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segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

"Batalha de Sombras", Anos 50, 2009

Os novos Anos 50, no Museu do Neo-Realismo

sobre "BATALHA DE SOMBRAS - COLECÇÃO DE FOTOGRAFIA PORTUGUESA DOS ANOS 50 DO MUSEU DO CHIADO", no MUSEU DO NEO-REALISMO - VILA FRANCA DE XIRA 
(até 14 de Junho de 2009)

Com o acesso aos espólios de alguns dos principais fotógrafos activos nos anos 50 e com o abandono de preconceitos ideológicos e estéticos que enquadravam a abordagem histórica dessa década, antes do conhecimento directo da respectiva produção, a exposição de Emília Tavares e do Museu do Chiado levada ao Museu do Neo-Realismo vem mudar uma página.

Varela Pécurto, 1951, impressão de época, 40x30 cm. Título da época: Belezas da noite. Col. Museu do Chiado

Não se descobrem mais génios ignorados da fotografia portuguesa.  Não se desalojam Fernando Lemos e Victor Palla/Costa Martins (este último ausente da colecção) dos seus lugares pioneiros e cimeiros na produção dos anos 50 - mas importará registar que o respectivo entendimento tem podido ser revisto nos últimos tempos. Passou a saber-se da associação do primeiro ao "fotoformalismo" divulgado pelas iniciativas de Otto Steinert e as suas exposições da "Subjektive Fotografie" (Fotografia Subjectiva), para além do que era a sempre referida apropriação da herança surrealista, e puderam conhecer-se as pesquisas formais do segundo, anteriores (e também posteriores) à "street photography" e ao realismo poético, ao neo-realismo, de Lisboa, Cidade Triste e Alegre (refira-se a exposição da P4 Photography, em 2009, contributo indispensável para apreender a obra de Palla). 


Com esta exposição descobrem-se mais imagens e mais autores que permitem conhecer o quadro contextual da produção fotográfica dos anos 50 antes divulgada. E para além de serem o seu necessário "pano de fundo", estes autores têm uma obra e uma intervenção associativa no seu tempo a que é essencial reconhecer qualidades próprias. 


Descobre-se agora (se não se reconhecia antes) a importância decisiva do acesso às provas de época e, em simultâneo, a importância do conhecimento das condições objectivas de exibição e recepção das obras, para que se possa fixar a história de um determinado período. Por razões que não importa agora aprofundar, a história "oficial" da fotografia em Portugal estabelecida por António Sena (com méritos que têm de ser salientados a dois níveis interligados: o desbravar de todo um território esquecido e um impacto muito positivo na sustentação de melhores condições de visibilidade para os novos autores aparecidos desde os finais de 70) procedeu a uma espécie de "invenção da memória" quanto aos anos 50, ao revelar (literalmente) e pôr em circulação um conjunto de autores que ficaram inéditos e foram por isso ignorados nessa década (Sena da Silva, Carlos Afonso Dias, Carlos Calvet e Gérard Castello Lopes), e atribuindo-lhes, conjuntamente com a apresentação de provas inéditas de Victor Palla-Costa Martins (Ether 1982), o papel central e quase exclusivo da representação desse período.



Frederico Pinheiro Chagas, 1954, prova de época exposta na 9ª Exposição Geral de Artes Plásticas. "Proa", 40 x 30 cm. Col. Museu do Neo-Realismo

Com esta exposição da colecção do Museu do Chiado (que obviamente só representa uma parte dos autores a conhecer), chega ao fim o (des)entendimento dos Salões de Arte Fotográfica dos anos 40 e 50 como um espaço esteticamente constante e uniforme, em que se cultivaria um só estilo designado como salonismo, condenado por inteiro e a priori como profundamente conservador e conformista, além de ser estritamente dependente ou posto ao serviço ideológico do regime fascista (visto também como coeso e invariável). Ilustre-se esta tese com uma passagem da História... de António Sena (1998), que foi sendo acriticamente repetida por sucessivos comentadores:

"O movimento fotoclubista, os seus concursos e as suas publicações são, com a ilustre excepção da já referida presença de Ernesto de Sousa na revista Plano Focal, apoiantes do Regime então vigente, devedores do pequeno comércio e, na prática, sem cultura fotográfica, ignorantes do seu passado e dos movimentos fotográficos estrangeiros." (p. 287)

A exposição "Batalha de sombras (...)", incluindo as publicações da época que também mostra, e o estudo de Emília Tavares no catálogo estabelecem uma outra história, onde não há razão para supor a generalizada ignorância dos fotógrafos sobre o passado e a actualidade internacional (a sua, e não as posteriores actualidades, claro...). Em muitas circunstâncias, a ignorância está do lado dos historiadores - veja-se um exemplo: 
No caso da revista Plano Focal, é costume destacar a entrevista de Ernesto de Sousa a Man Ray (cuja produção e projecção social da época eram as de um retratista mundano e auto-academizado), mas ignora-se sempre a página que no número anterior (nº 3, Abril 1953, p. 16) dedica a Daniel Masclet (1892-1969), um veterano profissional da moda e do retrato, activo "salonista" e teórico, adepto da "fotografia pura" e que então "encontra na reportagem uma das razões de ser da fotografia" (destaca E.S. no fim do artigo) - "a quem chamavam o Edward Weston francês" (Claude Nori, La Photographie en France, Flammarion, 2008).  Victor Palla, num artigo publicado em 1953, refere-o a par de Weston e Cartier Bresson; a revista Fotografia traduz-lhe no nº 6 (1954) um artigo da Photo-Cinéma (e outras colaborações existem). A informação circulava na noite fascista - e talvez fosse mais procurada e discutida do que hoje.

Outra das qualidades da exp. de Vila Franca de Xira é ser uma mostra de fotografias e não apenas uma antologia de autores. Elas são agrupadas em cinco núcleos (90 nºs de catálogo) que propõem uma leitura da diversidade temática, estilística e cronológica da década, em função das disponibilidades da colecção do Museu do Chiado e de uma análise pessoal, a da comissária. 
Aí se começa pela "herança naturalista"
que é também, em geral, a fotografia da paisagem natural (duas provas de época de Frederico Pinheiro Chagas estiveram na Exposição Geral de Artes Plásticas de 1955 - é uma descoberta importante), seguindo-se para o núcleo surrealista, restrito a Fernando Lemos, cujas últimas duas fotografias, de exteriores urbanos, já podem ter a outra leitura "fotoformalista". 
Elas abrem passagem, muito acertadamente, às "incursões abstractas e explorações formais da luz", em que Varela Pécurto acompanha sem atraso a vanguarda modernista que seguia a Nova Bauhaus norte-americana, e aí está também a "fotografia pura" de Eduardo Harrington Sena e Fernando Taborda, mais uma prova "abstraccionista" de António Paixão. O núcleo é uma das surpresas fortes da exposição: o modernismo é parte do suposto salonismo.



Adelino Lyon de Castro, 1948-49?, prova de contacto, 4,5 x 4,5 cm. (Fotografia que certamente não foi ampliada pelo autor, destinada ao livro de Maria Lamas As Mulheres do Meu País, 1948-50 - conservada num envelope com a inscrição "Mulheres")

Em frente (é o confronto habitual entre "humanismo" e formalismo, polarizando-se  a dicotomia conteúdo e forma, que é quase sempre só aproximativa), mostram-se "formas sociais do realismo fotográfico", com a presença determinante de Adelino Lyon de Castro, desde 1946 (essa é a data de Ex-Homens, e não 1950), com uma sequência de contactos identificados sob o nome geral "Mulheres" que poderão ter-se destinado ao livro As Mulheres do Meu País, de Maria Lamas (1948-50 - o monumento editorial da década de 40, ao qual a reedição da Caminho em 2003, esgotada, deu uma superior qualidade gráfica), e de facto aí se reproduziram as duas fotografias seguintes no catálogo (nº 59 e 60 - também incluídas no pouco conhecido álbum monográfico O Mundo da Minha Objectiva, Europa-América, 1980). 
Outras imagens de época aqui expostas permitirão pensar em extensões populistas do naturalismo (Franlkin Figueiredo e Varela Pécurto) - e estão já presentes Gérard Castello Lopes e Carlos Afonso Dias. A seguir, o núcleo final sublinha "a influência da 'fotografia humanista'" e abre para "outras derivações", com os autores já antes mais conhecidos (e mais alguns "inéditos" de Victor Palla em provas recentes - mas os inéditos póstumos, se são legítimos, precisam sempre de ser justificados); é o tempo que se segue à informação sobre "The Family of Man" (1954-55) e logo a seguir a William Klein e Robert Frank.

É pois uma década plural e contraditória (é nos salões e nos fotoclubes que se fez parte substancial da crítica do "salonismo", com aspas) e em grande parte desconhecida que se mostra nesta exposição de grande importância, ficando-se também a dever a Emília Tavares o talento para localizar espólios conservados por autores e herdeiros, e para viabilizar a sua entrada numa colecção pública. E o Museu do Neo-Realismo de Vila Franca de Xira é um óptimo lugar (físico e ideológico) para acolher - para programar e co-produzir, aliás - uma mostra que fica como uma data de viragem. 
Trata-se, como se disse, da exposição de peças de uma colecção, recentemente adquiridas - com duas presenças adicionais, João Martins (1898-1972) e Frederico Pinheiro Chagas (1919-2006). Provas de época e/ou impressões recentes representam também Adelino Lyon de Castro (1910-1953), António Paixão (1915-1986), Franklin Figueiredo (1915-2003), Fernando Taborda (1920-1991), Eduardo Harrington Sena (1923-2007), Varela Pécurto (n.1925), e igualmente Victor Palla (1922-2006), Gérard Castello-Lopes (n. 1925), Sena da Silva (1926-2001), Fernando Lemos (n. 1926) Carlos Calvet (n. 1928) e Carlos Afonso Dias (n. 1930). 

Entretanto, para futuras aproximações aos anos 40-50 (com abertura à tradição picturialista, agora praticamente ausente; com ou sem o incómodo Rosa Casaco...), é indispensável reunir Augusto Cabrita, Eduardo Gageiro e Francisco Keil do Amaral, mais Costa Martins, os quatro já presentes noutras colecções, e também Carlos Santos e Silva (o desconhecido colaborador na Afal, a revista da renovação fotográfica em Espanha, desde Almería), Victor Chagas dos Santos (o outro animador dos Salões da Cuf no Barreiro), Fernando Vicente, Manuel Correia, Mário Camilo, talvez Bernardino Cadete, David de Almeida Carvalho e outros mais ignorados ainda. E outros ainda, anónimos, exteriores à ambição da Arte Fotográfica ou para lá das suas fronteiras. Para conhecermos melhor a história e, em especial, para vermos mais imagens.


Inf.(O meu pai, Vitor Chagas dos Santos, abandonou os salões fotográficos no fim dos anos 60 por maiores exigencias a nível profissional, que lhe deixavam menos tempo disponível. Todos os seus negativos estavam no Fotoclube 6x6 cujas instalações arderam e só nos restam algumas das suas fotografias das exposições. Nós, a familia, lamentamos muito que a sua obra não tenha sido mais divulgada, mas algumas tentativas de compilação, inclusive vindas da parte de membros da antiga CUF, esbarraram na escassez de material disponível. Lembro-me de o meu pai falar no interesse da Agfa em ter no seu museu algumas das suas fotografias, nomeadamente Fúria, a mais famosa e premiada, mas desconheço se isso foi avante. O meu pai faleceu em 1991 aos 67 anos. Margarida Chagas França)

De facto, valeria a pena conhecer melhor o trabalho do núcleo central do grupo da CUF (constituído por Vitor Chagas dos Santos e Eduardo Harrington Sena, e igualmente pelo Augusto Cabrita), também membros do Fotoclube.

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Anos 50 (2) as duas histórias (2009)


Na exposição que o Museu do Chiado leva a Vila Franca de Xira e ao Museu do Neo-Realismo, "Batalha de Sombras", as fotografias dos anos 50 aí presentes representam os autores que vêm sendo incluídos na sua colecção, em anos muito recentes (desde 1999). Apenas esses, sem se anunciar um panorama da década. Enquanto revisão histórica, é ainda um começo, uma abordagem exploratória, depois de outras antologias parciais, com limites cronológicos mais alargados e diferentes selecções de autores: a exposição e o livro Em Foco, Fotógrafos Portugueses do Pós-guerra. Obras da Colecção da Fundação PLMJ, de 2005, e, então em estreia, parte da representação levada à Europália'91 (1991, Charleroi e Antuérpia, mas não vista em Portugal), já na sequência de diversas mostras e retrospectivas individuais. 
Para além das oscilações que sempre se verificam nas listas de autores representados, a actual exposição tem uma configuração inédita: o seu anúncio é nitidamente marcado pela reunião de nomes que se incluem em diferentes e até opostas tradições fotográficas, pondo à prova (ou ultrapassando, o que só depois se verá) as fronteiras que se estabeleceram entre diferentes circuitos de visibilidade e reconhecimento: o meio depreciativamente designado como salonista e aqueles que o rejeitavam. Os nomes conhecidos daqueles a quem se atribuem as rupturas modernas surgem agora alinhados alfabeticamente com os nomes esquecidos que circularam nos salões e aí foram premiados. É a primeira vez que tal reunião acontece.
Na lista geral da exposição figuram Carlos Calvet, Gérard Castello-Lopes, Adelino Lyon de Castro, Frederico Pinheiro Chagas, Carlos Afonso Dias, Franklin Figueiredo, Fernando Lemos, João Martins, António Paixão, Victor Palla, Varela Pécurto, Eduardo Harrington Sena, Sena da Silva, Fernando Taborda.
Os nomes que hoje fazem parte da bagagem cultural média de qualquer espectador (atento) foram pouco ou nada (re)conhecidos ao tempo em que fugazmente apareceram a público (e só dois deles apareceram, 
Fernando Lemos e 
Victor Palla - com o ausente Costa Martins), ou nunca chegaram a mostrar ou publicar fotografias nos anos 50 (
Gérard Castello-Lopes, 
Sena da Silva, 
Carlos Afonso Dias e 
Carlos Calvet) - o lugar que estes quatro autores então inéditos ocupam na história dos anos 50 foi construído - dado a conhecer ou inventado - a partir de 1982 pelas exposições da galeria Ether e por António Sena, também autor da única história da fotografia em Portugal. 

Por outro lado, são hoje em geral ignorados os nomes que então se publicitavam com regularidade, em função das presenças frequentes nas exposições e nas revistas da especialidade: 
Adelino Lyon de Castro, 
Frederico Pinheiro Chagas, 
Franklin Figueiredo, 
João Martins, 
António Paixão, 
Varela Pécurto, 
Eduardo Harrington Sena, 
Fernando Taborda.

Todos os seis do primeiro grupo foram objecto de exposições antológicas institucionais, e são hoje os artistas oficiais, invertendo-se totalmente a sua posição face aos agora desconhecidos do segundo grupo (João Martins foi o único em parte revisto, numa exposição temática do Instituto Português de Museus, "Os Putos", em 1997 - e foi também tema de um estudo monográfico de Emília Tavares editado em 2002, mas se é conhecido não é um "consagrado"). Trata-se de um caso de reviravolta da história semelhante à reavaliação geral da memória dos pintores académicos, salonistas ou "pompiers" face aos artistas revolucionários ou modernos do século XIX, se esquecermos duas ordens de razões: por um lado, a fotografia nunca proporcionou um reconhecimento artístico ao nível das artes maiores e, por outro, os fotógrafos de maior notoriedade social eram, ainda pelos anos 50, profissionais da fotografia aplicada ou funcional, fotógrafos de estúdio ou de imprensa, por vezes indiferentes à disputa de prémios nos salões de "arte fotográfica" (por exemplo, Mário e Horácio Novais, vindos já dos anos 30).
Os anos 50 que a história oficial consagra são os de Fernando Lemos, Victor Palla, Gérard Castello-Lopes, Sena da Silva, Carlos Afonso Dias e Carlos Calvet - acrescentando-se Costa Martins enquanto co-autor do livro Lisboa, Cidade Triste e Alegre. A respectiva memória foi re-construída, ou inventada, ao mesmo tempo que se afirmava a notoriedade dos fotógrafos surgidos no início dos anos 80 (Paulo Nozolino, Jorge Molder e José Manuel Rodrigues), aparecendo como o apoio de uma retaguarda histórica e exemplo de uma oportunidade perdida, numa contraposição nítida das carreiras impossíveis dos anos 50 com as novas condições de circulação mediática dessa década. Lemos reapareceu com a retrospectiva que a Gulbenkian dedicou aos Anos 40, que ficou como uma iniciativa sem paralelo, e também numa exposição simultânea que se apresentou na SNBA, "Refotos": na altura, José-Augusto França pretendia impor a sua história pessoal do surrealismo e o entendimento das fotografias foi sacrificado a esse desígnio, ocultando-se a vinculação à <Subjective Fotografie> que o próprio França divulgara no momento próprio (1953). Victor Palla e Costa Martins tornaram-se nessa altura os autores de uma obra única, o livro de 1958-59, o qual viria a alcançar a consagração internacional já depois de 2000. Significativamente, todos estes seis autores-artistas encerraram ou interromperam a actividade fotográfica pelo final da mesma década ou pouco depois.

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Outros nomes surgidos nos anos 50, Augusto Cabrita e Eduardo Gageiro, que agora não se vêem em Vila Franca de Xira, têm um diferente tipo de notoriedade pública, associando a actividade profissional de longo curso (estúdio, imprensa e cinema, o primeiro; fotojornalismo, o segundo) aos prémios dos salões. Ambos integraram a exposição-colecção Em Foco, tal como outro autor de primeiro plano, menos conhecido enquanto fotógrafo: Francisco Keil do Amaral, que foi expositor de fotografias nas Exposições Gerais de Artes Plásticas de 1950 (tal como Adelino Lyon de Castro) e de 1955 (com Victor Palla e Frederico Pinheiro Chagas), e foi, em especial, o impulsionador e co-autor do Inquérito à Arquitectura Popular em Portugal, 1955-61, outra das grandes produções fotográficas da década.

Não parece possível saber hoje se as EGAP foram para a fotografia apenas mais um salão (em duas edições distanciadas, 1950 e 1955) ou se existiu o propósito de pôr em contacto, ou em confronto, as duas circulações da fotografia apontadas - a "salonista" e a anti-salonista. Quanto à publicação da Arquitectura Popular, ela entronca numa sequência de grandes trabalhos fotográficos que deverão vir a ter um lugar mais destacado na história nacional da fotografia, com Maria Lamas e As Mulheres do Meu País (1948-50), com Orlando Ribeiro e com a equipa de Jorge Dias e do que seria o futuro Museu de Etnologia.

sábado, 2 de junho de 2001

2001, Surrealismo em Badajoz e no Chiado (Antes e depois de 1947 )

Antes e depois de 1947 

 

Fases, rupturas, gerações e divergências na cronologia do surrealismo português 


  2/6/2001


O surrealismo português não se deixa converter facilmente em objecto de estudo «científico» e a exposição do Museu do Chiado é mais um testemunho das divergências e tensões que o movimento continua a suscitar. Apesar do recurso aos espólios pessoais dos intervenientes desavindos em 1948, que permite apresentar, pela primeira vez, um panorama «unitário» do período organizado do surrealismo (1947-50), permanece actuante a oposição entre as teses historiográficas sustentadas por José-Augusto França, grandemente centradas no seu activo papel de crítico, e, por outro lado, a recusa protagonizada por Mário Cesariny, também antólogo e historiador militante do movimento, de deixar interpretar como mais um estilo numa sucessão «progressiva» de estilos o que para alguns continuou a ser uma inspiração viva e libertadora. 


Basta observar a diversidade dos horizontes cronológicos seguidos nas duas vertentes da mostra, artes plásticas e literatura, para reconhecer que o título «Surrealismo em Portugal, 1934-1952» recobre abordagens que não se conciliaram no seu duplo comissariado. 1952 foi a data adoptada por França para encerrar a retrospectiva dos Anos 40, em 1982. A actual reincidência volta a ter em conta a exposição de Fernando Azevedo, Fernando Lemos e Vespeira na Casa Jalco, mas não corresponde, de facto, à data da dispersão dos colectivos, que ocorre em 49 quanto ao Grupo Surrealista de Lisboa (aquele em que, aliás, Azevedo e Vespeira intervieram) e durante 51, mas muito mais informalmente, quanto a Os Surrealistas.


Para além das individuais sucessivas de Cruzeiro Seixas e Cesariny, outras exposições de Eurico Gonçalves e Dante Júlio, em 54 (Galeria de Março), António Areal, Carlos Calvet e Jorge Vieira, em 56 (Gal. Pórtico), permitiriam não estabelecer qualquer fronteira naquele ano, e o mesmo acontece face às edições de poesia e de textos de intervenção que continuaram a ocorrer. Mais exactamente, a data de 52 é conveniente para os que entenderam abandonar ou superar o movimento (ou o estilo) surrealista, mas improcedente para os que permaneceram fiéis ao «propósito inicial» ou que por ele se interessaram ainda ao longo das décadas de 50 e 60 (até Mário Botas, possivelmente).


A propósito, até para observar como a história foi sendo reconstruída, é curioso recordar a crítica que França publicou em 52 na «Seara Nova» sobre a exposição da Casa Jalco, desviando-a de qualquer justificação surrealista para a apontar como abertura a novas orientações genericamente «não figurativas», que pouco depois terão sequência na sua defesa da abstracção geometrista, como um novo capítulo de informação parisiense. Falta às revisões produzidas por novos autores o contacto sistemático com as fontes do tempo, trocando-se a informação em primeira mão por sínteses que nunca foram sujeitas a qualquer reexame.


Não sendo esta a primeira retrospectiva que se quis distanciar das polémicas entre os anteriores protagonistas, é indispensável confrontá-la com os critérios seguidos pelos dois anteriores ensaios. Ambos divergem da actual mostra quanto aos prolegómenos do surrealismo nacional, antes da fase que vai de 1939 a 47, graças à inclusão de obras de Júlio (Reis Pereira), e também quanto à continuidade da inspiração surrealista. Em 83, Luís de Moura Sobral apresentou em Montréal «Le Surréalisme Portugais», propondo-se sumariar um período de 1934 a 1960, com a representação adicional de Eurico, António Quadros, Areal e Gonçalo Duarte. Em 99, «Desenhos dos Surrealistas em Portugal. 1940-1966», promovida pelo Instituto de Arte Contemporânea no Museu Soares dos Reis, com organização de Paulo Henriques, incluiu também Areal e Eurico, apesar da sua abordagem muito concisa.


Encontram-se nos textos introdutórios ao presente catálogo, e em especial no longo ensaio de María de Jesús Ávila, argumentos em defesa das opções agora praticadas, mas é improvável que estas façam escola. Ao tomar por limite a data de 52, a pretexto do desmembramento dos grupos assumidos como tais, usa-se uma lógica vanguardista sustentada por um sentido finalista da sucessão dos estilos artísticos que desentende o que pretendeu ser a ruptura surrealista.


Este critério restritivo tem, no entanto, a vantagem prática de permitir uma muito alargada exibição do período organizado do movimento, de 47 a 50 (levado até 52), pondo em relação, mais do que em confronto, os dois grupos referidos. Esse efeito atenuar-se-ia provavelmente com uma selecção mais alargada no tempo e nos critérios de admissão - onde também deveriam caber, para as mesmas datas, a produção surrealista ou surrealizante de Nadir Afonso e Jorge de Oliveira, mais o pouco que sobreviveu de Manuel d'Assumpção. Assim estruturada, a exposição documenta de forma consistente o que, para além de configurar um movimento surrealista mais ou menos incipiente (note-se a coincidência temporal com o movimento Cobra, de herança surrealista), foi parte de uma importante afirmação geracional, das mais fortes que o século XX conheceu em Portugal, contando com as orientações não surrealistas.


Por outro lado, reconhece-se que a actual mostra é muito marcada pela sequência (discutível mas coerente) da programação do Museu, que passou pelas iniciativas dedicadas a Jorge Vieira, A. Pedro, Vespeira e Lemos, sem esquecer a colecção do próprio J.-A. França, orientação essa que tem proporcionado o alargamento do acervo com aquisições e doações. É essa lógica que justificará, sem servir de legitimação, a inclusão de Jorge Vieira, que nunca se pretendeu surrealista, relacionando-se com o movimento num convívio pessoal e estético aberto a outras inspirações. Mesmo se é forte a articulação poética e plástica com outras obras expostas, a sua presença é problemática dadas as implicações doutrinárias do movimento e contradiz o perfil de independência que a sua retrospectiva de 1995 lhe reconheceu.


Entretanto, através da organização espacial da exposição fica bem patente que não há movimento surrealista em Portugal até 1947, embora houvesse pintores surrealistas ou praticantes de pintura surrealista, em conformidade com informações internacionalmente disponíveis desde os anos 30. O subtítulo do catálogo «Consolidação. 1940-47» é inadequado porque, mais do que de continuidade, importa falar em ruptura entre diferentes fases. Não é a pintura de Pedro e de Cândido (nem o fulgor breve de Dacosta entre 1939 e 42), que conduz à movimentação de 47, nascendo esta com uma nova geração que mais ou menos informalmente se buscava desde 42-43, se interessou pelo neo-realismo em 1945 (jornal «A Tarde») e em 47 foi colher inspiração directa a Paris no regresso de Breton.


A investigação sobre os antecedentes surrealizantes teria que alargar-se às poéticas do imaginário e às expressões do sonho e da loucura em Dominguez Alvarez (Figuras de um Sonho, os «homens tortos», etc.), Mário Eloy e Júlio, levando também em conta a afirmação de Cesariny de que Arpad Szenes e Vieira da Silva foram os «introdutores do surrealismo na pintura portuguesa da década de 30».


Quanto à primeira fase do surrealismo nacional, o carácter de ruptura atribuído à exposição de Pedro e Dacosta na Casa Repe (1940) tem de ser prudentemente compatibilizado com a aparição regular da sua pintura nos salões do SPN, desde 39, depois no SNI, em 45, e na SNBA em 46 e 47 (1ª e 2ª EGAP), associada entretanto à confusa produção de Cândido Costa Pinto. Por outro lado, é indispensável que ao vanguardismo de Pedro em 34 se associe a sua militância fascista (é então comissário da propaganda de Nacional Sindicalismo e a ida para Paris é um «semi-exílio» solidário com Rolão Preto, como França ensinou), tal como importa referenciar na extrema direita as figuras de Dutra Faria e Ramiro Valadão, co-autores dos primeiros «cadavre-exquis» ditos surrealistas.


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Surrealismo em Portugal

MEIAC, Badajoz   

17/3/2001


Uma primeira retrospectiva «unitária» do movimento foi organizada em 1984 [aliás 1983]  em Montreal, por Luís de Moura Sobral, mas em Portugal as muitas susceptibilidades dos participantes (ou proprietários?) foram impedindo uma séria abordagem histórica dos acontecimentos. J.-A.França fez na exposição sobre os anos 40 (Gulbenkian, 1982) uma reconstituição facciosa, e Mário Cesariny preferiu sempre à história académica a acção directa, ou poética. 

Por iniciativa espanhola, que evoluiu para uma co-produção com o Museu do Chiado (onde se apresentará a partir de 24 de Maio), chega-se agora a um balanço alargado com duplo comissariado de Perfecto Quadrado (literatura) e María Jesús Ávila (artes plásticas), o qual terá como limites cronológicos os anos de 1934 e 52 — em Montreal continuara-se até 1960, incluindo justamente novas aparições que do surrealismo se reclamaram, em especial os trânsitos pelo Café Gelo (Eurico, Calvet, Areal, etc., etc.). 

Quanto aos chamados primórdios, a antologia que se inaugurou ontem deverá confirmar alguns factos insólitos, que progressivas simplificações dos discursos históricos não têm sabido valorizar: 1) as primeiras obras apontadas como surrealistas são da autoria do então fascista António Pedro, militante (camisa azul) do movimento Nacional-Sindicalista de Rolão Preto, proibido por Salazar — por isso ele se exilou em 1934; 2) nos anos seguintes, o surrealismo manifestou-se regularmente nos salões do SNP/SNI (39, 42, 44, 45), no quadro das iniciativas modernizadoras patrocinadas por António Ferro, acrescentando-se então a Pedro as obras de António Dacosta (até 42; Prémio Souza-Cardoso desse ano) e Cândido Costa Pinto — a memória da exposição de 40 na Casa Repe não podia alterar o peso dessa marca de origem; 3) em 1947, Cândido começou a desenhar as capas surrealistas da colecção «Vampiro» e em 49 faz selos do Correio. Tornava-se necessária uma ruptura geracional, mas ela foi depressa prejudicada por diversas e duradoiras querelas. As questões relativas ao pioneirismo e à «introdução» do surrealismo devem ser reduzidas às justas proporções decorrentes de um grande atraso em relação ao início do movimento e de uma grande insuficiência/incoerência ideológica dos seus primeiros agentes (e de uma grande incipiência prática também, em vários casos). E importam sempre mais as obras do que as suas etiquetas. (Até 29 Abril)



Surrealismo

Museu do Chiado   

(Inaugura a 24 Maio)

19-05-2001

A única revisão histórica do surrealismo português realizara-se em 1983, em Montreal, por iniciativa de Luís Moura Sobral; em 1999, o IAC dedicou uma antologia ao desenho surrealista, organizada por Paulo Henriques e Fernando Cabral Martins (ficou esquecida na cronologia do presente catálogo). A dificuldade, até agora, foi obter luz verde dos dois representantes dos grupos desavindos no final dos anos 40 e fazer aceitar a Cesariny uma abordagem histórico-académica do que ele pretende que seja uma inspiração ainda viva (o outro é o historiador e académico J.-A. França). 

Em co-produção com o MEIAC de Badajoz, María Jesús Ávila e Perfecto E. Cuadrado dirigiram as vertentes de artes plásticas e literatura de uma retrospectiva de grande escala que reúne muitas obras esquecidas ou pouco vistas e que deu origem à publicação de um extenso volume. Ao reconhecimento dos méritos da iniciativa deverá associar-se a discussão sobre os critérios cronológicos seguidos (de António Pedro à Casa Jalco, 1934-52, embora a amostragem literária escape a tal espartilho), as exclusões de várias figuras singulares (Júlio, algum Arpad Szenes e o círculo de Vieira da Silva, Nadir Afonso e depois Eurico, entre outros), a ocultação de algumas originalidades ideológicas do surrealismo nacional (o compromisso fascista de António Pedro, em 34, e a oficialização do «estilo surrealista» nos salões do SNI ao longo da década de 40), a menorização da excepcional pintura dos primeiros anos de António Dacosta face às ambições escolares e inábeis do mesmo Pedro, etc., etc.


18/08/2001 

Depois de duas antologias de muito menor escala, em 1983, em Montreal, e em 99, no Porto, esta apenas dedicada ao desenho, o Museu do Chiado, em colaboração com o MEIAC de Badajoz, conseguiu finalmente propor uma retrospectiva histórica do surrealismo português com propósitos de levantamento exaustivo, para o que era preciso contar com o acesso aos espólios pessoais de protagonistas desavindos. 

María de Jesús Ávila encarregou-se da pesquisa das obras e da investigação na área das artes plásticas, enquanto Perfecto E. Quadrado assegurou a presença do domínio literário na exposição e no catálogo, sendo particularmente curioso que cada um dos comissários tenha adoptado diferentes programas cronológicos. Até à actualidade no segundo caso e delimitado pela data de 1952 no primeiro, adoptando-se, no entanto, essa data para o título genérico (1934-1952). 

A ocupação do espaço do museu é propícia a uma separação nítida entre os dois momentos do surrealismo em Portugal. O primeiro não tem marcas de movimento nem produz doutrina: associado ao diletantismo de António Pedro e à fulgurante pintura inicial de Dacosta, estabelece uma das datas míticas da historiografia nacional (1940, exp. da Casa Repe) e esgota-se no folclorismo academizante de Cândido Costa Pinto. Por inventariar ficam outras aproximações à informação surrealista internacional, trazidas por Arpad Szenes, ou expressas por derivas oníricas de Júlio, Alvarez e Eloy. 

O segundo momento tem um forte sentido de afirmação geracional e é para vários artistas um período de afirmação, com ou sem continuidade, embora o próprio limite temporal estabelecido privilegie aqueles que se desligam do movimento, na medida em que interrompe abruptamente a obra dos que, como Cesariny e Cruzeiro Seixas, a ele se mantiveram fiéis. Com as suas polémicas opções, fica de qualquer modo apresentado um panorama de referência sobre um dos momentos de vitalidade e renovação da arte portuguesa. (Até 23 Set.)