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quarta-feira, 22 de outubro de 2025

João Queiroz (1957-2025), de 1996 a 2006 no Expresso

 "Viver a paisagem"

Mais do que um exercício de observação e posse, uma experiência vital da natureza

Porta 33, Funchal

Expresso Cartaz 8 Dezembro 2000, pág. 19

 


JOÃO Queiroz desenha e pinta paisagens, mas tem uma grande resistência a usar pacificamente essa designação, isto é, a admitir a tradução daquilo que faz por uma palavra gasta e, em especial, a aceitar os hábitos ou códigos da representação-dominação da natureza que com ela se expressam. A sua mais recente exposição acontece no Funchal e todos os trabalhos expostos têm por origem, mais ou menos evidente, uma experiência de relação directa (visual/vital) com o ambiente natural do arquipélago. Qual é, porém, a diferença, a distância ou o trânsito que se estabelece entre a paisagem física que se visita ou em que se vive e o objecto (de arte) que se classifica como paisagem? Os trabalhos de João Queiroz somam à sua áspera sedução visual a capacidade de pôr questões, o que se deverá entender como um grau superior de eficácia.

Muitos dos seus desenhos, claramente realizados diante do motivo pela imediaticidade do traço que transcreve no papel a exploração do visível, estão expressamente localizados em Porto Santo e na Madeira, embora se exponham «sem título», contrariando uma cómoda identificação topográfica, que o observador informado poderá tentar, em vários casos, com maior ou menor facilidade. Pela diversidade da sua linguagem gráfica, eles recusam a aprendizagem mecânica dos gestos, a procura de um automatismo em que o olhar e a mão se associem num saber fazer ou na afirmação da «habilidade», para se reconhecerem talvez como o traço de um sismógrafo, como uma experiência sempre recomeçada, uma incerteza activa sobre o que é o desenho e também uma constatação permanente da alteridade do objecto visto e questionado.

Outros trabalhos (as pinturas, os desenhos de maior formato), que já foram realizados em Lisboa, resultam da reelaboração de informações memorizadas - de sensações recordadas e revividas -, ou reavivadas através da observação de esquiços, desenhos prévios ou mesmo fotografias. No entanto, se existe então uma recomposição dos elementos da paisagem, ela mantém ou recupera, através da concentração intencional sobre a emergência liminar das formas (antes da identificação dos objectos ou da sua categorização conceptual), a vibração sensorial diante do ambiente natural, sem se subordinar a um qualquer projecto de síntese descritiva ou de codificação formal.

E uma mesma impressão de imediaticidade que se comunica nessas obras de maior investimento processual (mas não de maior «acabamento» convencional), talvez porque a primeira transcrição dos dados da observação, nos esquiços desenhados, é um registo do visível que exige a si próprio tanto a recusa à categorização interpretativa do visto como a atenção à gestualidade envolvida por essa experiência ou vivência da natureza.
Resultantes de um programa muito reflectido, com base no interrogar da representação e da constituição da paisagem como género artística histórico e prática tradicional, erudita ou não (o autor tem uma dupla formação em filosofia e em pintura e desenho), as paisagens de João Queiroz não são aprisionadas por uma disciplina rigidamente programática. Pelo contrário, elas caracterizam-se pela dimensão experimental que é exigida pelo seu próprio projecto reflexivo, surgindo como uma experiência viva da natureza, que se mantém, variando as condições processuais, do esquiço realizado ao vivo diante do motivo ("sur le vif», «from live», como se diz do desenho de observação) até à reelaboração no atelier, investindo o artista nessa passagem do exercício da observação para o exercício da execução.
Não é, de facto, apenas de um exercício de observação que se trata, o qual privilegiaria o olhar na busca da transformação em expressão gráfica ou pictural de uma sensação visual, à qual a mão serviria como instrumento fiel e disciplinado. A postura conceptual de João Queiroz, que ele próprio tem formulado em textos próprios e em entrevistas, acentua a dimensão corpórea do gesto que desenha ou pinta: «Eu desenho e pinto com o corpo»; «estou no meio da natureza com o lápis, oiço e vejo o vento nas árvores e penso ao mesmo tempo em que movimentos vou fazer no papel para transpor para aí os movimentos da natureza. Mais tarde, no atelier, trabalho a partir desses movimentos corpóreos» (entrevista de Doris von Drathen, «Kunstfórum», Julho-Setembro 2000).
Assim, é desde logo a observação que é «corporizada», na medida em que Queiroz procura que ela seja intelectual e emocionalmente desprevenida e também que se liberte de qualquer intenção intelectual de descrição-apropriação da natureza. Se essas foram atitudes produtivas enquanto a representação da natureza não se dissociou na criação artística e na investigação científica (do que pode ser exemplo o desenho de Dürer), a relação actual com a paisagem, depois da fotografia, parece abrir-se a outras possibilidades ou ambições.
 
No Funchal, os trabalhos de João Queiroz ocupam a vasta sala do piso térreo da galeria e distribuem-se por outras salas de mais dois andares, sempre com uma montagem cuidadosamente desordenada, que faz sucederem-se diferentes técnicas (desenhos a grafite, aguarelas e óleos), diversíssimos formatos e também os variados lugares ou motivos observados pelo artista. A uma observação atenta, o visitante poderá vir a reconhecer que um mesmo motivo é retomado em diferentes «media» e que ele surge ora em esquiço ora reelaborado, sem diferenciação substantiva de resultados.
Em dois espaços, a mostra toma outra configuração: a de uma parede contínua de desenhos a carvão ou sangue de drago (um vermelho intenso obtido a partir da semente do dragoeiro), idêntica à que João Queiroz apresentou em 1999 nas Caldas da Rainha, e uma sequência que acompanha o itinerário de uma levada, em aguarelas que foram realizadas a partir de fotografias.
Não é irrelevante a quantidade dos trabalhos expostos, e, se se poderia falar-se de uma exposição-soma, na diversidade dos mais de 180 trabalhos (pinturas a óleo, aguarelas e desenhos a carvão, sangue de drago, grafite e pena), o que importa é o enunciado da sua própria infinitude. A produção multiplicada, infinitamente variável quanto aos lugares vistos e aos processos materiais de realização das «vistas», não é independente do próprio projecto vivencial e reflexivo que os desenhos e pinturas corporizam, porque o exercício de execução, a prática concreta de uma observação gestualizada, é mais importante do que o exercício do olhar que estaria implícito no desenho e na pintura de paisagem.

O facto de se tratar da paisagem da Madeira e de aí se localizar a exposição confere urna intensidade particular à relação do espectador com o trabalho de João Queiroz, não só por o ambiente natural (ainda que degradado em muitas zonas pela desenfreada especulação turística) ter uma presença mais radical e emblemática no arquipélago do que noutros lugares, mas também porque a representação convencional da paisagem continua aí a alimentar uma produção tradicionalista e de largo consumo. O confronto com esta será certamente produtivo e permitirá entender como as paisagens que se expõem na Porta 33 assumem a persistência de um género (como uma necessidade ou um gosto que nenhum «progresso» conseguiu inviabilizar), ao mesmo tempo que o renovam mediante a sua problematização e a procura de diferentes comportamentos face à natureza, à arte e à vida.

Entretanto, deve referir-se a intensa visibilidade que a produção paisagística de João Queiroz tem tido nos últimos dois anos. Para além das mostras individuais, destacaram-se as participações nas colectivas «Paisagens no Singular» e «O Génio do Olhar, Desenho como Disciplina», duas produções itinerantes do IAC dirigidas respectivamente por Miguel Wandschneider e Nuno Faria e por Manuel Castro Caldas. Actualmente, é um dos artistas nomeados para o Prémio EDP de Desenho, que se apresenta no Palácio da Ajuda.  (Até 3 de Fevereiro de 2001)


"A observação activa"

JOÃO QUEIROZ

Centro de Artes, Caldas da Rainha 

EXPRESSO Cartaz, de 04.09.1999

UM LADO da galeria-hangar é em grande parte ocupado por uma compacta montagem de desenhos (180), regularmente alinhados em seis longas fiadas horizontais e 30 verticais. Sem intervalos entre si, as folhas de papel suspendem-se dos seus cantos superiores, parcialmente soltas e flutuantes, destacando-se cada desenho, do que começa por ver-se como um painel contínuo, por essa ondulação variável que o afasta da parede e, num segundo momento, pela mancha que o ocupa, mais ou menos centrada sobre os seus bordos brancos e com uma configuração também sempre diversa.
O efeito global de instalação favorece primeiro a visão distanciada e desdobra-se depois nos seus elementos parcelares e bem individualizados, que reconhecemos serem desenhos de paisagem natural, realizados a carvão, num convite a um movimento de aproximação que nunca se detém em qualquer ponto fixo, implicando o observador no percurso também flutuante de uma contemplação activa, com que acompanhará, com o olhar e com o corpo, o alinhamento dado à exposição.








O desenho do natural, diante do motivo, como uma actividade experimental

Nesse trânsito, o observador explorará os motivos que pode identificar em fragmentos de paisagens – árvores isoladas ou em grupo, tufos de vegetação rasteira, caminhos e ondulações de terreno – e procurará adivinhar um ritmo ou uma lógica na disposição dos desenhos, surpreendendo a sua infinita diversidade e, ao mesmo tempo, ensaiando possíveis comparações que dêem um sentido sequencial à montagem, sumariem temas ou localizem um espaço ou itinerário. A atenção do espectador oscilará entre o reconhecimento de objectos representados (árvore, caminho, etc) e a apreensão imprecisa de manchas, arabescos e vazios, torvelinhos ou massas indistintas, com que a forma se furta a qualquer segura tradução verbal e a um eventual destino talvez informativo, sem contudo se sintetizar ou desvanecer numa «abstracção».
No mesmo balanço, notará a constante variabilidade da expressão gráfica, desenho a desenho, na diferença de espessura, firmeza ou velocidade do traço, na espontaneidade da linha contínua e cursiva ou na ligeireza mais aérea de uma malha de pontos, no riscar repetido de uma sombra ou fenda enegrecida, ou antes no esfumar de um contorno, procurando a fidelidade ao pormenor ou suspendendo-se o gesto num apontamento mais vago. Verá que variam a pressão da mão e a resistência do material, mudando também os carvões usados, negros ou a percorrer uma gama interminável de cinzentos e também castanhos.
À errância inconclusiva do observador corresponde a condição do desenho de observação como um recomeço sem fim, sem outra regra que não seja a experiência de uma acuidade visual que prolonga a percepção pelo gesto da mão, como um traçado sísmico das reacções infinitamente variáveis de um vivido acto de ver, cujo resultado sempre provisório e fragmentário restitui a aparência de um modelo com a intensidade sensível de uma urgência que está sempre ausente da cópia. Exercício do olhar e, como sublinha João Queiroz, exercício de execução, o desenho do natural (diante do motivo, «sur le vif») é a transformação em expressão gráfica de sensações visuais, desaprendendo a informação disponível sobre a forma das coisas para surpreender o aparecer da forma, construindo o visível antes da sua descodificação ou categorização conceptual, antes do signo.

A opção da montagem torna evidente que a multiplicação dos desenhos decorre de um programa metódico de trabalho, assumindo como exercício reflexivo sobre a natureza da representação e da imagem o que é forçosamente uma investigação empírica, movida pela variabilidade infinita dos estímulos visuais e também da reacção do artista a esses estímulos. A instalação mostra também que essa investigação não tem por conclusão a chegada a um método ou estilo de representação, a aquisição de uma fórmula que uniformize as diferenças, mas a permanência de uma disponibilidade inteiramente livre para sondar a presença óptica dos objectos e captar, nas relações entre eles, o que os configura como imagem.
Uma disponibilidade para a observação activa, atenta à impermanência e metamorfose das coisas vistas, no trânsito instável entre real e imaginário, e também informada pela memória múltipla da prática de um meio de expressão que nunca se poderia formalizar numa técnica, mas tem uma longa tradição europeia e oriental. Aliás, sem qualquer dogmatismo sobre a «pureza» de um olhar desprevenido, J. Queiroz serve-se por vezes da fotografia e de desenhos anteriores.
Ao longo da última temporada, sucessivas exposições testemunharam a valorização recente da paisagem como um assunto que interessa à criação contemporânea, proporcionando algumas interrogações sobre a permanência de um género tradicional; com esta mostra passa-se à identificação de uma problemática mais ampla, questionando, através da atenção ao espectáculo do visível, a separação entre o desenho e a observação que se estabeleceu como uma persistente convenção modernista.


"A experiência da natureza"

Prática e interrogação da pintura de paisagem 

«Pintura» Centro de Arte Moderna (de 13 Abril  a 30 Setembro 2006) 

EXPRESSO Actual de 17-06-2006


Sem título, 2005-2006, óleo sobre tela, 190 x 250 cm

A paisagem teve uma importância fulcral na pintura do século XIX, em duas direcções em parte coincidentes: por um lado, a exploração sistemática do mundo, associando o inventário dos lugares, a comunhão romântica com a natureza e o exotismo das viagens; por outro, o trânsito da observação do natural e da pintura realista de ar livre, enquanto estudo apaixonado da natureza, à ambição da «pintura pura», que se irá entender como projecto analítico ou sistema autónomo e auto-referencial. No seguinte século não houve linhas de continuidade reconhecíveis como evolução de um género, mas o corte cronológico não tem a arbitrariedade do calendário, porque «fauves», expressionistas e cubistas continuavam a reinventar a paisagem. O espectáculo das trincheiras da Grande Guerra, essas outras paisagens de morte radicalmente inéditas, terá tido retrospectivamente uma decisiva influência no que se chamou crise da representação (com outras referências, o historiador Yve-Alain Blois dirá que «o luto tem sido a actividade da pintura ao longo do século»).

A alternativa aberta pelas abstracções viria a permitir novos recomeços. Nas últimas décadas do século XX, dois artistas que se associam à geração da arte pop, apesar da sua independência face aos estilos, fizerem importantes contribuições para a história da paisagem: Wayne Thibaud, desde os anos 70, com vistas de São Francisco (paisagens urbanas, «cityscapes») e do delta do rio Sacramento; David Hockney, desde os anos 80, mas em especial no final dos 90, com as estradas do seu Yorkshire natal e os panoramas do Grand Canyon. Em ambos os pintores, as liberdades com as convenções perspécticas e a visão em movimento proporcionada pelo automóvel transformaram-se em poderosas inovações.

Com a recente viragem de século e a recuperação da pintura como medium outra vez contemporâneo, o interesse pela paisagem voltou a estar na moda. Em geral, exploram-se mediações fotográficas com uma intencional arbitrariedade de efeitos pictóricos e ilusionistas, estratégia que se legitimaria num suposto paradigma estabelecido por Gerhard Richter. Entre nós, a exposição «Paisagens no Singular», em 1999 <ver em arquivo>, procurou adaptar discursos sem abdicar das fórmulas gastas («a concepção da arte como representação da realidade foi definitivamente superada», dizia-se).

João Queiroz era a presença inovadora dessa mostra colectiva e tem continuado a dedicar-se ao desenho e à pintura da paisagem natural com uma maneira própria de problematizar, na sua obra e também através de breves textos e de entrevistas, as condições de possibilidade e os meios dessa forma particular de relação com a natureza. Dessa atitude reflexiva que pode decorrer da formação em filosofia faz parte, como um aparente paradoxo, o sublinhar da importância do que na atenção prestada à natureza e na evocação ou transcrição dessa experiência, que é também corporal para além de ser visual, resiste à palavra e à compreensão conceptual.

Do seu percurso está ausente o inventário ou a descrição de lugares, que não são nunca referenciados, mesmo se pudemos saber que determinada série teve origem numa estada na Madeira. Suspeitando da ambição de representar como sendo uma «tentativa de domínio», tratar-se-á de tornar visível uma experiência sensorial e emocional de imersão na natureza, partindo da identificação com esta para algo de transcendente ou desconhecido (falou-de de exercício espiritual, de «vislumbres de transcendência»). Assim, Queiroz parece interrogar a distância que vai do acto «puro» de ver (de ver o mundo, ou a natureza, suspendendo o que deles se sabe) ao gesto da mão, à aparição da forma no desenho e depois na pintura, na sua dimensão aparentemente mais física e menos programada, que se realiza também nas condições de aparente espontaneidade gestual da pincelada sobre a tela. Suspende-se neste exercício de passagem do visto ao pintado a interpretação do objecto, e logo a responsabilidade de descrever ou representar (não distinguimos perto ou longe, árvore ou sombra, nuvens ou rochedos), tal como se desejou suster logo na observação do mundo a análise e a classificação do visível.

Na galeria do CAM mostram-se seis telas de grandes dimensões que se reconhecem como pinturas de paisagem - mas detém-se esta identidade no limiar do reconhecimento, como janelas abertas para algo de indizível. Nos 190 x 250 cm do seu formato, a horizontalidade convencional interrompe-se no corte abrupto de uma secção que torna mais notória a indeterminação de qualquer itinerário espacial, sem solo nem linhas de horizonte, ao mesmo tempo que o irrealismo da cor sublinha a dificuldade de nomear volumes ou objectos. O que não se deixa descrever, mas não aceita a ideia da abstracção, nem conduz aqui a uma situação de indiferença da imagem, propõe-se reactivar a intensidade emocional da pintura como relação com o mundo.


 
S/título, 2005/06. Óleo s/tela, 190x250 cm


2003

João Queiroz,  Galeria Lisboa 20   

Expresso 18-04-2003

A nova incursão de J.Q. pela pintura de paisagem é um exercício de alto risco, acolhido como um trabalho polémico. É bom que assim seja. 

Desenhos anteriores realizados diante do motivo ensaiaram a experiência de uma relação corporal com a paisagem, mais funda do que uma transcrição mimética do visto, ao pensar a específica fisicalidade do olhar, da mão e do material; outras pinturas, apoiadas em notações desenhadas ou na memória, procuraram antes sustentar-se e suster-se sobre a condição própria da aparição da forma, assegurando uma qualquer referencialidade reconhecível ou verosímil, mesmo que resultante de uma conjunção de momentos plásticos exercitados sobre a tela. Agora, um outro modo de pensar a representação (a sua crise e possibilidade) é investido numa maior desrealização da paisagem, praticada em simultâneo com a aparência paradoxal de uma precisão mais naturalista. 

A relação entre a parte e o todo, por vezes entre a figura (tronco, rocha ou flor) e o fundo, entre a cor natural e «artificial», entre a indefinição do espaço e a legibilidade da sua construção, distanciam a imagem pintada de um sistema de conhecimento da natureza para se afirmar como pintura. A gama cromática antes aberta à extensão de valores estridentes e puros fecha-se agora sobre uma paleta surda de terras e amarelos abstractamente iluminados. 

Não se trata de enveredar por uma paisagem imaginária ou irrealista, mas de experimentar mais radicalmente a diferença entre natureza e representação pictural. Distanciada da observação directa, bem como da mediação fotográfica que tem sido o suporte fácil da recuperação do «género», a paisagem é assim muito mais uma questão de pintura, num exercício densamente reflectido (conceptual) que é também aplicadamente trabalhado como disciplina oficinal - conjunção particularmente perturbadora para alguns olhares.


2001

João Queiroz, Sala Jorge Vieira
10/11/2001

Anteriores mostras de desenhos paisagísticos de J.Q. associavam-se a lugares precisos, num exercício disciplinar de observação do natural que se indisciplinava na recusa de um estilo, de um virtuosismo ou saber fazer estabilizado para associar a procura de um sempre renovado acordo entre o olhar e a mão a uma vontade de interrogação especulativa sobre a natureza desse exercício e os seus resultados. Agora, vários dos lugares de viagem são mediados por lições ou estilos de clássicos, à maneira de Rembrandt, de Constable ou de pinturas chinesas, surgindo ao lado dos desenhos à vista outros de imaginação ou «a partir da televisão», ou só apontamentos, incluindo comentários escritos. 

É um imenso «Livro de Estudos» que se expõe, mas este parece surgir menos como uma experiência viva, praticada como a abertura (ou reabertura) de um campo de possibilidades sempre a descobrir, do que como a demonstração de uma impossibilidade contemporânea de uma verdade do desenho ou da recusa a aspirar à «Grande Arte» de que fala Manuel Castro Caldas no catálogo. 

A dimensão reflexiva separa-se do investimento corporal, que aparecia como essencial ao exercício do desenho, e o resultado talvez se torne mais problemático do que problematizador. (Parque das Nações, até 18)



1999


João Queiroz 

Módulo

20-11-99  


As paisagens de J.Q. foram sendo notadas ao longo do ano, em diversas mostras individuais e colectivas. Para o autor, que agora apresenta apenas pinturas, essa classificação como paisagens deve ser problematizada, pelo que tem acompanhado as suas obras com alguns textos de reflexão - J.Q. formou-se em filosofia e é professor de pintura e desenho. Ele recusa uma ideia tradicional de representação que se identifica com «um olhar dominador, coisificador, totalizante», o qual pretenderia hierarquizar, nomear e reduzir a «radical alteridade e infinidade que a natureza constitui para nós». Esse terá sido por muito tempo o olhar de uma pintura que interrogava a natureza sem se dissociar da observação científica e que também se foi sempre interrogando a si mesmo, sem se fixar numa qualquer «tradição». A pretensão da exacta transcrição da realidade com que se academizou o naturalismo tardio, já divorciado da ciência e congelando-se em visões sentimentais, foi paralela às explorações do imaginário simbólico e abstracto, com que se condenava não a representação mas sim a própria observação. J.Q. não pretende trabalhar sobre a história da arte, embora a conheça, mas sobre a experiência visual directa da paisagem, diante do motivo, no caso do desenho, ou através da memória, na pintura. É o trânsito entre o ver e o fazer, entre o olho e a mão, que lhe interessa como objecto da sua pintura, situando-se para além da representação ou do sentido das imagens. (Até 25)  


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Sou o que Vejo  (colectiva)
Sociedade Nacional de Belas Artes
05-06-99

Não se via há muito o grande salão da SNBA assim utilizado como um qualificado espaço de exposições. O que se aí mostra são trabalhos de alguns dos participantes num 3º Simpósio realizado em Feital-Trancoso, em 97 e 98, dedicado ao desenho e organizado por Maria Lino e o atelier Temos Tempo. É um exercício de deslocalização do trabalho, de comunicação entre artistas e, neste caso, de imersão e observação da paisagem que um simpósio propicia; nessas condições, dinâmicas e imprevistas, a prática de atelier e a produção estabilizada pode abrir-se a outros desafios e descobertas. 

João Queiroz, Maria João Salema e Sérgio Taborda, todos eles também docentes no Ar.Co, comprovam as virtualidades da situação - J. Queiroz com os desenhos que sustentam a sua aparição em recentes exposições, centrada na paisagem, redescobrindo a observação e a representação da natureza, em diálogo com citações e comentários escritos, eventualmente defensivos perante os desafios do olhar; M.J. Salema com desenhos a pastel, isolando o motivo como ilha ou bolha na página do papel, diluindo as formas na cor atmosférica; Taborda, com exercícios onde a construção formal é interrogação sobre a luz e o automatismo da mão. 

Outros participantes internacionais mostram aguarelas, «frottages» e fotografias. Maria Lino, que expôs em Lisboa em 1968 e se instalou na Alemanha entre 1970 e 97, expõe esculturas e desenhos. Aquelas, usam o tronco de madeira para rudemente configurarem uma presença humana, por vezes sublinhada a cor, estranhamente monumental, abstracta e próxima, ou usam a articulação de tábuas recortadas, em planos cheios e vazios que esboçam situações narrativas,

enquanto outras peças ainda praticam o humor da «assemblage». Os seus desenhos a pincel têm também o corpo como tema, vertido em campos de energia e tensão, em que se sintetiza a forma e o gesto gráfico. (Até 19)

1997


JOÃO QUEIROZ

Liv. Assírio & Alvim 

01-03-97

O desenho proposto como problematização do desenho, ou uma prática que se manifesta como inventário de possibilidades e de inevitáveis «échecs», num exercício que não tem outro sentido do que declarar sem sentido uma tradição ou disciplina, emoldurando-se como o seu vestígio. Do gesto compulsivo que marca ou risca, prática obsessiva que já não se considera a si mesmo «expressiva» nem visa o «estilo», ao desenho que se furta a ser exercício de observação (paisagem, no caso), suspendendo o possível «link» entre o olhar e a mão que traça, cumprem-se os itinerários — os gestos de uma aprendizagem esvaziada de qualquer projecto que a si mesmo se procure transcender — de algo que parece querer preservar-se como uma actividade sem razão ou insondável, para assegurar uma primeira (e última) existência processual e, talvez, identitária: a manifestação de uma intimidade que também já  não se revela ou constrói como universo privado.


1996

 JOÃO QUEIROZ

Boqueirão da Praia da Galé 

20-04-96

No velho armazém-galeria de culto, onde os objectos sempre se substituem por ideias ou acções, assegurando pela via de uma radical recusa da recuperação mercantil e da memória museológica uma última verdade da arte como inquetação ou atitude vital, por vezes com assinalável intensidade problematizadora, é agora um desenho que se expõe, mas realizado sobre o chão, irreprodutível e inconservável. «Refluxos feitos pelo pescoço de um pato meio afogado» nomeia literalmente um desenho de limite circular que tira partido das irregularidades do pavimento, como se o gesto repetisse inexplicados rituais da gravação de cavernas, compulsivas necessidades de expressão para sempre não-significantes. 


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JOÃO QUEIROZ, Palmira Suso - 2 Fev.91 (...)

ver "Paisagens plurais" 10 Abril 99

BALTAZAR TORRES, JOÃO QUEIROZ, MICHAEL BIBERSTEIN, ROSA CARVALHO
Quadrado Azul (até 6 de Maio), Módulo (até 28), Pedro Oliveira (até 17) e Canvas (até 14).
Porto





 

sábado, 20 de setembro de 2025

EDUARDO BATARDA Galeria 111, 2000: "Quadro a quadro"

 "Quadro a quadro"

Galeria 111 , "Pintura" (Até 29 Abril)

Expresso, 19-03-2000

BATARDA regressa à 111 - por sinal, inaugurando o seu novo espaço - oito anos depois da anterior individual na galeria, dois anos depois da retrospectiva que o CAM lhe dedicou. Aí mostrara 17 novas telas que preenchiam o hiato, escassamente (em quantidade); agora expõe 16 quadros, dois deles vindos já da retrospectiva. Alguns outros, muito poucos, tinham surgido isoladamente, em ocasiões colectivas, sem desmentirem a raridade da produção recente, mesmo se esta foi retomada com maior regularidade.

Não admira que toda a exposição estivesse vendida na véspera, e também não importa agora questionar o quase silêncio que Batarda manteve ao longo dos anos 90. Aliás, tratou-se em grande medida de uma situação de ocultação, porque cerca de dois anos os tinha passado na concepção de um grande projecto de arte pública para a estação de Metro de Telheiras, até hoje sujeito a vicissitudes diversas e graves. Esse projecto, com 337 desenhos diferentes exaustivamente estudados para o espaço previsto, a que dedicou um grau de investimento muito raro, é (será ainda?) um trabalho marcante no seu itinerário e ficaria (ficará?) a sê-lo também entre os escassos itinerários da arte pública lisboeta. Mas outras ocultações existiram, por via dos que administraram as visibilidades da década.

Na retrospectiva, as obras em estreia respondiam à expectativa gerada pelo silêncio sem evidenciarem uma situação de viragem ou de afirmação de novas séries - Batarda não é um pintor de ciclos ou séries, como se preferisse a acumulação e sedimentação em cada quadro de todo o trabalho feito antes (e feito antes dele também) ao possível efeito breve de surpresa de uma qualquer mutação programada. Nesses quadros observava-se a exploração de linhas simultâneas de trabalho, onde a reconsideração de propostas ensaiadas em momentos diferentes do seu trabalho anterior se abria em novas pistas, aparentemente divergentes. «Porno-romanos», radiografias, letrismos reciclavam «fases» e sentidos anteriores com diferentes soluções.

Agora, essa diversidade de direcções persiste, frustrando a expectativa de um programa, via única, estratégia, que facilitassem uma leitura condensada do trabalho de Batarda. Em vez de um conjunto traduzível numa fórmula comum, em vez de uma exposição identificável por um enunciado sintético de «interrogações» ou por um estilo, o observador depara com a realidade manifesta da diversidade dos 16 quadros expostos, decerto agrupáveis por subconjuntos, temas, formatos, esquemas formais de composição, valores cromáticos, etc, mas sem convergirem numa síntese cómoda.

Não é de dispersão que se trata, menos ainda de desorientação. Desse aparente desencontro de direcções é a afirmação da identidade de cada quadro que sobressai como uma questão sempre em aberto (para o pintor e para o observador), como um desafio sucessivamente tentado e posto à prova na realidade material de cada tela, o qual importa reconhecer e avaliar em cada uma, diferentemente. Cada quadro coloca a questão decisiva de saber o que é um quadro conseguido (não é possível escrever um quadro perfeito). O que, entre meados de 80 e início dos anos 90, era, em cada quadro-soma, acumulação de referências, evocações e sentidos, sobrepostas como camadas e dispostos como peças de um «puzzle» talvez indecifrável, o que os transformava numa afirmação de virtuosismo e erudição extremos, é agora mais directo, mais claro, mais seco. 


Hispania Romana II, 1997, 200 x 160 cm

À «série» «Hispania Romana», com que retornara a um discurso abertamente figurativo, próximo das antigas aguarelas na junção da referência erudita à expressão vernacular, acrescentam-se dois novos quadros, o último reintegrando a malha dos saios dos centuriões numa estrutura central elíptica, na qual se encerra ou oculta o sentido mais descritivo dos anteriores. O formato paisagem desse nº 5 parece ditar as suas condições formais e a narração anedótica (porque não?) fecha-se num processo de encobrimentos e ocultações deixadas bem visíveis na tela.

Aliás, as questões de formatos e escalas parecem ter aqui uma intensidade muito marcada, patente nas quatro telas ao alto que retomam as construções em espiral, convertidas em irregulares linhas serpentinadas, as quais parecem prescindir do apelo a uma massa acumulada de referências ou «reflexões» sobre precedentes históricos e sentidos sobrepostos (cabeça, urna, elmo, capitel, etc) para explorarem o domínio das formas, o gosto das texturas, a riqueza das cores, a ilusão dos volumes, a imagem sem figura.


Love Handles, 1999/2000 160x130cm

Esta reentra nas «radiografias» do conjunto «Doctor B, C, G, Dr.», onde a representação do corpo, mais internamente sentido que visto, dá também lugar a sobrepostas segundas leituras brincadamente figurativas, usando com mestria a ocultação a negro. Outros corpo e rosto surgem em "Love Handles (pregas de amor)" e "Say Cheese", num jogo de figuração-desfiguração que toma uma nova expressão formal no seu trabalho.

Refiram-se ainda as duas telas em que reutiliza com auto-ironia o turbilhão elíptico, aqui mais ou menos desarrumado e com um sentido críptico que só com ajuda se decifra. Os «Espelho's» têm a ver com a estranha coincidência (?) entre a pintura de Batarda e alguns quadros recentes de Terry Winters, sugerido no título ("Outono") de uma tela e no W central de outra. Não é a posse de uma chave (nem a existência de uma fórmula, de um programa) que asseguram que se está diante de um quadro conseguido. É o facto de ela atrair e sustentar o olhar, de se impor como um objecto que resiste, que interpela, que se abre a leituras continuadas e divergentes, que nos fixa. Como aqui sucede por 16 vezes.


Catálogo com texto de João Miguel Fernandes Jorge. 16 reproduções.


sexta-feira, 7 de abril de 2000

2000, René Bertholo, Serralves

René Bertholo Serralves 2000

FIGURA.FICÇÃO
Catálogo da retrospectiva de René Bertholo no Museu de Serralves
7 de Abril - 28 de Maio de 2000

Rene (Inclui textos de John Ashbery, André Balthazar, João Fernandes, Sebastião Fonseca, José-Augusto França, Jean-Jacques Lavêque e Alexandre Pomar. As entrevistas foram conduzidas por Xavier Douroux & Frank Gautherot, Pierre Restany e Jean-Luc Verley.)

1. René Bertholo é um actores, é mesmo um dos protagonistas, que intervêm na conjuntura em que, no início dos anos 60, em Paris, tal como em outras capitais, se procede ao ensaio das condições de possibilidade de uma figuração entendida como nova, isto é, defendida como de ruptura ou de vanguarda face ao predomínio das expressões abstraccionistas.
Esse é um ciclo complexo em que às manifestações de um corte geracional e cultural se associavam linhas mais ou menos subterrâneas de continuidade com precedentes práticas realistas e, especialmente, com orientações críticas dos valores instituídos que se interessaram por várias formas de figuração primitivista (infantil, popular, grafitista, etc), desde Dubuffet e Chaissac até às manifestações do grupo Cobra, de Appel, Jorn, Constant e outros, sobre heranças do surrealismo revolucionário belga e com sequência imaginista e situacionista. Aos «novos realismos» que se aproximavam da interpretação de uma nova «natureza industrial, mecânica, publicitária» (1) por via da apropriação directa dos seus produtos e detritos (assemblage, acumulação), somam-se então as práticas picturais que buscam a sua renovação no reportório das imagens populares da cultura urbana, sob as designações Pop e neofiguração, a qual, em versão mais parisiense, se nomeava figuração narrativa e, a seguir, figuração crítica. A respectiva consagração enquanto atitude vanguardista seria tão rápida como efémera, logo desvalorizada como prática regressiva (2) e substituída pela aceleração da lógica das rupturas, ao ritmo de uma crescente dissociação dos circuitos de legitimação, a que o seu próprio êxito público dera lugar. Diferentes atitudes radicais, que recuperavam o vector da autonomia formalista ou escolhiam o primado da atitude, poriam então em causa, outra vez, a continuidade da pintura como medium ainda potencialmente inovador e relegavam para a área do «mainstream», ou para a travessia do deserto, quase todos os artistas que estiveram associados àquele processo.

A década é tumultuosa. Nela se encerra a guerra da Argélia e abre a do Vietname (e também as guerras portuguesas), transportadas para o interior das metrópoles, num processo em que os sucessos económicos do pós-guerra são confrontados com a estagnação das expectativas políticas geradas pela vitória aliada, identificando-se a contestação ideológica com a miragem da emergência de alternativas nas periferias pré-capitalistas. (A conjuntura política, que aqui se terá de supor conhecida, voltará a ser referida a propósito da obra de R.B., na medida em que ele próprio se vai confrontar claramente com as marcas mais efémeras daquela.) É também uma década que assiste à substituição das consagrações parisienses pelo dinamismo de um novo centro, Nova Iorque, e também à afirmação de outras capitais, aonde chegam mais cedo os ecos norte-americanos ou que têm mais experimentada a sua condição periférica. A França nunca mais saberia, até hoje, defender os seus artistas e os estrangeiros que acolhia, tornando-se doentiamente dependente dos gestos de reconhecimento vindos do exterior.

Sendo um dos protagonistas de uma dinâmica colectiva de renovação, e é raríssimo que na arte portuguesa se verifique, em vez da dependência ou da sintonia, essa participação plena no centro da acção internacional, René Bertholo é – em grande medida por isso mesmo (o confronto surdo entre estrangeirados e «resistentes» que no interior se acomodaram continua a atravessar o panorama nacional) – o último dos artistas portugueses afirmados nos anos 60 a ser objecto de um olhar retrospectivo. Valerá a pena enfrentar o atraso da revisão da sua obra, que muitas vezes foi sendo apontada como indispensável, mas que tem ainda em Serralves uma abordagem só antológica.

Ter-se-ia de falar da dispersão real de uma obra que percorre então um largo circuito internacional de exibição, da Itália aos países nórdicos e também aos Estados Unidos – neste caso, por sinal, integrando um importante panorama oficial francês, «Painting in France, 1900-1967», itinerante por Washington, Nova Iorque, Boston, Chicago e São Francisco, cuja reduzida projecção funcionou como decisivo revelador da menorização do centro parisiense. Uma obra dispersa é mais difícil de reunir, e conhece-se a regra da facilidade e a pobreza de meios que têm curso institucional entre nós; não há nada como as obras de gaveta e atelier para favorecer as «descobertas» de que se alimentam os comissários, com a vantagem adicional de não sujarem as mãos procurando num mercado privado que, para mais, não precisou dos seus préstimos.

Ter-se-ia de falar também numa obra quantitativamente escassa, ou lenta, que nunca se estabeleceu como cadeia de produção, ao arrepio de outras «fábricas» que se tornaram emblemáticas da década de 60 e serviram de modelo aos circuitos de distribuição que a partir de então se começaram a montar com uma lógica já não artesanal – estava a nascer, sobre a contestação da década, a indústria do espectáculo cultural. Mais ainda, notar-se-á que René Bertholo constrói, desde 60 até ao presente, um universo imaginário particularmente individualizado e coerente que sucessivamente se retoma e reorienta, configurando-se sempre sobre novas condições expressivas, através de rupturas interiores mais ou menos explícitas, o que corresponde à recusa em estabilizar uma imagem de marca administrável como repetição «ad eternum» de múltiplos predefinidos e bem reconhecíveis, a que se chama em muitos casos a carreira. Poucos dos seus contemporâneos internacionais escaparam a essa tentação e raros foram tão incisivos como ele ao rejeitarem o carreirismo artístico e mesmo «a profissão» de pintor.

Por outro lado, se os primeiros períodos marcantes da obra de René Bertholo se reconhecem como característicos (e caracterizadores) dos anos 60, servindo por isso mesmo a habitual mas muito discutível tendência historicista de privilegiar os momentos de primeira consagração dos movimentos e dos artistas – de que resulta, em geral, a valorização sucessiva de cada vez mais curtos ciclos criativos e um relegar desatento e indiferenciado das obras de maturidade para um pantanoso «mainstream» –,  a produção mais recente do pintor, que é decididamente mais realista e abre, por isso mesmo, um campo mais vasto de possibilidades à expressão da imaginação e do sonho, que desde o início a alimentava, é aquela que hoje mais nos deve interessar, pelas qualidades próprias da sua realização pictural e pela originalidade radical do seu universo ficcional. Um universo imagético acertado com o seu tempo de realização, na sua própria dimensão autobiográfica e nos ecos, sintomas e questionamentos que o atravessam, mesmo se a dependência de valores mais correntes e mais mediatizados impedirão alguns de o reconhecer. E, em especial, uma obra que se enfrenta com uma das questões decisivas deixada pela herança modernista, a da viabilidade da ficção depois da desconstrução das convenções e dos mitos.
Uma tendência dominante que substitui a crítica das obras pela aplicação mecânica das grelhas cronológicas ou geracionais esforçar-se-á por sugerir, como sucede por exemplo a propósito de Paula Rego, que na pintura de René Bertholo ocorre uma sobrevivência de problemáticas dos anos 60 – a continuidade das tensões bipolares abstracção/neofiguração, representação/apresentação (e também se dirá, noutras prosas ainda mais inconsequentes, que enquanto pintura se trata do prolongamento de uma tradição já muitas vezes extinta...). Não importa. Se a cegueira não for fatal, reconhecer-se-á que o que existe de participação numa dinâmica colectivamente renovadora nos anos 60, expressando com originalidade própria um certo ar do tempo, ao intervir na reabertura de um campo de expressão figurativa sem abdicar da sua aprendizagem das lições do automatismo psíquico e da exploração abstraccionista, evolui e enriquece-se depois no sentido de uma cada vez maior afirmação individualizada para ser uma das obras incontornáveis do presente – o virar do século.
O trabalho recente de René Bertholo (como todo o seu trabalho, aliás, ao longo de diversas fases) não é o congelamento de um estilo pessoal ou a circunscrição de uma linguagem imediatamente reconhecíveis como um domínio de produção assegurado por um «copyright», como sucede, por exemplo, com Arroyo, Erro, Klasen e outros nomes que acompanharam a chamada neofiguração, no que esta ambicionou afirmar como exercício da constatação e do comentário. Sob os vectores da continuidade, não se caracterizando as suas últimas duas décadas por uma mutação por fases bem delimitadas, a obra sempre lenta e numericamente escassa da maturidade recente de René Bertholo é um processo constante de reapropriação, análise e transformação das aquisições anteriores, que se resolve sempre por uma ampliação de possibilidades expressivas e pela integração de novos questionamentos e novas imagens. Passando da inicial simulação – só simulação - de um discurso narrativo à afirmação plena da necessidade e possibilidade da ficcionação pictural.


2. O período da pintura de René Bertholo habitualmente identificada com a figuração narrativa durou apenas cerca de quatro anos, de 62/3 a 66, e encerra-se em ruptura com a respectiva caracterização enquanto tendência (veja-se o significativo diálogo com Pierre Restany publicado no catálogo da exposição de 1965 na Galerie Mathias Fels). O período seguinte dos «modelos reduzidos» é mais longo, de 66 a 73, mas é também numericamente menos produtivo, dadas as próprias características técnicas desses trabalhos, para além de constituir uma linha de trabalho mais solitária, menos directamente integrável nas movimentações colectivas então dominantes. O seu «regresso à pintura», a partir de 1974, é acompanhado por um investimento principal, até por ser intensamente absorvente enquanto trabalho efectivo, em intervenções no espaço urbano, ou obras de arte pública, que ocupam o artista entre 1972 e 1983, com uma pronunciada dimensão utópica que René Bertholo quis tornar acessível a todos os públicos e depois identificar com uma tradição da escultura popular. A primeira numa rua de Paris, a pintura de uma empena da Rue Doussoubs, no âmbito de um programa estatal de encomendas de intervenção urbana que se iniciara no ano anterior com Morellet (3); depois em vários edifícios escolares franceses, com sucessivas experiências de diferentes materiais (mosaico, cerâmica ou complexas construções esculturais, como o pórtico do Collège du Luzard, em Noisiel, 1978); a última já em Portugal, com seis esculturas em betão armado colorido, no Hospital do Barreiro.
Irregularmente, a partir de 1974, com os acrílicos sobre papel que no ano seguinte expõe na Galerie Lucien Durand («Mirages»), e mais regularmente a partir da sua instalação definitiva em Portugal, esse «regresso à pintura» constitui a mais longa das fases da obra de René Bertholo, a que corresponde a produção, sempre lenta, do seu mais extenso corpo de trabalho. A continuidade com as pinturas da primeira metade dos anos 60 é evidente, até pela retoma mais ou menos sistemática de elementos sígnicos aí presentes, mas é muito mais decisiva a evolução constante que se vai operando no seu trabalho.
Nele se assiste à transformação da estratégia de acumulação e espalhamento de pequenos sinais isolados (objectos reconhecíveis ou não reconhecíveis), em quadros que recusam a sua leitura como «estória», mesmo quando parecem sugeri-la pela utilização de processos idênticos aos da banda desenhada, numa investigação sobre as possibilidades da ampliação, localização e adensamento desses sinais, que passam a ser cada vez mais dotados de volume, «peso» e sombra (sem deixarem de ser em muitos casos «abstractos»), ao mesmo tempo que passam a organizar-se segundo diferentes modelos de representação explicitamente narrativa de um universo ficcional próprio, onde o imaginário é mais claramente afirmado como uma dimensão intrínseca do real. Nesses modelos investe-se por vezes um sentido reconhecidamente autobiográfico (as «mulheres imaginárias», os «quartos», a casa e a paisagem do Algarve, etc), ou são-no também através da revisitação da obra anterior; outros casos, como o das suas pinturas em «episódios», mostram-se claramente como dispositivos ficcionais abertos a uma pluralidade de leituras, porque também não partem de uma história preconcebida («num quadro há milhões de histórias», dizia o pintor numa entrevista de 1984); enquanto ainda noutros casos Bertholo faz uma referência explícita a personagens de ficções tradicionais – nos seus quadros de 1995 aparece o coelho de Alice, que também é uma referência privada a um desenho de António Dacosta (O Coelho do António, etc), a Carochinha, o Capuchinho Vermelho e certamente o feijoeiro mágico (Coluna Sem Fim, A Árvore da Vida).
René Bertholo recusara em 1965 a identificação dos seus quadros como figuração narrativa, no momento em que a fórmula se institui. Ao responder a um Restany que o interroga sobre o «risco» de as suas «imagens subjectivas» se organizarem numa narrativa (récit), R.B. diz: «Primeiro sabes muito bem que não sou um narrativo. Eu não conto nada. Depois, o meu tratamento da imagem (nas suas modificações como nas suas repetições) é inteiramente instintivo e espontâneo.» O tópico da narração, assim negado, associava-se então quer à defesa de um certo automatismo de tradição surrealista quer à recusa da «crítica política do género Arroyo», bem como ao respeito pelo interdito modernista do «literário», que praticamente extinguira a pintura de história e de género. Restany fala de «uma arte de evasão», Bertholo propõe-se «divertir os outros» no texto que escreve para o mesmo catálogo; notar-se-á, no entanto, que ele próprio retoma aí a ideia de narrativa, distinguindo-a da constatação e da denúncia ou crítica políticas, para a inscrever no domínio da ficção: «Encontrar para uso dos adultos qualquer coisa que corresponda  ao mundo dos livros da escola, ao mundo dos álbuns de colorir. Contar-lhes histórias de fadas, regá-los com vapores coloridos, faze-los sorrir. Deixar-lhes, no entanto, qualquer coisa para fazer: dou-lhe um cosido já pronto, mas que cada um deve temperar a seu gosto».
É na obra que cresce a partir de meados de 70 que René Bertholo vai descobrir como é que as suas telas se podem organizar como construções ficcionais, sem que a pintura se torne ilustração de um texto prévio, sem dependências  ou conotações «literárias», e onde ao seu tratamento «instintivo e espontâneo» da imagem corresponda também uma não determinação das respectivas leituras pelos espectadores (4). A questão do movimento-tempo é decisiva nessa evolução, e ela tinha passado por diversas experiências anteriores de inscrição ou utilização da «durée», tanto na sua pintura como nos «modelos reduzidos», antes de se afirmar com decisiva clareza nas sequências, compartimentações e episódios do seu período dos «quartos».
Entretanto, é particularmente relevante na produção mais recente a lenta mutação do trabalho da pintura, que radicalizou uma investigação sobre os seus procedimentos através do que René Bertholo designou como «Quadricomias», na exposição de 1995, na Galeria Fernando Santos, no Porto (também mostrada em Lisboa no ano seguinte), e, logo depois, com o início da utilização experimental das possibilidades do computador na concepção e estudo prévio dos seus quadros. Antes de voltar a considerar a obra de Bertholo no seu devir cronológico, é oportuno referir estas duas inovações processuais, pelo que elas revelam, em versão recentíssima, de uma atracção continuada pelo emprego de meios mecânicos (que já vem de uma exploração precoce das técnicas de impressão, nos anos 50, continua com a construção dos modelos reduzidos e, depois, nas máquinas musicais), mesmo se logo nos anos 60, à revelia da pressão do tempo, a sua pintura não se deixou seduzir pela apropriação fotomecânica das imagens nem pelo império da comunicação de massas.
Nas «Quadricomias», Bertholo adopta na aplicação da cor o processo usado na reprodução impressa da fotografia, a selecção de cores, restringindo a paleta a quatro tubos de óleo – azul cobalto, vermelhão, amarelo cadmium e um cinzento quase preto –, e utiliza a cor em camadas sucessivas no «preenchimento» de um desenho prévio, ou suspende aquela sequência para manter vastas áreas monocromáticas ou explorar um colorido não «naturalista», de aspecto artificial, com a luminosidade do neon ou do ecrã. O processo que então designava como «quadricomia» tinha largos antecedentes: por exemplo, em Jeux sans Issue, de 1977, um dos seus mais antigos «quartos», o pintor restringira-se à cor azul. E o início das suas pinturas dos anos 60 já tivera lugar com a decisão de colorir as formas desenhadas.
Depois, graças à exploração dos meios informáticos (scanner, computador e impressora), René Bertholo liberta-se do que havia de fastidioso no seu processo de trabalho, quando retoma elementos miniaturais dos seus quadros anteriores e os sujeita a operações de ampliação, fragmentação, repetição e sequenciação. Não se trata de o incluir em qualquer «revolução digital» de que resultem objectos de diferente natureza – e nada indica, entretanto, que os meios informáticos tenham trazido alterações substanciais ao que também já era criação de imagens virtuais pela pintura ou, noutros artistas, pela manipulação de fotografias através da fotomontagem e das alterações laboratoriais, para lá do que resulta ser mais fácil e mais «perfeito». No entanto, é certamente possível detectar na última exposição de Bertholo (1998, Cascais e Porto) uma maior variedade de processos de construção do quadro que parece resultar da maior agilidade consentida pelo computador aos seus estudos preparatórios: aí encontramos a imagem unificada sobre uma tela de grande formato, A Heroína; a utilização de dois, quatro ou seis espaços repetidos; a retoma do processo de espalhamento e acumulação de figuras, mas numa sobreposição total de elementos de onde fica ausente qualquer «fundo» plano ou abstracto, em Indiana Jones; e ainda a composição inédita de Oh Céu de Agosto ou a aparente simulação da colagem em O Diabo, a Paraquedista, etc. O novo instrumento de trabalho assegura-lhe maior liberdade inventiva.


3. Uma retrospectiva que venha a reconstituir todo o trajecto de René Bertholo, iniciado na VII Exposição Geral de Artes Plásticas, em 1953, terá de explorar o seu primeiro período de trabalho, precocemente assinalado pela participação no 1º Salão de Arte Abstracta, organizado em 1954 por José-Augusto França na Galeria de Março, e prolongado até à presença na 2ª Exposição Gulbenkian, em Dezembro de 1961, com uma tela de vigorosa gestualidade informalista. Alguns desenhos serviriam talvez para localizar em germe tópicos e processos que serão diferentemente retomados pelas obras dos anos 60, a par de uma prática da ilustração ou, melhor, de actividade gráfica figurativa (em especial, na revista de cinema «Imagem», em 1955-58), ao mesmo tempo que se averiguaria o que significa a atribuição de títulos explicitamente narrativos à produção «abstracta» apresentada em 1960 na exposição do Grupo KWI, na SNBA, onde também mostrou «relevos» que se desconhecem. Esse é um período de intensa participação de Bertholo nas iniciativas de uma nova geração de artistas e de agitação do panorama artístico português, desde a fundação da revista escolar «Ver», em 1954, e da galeria Pórtico no ano seguinte, à co-organização do 1º Salão dos Artistas de Hoje, em 1956, nas vésperas de deixar o país em direcção a Munique. A revista «KWY», que começa em 1958 com Lourdes Castro, e toma depois o carácter de órgão de grupo ou de confluência de trajectos pessoais, até 1963, insere-se nessa mesma capacidade de criação e condução de projectos colectivos.
Decisiva é a mutação que o trabalho de René Bertholo conhece a partir de 1961, com os primeiros desenhos-acumulações que conduzem directamente às pinturas expostas em 63 na Galerie du Dragon, numa situação parisiense então marcada por grande dinamismo vanguardista, em que os encontros e cruzamentos de experiências são mais decisivos que as demarcações programáticas. O tempo e a actuação propagandística de Pierre Restany parecem isolar os «Nouveaux Réalistes», na viragem da década de 50 para a de 60, como movimento coerentemente programático e fechado sobre os seus nomes de referência, mas a realidade era então mais fluida e aberta. São ténues as fronteiras entre movimentações e direcções, e os artistas que Restany agregou com os seus manifestos incluem a linha dos «affichistes» que antes se associava aos «informais», convive com o experimentalismo cinético e com o grupo Zero, estará presente também na afirmação da figuração narrativa, com Raysse e Niki de Saint-Phalle. A participação na revista «KWY» de Christo e do pintor alemão Jan Voss, desde 1960, é indicativa desses cruzamentos. O nº 11, da Primavera de 63, é organizado por Christo e em grande parte dedicado a Yves Klein.
A «nova figuração» que se procurava recobria genericamente uma distanciação crítica face à estabilizada abstracção lírica e informal parisiense, reafirmando a validade de figurações expressionistas anteriores. Em 1961, a Galerie Mathias Fels festeja os 10 anos dos Cobra e no ano seguinte apresenta a colectiva «Une nouvelle figuration», com a participação de Appel, Bacon, Corneille, Dubuffet, Giacometti, Jorn, Matta, Saura e De Stael, entre outros. Essa movimentação é exactamente contemporânea da afirmação do «Nouveau Réalisme» que Restany promove em «À 40º au-dessus de dada» (Galerie J, 1961) e ao primeiro confronto entre «neo-dadas» franceses e norte-americanos (Galerie Rive Droite, 1961), que só no ano seguinte, na sua edição americana da Sidney Jannis Gallery, incluirá, ao lado de Rauschenberg e Johns, os futuros artistas Pop (5).
Bertholo participa em 1962 numa influente exposição colectiva comissariada por jovens críticos, «Donner à Voir 2», seleccionado por José Pierre, de filiação surrealizante. No ano seguinte, em que entra na representação portuguesa da Bienal de Paris (da qual é comissário César Moreira Baptista), está presente noutro ponto da situação promovido anualmente pela Galerie Charpentier sob o nome de «École de Paris», designação que continuava a traduzir a afluência de estrangeiros a Paris e tinha uma marca cosmopolita. É então Corneille quem o selecciona, ao lado de Baj, Chaissac, Jorn, Saura, Hundertwasser e outros; aí participam também Télémaque, Fahlström, Arikha, etc. No mesmo ano de 1963, é o mesmo José Pierre que o apresenta em «Image à Cinq Branches» na Galerie Mathias Fels, ao lado de Télémaque, Rancillac, Klasen, Voss e Reuterswäld. Logo depois, Bertholo intervém activamente, com Télémaque e Rancillac, na organização de «Mythologies Quotidiennes», 1964, que tem lugar no Museu de Arte Moderna de Paris, e a propósito da qual Gassiot-Talabot forja a designação «figuração narrativa» num contexto em que a Pop britânica e americana já é conhecida. Vimos que René Bertholo não acompanhou o sentido que viria a ter essa fórmula.
É numa orientação que assume alguma proximidade com um surrealismo liberto da sua iconografia estereotipada e com a linhagem Cobra que vencera a polaridade abstracção-figuração que René Bertholo iria passar das suas primeiras acumulações desenhadas para os quadros de acumulação de imagens. «Essa coisa de ir amontoando, amontoando, não sei de onde viria, tem provavelmente várias origens» - refere o artista na entrevista de 1984 já citada (6). Interrogando-se, recorda o seu primeiro choque perante as reproduções de Pollock e Tobey vistas em Lisboa na Biblioteca Americana, ainda antes do seu grande interesse por Klee; aponta depois, já em Paris, o encontro com os «cachets» e «allures d’objects» de Arman e a impressão causada pelos esquissos de Leonardo da Vinci em «páginas inteiras cobertas de bonequinhos». Essencial, entretanto, é a cumplicidade estabelecida com Jan Voss, numa constante troca de experiências ao longo de quase uma década, que seria curioso observar em pormenor. «De nós dois acho que foi ele que começou (não quero ser pretensioso) essa evolução. Ele fazia uns novelos, uma riscalhada que tinha muito a ver com a pintura de Twombly, que já usava uma espécie de grafitis... Era uma coisa que andava no ar.» Depois é Bertholo que começa «a misturar coisas figurativas e outras abstractas dentro de um mesmo espaço», seguido por Voss.
São objectos miniaturais em queda ou em voo sobre um espaço «abstracto» que pode ser, com ironia, atmosférico e ambíguo, mas é essencialmente gráfico e objectual, entendido o quadro como página e usado como suporte ou depósito de signos e representações, às vezes limitado por frisos ou dividido por configurações geométricas repetidas que têm algo a ver com os quadrados da banda desenhada, mesmo se os sinais desobedecem à compartimentação e brincam com a sequenciação narrativa. Heraldique, Formations Blanches, Table Verte, Babel Encore, La Voie Lactée, títulos de 1963, indicam que é o jogo da associação livre e paradoxal de elementos identificáveis ou não reconhecíveis que preside a essas obras, num momento prévio ao projecto de algum modo ficcional que existirá, logo no mesmo ano, em Le Désarroi de M. Thomas, e se reconhece em Mme Julia entre la Nuit et le Jour.
Em 1965, com Une Vie de Secrétaire e Casa de Paris (título a confirmar) a tela segmenta-se em áreas bem demarcadas, que funcionam por vezes como quadro dentro do quadro ou que se podem ver como «trompe l’oeil» de uma colagem de fragmentos com diferentes regras de composição, ou melhor, de preenchimento. As zonas de acumulação esvoaçante de objectos coexistem com alinhamentos de sinais repetidos (ou de representações, por exemplo, de uma fotografia que é uma natureza morta) e ainda com sequências de imagens que sugerem o movimento ou são aparentes inventários. A palavra escrita surge como objecto também, como comentário e legenda, como pista de leitura ou  acréscimo de irrisão. Em 1966, L’Idéal já inclui um projecto de «modelo reduzido».
Entretanto, pode situar-se nestas telas o aparecimento de motivos e personagens que voltarão a surgir em pinturas muito posteriores: em Une Vie de Sécretaire está a mulher que segura um vidro, com uma espécie de adesivo sobre os braços, a qual aparece de novo em Malabarismos, de 1998, e igualmente em O Diabo, a Paraquedista, Etc, de 1997, nesta última tela também ao lado da mulher paraquedista que está desenhada em A Casa de Paris.
Voltemos ao diálogo com Pierre Restany em 1965, intitulado «Le réel au delà du récit», um prefácio assinado em comum que está intimamente associado às tensões que ocorrem na cena artística parisiense – a radicalização política no seio do Salon de la Jeune Peinture e a afirmação da figuração narrativa por Gassiot-Talabot –, manifestando a demarcação nítida de René Bertholo face a ambas. O «pai espiritual do novo realismo, papa do pop parisiense e vulgarizador prosélito do animismo do ready-made», como o próprio Restany se identifica, distancia a «escrita das coisas» de Bertholo da neofiguração narrativa que então ambiciona a intervenção política, situando-o «fora da corrente». De facto, ele já não participará em «La Figuration Narrative dans l’Art Contemporain», de Gassiot-Talabot na Galerie Creuze, em Outubro de 1965, onde a indiferença de Duchamp seria militantemente «assassinada», nem em «Bande Dessinée et Figuration Narrative», organizada em 1967 pelo mesmo crítico (7), tal como não estará associado à escalada de activismo político em que se implicam diversos artistas parisienses. Bertholo dizia a Resteny: «Abstenho-me de qualquer pretensão à moralidade pública, de qualquer crítica político-social do género Arroyo. Como homem e como português acredito pouco, em 1965, na eficácia dessa crítica». No entanto, está presente em mostras italianas orientadas para a interrogação da situação contemporânea, como «Il Presente Contestato», em Bolonha, e «Alternative Attuali», Aquila, ambas em 65, tal como participa numa sequência ininterrupta de exposições significativas desse período: o Prémio «Marzotto» em 1966, com larga circulação internacional; o Salão de Maio de Paris, em 1967, reeditado em Havana; «Superlund», na Suécia, 67;  «L’Art Vivant», Fundação Maeght, 68; «Distances», MAM, Paris, 69, etc.
Àquela distância da politização dos discursos artísticos da época, soma-se a recusa dos processos mecânicos de apropriação das imagens (transposições fotográficas, impressões serigráficas, decalcomania industrial), que defende Restany. A atitude de Bertholo é tanto mais significativa quanto a sua pintura nunca foi nem pretendeu ser a exibição de qualquer virtuosismo do fazer e, por outro lado, o gosto pela exploração das técnicas de reprodução serigráfica fora evidenciado desde o tempo da sua formação em Lisboa e esteve na base da publicação do «KWY» e de outras edições. Porque não recorres aos processos fotomecânicos? a técnica da colagem nunca te tentou? – pergunta Restany. «O meu realismo consiste em reconstituir na minha memória a integralidade da forma. As imagens “ready made” bloqueiam-me a visão. Já estão  demasiado presentes. A decalcomania ou os processos mecânicos de reprodução da forma são tão académicos como a pintura» – responde Bertholo.
Entretanto, seria curioso avaliar a incompreensão com que em Portugal se acolhem então as informações sobre as mutações que ocorriam no exterior, através de abordagens associadas a uma retardada tradição formalista e aplicadas em defesas programáticas que se colavam com um ritmo sempre excessivamente atrasado a ortodoxias já em vias de esgotamento, como ocorrera em torno do surrealismo no final da década de 40 e aconteceu com os abstracionismos na segunda metade da década de 50. Depois do culto pela polaridade figuração-abstracção, o gosto pelas classificações redutoras dá lugar a uma amálgama que se designa como «neofigurativismo», onde a ideia absurda de «figura pura» se vem somar à «cor pura» e ao «espaço puro», numa defesa dos «factores puramente plásticos» contra as ameaças de persistência naturalista, da qual se era cúmplice, afinal, no que esta teve de pior, a fatalidade de um lirismo nacional...
Curiosamente, rejeitados os processos mecânicos de apropriação das imagens mediáticas, a restrição às imagens de imagens, são as máquinas que vão então surgir na obra de René Bertholo, através da construção dos autómatos designados como «modelos reduzidos», os quais, apesar do seu nome, assinalam uma primeira possibilidade de passagem das representações miniaturais e acumuladas a imagens unificadas de grande formato. «A ideia que me veio foi fazer paisagens com movimento» (1984). «Procuro sempre ilustrar um só tema (...) tenho vontade de me limitar, de sugerir de maneira muito legível este ou aquele fenómeno da natureza» (8). O que seria então impossível representar em pintura ganha uma dimensão lúdica e irónica quando a figura se reduz ao arquétipo e é dotada de movimento.
A via aberta, por mais sugestiva que se reconheça, era de desenvolvimento necessariamente limitado, para além de vir a confrontar-se com complexas condições materiais de produção. Adquirido o movimento que a sua pintura anterior tinha ensaiado, Bertholo perdia no mesmo passo o recurso à memória, como processo essencial de activação do seu imaginário. Ao regressar depois à pintura, o seu projecto será «passar através da memória para descrever a realidade» (1984).
«Mirages», 1975: «uma longa série de acrílicos sobre papel onde jogava com a ideia de que alguém, tendo visto uma paisagem, tenta lembrar-se de como ela era e faz tentativas desesperadas para a encontrar na sua memória». «Mirages suite et fin», 1977, óleos: «A série seguinte mostrava retratos de mulheres, praticamente sempre imaginários e, aliás, pintados sobre a tela sem a ajuda de qualquer documento. Imaginação e memória. Em seguida pintei quartos de dormir onde montes de objectos heteróclitos juncavam o chão, as paredes e por vezes a cama, tornando-a muitas vezes inutilizável». «O prazer de misturar tudo num espaço imaginário, sonhos acordados». «Légendes», 1981: «Imaginei que cada interior representava uma lenda», mas «estas lendas não têm um sentido definido à partida» (9). Todo esse trajecto não se acompanhou em Portugal (com excepção de uma mostra no Funchal, em 1980, que não poderia ter eco continental), até que em 1984, na Galeria Ana Isabel, se iniciasse a série de espaçadas individuais de galeria (Nasoni, Fernando Santos) prosseguida ao longo da década de 90. A antologia não permitirá ainda sumariar os passos de todo este itinerário, onde a obra de René Bertholo constantemente se recicla, reorienta e amplia, numa situação de plena maturidade que nunca perdeu a frescura do seu humor. Os seus «puzzles», inventários e histórias, sem abandonarem o vector do jogo e da irrisão mas juntando-lhe a perturbação perante «os mistérios da existência e das estrelas» (1984), cruzam a dimensão autobiográfica com a reinterpretação do mundo afirmando os poderes do sonho e da imaginação. Propõem-nos espaços lúdicos de fingimento partilhado (J-M.Schaeffer). Reconciliam a pintura com a ficção.

(1) Pierre Restany, «La réalité dépasse la fiction», prefácio para a exposição «Le Nouveau Réalisme à Paris et à New York», Galerie Rive Droite, Paris, Junho de 1961, in 1960, Les Nouveaux Réalistes, Musée d’Art Moderne de la Ville de Paris, 1986, pág. 267.
(2) Simón Marchán Fiz, Del Arte Objectual al Arte de Concepto, ed. Akal, Madrid, 1986, pág. 21.
(3) Ver Germain Viatte, «Au service de la création artistique», in Bernard Anthonioz ou la Liberté de L’Art, ed. Adam Biro, Paris, Paris, 1999, pág. 97.
(4) Para uma «compreensão positiva» da mimesis e mais especificamente da ficção, ver Jean-Marie Schaeffer, Pourquoi la Fiction?, Seuil, Paris, 1999.
(5) Ver Manifeste. Une Histoire Parallèle. 1960-1990, Centre Georges Pompidou, 1993, e Catherine Millet, L’Art Contemporain en France, Flammarion, Paris, 1987.
(6) Alexandre Pomar, «René Bertholo: Num quadro há milhões de histórias», «Expresso-Revista», 14 de Abril de 1984.
(7) No prefácio desta exposição, Gassiot-Talabot precisa a sua definição de figuração narrativa: «É narrativa toda a obra plástica que se refere a uma representação figurada “dans la durée”, pela sua escrita e a sua composição, sem que aí exista propriamente uma estória (récit)». Ver Gérald Gassiot-Talabot, «De la Figuration narrative à la Figuration critique», in Face à l’Histoire, Flammarion/Centre Georges Pompidou, 1996, pág. 358.
(8) Conversa de René Bertholo com Jean-Luc Verley, catálogo da Galeria 111, 1972.
(9) René Bertholo, catálogos da Galerie Lucien Durand, 1981, e da Galeria Ana Isabel, 1984.