“Cabe a uma instituição como o MAAT, consciente do seu papel numa sociedade em crise, enfrentar as dificuldades da apresentação sem filtros deste discurso, dando conta da sua relevância estética e ética.”
Este "discurso” é o de Miriam Cahn, e é assim referido: “corpos (notoriamente femininos) que nos interpelam sem rodeios, confrontando-nos com a violência a que são sujeitos. Nada do que diga respeito à dimensão sexista dessa violência (patriarcal e militar, económica e geopolítica, religiosa e cultural), à dor física e ao sofrimento emocional que daí resultam nos é escondido - tudo é sobre-exposto (....)”
Aliás, as primeiras linhas do prefácio sem título assinado pelos comissários-directores do Museu, João Pinharanda e Sérgio Mah, anunciavam: “É com enorme convicção e sentido de responsabilidade cívica que o MAAT apresenta...”.
Mas o “sentido da responsabilidade cívica” não se cumpre no catálogo editado, pelo contrário. Paguei por ele 44 euros e penso que há por aqui uma hipócrita contradição: a quem serve um volume assim?
São 352 páginas, um excesso, um luxo, 3 cm de lombada, por € 44, e só 600 exemplares: lá se vai a "responsabilidade cívica". Ficamos com a "elite", para ofertas e representação da empresa (quantos exemplkares seguem para Pequim?). Entre nós muitos catálogos são objectos sem destinatário, sobre-dimensionados, invisíveis, invendáveis-incompráveis.
Há 2 páginas de breves textos da artista, paginados com muita largueza;
4,5 de escrita literária do António Guerreiro;
8 que seriam 4 com um corpo não desmesurado, como uma entrevista em resultado de trocas de emails com os comissários;
4 de referida apresentação a abrir. Sempre em corpos generosos e duplicados pelas traduções também folgadas.
A fechar existe um oportuno texto crítico e biográfico sobre a artista com base num diálogo estabelecido em 2013, que continua actual.
É escasso, e são excessivas as páginas de ilustrações que em inúmeros casos não são de obras expostas, não sendo obras de necessária referência. Certamente livres de direitos de autor, foram ao acervo de imagens e foi um fartar vilanagem - percebe-se o gozo das designers ao percorrerem a crueza, a violência e também o humor, negro ou não, das imagens.
Atenção, não é só a violência sexista que aqui comparece: é também a afronta física e nua do corpo próprio exibido, do envelhecimento, do parto. Não há só vítimas, há desafios. Há denúncias e medos nas séries de armas e carros de combates e nas sugestões de bombas atómicas.
Perdeu-se no itinerário do catálogo o percurso da montagem, sem se ter encontrado outra sequência: por exemplo, os corpos frontais que confrontam brutalmente o espectador à chegada diluem-se lá para o fim. Desarticularam-se as galerias, onde as pinturas se mostram em instalações ou em séries temáticas ou em contrastes incisivos, apesar de se intercalarem "vistas da exposição" entre escolhas arbitrárias, como um puzzle que cresceu sem limites e sem critério. Foto acima e foto abaixo sem razão para tanto, e ampliações aleatórias em dupla página... Na lista de obras final perderam-se as traduções dos títulos que se encontram ao longo do "álbum". Comparando com o catálogo do Palais de Tokyo de 2022 vê-se o luxo dispensável dos grandes formatos das obras/ilustrações em página inteira e dos pormenores ampliados.
Os gráficos são os grandes interessados neste tipo de edições com vocação para concursos de design: neste caso "o conceito e o design gráfico" é das Ilhas Studio, de quem conheço as qualidades e os excessos .
A exposição da Miriam Cahn é das mais importantes que por cá se tem podido ver.