantores" é a história de um prova de admissão à respectiva corporação prestada por um jovem aristocrata. O tema envolve um concurso, com regras definidas e júri, logo, as ideias de exame, prova, êxito ou derrota, aprendizagem, perfeição, cumprimento de normas e originalidade. A esses tópicos Penalva associou ilustrações do mundo competitivo do desporto, dos concursos de dança ou patinagem no gelo e mesmo do Festival da Eurovisão, evocando o desaire da «Desfolhada» cantada por Simone em 1969 noutra vitrina de documentos e em fotografias de época. Implicitamente, é a própria participação de Penalva na Bienal que está presente como problema.

O desporto comparece em grandes fotografias a preto e branco dos pódios onde se consagram os vencedores e, em especial, num vídeo de poderoso impacto (projectado em alternância com um texto da ópera) no qual se vê um atleta na prova de argolas, filmado em planos fragmentados e muito aproximados, com a concisão e o ritmo de um «spot» publicitário. Toda a instalação dialoga com esse vídeo, que opõe o vermelho-vivo do fato aos tons barrocos do cenário, a urgência mecânica à lentidão dos outros filmes sem acção, o impacto directo dessas imagens breves à possível densidade narrativa de tudo o resto, um corpo vivo a um mundo de memórias.

Os dois outros ecrãs são preenchidos por imagens quase fixas (um lago da Suiça próximo de Lucerna e um pedaço de paisagem filmada na Madeira, com uma fogueira) acompanhadas por uma presença marcante de textos literários, cartas passionais, o diário de Cosima, etc. - lidos em esperanto com legendas em inglês. Uma dessas projecções é feita sobre um pequeno palco precedido por um piano, diante de filas de bancos desirmanados. O contraste da decoração luxuosa das salas e de algum mobiliário com a precaridade pobre de outros elementos é uma das notas que se reconhecerão lentamente, a somar a outros sentidos alegóricos do trabalho de Penalva.

A representação é acompanhada por um catálogo trilingue sobre a instalação, prefaciado por Pedro Lapa, e por uma volumosa monografia sobre a obra de Penalva, em edição Electa, também encadernada, com textos em inglês do comissário e de Mark Gisbourne e Guy Brett, mais um diálogo de Yuko Hasegawa com o artista. Esses são elementos de uma acção promocional de grande escala que tem procurado, desde 1997 (após a mais pobre participação de 95, em que compareceram Croft, Cabrita Reis e Chafes, o que foi uma boa ideia de programação), conferir visibilidade à presença nacional. Conduzida pelo Instituto de Arte Contemporânea, em moldes idênticos aos usados nos festivais de cinema, a operação inclui «marketing» profissionalizado, jantar e festa oferecidos no pavilhão (este ano substituindo o fausto do Pap'Açorda por um mais económico menu italiano), e a presença de alguns convidados, incluindo imprensa, como se diz, especializada. (1)

     Perfil      
João Penalva nasceu em Lisboa em 1949 e reside e trabalha em Londres desde 1976, onde estudou na Chelsea School of Art até 1981. No seu itinerário artístico há que contar os anos anteriores dedicados à dança, tendo chegado a fazer parte da companhia de Pina Bausch, e mais tarde trabalhou como cenógrafo. Em 1990 foi como pintor que expôs no Centro de Arte Moderna, em Lisboa; passou, na década seguinte, a apresentar instalações e montagens de materiais diversos com sentido narrativo. Para além de expor regularmente em Londres, representou Portugal na Bienal de São Paulo de 1996 e o Centro Cultural de Belém organizou em 1999 uma ampla mostra do seu trabalho. Entre outras participações em mostras internacionais, destaca-se a presença na 2ª Bienal de Berlim.

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E a história desta bienal começara assim com a nomeação do comissário:

Pedro Lapa comissário da Bienal de Veneza
Expresso Cartaz (actual) 19-08-2000

O MINISTRO da Cultura, José Sasportes (2), nomeou Pedro Lapa, director do Museu do Chiado, para comissariar a representação portuguesa na próxima Bienal de Veneza, que decorrerá em 2001. Depois da retoma das representações nacionais, em 1995, sucederam-se nessas funções José Monterroso Teixeira, que seleccionou José Pedro Croft, Pedro Cabrita Reis e Rui Chafes; Alexandre Melo, que apresentou Julião Sarmento em 1997, e Delfim Sardo, com a escolha de Jorge Molder, em 1999. Portugal continua, no entanto, a não possuir um pavilhão próprio no recinto da Bienal, sendo forçado a alugar um espaço exterior de menor visibilidade.

Pedro Lapa comissariou - no Museu do Chiado, cujo quadro integrou em 1990 (ainda Museu Nacional de Arte Contemporânea) - a retrospectiva de Jorge Vieira, foi co-responsável pela retrospectiva de Mário Eloy e dirigiu mais recentemente a exposição e o catálogo «raisonné» dedicados a Joaquim Rodrigo. Entre outros projectos, conta-se a apresentação, desde 1995, de dois ciclos de mostras de jovens artistas no mesmo museu (o ciclo «Interferências» prossegue com uma instalação de Miguel Palma), tendo ainda integrado temporariamente o quadro do Centro de Exposições do Centro Cultural de Belém, onde programou, a mostra inglesa «Life/Live» e exposições de Picabia e Júlia Ventura. Actualmente, Pedro Lapa prepara uma antologia de Man Ray para o museu que dirige, uma mostra de Stan Douglas e ainda uma colectiva de jovens artistas portugueses para a Culturgest e uma outra, internacional, a ser apresentada na Fundição de Oeiras com o título «More Words About Building and Food». Num texto recente sobre os anos 90, «O Grupo e as Suas Migrações», publicado na revista «Arte Ibérica» de Fevereiro deste ano, Pedro Lapa assumira uma posição muito negativa face ao curso da arte nos anos 80, condenando o «efeito de moda que os 'regressos à pintura' e todos os neo-expressionismos representavam», bem como face aos «investimentos promocionais em artistas contemporâneos já consagrados nessa década», a propósito de uma falta de promoção institucional dos artistas revelados nos anos 90 que se teria verificado nos anos mais recentes.

Quanto aos artistas surgidos na última década, valorizava o «reactivar de uma perspectiva crítica, através de deslocações forjadas pela apropriação dos tradicionais meios de comunicação de massas e respectivas recontextualizações ideológicas». No mesmo artigo destacava os percursos de João Penalva, João Paulo Feliciano, João Louro e João Tabarra, Fernando José Pereira, Miguel Palma, Ângela Ferreira, Augusto Alves da Silva, Cristina Mateus ou Francisco Tropa, tendo alguns deles apresentado instalações no Museu do Chiado.

(1) Tinha decidido não ir a Veneza (apesar de Szeemann) mas Sasportes insistiu/investiu na cobertura da representação nacional, e fui a convite do MC, o que aconteceu só nesta edição.

(2) Sasportes inaugurou um novo modelo de escolha da representação, atribuindo-a a um museu ou instituição artística. A seguir coube a Serralves e depois o modelo foi abandonado.

Veneza 2001: Harald Szeemann

 "Volta ao mundo"

EXPRESSO/Cartaz, Actual de 16/6/2001, pp. 6 e 7 (e  9/6/2001)

O «Palco da Humanidade» Plateau of Humankind, segundo Harald Szeemann

Vinte e oito pavilhões nacionais nos Jardins, 21 pela cidade, incluindo os do colectivo latino-americano, de Singapura, Taipé e repúblicas ex-soviéticas. Mais as duplas representações que se multiplicam, da Espanha, Holanda, Suiça, etc., e várias mostras «a latere». Ao gigantesco programa, cada vez mais um mercado mundial de exposições, soma-se o projecto do comissário-geral, a ocupar o vasto Pavilhão da Itália (que fica sem presença própria) e um quilómetro de edifícios fabris, o Arsenal, herança da antiga potência marítima.



A 49ª edição é frágil na mostra dos países, pelo menos aos olhos estrangeiros a cada um deles. As atenções voltam-se para o «centro» e as pulsões multiculturais ficam sempre por justificar-se, porque o localismo dos grandes é muito mais poderoso. É o caso norte-americano, onde Robert Gober aparece debilitado num exercício de espaços e objectos perdidos. Ou da França de Pierre Huyghe, com jogo de luzes no tecto, interactivo, e vídeo com heroína Manga.

Já o britânico Mark Walling (n. 1959) dispara uma rajada de ideias jocosas com provocações à pátria e a Deus, desde a bandeira nacional de cores trocadas (irlandesas) e a falsa fachada do pavilhão até ao demasiado humano "Ecce Homo" moldado em resina com coroa de espinhos de arame farpado dourado ou à música de Handel a acompanhar o trânsito em «slow motion» por uma porta de aeroporto ("O Limiar do Reino"). Em "Anjo", o próprio artista com bengala de cego vai descendo uma escada rolante que sobe, entoando uma melopeia: fica ilustrada com humor bastante a desrazão do mundo e da arte.

Mais sério é o pavilhão alemão (estilo imperial de 1938) onde uma estreita porta, ao cabo de uma hora de espera, dá acesso a um velho prédio que se percorre como um labirinto de espaços alterados, secretos e absurdos, que desembocam em escadas e corredores cada vez mais estreitos, em quartos despojados ou com estranho mobiliário, em portas fechadas. Vem à memória o esconderijo de Anne Frank, mas a situação ultrapassa todas as referências, partindo de um mundo pessoal e proporcionando uma insólita experiência. Há vários anos que Gregor Schneider (n. 1969) tem recriado esse espaço, já comparado à estrutura do inconsciente, agora premiado com um justo Leão de Ouro para o melhor pavilhão.

Das periferias fica na memória o chão lavrado de pintura do polaco Leon Tarasewicz, ambiente de cor a compensar a penúria da modalidade; o humor do velho egípcio Ramzi Mostafa, pioneiro modernista em trânsito entre culturas; a dureza auto-sacrificial dos vídeos de Ene-Liis Semper (Estónia). O brasileiro Ernesto Neto é mais eficaz no Arsenal, com os odores exóticos dos seus volumes-sacos de pano. Sem a ambição de se ver tudo.

Entretanto, a mostra de Harald Szeemann é em si mesmo uma dupla volta ao mundo: inventário dos temas que fazem o bom e mau humor da Humanidade, mapa dos jogos e angústias que moldam o quotidiano vivido e também a gratuitidade ou gravidade da arte. O projecto é em absoluto generalista, reúne artistas de todas as idades e disciplinas, e o autor atribuiu-lhe a ambição e o título de «Palco da Humanidade». Associou-o à polémica exposição fotográfica «The Family of Man», de 1959, num apelo «ao que há de eterno no homem, na base dos enraizamentos locais», e ao programa humanista de «Identidade/Alteridade», de Jean Clair, Veneza'95, mas recusando separar figuração e abstracção em arte. Chamou «Plataforma do Pensamento» ao coração da mostra, onde colocou o "Pensador"  e "O Homem que Marcha" de Rodin ao lado de esculturas populares ou ingénuas e divindades hindus.

Mal recebida por alguns pelo seu ecletismo e, diz-se, por não trazer nada de novo, a opção do velho comissário, que em 1969 e 72 («When Attitudes Become Form» e Documenta de Kassel) ajudou a consagrar as tendências mais radicais, parece voltar-se da arte para o mundo: «Não estamos face a novas revoluções da arte, como no fim dos anos 60, mas num clima de crescente interesse pela existência humana».

Apesar do predomínio do vídeo («a jovem geração exprime-se com a imagem em movimento»), Szeemann fez saber do seu interesse em mostrar pintura e lamentou que só pudesse dispor do pavilhão italiano para tal, por razões de climatização. Aí juntou alguns nomes consagrados (Cy Twombly, Gerhard Richter, Helmut Federle) e jovens como o filipino Manuel Ocampo, o alemão Neo Rauch e o costa-riquenho Federico Herrero. E ele próprio se distanciou do excesso de projecções, que constitui uma queixa recorrente dos visitantes: «Espero que em breve haja menos vídeo, porque começo a estar um pouco cansado...»

Claramente dirigida a um largo público, a mostra associa obras de impacto certo, como os manequins de Ron Mueck, que levam a presença do corpo ao extremo da incerteza entre ilusão e verdade, central a toda a arte (construtor de bonecos para séries de TV, Mueck fez um Pinóquio para servir de modelo a Paula Rego, de quem é genro, e nunca mais parou), a peças de escândalo de recentes mostras londrinas (o papa caído de Maurizio Cattelan, os «clips» eróticos de Chris Cunningham), mas também a outras produções mais discretas ou poéticas, num percurso estruturado por tópicos antropológicos, sem ser escolar ou demagógico.

Um núcleo aproxima figurações do corpo (realismo de Mueck e pequenos monstros criados por Xiao Yu; vídeos contemplativos ou manipulados), adiante há referências ao mundo colonial (imagens recuperadas e algum exotismo multicultural), depois ao desporto (dois treinadores reagem a um jogo invisível; um jogo de futebol disputado de fato completo; duas equipas de futebol e basket no mesmo recinto, com referência a segregações raciais). Diante de uma série fotográfica sobre Chernobil estão os surpreendentes desastres de automóvel, desde os anos 50, de um polícia suíço (Arnold Odermatt); diante dos corpos excessivos do cinema de Cunningham está a observação microscópica e pictural do vídeo de Bill Viola. A tradição da fotografia documental é recuperada num trabalho de Cristina Garcia Rodero sobre cultos vudu e o fotógrafo Nick Wapplington distribui posters de falsos portais da Internet pelos corredores.

Não se trata de sacrificar as obras às intenções da montagem, antes de inseri-las em conjuntos significantes que as justificam ou valorizam, mesmo quando é escasso o impacto individual. Por outro lado, o próprio pluralismo temático e a diversidade das linguagens e das formas concede ao espectador um lugar soberano onde o envolvimento emocional ou intelectual com algumas obras pode coexistir com o desinteresse ou rejeição de outras, sem quebra da relação de empatia habilmente tecida por Szeemann, mesmo que pareça ceder a compromissos com vedetas (as fotos de calendário de Vanessa Beecroft) ou acolha projectos infelizes <?>, como a instalação final de Kabakov, "Nem Todos Serão Levados para o Futuro", um apeadeiro com quadros caídos e o comboio que parte... Próxima, a gigantesca espiral de oblíquas paredes de aço, de Richard Serra, é uma forma que parece nascer do espaço fabril do Arsenal, mas provocar tonturas (a alguns) é um destino pouco credível para uma escultura penetrável.

O lixo faz parte da actualidade artística que Szeemann condensa na sua mostra (o saco de plástico passado a bronze de Gavin Turk, "Saco de lixo"). Um gesto de humor sintetiza no quadrado de um púbis recortado um dos ícones que marcou o século (Malevitch) e a carne sexuada que a abstracção construtiva combateu: a obra de Tanja Ostojic, jugoslava, n. 1972, terá sido vista por Szeemann, está reproduzida no catálogo mas não é «exposta». A nostalgia e a caricatura da pintura ganham uma presença tão simbólica quanto real com os dois operários que vão cobrindo sucessivamente de branco e de preto, durante os cinco meses da Bienal, as paredes de uma galeria (ideia do búlgaro Nedko Solakov, n. 1957).

Do impossível inventário ressalvem-se as presenças portuguesas: o vídeo de João Onofre, Casting, e a instalação de Egon Ekoyan e Julião Sarmento, na qual imagens fragmentadas de corpos se projectam num estreito corredor onde o espectador quase esbarra no ecrã. Eficaz provação oferecida ao voyeurismo de cada um e ruptura com a rotina da passiva contemplação de tanto vídeo.

(Fotos: «Uma Vida (Preto e Branco)», de Nedko Solakov, com operários em actividade durante cinco meses / «Sem Título (Rapaz)», de Ron Mueck / «Saco de Lixo», em bronze pintado, de Gavin Turk / «Quadrado Negro sobre Branco (no meu Monte de Venus)», de Tanja Ostojic / Espiral de aço de Richard Serra/ «Anjo», vídeo de Mark Wallinger)

history-biennale-arte

The 49th International Art Exhibition took place from June 10 to November 4, 2001, under the title Plateau of Humankind. It was directed, as the 1999 edition, by the Swiss critic Harald Szeemann and attracted over 243,400 visitors. Szeemann said that “No set theme was applied in choosing the artists; indeed, it is their work which decides the dimension of the event. The Venice Biennale hopes to serve as a raised platform offering a view over humankind”. A key work by Joseph Beuys, The End of the Twentieth Century, was exhibited. According to Szeemann, “It was Beuys above all who was the indefatigable spokesman for the concept of liberty”. Alongside Beuys, various other artists of the 20th century were exhibited: “Cy Twombly, whose generous gestures restore myth to the modern world; Richard Serra, the creator of a new concept of the monumental; Niele Toroni, the champion of painting as trace. Then come a number of those contemporary artists who have focused on the human figure – for example, Ron Mueck”.

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Expresso Cartaz Actual 9/6/2001
Prémios da Bienal de Veneza

Cy Twombly e Richard Serra distinguidos com dois Leões de Ouro

A 49ª edição da Bienal de Veneza, que hoje se inaugura, atribuiu dois Leões de Ouro aos artistas norte-americanos Cy Twombly e Richard Serra, designados como mestres da arte contemporânea. As distinções foram concedidas por proposta de Harald Szeemann, director da Bienal e comissário da exposição paralela «Palco da Humanidade», em que ambos participam. Outros prémios são hoje anunciados, para o melhor pavilhão nacional, para mais outros três artistas representados na Bienal e ainda para quatro jovens participantes. 

Cy Twombly nasceu em Lexington, Virginia, em 1928, pertencendo à geração de Robert Rauschenberg e Jasper Johns, marcada pelo expressionismo abstracto. A sua pintura, inicialmente informal, caracteriza-se por uma despojada e elegante escrita de sinais alusivos, próxima dos «graffiti», em que comparecem gestos gráficos, letras e algarismos ou mais raras figuras, numa aproximação gestual a símbolos culturais e temas da mitologia helénica. Depois de ter viajado por África, Espanha e Itália, deixando-se marcar pelo fascínio da antiguidade clássica, instalou-se em Roma,em 1957, onde ainda reside. A sua obra, luminosa e discreta, influenciou os pintores alemães e italianos revelados nos anos 70.

Richard Serra, escultor, nasceu em São Francisco em 1939, sendo famoso pelas suas paredes ondulantes em aço industrial, com grandes dimensões, de herança minimalista, onde se manifestam questões de escala e equilíbrio. A sua colocação em espaços públicos foi várias vezes objecto de contestação.

A Bienal de Veneza decorre até 4 de Novembro, com a presença de João Penalva como representante oficial de Portugal, enquanto João Onofre, com um vídeo, e Julião Sarmento, com um filme em colaboração com Atom Egoyan, participam na exposição de Harald Szeemann.

sábado, 21 de abril de 2001

Ferenando Lanhas, 2001, Serralves

Sonhei que sabia tudo 

Expresso Cartaz de 21/4/2001, pp. 28-29

As perguntas, os deslumbramentos, os sonhos e os quadros de Fernando Lanhas

Na sala central do Museu de Serralves, as últimas pinturas de Lanhas, já de 1998-2000, coexistem com vitrinas de trilobites e meteoritos. Numa parede, lê-se: «Sonhei esta noite com trilobites vivas. (…) Em certo momento vi uma trilobite grande, de cor dourada, que estava mutilada nas pleuras. Peguei na trilobite sem qualquer receio, para a ajudar. Era uma trilobite muito sossegada e meiga. As crianças até lhe faziam festas.», S322A (sonho 322), 16-17.XII.92. Dois mapas assinalam os principais meteoros e meteoritos caídos em Portugal e a trajectória de um meteoro observado em 1984.


Uma representação da «Noção da grandeza do tempo» (98-2001) e um «Mapa das ocorrências verificadas no Universo desde a explosão inicial» (63-73) expõem-se na mesma galeria. Adiante encontramos o «Estudo do quadro geral do Universo», a «Carta das distâncias entre o sol e algumas estrelas», um herbário com variações morfológicas de folhas de hera ou um aspecto da Praia da Luz tal como seria observada pelo «homo sapiens», 18 000 anos a.C. Para além dos objectos naturais que recolheu ou coleccionou, tudo são obras de F. L.: sonhos, mapas, cronologias e esquemas gráficos ou tridimensionais sobre temas de astronomia, geologia e arqueologia, por vezes realizados para museus ou enciclopédias. A evolução do cosmos, da Terra, das espécies e do Homem, as representações do tempo e do espaço, as distâncias e grandezas cósmicas dominam os interesses de um homem que não se identifica como artista e se diz «talvez meio cientista e meio filósofo.»

A sua pintura dita abstracta, reduzida a formas mínimas e a poucas cores constantes, transporta um mesmo deslumbramento e uma idêntica meditação sobre as escalas do tempo e do espaço que F. L. investiga no campo científico. Alguns quadros nascem de composições gráficas; outros, mais densos e inexplicáveis, mais metafísicos que geométricos, perseguem o movimento das forças e formas naturais, as dimensões do cosmos. Por vezes deixam adivinhar representações simbólicas: sol, árvore, pássaro.

Os sonhos são outra pista para seguir a imaginação de Lanhas: «Sonhei que sabia tudo, que alcançara o conhecimento das coisas, da razão de ser», S42, de 1973. «Sonhei toda a noite com a representação gráfica da evolução do nosso Universo. (…)», S149, 1984. «Sonhei com manchas de cor azul, castanha e cinza», S13, 1963. «Sonhei com um estudo para uma pintura. A composição teria por base a letra N, em que se observa uma inclinação da letra para o lado direito (…)», S45, 1973.

Uma obra assim é idiossincrática e única. Esta pintura, quase invariável ao longo de cinco décadas, não se cataloga como um estilo na sucessão das classificações da história da arte, mas também não se explica pelas ocorrências de uma biografia muito rica de interesses e actividades. Arquitecto, Lanhas pintou cerca de um quadro por ano, irregularmente, foi inventor (o Fotalto, o Cosmoscópio), fez descobertas arqueológicas, projectou museus e exposições, dirigiu o Museu Etnográfico e Histórico do Porto, de 1973 até 93, interessado em arte popular e brinquedos. E a cronologia do catálogo inclui outros dados como, aos cinco anos, a observação do comportamento das formigas com uma lupa ou, em 83, o projecto da recepção ao Papa na Diocese do Porto.

Tal como sucedeu na retrospectiva de 1988, a abordagem de Serralves é (des)centrada na personagem Lanhas e segue-lhe os diversos rostos. Trazem-se à superfície mais alguns dos primeiros quadros, reúne-se toda a pintura recente (a década de 90 é a mais produtiva depois dos anos 60) e o catálogo traça um inédito itinerário biográfico e o inventário de exposições e bibliografia (com erros e lacunas, mas é um começo).

Esperar-se-ia um estudo psicanalítico dos sonhos, o registo das contribuições científicas, o perfil do museólogo e do etnólogo. Em vez disso, o catálogo concentra-se em exclusivo no pintor, reunindo ao estudo inicial de João Fernandes partes de anteriores ensaios de Fernando Guedes, João Pinharanda, Matos Chaves e Bernardo Pinto de Almeida que em geral ainda estão disponíveis. É um «coffee table book», coedição ASA, que prescinde da análise metódica, identificando a aparição pública dos quadros e a recepção crítica.

Fica por estudar a intervenção de Lanhas nas Exposições Independentes, que alteraram o panorama artístico no fim da 2ª Guerra, promovendo o debate sobre a abstracção a par das primeiras afirmações neo-realistas. Em 1945, Lanhas colabora com J. Pomar e Victor Palla na organização da página «Arte» do diário «A Tarde», do Porto (é o próprio que o refere nos catálogos de 49-50), onde os futuros surrealistas Cesariny, Vespeira e Oom também defendiam a «arte útil». Lanhas publica aí os estudos para Tambores (Velha com Lenço) e Velha Branca, que integram o conjunto de pinturas figurativas agora exposto.

São obras posteriores às primeiras abstracções e dão testemunho das ambições do pintor e do debate sobre as implicações sociais da arte, o qual está representado em O Artista Abstracto (mostrado apenas em fotografia). Segue-se Catarina (A Fealdade Magnífica), de 46; em 47 Lanhas visita Paris e retorna ao abstraccionismo.

A situação é tanto mais curiosa quanto Lanhas, em sucessivas declarações, atribuiu a Júlio Pomar o estímulo para expor as abstracções de 44, para além de a anterior retrospectiva ter dado a conhecer um texto datado de 48(?) que surge como uma das suas primeiras defesas («Meridionais, nunca fomos propensos à familiaridade com o mínimo. A pintura de Lanhas faz exclusão de tudo o que lhe aparece como superficial, chega para alguns a tocar as raias da secura. Não temos o hábito da concisão. (…) Lanhas obstina-se a usar o mínimo de meios, o mínimo dos mínimos. (…) escolhe três cinzentos, às vezes menos (?), e fica-se com eles para um ror de experiências»). Depois, Lanhas prosseguirá no desenho um discurso figurativo, com os retratos e alguns temas simbólicos (Menina e mar, D23 - 1999).

Um outro tópico a aprofundar diz respeito ao facto de a obra de Lanhas ter circulado, dos anos 40 aos 60, no âmbito das iniciativas do SNI, embora surgisse também em circuitos independentes, como a Galeria de Março, de J.-A. França. Esse itinerário (representações enviadas ao estrangeiro Bienal de São Paulo, Salão dos Novíssimos de 59, etc) serve de desmentido à alegação que abria o recente catálogo sobre o Porto nos anos 60/70 editado por Serralves, sobre os artistas que «ousaram romper com o academismo e o atraso da cultura oficial do regime político de então». A abstracção de Lanhas fazia parte dessa cultura oficial. Os velhos equívocos convenientes da cultura oposicionista já não servem para nada.