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quinta-feira, 11 de janeiro de 2018

ADELINO LYON DE CASTRO


(nota de 05/04/2012, revista:  Adelino Lyon de Castro, um fotógrafo esquecido?)



A morte por doença de Adelino Lyon de Castro no verão de 1953 (nascera em 1910) é seguramente uma das razões do esquecimento deste fotógrafo. As razões políticas serão também significativas, e adiante se referem. Outra razão determinante tem a ver com o facto de ser recente (a partir dos inícios dos anos 80) a alargada atenção à fotografia e a construção mais ou menos rigorosa da sua memória histórica, como algo de exterior aos seus diversos círculos fechados de interessados ou praticantes (fotojornalistas e outros profissionais; amadores e demais salonistas; artistas plásticos que usam a fotografia).

De facto, A.L.C continuou a ser invisível até 2008/09 (*) e foi ignorado na história de António Sena (ed. 1998), tal como sucedeu com Maria Lamas e AS MULHERES DO MEU PAÍS. Quanto a A. Sena, certamente porque as suas obras - e outras mais - contrariavam a tese que aí se quis apresentar sobre os anos 1946-59: a proposta de uma chamada "revolta silenciosa da intimidade", assente em parte na promoção de várias obras deixadas inéditas e em parte na apreciação menos correcta das obras que na época se divulgaram. Refiro-me neste segundo ponto à ocultação da ligação de Fernando Lemos ao movimento da Fotografia Subjectiva de Otto Steinert, para além da sua tardia informação surrealista, e à desvalorização da ligação de Victor Palla e Costa Martins (LISBOA, 'Cidade Triste e Alegre', 1958) a uma ambição de realismo humanista e documental bem como ao efeito "Family of Man" (MoMA, 1955 e seguintes)

O esquecimento de A.L.C. prende-se com uma situação portuguesa mais ampla de incompreensão da fotografia de intenção social (concerned photography ou social documentary photography) enquanto arte - enquanto arte maior ou menor (ou mesmo arte aplicada) numa época em que as várias técnicas ou disciplinas muito se valorizavam (como a gravura, a cerâmica, a tapeçaria, etc), e em especial enquanto objecto de exposição, o que é o mesmo - por parte dos artistas neo-realistas seus contemporâneos, o que, aliás, não tem nada de original. O contrário é que seria excepcional, porque só pelos finais dos anos 70 e inícios dos 80 essa produção fotográfica - destinada em princípio à publicação em livro ou na imprensa - dá entrada nas galerias ao lado da "arte fotográfica" ou "fotografia artística", ou "fotografia criativa" como também se dizia. Essa entrada parece fazer-se primeiro como recuperação histórica, como valorização de clássicos e alargamento da oferta mercantil e coleccionista; depois, num segundo passo, sob a forma de uma produção de raíz ou matriz documental que já tem como destino a parede da galeria e não (apenas) a revista e o livro - o regresso dos grandes formatos facilitou o interesse pelo "quadro fotográfico" e várias formas de neo-picturialismo não declarado.

Adelino expôs imagens do povo e do trabalho popular, fotografias "humanistas", com um sentido de denúncia e de elegia, próximas da arte e do cinema neo-realista, na 5ª Exp. Geral de Artes Plásticas, em 1950, com Keil do Amaral e certamente por iniciativa ou cumplicidade deste, mas os teóricos do neo-realismo (no caso, Júlio Pomar e Mário Dionísio) não as viram ou não valorizaram - não as referem nos seus textos sobre a 5ª EGAP. A fotografia social é então entendida apenas como um auxiliar do artista (da observação e da memória), para além do seu eventual valor informativo e testemunhal. Ao rejeitar o naturalismo, a cópia ou imitação da natureza, a favor dos estilos modernos que cultivam a "deformação" (a estilização), os neo-realistas rejeitam ou ignoram o realismo da fotografia directa no campo das artes plásticas (mas ela pode ser reconhecida, por outros, no espaço da "arte fotográfica", no espaço do Salão).

As razões politicas terão desempenhado também um papel nesse esquecimento, mas um papel relativo, que se terá jogado menos quanto à projecção póstuma do que na ausência de diálogo e ao silenciamento no início dos anos 50. Adelino L.C. foi co-fundador das Publicações Europa-América, com o seu irmão Francisco, no início do pós-guerra, e foi depois o editor da "Ler, Jornal de Letras, Arte e Ciências", mensário assegurado pela Europa-América em 1952-53. Esta publicação foi forçada ao encerramento pelo governo em 1953, um mês depois da morte do editor (último nº, 19, em Outubro), por não ter sido aceite a respectiva substituição, MAS esteve antes no centro de uma grave crise interna aos meios culturais da Oposição. A "Ler" foi duramente combatida pelo PCP por ser redactorialmente orientada por Fernando Piteira Santos, expulso em 1950 e então acusado com Mário Soares de pro-americanismo e de alinhamento com a Jugoslávia de Tito. Os militantes comunistas foram intimados a cessar a colaboração no jornal, que chegou a ser denunciado como "orgão do SNI", num contexto de manifesto sectarismo ideológico com continuidade na chamada "polémica interna do neo-realismo", vivida em torno da "Vértice". O episódio é desenvolvido por Pacheco Pereira no 3º vol. da biografia de Álvaro Cunhal, ed Temas e Debates, Lisboa, 2005, em capítulos que se chamam “A purga dos intelectuais” e “O jornal Ler, ‘orgão do SNI’”. O PCP viria a corrigir o "desvio de esquerda", mas o fotógrafo teria de esperar seis décadas para ser homenageado no Museu do Neo-Realismo...

Paradoxalmente, Adelino Lyon de Castro foi o primeiro fotógrafo dos anos 40/50 a ter a sua obra reunida em livro, O MUNDO DA MINHA OBJECTIVA, álbum fotográfico editado em 1980, com uma nota introdutória (..."um poeta das imagens") do acima referido Fernando Piteira Santos, que era então professor universitário de história contemporânea e director-adjunto do "Diário de Lisboa", sem particular cultura fotográfica ou artística (a antiga cumplicidade política e pessoal tinha-se também associado o gosto comum pelo desporto e pelo campismo).
A edição quis ser uma homenagem póstuma do fotógrafo, mas foi também uma edição comemorativa dos 35 anos da criação das Publicações Europa-América - e certamente por isso o livro terá sido mais destinado a ofertas do que à distribuição comercial normal. Desconheço qualquer recensão ou crítica do volume, que nunca encontrei referido na literatura fotográfica do tempo (A. Sena inclui-o num índice de fotógrafos mas não o comenta). Mais estranhamente, o livro não consta da bibliografia citada no catálogo que acompanha a exposição do Museu do Chiado em Vila Franca de Xira (..."o fardo das imagens", 2011). Julgo que a edição nunca esgotou e, hoje ainda (acedido em 11 Jan. 2018), parece que continua disponível no site da Wook por 15,90 € (e talvez tb nos da Fnac e do editor...).

Depois de o ter depreciado por muito tempo (pelo carácter "salonista" das imagens e por o julgar deficientemente impresso - dois erros!), passei a considerar o álbum - e o seu prefácio - a mais acertada apresentação da obra de Lyon de Castro, em 70 fotografias que são certamente reproduzidas sempre a partir de provas de época, com respeito pelos seus variados enquadramentos.

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BIBLIOGRAFIA

(*) Emília Tavares, "Fotografia e neo-realismo em Portugal", in Batalha pelo Conteúdo..., Museu do Neo-Realismo, 2007 (pp. 263-273). (Um ensaio pioneiro sobre a presença da fotografia nas Exposições Gerais de Artes Plásticas).

Alexandre Pomar, "O neo-realismo na fotografia portuguesa, 1945 – 1963", in INDUSTRIALIZAÇÃO EM PORTUGAL NO SÉCULO XX. O CASO DO BARREIRO, Actas do Colóquio Internacional Centenário da CUF do Barreiro, 1908-2008, Universidade Autrónoma de Lisboa, 2010. (Pp. 423-442). O Colóquio teve lugar no Auditório Municipal Augusto Cabrita, Barreiro, 8-10 de Outubro de 2008. Painel 4 - Do Realismo ao Neo-realismo: imagens do trabalho e do operário na arte portuguesa). Ver tb em http://independent.academia.edu . E outros textos sobre adelino-lyon-de-castro, e temas próximos, desde 16 Maio 2008.

Emília Tavares, BATALHA DE SOMBRAS - COLECÇÃO DE FOTOGRAFIA PORTUGUESA DOS ANOS 50 DO MUSEU DO CHIADO, Museu do Neo-Realismo, Vila Franca de Xira, 2009 (A primeira leitura de conjunto deste período, através do acervo de provas de época e de autor reunidas pelo Museu)

Emília Tavares, Adelino Lyon de Castro, O Fardo das Imagens (1945-1953), Museu do Chiado, 2011.

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

"Batalha de Sombras", Anos 50, 2009

Os novos Anos 50, no Museu do Neo-Realismo

sobre "BATALHA DE SOMBRAS - COLECÇÃO DE FOTOGRAFIA PORTUGUESA DOS ANOS 50 DO MUSEU DO CHIADO", no MUSEU DO NEO-REALISMO - VILA FRANCA DE XIRA 
(até 14 de Junho de 2009)

Com o acesso aos espólios de alguns dos principais fotógrafos activos nos anos 50 e com o abandono de preconceitos ideológicos e estéticos que enquadravam a abordagem histórica dessa década, antes do conhecimento directo da respectiva produção, a exposição de Emília Tavares e do Museu do Chiado levada ao Museu do Neo-Realismo vem mudar uma página.

Varela Pécurto, 1951, impressão de época, 40x30 cm. Título da época: Belezas da noite. Col. Museu do Chiado

Não se descobrem mais génios ignorados da fotografia portuguesa.  Não se desalojam Fernando Lemos e Victor Palla/Costa Martins (este último ausente da colecção) dos seus lugares pioneiros e cimeiros na produção dos anos 50 - mas importará registar que o respectivo entendimento tem podido ser revisto nos últimos tempos. Passou a saber-se da associação do primeiro ao "fotoformalismo" divulgado pelas iniciativas de Otto Steinert e as suas exposições da "Subjektive Fotografie" (Fotografia Subjectiva), para além do que era a sempre referida apropriação da herança surrealista, e puderam conhecer-se as pesquisas formais do segundo, anteriores (e também posteriores) à "street photography" e ao realismo poético, ao neo-realismo, de Lisboa, Cidade Triste e Alegre (refira-se a exposição da P4 Photography, em 2009, contributo indispensável para apreender a obra de Palla). 


Com esta exposição descobrem-se mais imagens e mais autores que permitem conhecer o quadro contextual da produção fotográfica dos anos 50 antes divulgada. E para além de serem o seu necessário "pano de fundo", estes autores têm uma obra e uma intervenção associativa no seu tempo a que é essencial reconhecer qualidades próprias. 


Descobre-se agora (se não se reconhecia antes) a importância decisiva do acesso às provas de época e, em simultâneo, a importância do conhecimento das condições objectivas de exibição e recepção das obras, para que se possa fixar a história de um determinado período. Por razões que não importa agora aprofundar, a história "oficial" da fotografia em Portugal estabelecida por António Sena (com méritos que têm de ser salientados a dois níveis interligados: o desbravar de todo um território esquecido e um impacto muito positivo na sustentação de melhores condições de visibilidade para os novos autores aparecidos desde os finais de 70) procedeu a uma espécie de "invenção da memória" quanto aos anos 50, ao revelar (literalmente) e pôr em circulação um conjunto de autores que ficaram inéditos e foram por isso ignorados nessa década (Sena da Silva, Carlos Afonso Dias, Carlos Calvet e Gérard Castello Lopes), e atribuindo-lhes, conjuntamente com a apresentação de provas inéditas de Victor Palla-Costa Martins (Ether 1982), o papel central e quase exclusivo da representação desse período.



Frederico Pinheiro Chagas, 1954, prova de época exposta na 9ª Exposição Geral de Artes Plásticas. "Proa", 40 x 30 cm. Col. Museu do Neo-Realismo

Com esta exposição da colecção do Museu do Chiado (que obviamente só representa uma parte dos autores a conhecer), chega ao fim o (des)entendimento dos Salões de Arte Fotográfica dos anos 40 e 50 como um espaço esteticamente constante e uniforme, em que se cultivaria um só estilo designado como salonismo, condenado por inteiro e a priori como profundamente conservador e conformista, além de ser estritamente dependente ou posto ao serviço ideológico do regime fascista (visto também como coeso e invariável). Ilustre-se esta tese com uma passagem da História... de António Sena (1998), que foi sendo acriticamente repetida por sucessivos comentadores:

"O movimento fotoclubista, os seus concursos e as suas publicações são, com a ilustre excepção da já referida presença de Ernesto de Sousa na revista Plano Focal, apoiantes do Regime então vigente, devedores do pequeno comércio e, na prática, sem cultura fotográfica, ignorantes do seu passado e dos movimentos fotográficos estrangeiros." (p. 287)

A exposição "Batalha de sombras (...)", incluindo as publicações da época que também mostra, e o estudo de Emília Tavares no catálogo estabelecem uma outra história, onde não há razão para supor a generalizada ignorância dos fotógrafos sobre o passado e a actualidade internacional (a sua, e não as posteriores actualidades, claro...). Em muitas circunstâncias, a ignorância está do lado dos historiadores - veja-se um exemplo: 
No caso da revista Plano Focal, é costume destacar a entrevista de Ernesto de Sousa a Man Ray (cuja produção e projecção social da época eram as de um retratista mundano e auto-academizado), mas ignora-se sempre a página que no número anterior (nº 3, Abril 1953, p. 16) dedica a Daniel Masclet (1892-1969), um veterano profissional da moda e do retrato, activo "salonista" e teórico, adepto da "fotografia pura" e que então "encontra na reportagem uma das razões de ser da fotografia" (destaca E.S. no fim do artigo) - "a quem chamavam o Edward Weston francês" (Claude Nori, La Photographie en France, Flammarion, 2008).  Victor Palla, num artigo publicado em 1953, refere-o a par de Weston e Cartier Bresson; a revista Fotografia traduz-lhe no nº 6 (1954) um artigo da Photo-Cinéma (e outras colaborações existem). A informação circulava na noite fascista - e talvez fosse mais procurada e discutida do que hoje.

Outra das qualidades da exp. de Vila Franca de Xira é ser uma mostra de fotografias e não apenas uma antologia de autores. Elas são agrupadas em cinco núcleos (90 nºs de catálogo) que propõem uma leitura da diversidade temática, estilística e cronológica da década, em função das disponibilidades da colecção do Museu do Chiado e de uma análise pessoal, a da comissária. 
Aí se começa pela "herança naturalista"
que é também, em geral, a fotografia da paisagem natural (duas provas de época de Frederico Pinheiro Chagas estiveram na Exposição Geral de Artes Plásticas de 1955 - é uma descoberta importante), seguindo-se para o núcleo surrealista, restrito a Fernando Lemos, cujas últimas duas fotografias, de exteriores urbanos, já podem ter a outra leitura "fotoformalista". 
Elas abrem passagem, muito acertadamente, às "incursões abstractas e explorações formais da luz", em que Varela Pécurto acompanha sem atraso a vanguarda modernista que seguia a Nova Bauhaus norte-americana, e aí está também a "fotografia pura" de Eduardo Harrington Sena e Fernando Taborda, mais uma prova "abstraccionista" de António Paixão. O núcleo é uma das surpresas fortes da exposição: o modernismo é parte do suposto salonismo.



Adelino Lyon de Castro, 1948-49?, prova de contacto, 4,5 x 4,5 cm. (Fotografia que certamente não foi ampliada pelo autor, destinada ao livro de Maria Lamas As Mulheres do Meu País, 1948-50 - conservada num envelope com a inscrição "Mulheres")

Em frente (é o confronto habitual entre "humanismo" e formalismo, polarizando-se  a dicotomia conteúdo e forma, que é quase sempre só aproximativa), mostram-se "formas sociais do realismo fotográfico", com a presença determinante de Adelino Lyon de Castro, desde 1946 (essa é a data de Ex-Homens, e não 1950), com uma sequência de contactos identificados sob o nome geral "Mulheres" que poderão ter-se destinado ao livro As Mulheres do Meu País, de Maria Lamas (1948-50 - o monumento editorial da década de 40, ao qual a reedição da Caminho em 2003, esgotada, deu uma superior qualidade gráfica), e de facto aí se reproduziram as duas fotografias seguintes no catálogo (nº 59 e 60 - também incluídas no pouco conhecido álbum monográfico O Mundo da Minha Objectiva, Europa-América, 1980). 
Outras imagens de época aqui expostas permitirão pensar em extensões populistas do naturalismo (Franlkin Figueiredo e Varela Pécurto) - e estão já presentes Gérard Castello Lopes e Carlos Afonso Dias. A seguir, o núcleo final sublinha "a influência da 'fotografia humanista'" e abre para "outras derivações", com os autores já antes mais conhecidos (e mais alguns "inéditos" de Victor Palla em provas recentes - mas os inéditos póstumos, se são legítimos, precisam sempre de ser justificados); é o tempo que se segue à informação sobre "The Family of Man" (1954-55) e logo a seguir a William Klein e Robert Frank.

É pois uma década plural e contraditória (é nos salões e nos fotoclubes que se fez parte substancial da crítica do "salonismo", com aspas) e em grande parte desconhecida que se mostra nesta exposição de grande importância, ficando-se também a dever a Emília Tavares o talento para localizar espólios conservados por autores e herdeiros, e para viabilizar a sua entrada numa colecção pública. E o Museu do Neo-Realismo de Vila Franca de Xira é um óptimo lugar (físico e ideológico) para acolher - para programar e co-produzir, aliás - uma mostra que fica como uma data de viragem. 
Trata-se, como se disse, da exposição de peças de uma colecção, recentemente adquiridas - com duas presenças adicionais, João Martins (1898-1972) e Frederico Pinheiro Chagas (1919-2006). Provas de época e/ou impressões recentes representam também Adelino Lyon de Castro (1910-1953), António Paixão (1915-1986), Franklin Figueiredo (1915-2003), Fernando Taborda (1920-1991), Eduardo Harrington Sena (1923-2007), Varela Pécurto (n.1925), e igualmente Victor Palla (1922-2006), Gérard Castello-Lopes (n. 1925), Sena da Silva (1926-2001), Fernando Lemos (n. 1926) Carlos Calvet (n. 1928) e Carlos Afonso Dias (n. 1930). 

Entretanto, para futuras aproximações aos anos 40-50 (com abertura à tradição picturialista, agora praticamente ausente; com ou sem o incómodo Rosa Casaco...), é indispensável reunir Augusto Cabrita, Eduardo Gageiro e Francisco Keil do Amaral, mais Costa Martins, os quatro já presentes noutras colecções, e também Carlos Santos e Silva (o desconhecido colaborador na Afal, a revista da renovação fotográfica em Espanha, desde Almería), Victor Chagas dos Santos (o outro animador dos Salões da Cuf no Barreiro), Fernando Vicente, Manuel Correia, Mário Camilo, talvez Bernardino Cadete, David de Almeida Carvalho e outros mais ignorados ainda. E outros ainda, anónimos, exteriores à ambição da Arte Fotográfica ou para lá das suas fronteiras. Para conhecermos melhor a história e, em especial, para vermos mais imagens.


Inf.(O meu pai, Vitor Chagas dos Santos, abandonou os salões fotográficos no fim dos anos 60 por maiores exigencias a nível profissional, que lhe deixavam menos tempo disponível. Todos os seus negativos estavam no Fotoclube 6x6 cujas instalações arderam e só nos restam algumas das suas fotografias das exposições. Nós, a familia, lamentamos muito que a sua obra não tenha sido mais divulgada, mas algumas tentativas de compilação, inclusive vindas da parte de membros da antiga CUF, esbarraram na escassez de material disponível. Lembro-me de o meu pai falar no interesse da Agfa em ter no seu museu algumas das suas fotografias, nomeadamente Fúria, a mais famosa e premiada, mas desconheço se isso foi avante. O meu pai faleceu em 1991 aos 67 anos. Margarida Chagas França)

De facto, valeria a pena conhecer melhor o trabalho do núcleo central do grupo da CUF (constituído por Vitor Chagas dos Santos e Eduardo Harrington Sena, e igualmente pelo Augusto Cabrita), também membros do Fotoclube.

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Anos 50 (2) as duas histórias (2009)


Na exposição que o Museu do Chiado leva a Vila Franca de Xira e ao Museu do Neo-Realismo, "Batalha de Sombras", as fotografias dos anos 50 aí presentes representam os autores que vêm sendo incluídos na sua colecção, em anos muito recentes (desde 1999). Apenas esses, sem se anunciar um panorama da década. Enquanto revisão histórica, é ainda um começo, uma abordagem exploratória, depois de outras antologias parciais, com limites cronológicos mais alargados e diferentes selecções de autores: a exposição e o livro Em Foco, Fotógrafos Portugueses do Pós-guerra. Obras da Colecção da Fundação PLMJ, de 2005, e, então em estreia, parte da representação levada à Europália'91 (1991, Charleroi e Antuérpia, mas não vista em Portugal), já na sequência de diversas mostras e retrospectivas individuais. 
Para além das oscilações que sempre se verificam nas listas de autores representados, a actual exposição tem uma configuração inédita: o seu anúncio é nitidamente marcado pela reunião de nomes que se incluem em diferentes e até opostas tradições fotográficas, pondo à prova (ou ultrapassando, o que só depois se verá) as fronteiras que se estabeleceram entre diferentes circuitos de visibilidade e reconhecimento: o meio depreciativamente designado como salonista e aqueles que o rejeitavam. Os nomes conhecidos daqueles a quem se atribuem as rupturas modernas surgem agora alinhados alfabeticamente com os nomes esquecidos que circularam nos salões e aí foram premiados. É a primeira vez que tal reunião acontece.
Na lista geral da exposição figuram Carlos Calvet, Gérard Castello-Lopes, Adelino Lyon de Castro, Frederico Pinheiro Chagas, Carlos Afonso Dias, Franklin Figueiredo, Fernando Lemos, João Martins, António Paixão, Victor Palla, Varela Pécurto, Eduardo Harrington Sena, Sena da Silva, Fernando Taborda.
Os nomes que hoje fazem parte da bagagem cultural média de qualquer espectador (atento) foram pouco ou nada (re)conhecidos ao tempo em que fugazmente apareceram a público (e só dois deles apareceram, 
Fernando Lemos e 
Victor Palla - com o ausente Costa Martins), ou nunca chegaram a mostrar ou publicar fotografias nos anos 50 (
Gérard Castello-Lopes, 
Sena da Silva, 
Carlos Afonso Dias e 
Carlos Calvet) - o lugar que estes quatro autores então inéditos ocupam na história dos anos 50 foi construído - dado a conhecer ou inventado - a partir de 1982 pelas exposições da galeria Ether e por António Sena, também autor da única história da fotografia em Portugal. 

Por outro lado, são hoje em geral ignorados os nomes que então se publicitavam com regularidade, em função das presenças frequentes nas exposições e nas revistas da especialidade: 
Adelino Lyon de Castro, 
Frederico Pinheiro Chagas, 
Franklin Figueiredo, 
João Martins, 
António Paixão, 
Varela Pécurto, 
Eduardo Harrington Sena, 
Fernando Taborda.

Todos os seis do primeiro grupo foram objecto de exposições antológicas institucionais, e são hoje os artistas oficiais, invertendo-se totalmente a sua posição face aos agora desconhecidos do segundo grupo (João Martins foi o único em parte revisto, numa exposição temática do Instituto Português de Museus, "Os Putos", em 1997 - e foi também tema de um estudo monográfico de Emília Tavares editado em 2002, mas se é conhecido não é um "consagrado"). Trata-se de um caso de reviravolta da história semelhante à reavaliação geral da memória dos pintores académicos, salonistas ou "pompiers" face aos artistas revolucionários ou modernos do século XIX, se esquecermos duas ordens de razões: por um lado, a fotografia nunca proporcionou um reconhecimento artístico ao nível das artes maiores e, por outro, os fotógrafos de maior notoriedade social eram, ainda pelos anos 50, profissionais da fotografia aplicada ou funcional, fotógrafos de estúdio ou de imprensa, por vezes indiferentes à disputa de prémios nos salões de "arte fotográfica" (por exemplo, Mário e Horácio Novais, vindos já dos anos 30).
Os anos 50 que a história oficial consagra são os de Fernando Lemos, Victor Palla, Gérard Castello-Lopes, Sena da Silva, Carlos Afonso Dias e Carlos Calvet - acrescentando-se Costa Martins enquanto co-autor do livro Lisboa, Cidade Triste e Alegre. A respectiva memória foi re-construída, ou inventada, ao mesmo tempo que se afirmava a notoriedade dos fotógrafos surgidos no início dos anos 80 (Paulo Nozolino, Jorge Molder e José Manuel Rodrigues), aparecendo como o apoio de uma retaguarda histórica e exemplo de uma oportunidade perdida, numa contraposição nítida das carreiras impossíveis dos anos 50 com as novas condições de circulação mediática dessa década. Lemos reapareceu com a retrospectiva que a Gulbenkian dedicou aos Anos 40, que ficou como uma iniciativa sem paralelo, e também numa exposição simultânea que se apresentou na SNBA, "Refotos": na altura, José-Augusto França pretendia impor a sua história pessoal do surrealismo e o entendimento das fotografias foi sacrificado a esse desígnio, ocultando-se a vinculação à <Subjective Fotografie> que o próprio França divulgara no momento próprio (1953). Victor Palla e Costa Martins tornaram-se nessa altura os autores de uma obra única, o livro de 1958-59, o qual viria a alcançar a consagração internacional já depois de 2000. Significativamente, todos estes seis autores-artistas encerraram ou interromperam a actividade fotográfica pelo final da mesma década ou pouco depois.

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Outros nomes surgidos nos anos 50, Augusto Cabrita e Eduardo Gageiro, que agora não se vêem em Vila Franca de Xira, têm um diferente tipo de notoriedade pública, associando a actividade profissional de longo curso (estúdio, imprensa e cinema, o primeiro; fotojornalismo, o segundo) aos prémios dos salões. Ambos integraram a exposição-colecção Em Foco, tal como outro autor de primeiro plano, menos conhecido enquanto fotógrafo: Francisco Keil do Amaral, que foi expositor de fotografias nas Exposições Gerais de Artes Plásticas de 1950 (tal como Adelino Lyon de Castro) e de 1955 (com Victor Palla e Frederico Pinheiro Chagas), e foi, em especial, o impulsionador e co-autor do Inquérito à Arquitectura Popular em Portugal, 1955-61, outra das grandes produções fotográficas da década.

Não parece possível saber hoje se as EGAP foram para a fotografia apenas mais um salão (em duas edições distanciadas, 1950 e 1955) ou se existiu o propósito de pôr em contacto, ou em confronto, as duas circulações da fotografia apontadas - a "salonista" e a anti-salonista. Quanto à publicação da Arquitectura Popular, ela entronca numa sequência de grandes trabalhos fotográficos que deverão vir a ter um lugar mais destacado na história nacional da fotografia, com Maria Lamas e As Mulheres do Meu País (1948-50), com Orlando Ribeiro e com a equipa de Jorge Dias e do que seria o futuro Museu de Etnologia.

sábado, 4 de junho de 2005

2005, Joshua Benoliel, LisboaPhoto


Benoliel - Génio ou mito?


Joshua Benoliel continua a ser um fotógrafo desconhecido

Expresso Actual de 04-06-2005   


LisboaPhoto, Cordoaria

É chocante notar que vêm dos arquivos de «L’Illustration», de Paris, e
«ABC», de Madrid, quase todas as provas de época expostas na mostra
dedicada a Benoliel, para além de dois álbuns do Arquivo Histórico
Militar, com milhares de provas de contacto sobre os preparativos da
intervenção na I Guerra. Se fica documentada a actividade do
correspondente internacional, com originais cheios de anotações,
retoques e marcas editoriais («L’Illustration»), também se ilustra o
desprezo nacional pelo património fotográfico.

Benoliel é uma das vítimas dessa fatalidade, apesar de ter gozado em
vida, e depois dela, dum imenso prestígio. É provável que não se tenha
esgotado a hipótese de descobrir outras provas de particulares e
instituições (o Paço de Vila Viçosa tem mais de duas centenas que não
foram cedidos para a exposição da Cordoaria). Mas no caso dum
foto-repórter com tão grande obra impressa, principal intérprete da
aparição da imprensa ilustrada com os progressos fotomecânicos no
início do século XX, não há que fetichizar as edições «vintage». As
imagens publicadas devem ser vistas neste caso como originais (com as
soluções gráficas que nesse tempo se inventavam - expondo-se edições e
não fac-similes colados nas paredes). E os negativos sobreviventes são
sempre um manancial para reimpressões.

Joshua Benoliel (1873- 1932) reuniu um espólio de mais de 60 mil negativos em cerca de 30 anos de trabalho, mais intenso de 1906 a 1918 como colaborador principal do magazine semanal de «O Século», a «Ilustração Portuguesa». Era o «filme da vida duma nação», «o documentário da nossa vida política, social, mundana, desportiva, teatral, etc.», dizia a promoção do Arquivo Gráfico da Vida Portuguesa 1903-1918, História da Vida Nacional em Todos os seus Aspectos, que Rocha Martins prefaciou em 1933 com um texto que continua a ser a quase única fonte de informação sobre o homem e o fotógrafo («Os grandes objectivos duma objectiva célebre», ver História da Imagem Fotográfica em Portugal, de António Sena).

Quando a edição se interrompeu ao cabo de seis fascículos, não saíra da 1ª Parte, «Os últimos anos de um reinado» (D. Carlos). Começa com «As viagens dos chefes de Estado a Portugal», desde Eduardo VII e Afonso XIII, em 1903, e junta no 2º capítulo «A viagem de D. Carlos a Espanha» (1906) e «O Movimento Operário em Portugal», sobre o comício socialista do 1º de Maio de 1907. Aí figuram as notáveis fotografias das mesas dos oradores, com Azedo Gneco, e da Imprensa, improvisadas sobre carroças. Depois passa às «Procissões», desde 1903, com observações atentas de grupos de mulheres nos passeios, e o capítulo 4º intitula-se «Cascais, Corte da Saudade»: «grupos de elegantes» na praia, tiro aos pombos e ténis, «As Gincanas de Automóveis». O exótico alinhamento prossegue com destaque para a rebelião do Cruzador D. Carlos (1906) e «Os Intransigentes de 1907» (a revolta académica, com «Os que furam a greve», «O julgamento dos díscolos», a solidariedade dos liceus lisboetas, até à bela imagem final da despedida de Paulo Quartim expulso de Coimbra, já dentro do comboio.

As circunstâncias políticas de 33 ou as dificuldades económicas da edição ditaram o seu fim. Depois, o arquivo foi-se dispersando, vendido a diversas entidades pelo seu filho Judah Benoliel (também destacado foto-repórter), em tempos de crise, e mais tarde por outros herdeiros. «O Século» veio a receber uns milhares de chapas de vidro que passaram para o Centro Português de Fotografia e estarão na Torre do Tombo (9334 negativos, ou cerca de 12 mil, segundo diferentes fontes), e o Arquivo Municipal conserva entre 4500 e 3500, entre outras colecções de menor vulto.

Por ocasião da Europália‘91, Benoliel foi apresentado por uma selecção de 34 fotografias, quase todas reimpressões modernas. A escolha de A. Sena afastou-se da abordagem cronológica e descritiva para ensaiar uma aproximação à singularidade do fotógrafo e de um olhar capaz de ser muitas vezes original, irreverente e poético. Foi a primeira e até agora única ocasião para se ver que, para além da quantidade e da importância documental do acervo do antigo «Século», o melhor trabalho fotográfico e gráfico de Benoliel escapa às rotinas e rituais do fotojornalismo, inventando outros momentos e pontos de vista, nos quais se desenham interesses e sentidos que só viriam a ter expressão significativa após as mutações da década de 20 (com a «nova visão», a Leica e a seguinte vaga de magazines ilustrados). Ao contrário das outras mostras que se repetiram em Portugal, esta ficou por Charleroi, acompanhada por um catálogo truncado.

De nacionalidade britânica (nascido em Lisboa de pais vindos de Gibraltar), judeu praticante, monárquico (Stuart caricatura-o em 1916 com uma coroa no alfinete da gravata azul e branca), viajado e culto (o padre Miguel A. de Oliveira, no Arquivo Gráfico, recorda-o em Sevilha e na Bélgica «explicando os segredos artísticos de Murillo e Van Dyck»), despachante de alfândega e bibliófilo, Benoliel é decididamente um personagem singular.

Não é conhecido o que pensava da fotografia, senão através da obra que iniciou quando as práticas amadoras e profissionais se tinham já banalizado e alguns aficionados cosmopolitas se interessavam pela «arte fotográfica» picturialista. Terá publicado a primeira reportagem em 1898 na revista «Tiro Civil», sobre as «Regatas do Centenário», e continuava a dedicar-se a temas desportivos e a frequentar a Corte («El Rei», em «Tiro e Sport», 1904) quando entrou como «free-lancer» para a «Ilustração Portuguesa» e se tornou o cronista dos últimos anos conturbados da Monarquia e dos primeiros da República. Terá apenas participado numa exposição beneficente de amadores em Cascais, com D. Carlos e a «alta sociedade», em 1903, e manteve-se depois à margem dos salões da fotografia artística (mesmo do que a «Ilustração» promoveu em 1910), mas as suas reportagens estiveram presentes na 1ª Exposição de Artes Gráficas, em 1913, e no ano seguinte numa mostra idêntica em Leipzig.

Gérard Castello-Lopes chamou-lhe «o único génio da fotografia portuguesa». Ian Jeffrey considerou-o «sem igual entre os pioneiros do fotojornalismo» (Time Frames: The Story of Photography, 1998, citado por Nuno Avelar Pinheiro em Pelos Séculos d’O Século, Torre do Tombo, 2002).

A actual exposição adopta uma lógica de arquivo, em resistência à consideração museológica e estética da fotografia utilitária ou vernacular (reservada à que enuncia a intencionalidade artística, seguindo cânones das artes plásticas). O que significa, em primeiro lugar, desvalorizar a possibilidade de reconhecer uma marca autoral, um estilo, um olhar próprio, uma qualidade fotográfica, no que se quer ver só como resposta técnica e ideológica às novas necessidades da imprensa ilustrada. O tema vem de Rosalind Krauss e liga-se à cegueira «ontológica» fixada na cesura ou corte, fingindo ignorar que as escolhas do enquadramento e do ponto de vista são fundamentos da originalidade da fotografia. A reflexão crítica de Szarkowski e os catálogos do MoMA são mais produtivos para a prática e a cultura fotográficas do que o marxismo académico da revista «October»: a questão também é política.

O que importa à comissária Emília Tavares é «desconstruir o mito» Benoliel, segundo disse à «Visão». Daí a quase ausência de escolha das fotografias «mais eloquentes», mais belas e significativas, e a insistência na quantidade, uniformizada por impressões demasiado escuras, de bordos negros como radiografias, sem interpretação de valores lumínicos, mesmo quando se conhecem as suas versões impressas. Daí a quase total ausência da visão inovadora com que Benoliel construiu as imagens da nova urbanidade do seu tempo (os aviões e automóveis, os desportos, os e as «elegantes» das avenidas, os ofícios urbanos, os ambulantes e os ociosos, a confluência das várias classes no espaço público - algumas dessas imagens essenciais são projectadas à entrada da mostra). Daí a concentração sobre temas da história política enquadrados por fórmulas ideológicas de suposto alcance universal.

Os capítulos sobre o regicídio (e a falsa questão do «instante perdido»), a implantação da República (e «a política das imagens»), que se prolonga nas variações obsessivas sobre «Imagem e Poder» e «Caos e Ordem», propõem a ideia que o fotógrafo é um mero instrumento da propaganda (burguesa), uma peça do discurso segregado pela imprensa ilustrada ao serviço dos vários poderes. Depois, «Geometria da Cidade» é um exercício de esteticismo anacrónico.

As multidões, os grupos (de grevistas ou de citadinos) e as figuras solitárias têm nas fotografias de Benoliel, com o seu sentido da profundidade de campo e do pormenor, uma presença que é, nas imagens mais conseguidas, e algumas podem descobrir-se na Cordoaria, a mais exaltante visão (encontrada e construída) do dinamismo urbano, nos trânsitos de um olhar atento à expressão das massas e à intimidade dos indivíduos, e à possível tensão entre elas. Com a liberdade e a verdade de que as melhores imagens podiam então ser testemunho, Benoliel deixou-nos um breve estado de graça da fotografia portuguesa. A herança continua a ser delapidada.

Joshua Benoliel - Repórter Fotográfico
Cordoaria, até 21 de Agosto

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Uma carta a propósito, da Comissária Emília Tavares, e a breve resposta

JOSHUA BENOLIEL
EXPRESSO, Actual de 18-06-2005
É sempre gratificante que um crítico de arte, com uma conhecida reputação, como é o caso de Alexandre Pomar, faça eco público das dificuldades dos investigadores (na verdade, os únicos que diariamente se confrontam com o património fotográfico nacional e o conhecem) sobre a falta de uma política de conservação e preservação desse mesmo património.

Quanto aos comentários acerca da exposição, torna-se necessário tecer algumas rectificações e esclarecimentos. Génio ou Mito? Parece-me uma questão estafada, secundária e muito antiga, que em nada abona para o conhecimento do trabalho de Joshua Benoliel, que Pomar parece não rever na exposição apresentada. É natural, já que algumas noções fundamentais sobre o que é o espólio fotográfico de um autor e a metodologia que deve ser empregue no seu estudo não estão, nem têm que estar, na base da sua formação, o que já é mais lamentável é que discorra acerca delas sem esse conhecimento, ou pelo menos não procure informação credível.

Comecemos precisamente pela questão de «lógica de arquivo, em resistência à consideração museológica e estética». Perante qualquer espólio fotográfico, a metodologia universal a adoptar é antes de mais a sua inventariação, separação por suportes e formatos, técnicas, estados de conservação e indexação dos seus conteúdos. Este trabalho arquivístico, que Pomar parece desprezar, é fundamental para discernir no conjunto global de imagens a construção da tal marca autoral, que não se prende a códigos lineares e obtusos sobre quem é génio e quem não é.

Estamos perante o trabalho de um foto-repórter, qualquer consideração estética não pode deixar de se colocar em confronto com este facto intrínseco e rearticulação ontológica do seu trabalho. «Cegueira ontológica» é querer instalar o trabalho de Benoliel num registo de genialidade estética novecentista, não atendendo à projecção que a sua obra teve no desenvolvimento de algo mais abrangente do que uma autoria, isto é, uma nova cultura visual.

A «concentração sobre temas da história política» apenas é demonstrativa e equitativa em relação ao conjunto geral do espólio e à sua qualidade. «Imagem e Poder» e «Caos e Ordem» são a análise latente de um período em que toda a construção política das imagens tem o seu início. Benoliel não é apenas, mas é também, um instrumento de construção de significados políticos e ideológicos, uma vez que a manipulação editorial das suas imagens foi sempre um exercício que extravasa o significado original das mesmas.

A questão só pode mesmo ser também política, quando falamos de imagem fotográfica e cultura de massas, mas Pomar terá de ampliar muito a sua bibliografia para a compreender, uma vez que essa questão surge muito antes do «marxismo académico da revista ‘October’» ou de Rosalind Krauss. Daí que o crítico considere que houve «fetichização das edições vintage», não compreendendo que essas mesmas edições são documentos absolutamente inéditos, que permitem entender todo o trabalho editorial sobre o «enquadramento e ponto de vista» do fotógrafo, obrigando-nos, no mínimo, a redimensionar o significado dos «fundamentos da originalidade da fotografia». Quanto às imagens publicadas existem nesta exposição, e em número muito superior aos fac-similes, que se resumem a 6, enquanto que são apresentadas 19 edições originais.

Pomar considera que a minha escolha de imagens deixou de fora as «mais eloquentes, mais belas e significativas», adjectivos e apreciação que só poderei discutir com o crítico quando souber quantas imagens, das 13 mil que constituem o espólio do fotógrafo, já viu, sem serem as publicadas e para além da selecção de 34 que António Sena realizou para a Europália 91. Custa-me a crer que o historiador, com o rigor que lhe é conhecido, tenha considerado que em 34 imagens estava resumida e totalmente abordada a originalidade do trabalho de Benoliel, conforme o faz Pomar.

Quanto às críticas à impressão das provas actuais, devia o crítico ter-se informado sobre o estado de conservação dos negativos originais, uma vez que esse aspecto técnico tem toda a relevância na produção das referidas impressões. Os negativos apresentam problemas diversos de deterioração, impossibilitando tecnicamente qualquer aproximação a impressões originais, e obrigando a um apurado trabalho para retirar o máximo de informação dos mesmos, que Paula Campos executou de forma irrepreensível e correcta. Além do mais, alimenta a inocente ilusão de que as edições originais ou as «vintage» constituem documentos fiáveis para comparação, ignorando que qualquer delas apresenta estados de deterioração da imagem, que falseiam os tão apreciados «valores lumínicos originais». O que Pomar confunde com uma radiografia é a impressão integral do negativo, conferindo-lhe uma identificação matérica, tantas vezes subvalorizada na abordagem fotográfica, e garantindo uma reprodução integral do enquadramento executado pelo autor.

A história da fotografia portuguesa é parca e inconsistente, precisamente porque se têm perdido demasiados anos a perseguir génios fotográficos, em detrimento do estudo articulado das suas obras, assim como permanecerá um beco sem saída, enquanto um certo caciquismo emplumado imperar, delapidando os empreendimentos que não possuem uma suposta autoridade intelectual histórica a apadrinhá-los. Deste modo, continua a ignorar-se o trabalho anónimo e desvalorizado desenvolvido em muitas instituições de ensino, museus e, de modo particular, por investigadores competentes.

A exposição de Benoliel, na Cordoaria, não pretendeu nunca ser um projecto arrogante e fechado sobre si mesmo, deseja-se que outros investigadores tenham a oportunidade de contribuírem com abordagens diferentes e complementares. Muitas outras questões ficam por discutir sobre a presente exposição, mas espero que o catálogo da mesma, a editar em final de Junho, possa desenvolver novas matérias para um debate construtivo e mais informado.
EMÍLIA TAVARES, comissária da exposição «Joshua Benoliel - Repórter Fotográfico»

N.R.

Alguns pormenores, entre muitas tergiversações: Não considerei que na exposição houvesse qualquer «fetichização das edições vintage»; a comissária é que agora sobrevaloriza o ineditismo das provas com retoques e marcas editoriais. A referência à «lógica de arquivo» e a Rosalind Krauss alude ao artigo sobre a fotografia do séc. XIX e de Atget incluído em «Le Photographique», como será óbvio para qualquer leitor informado (deixemos em paz a aura de Benjamin). Não pus em causa a qualidade do trabalho de impressão de Paula Campos, mas as opções que teve de seguir; com os «problemas diversos de deterioração» dos negativos, mais difícil terá sido cumprir a exigência de uniformizar as provas modernas.
A.P.