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domingo, 14 de novembro de 2010

Eduardo Batarda, 1983 1992 2001 2004 2010 2011

1983


Uma exposição:


Batarda na 111


DN 09 02 83, caixa


Eduardo Batarda Fernandes está de regresso com uma importante exposição na Galeria 111, ao Campo Grande, que vem demonstrar a constância de uma notável carreira e, simultaneamente, dar a conhecer uma nova direcção do seu trabalho.

Dois processos, a aguarela e o acrílico, e duas fases cronologicamente diferenciadas, de 1972 a 1980 e deste ano a 1982, marcam as obras agora mostradas: as agrupadas no primeiro período são a reapresentação - já em grande parte observada na exposição que em 1979 Batarda fez no Teatro da Cornucópia, ou até na que como bolseiro levou à Gulbenkian em 1975 - de uma imaginativa figuração sarcástica classificável dentro das fronteiras da «pop-art». Nas pinturas posteriores a 80, observa-se uma decidida viragem assente, contudo, sobre fundamentais continuidades.

As obras despem-se do seu aparente suporte anedótico, substituem ao comentário de elementos da actualidade política ou de narrações paródicas a ocasional referência a fragmentos de realidade («Candeeiros, cubismos, cães e colunas»), integram o seu erotismo no diálogo das cores, prescindem da anterior rede de cruzadas mensagens escritas. Afastando-se da citação dos «comics» e da anterior legibilidade narrativa e satírica, os novos acrilicos de Batarda mantêm a mesma ausência de espírito construtivista <??> e um idêntico humor paródico exercido sobre os elementos da pintura, os «significados» e os estilos.

A meticulosa anotação de pormenores, o rigor da execução sob a «desordem» das citações, inscrições e grafismos, o trabalho de sobreposição de possibilidades de leitura, convertem-se, na sequência de algumas aguarelas onde os elementos figurativos iam rareando (sem que tal facto alterasse os processos de composição, ou assumindo explícitas sugestões de mapas), numa luta contra o domínio do desenho, numa mais livre prática da pintura, tão pouco interessada pelas evidências ou pelas conveniências da «arte» como os trabalhos anteriores.

Estritamente pessoal, mesmo quando se cruzava com as «novas figurações» dos anos 60 ou se deixa comparar a outros «regressos à pintura», o trabalho de Batarda, agora lançado numa investigação (que o número das obras expostas mostra ser intensamente trabalhada) de novos caminhos, reafirma-se como um dos importantes itinerários plásticos que entre nós se percorrem.

As aguarelas de Batarda foram, num plano imediato de leitura, um inventário de actualidades e de «citações» mitológicas, políticas, literárias, de crítica mordacidade, que o autor, porém, expressamente assumia como «um comentário permanente ao estado

actual das artes visuais». É óbvia a permanência nos trabalhos recentes dessa mesma vontade do «comentário”, que investe por igual sobre a sua própria produção. Abandonada a carga «literária» e ilustrativa dos primeiros trabalhos, a pintura de Batarda

continua a ser um exercício de humor. Continuidade de um posicionamento pessoal, essa é também uma via de radical actualidade.


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EDUARDO BATARDA

111

EXPRESSO, 1983 23 fevereiro, nota


“O meu trabalho», dizia Batarda em 1975 (referindo-se então às aguarelas directamente satíricas em que uma figuração bem legível era aproximável de uma origem Pop), tornou-se «um comentário permanente ao estado actual das artes visuais». Dez anos depois, passado da aguarela ao acrílico e praticando uma pintura em que um primeiro olhar não encontra relação com a obra anterior, o trabalho de Batarda é também um comentário ao estado actual da pintura.

Nesse comentário se soma à mesma ironia, uma extensa informação (e Batarda foi também autor, em 74-75, de críticas de arte de grande rigor, certamente bem incómodas também para os críticos de ofício) e uma originalidade criativa a grande altura: o dito comentário não é uma actividade apenas analítica, defensiva ou austera, mas uma intensa prática que através de varios desafios e riscos se coloca, hoje num primeiríssimo plano da criação plástica.

Prática por isso, claramente afirmativa, onde o humor continua a ser uma das qualidades no reexame do que podem ser os temas ou pretextos da pintura, as regras de composição, os códigos de oficina ou de leitura. Prática sem literatura, mesmo quando o prazer ou gozo desta pintura se prolonga nos titulos de cada peça (exemplo «Capitel/ Pêndulo (Terror)») ou nas inscrições codificadas de alguns quadros.


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1992


Dificuldades e armadilhas


Batarda pinta com ideias (de pintura), mas não tem só uma ideia de cada vez



EDUARDO BATARDA 

Galeria 111

Expresso 4 04 1992


Reconhece-se o estilo, a autoria, logo no tratamento das superfícies lisas, envernizadas, aparentemente a preto e branco, e tambem na malha das barras/riscas que ora são rectas, ora se encurvam e sobrepõem, ora se enredam em elípticos turbilhões: um quadro reinvia-nos sempre para outros quadros. Observa-se depois a variação desde as telas da última exposição (em Lisboa, Dezembro 1989): os formatos são menores e a fragmentação e acumulação dos elementos menos vertiginosa.

Percebe-se, a seguir, no formato dos quadros, no sistema de composição e nos títulos, e por último no texto de E.B. incluído no catálogo, que o retrato ou «a cabeça» (o género académico, a «figura») ocupam o pintor em parte significativa do que expõe. Mas estamos sempre perante enigmas (ou paródias de enigmas): o retrato aqui não é figuração, não representa o mundo nem transporta expressão emocional ou carga simbólica - Batarda pinta com ideias (de pintura, claro), coloca «dificuldades e armadilhas» ao espectador, e cada elemento é sempre a ocultação-sedimentação de outros elementos, o «significado» de cada forma é sempre a possibilidade da deslocação permanente e infindável do seu sentido (não há uma chave última).


Estes quadros, escreve E.B., «"baseiam-se" na representação cónica dos Infernos (é mentira) combinada (o gajo quererá dizer "icónica"?) com as cabeças, urnas, torsos (tónica?), couraças, escudos de armas, e pelo menos um objecto reconhecível da tradição modernista (mentira?)». (Sic)

Não escreve, mas vê-se que um «objecto reconhecível» é o secador de garrafas de Duchamp. Não se trata de uma citação, mas de um comentário (o objecto é invertido e «analisado» do interior - ver, por exemplo, Seca e Interior), ou de uma atitude (persistir na reconciliação de Duchamp com a pintura, o que para a história se deve atribuir definitivamente a Jasper Johns), e também da conversão de uma forma escolhida em emblema neutro, deslocando o seu carácter específico para o interior de uma outra estrutura, tomando-a por base de uma nova «multiplicidade de níveis de interpretação».

Outra passagem por Duchamp parece também fazer-se, a propósito das «cabeças» ou caveiras/retratos: é a Fonte ou urinol, como sugere explicitamente um título, “Fontana Candida”. Mas Batarda avisa-me que este é o nome de um vinho romano (há outros dois vinhos na exposição: Batard-Montrachet e Bucelas); e, como se sabe, Fontana é o nome de outro pintor, Cândida é neme de mulher, e as fontes na pintura são ainda uma memória antiga — como sempre, tudo se complica também pelos lados da história e da autobiografia. O retrato não é representação, nem pretexto para fazer «abstracção»: é, se se quiser, motivo, uma maneira de começar um quadro, uma escolha indiferente, talvez uma imagem-tipo, e o valor referencial importa menos (nada) que as operações em jogo na pintura, as regras e sistemas da pintura, o encontro com as imagens da tradição e da atualidade da pintura, o entendimento do acto de ver e do que ser artista quer dizer.


Nada está ali para facilitar a vida ao espectador (embora esta pintura também seja, natural e intencionalmente, decorativa - mas não se julgue que esta e uma palavra fácil). O exercicio artesanal/pictórico é aqui uma prática da inteligência e de conhecimento («há sempre quem veja erudição no alfabeto», E.B.), onde o humor rima com o enigma (teriamos metafisica ou esoterismo sem o humor) — mas nunca a pintura foi só um exercitar da visão, e Duchamp foi mais uma chamada «à ordem». Sabe-se que a (aparência de) actualidade («uma ideia de cada vez», E.B.) não suspende o tempo, antes e depois — o trabalho de Batarda já tem um tempo longo (gozo nosso, problema dele) e antes outros pintores houve, o que não lhe traz, escreve, «desejos de intemporalidade». Por isso, os seus quadros «deverão fingir anacronismos ou, talvez, paródias de tentativas de acronismos». «Não são "de agora". São quadros».

No texto do catálogo, Batarda diz ainda que «fazer contra» e «opor-se à estupidez» foram o seu programa desde sempre. Ele é o melhor «leitor» da sua pintura e avisa agora que abandonou a subversão e se instalou na neutralidade. Não faz «exercícios de espirito»; menos programatico, trabalha a pintura «entre a dúvida e a indiferença».





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Eduardo Batarda

Galeria 111, Porto   

26-05-2001

Batarda não costuma facilitar a vida ao espectador e é sempre conveniente avaliar com precaução as pistas que fornece ao apresentar a sua pintura. Desta vez ele próprio avisa que é costume ser tomado a sério quando está manifestamente a brincar. Ao dizer agora que com as suas mais recentes obras quis «memorizar as pinturas e mais bonecadas que ornamentam alcovas e roulottes das nossas porno-divas favoritas», com referência precisa aos filmes X da TV Cabo, a pista é decididamente inverosímil, mas constituirá um travão à pulsão interpretativa que procure traduzir a pintura em representações e significados. 

O que vemos é um exercício de encobrimentos, ocultações e camuflagens que torna inviável o reconhecimento do que quereríamos encontrar no quadro para repetir e confirmar o que já vimos noutro lado. É de pintura que se trata, como realidade própria, com o seu acontecer irredutível a outra sorte de imagens, e é de uma autoria e certamente de um estilo que se dão provas, sucedendo-se a si mesmo sem se programarem como capítulos ou séries. E entretanto há indícios a seguir, como sucede no título do mesmo texto, «Cataventos — Paisagens — Suburra», sendo o último o nome de mal afamado bairro de Roma e, portanto, a sequência dos anteriores quadros «porno-romanos». Paisagens, logo pelo formato trabalhado, algumas saloias, outras elegantes ou turbulentas nos seus labirintos vertiginosos. 

Mais uma «radiografia», que serve de pista para a presença do corpo e talvez do retrato como género, bem como de ponto de partida para uma diferente «maneira» em que se trocam as relações entre figura e fundo, em espaços intersticiais que se conjugam nas curvas e contracurvas de formas invasoras com sugestões orgânicas e heráldicas, «cataventos» abertos a muitos sentidos. (Até 26 Jun.)


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Eduardo Batarda  

Gal. 111  

 06-06-2004

«Miniaturas e Pequenos Formatos»: o título refere-se apenas às dimensões das obras expostas, em papel e em tela. Pode ser um convite a que o espectador suspenda a necessidade, ou vício, de traduzir o que vê, entendendo a arte como algo a decifrar (enigma a interpretar como apropriação do real, desejo de transcendência, etc.), e veja apenas: superfícies lisas de cores diversas que são invadidas ou rasgadas por uma forma única ou unificada, proliferante, ora incisão ziguezagueante ora mancha mais rotunda - mas essa «dialéctica» entre figura e fundo perturba-se com as relações entre as respectivas cores (e não-cores) e, ao reconhecer-se na superfície aparentemente lisa que começa por ser fundo, um acto de encobrimento do que já estaria por baixo. Essa prática da ocultação ou da camuflagem torna-se agora apagamento ou obliteração e parece ser aqui levada (depois de estar presente em ciclos de obras anteriores como estratégia de multiplicação de citações, referências e comentários) a uma dimensão extrema, que, em vez de criar enigmas ou segredos, impugna a possibilidade de designar sentidos, para além do sentido determinante dessa própria e decisiva recusa. As tais formas serpenteantes ou gordas «parecem» orgânicas (esqueletos, intestinos ou outros órgãos, possivelmente sexuais, contornos e interstícios de corpos) e, por vezes, prolongam-se, sem interrupção, em formas cortantes que lembram lâminas, serras, pregos, talvez armas ou objectos de tortura - mas estamos apenas diante das nossas projecções. Referências que o artista fez a filmes pornográficos foram pistas marcadas pela ironia, a associação a tatuagens não serve de chave de leitura iconográfica, ou seria apenas uma estreita pista sem saída. Voltando ao formato, recupere-se apenas a classificação como retrato (face à horizontalidade da paisagem), para dele restar a sua impossibilidade, e recorde-se essa outra marca aristocrática de identidade que é o brasão, substituído por vísceras, fissuras e outros acidentes graves. (Até 19)


Galeria 111, "Bicos"

11/14/2010, Blog Typepad


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2011

Eduardo Batarda, “Outra vez não" (Fundação de Serralves, Porto, até 11 de Março) 

O título insólito adequa-se a uma obra que tem feito do humor sempre idiosincrático uma das suas linhas de continuidade, entre a erudição e a auto-irrisão, levantando com múltiplas armadilhas, com inscrições e ocultações, a questão de como interpretar a pintura e as imagens, as suas eventuais referências e os comentários que as acompanham. Os seus inícios propunham narrativas críticas, ligadas à cultura pop e comparáveis aos imagistas de Chicago; as obras posteriores tornaram-se crípticas. A retrospectiva (que se segue à de 1998 na Gulbenkian), é uma coprodução com a Fundação EDP e está associada à atribuição do Grande Prémio EDP Arte em 2007.

domingo, 8 de abril de 1984

1983, René Bertholo, Galeria Ana Isabel, DN

 René Bertholo 1984 DN Galeria Ana Isabel

(Há 40 anos escrevi pela primeira vez sobre René Bertholo. Continuei)

O jogo das memórias de René Bertholo

DN 8 / 4/ 1984

Bertholo dn 1 1

Há circunstâncias em que apetece invocar um argumento de autoridade. Por exemplo, tentar dizer quem é René Bertholo antes de falar da sua última exposição, aberta há dias na Galeria Ana Isabel.
René Bertholo não é muito conhecido em Lisboa. Tem trabalhado e exposto principalmente «lá fora», entre a partida para Munique e Paris em 1957 e o regresso, para o Algarve, em 1981. Nos começos da década de 60 fez parte dos grupos de artistas que romperam com a abstração dominante e recomeçaram - é uma forma de resumir a História, porque muita gente continuara por outros caminhos - a pintar figuras reconhecíveis, onde os graffitti, a banda desenhada, a publicidade, a imagem estandardizada pelo consumo, o imaginário surrealista, naïf, louco ou popular eram de diversos modos apropriados. A esse vasto movimento se chamou nova figuração, novo realismo, figuração narrativa, pop art, conforme os seus diferentes polos geográficos, ou direcções particulares ou preferências dos críticos.


Dessa actividade de R. B. foram chegando a Portugal poucas notícias: em 65 foi um dos seis pintores de Paris reunidos na Bucholz; em 72 expôs na 111. No Centro de Arte Moderna da Gulbenkian há um quadro de R. B. (representação exígua, como aliás sucede com alguns outros artistas, e são raros, cuja obra excedeu os limites do mercado e do gosto interno); também os dois ou três livros que historiam a pintura portuguesa das última décadas incluem uma reprodução a preto e branco, que se poderá rever com proveito, e gosto.
Se vale a pena referir tudo isto é porque importa partir da actual exposição para conhecer uma obra, porque o trabalho actual prolonga com excepcional constância uma linha de criação original de que há a reter três momentos centrais.
Nos anos 60, R. B. espalhava sobre a tela inúmeras figuras e objectos, reconhecíveis uns, «abstractos» outros: casas, emblemas, rostos, um relógio, um livro, um pão, etc., ou formas inventadas, sem identificação possível. O espaço em que as figuras pairam, sem volume e sem centro, é indefinido; as formas dos objectos são «populares» - as do desenho infantil ou naïf, as da B. D. ou do grafritti - remetendo para uma memória aparentemente simples do quotidiano, do qual faz parte a possibilidade da fantasia. Nenhuma interpretação única ou óbvia, na aparência narrativa do quadro, se impõe ao espectador: há uma acumulação de sugestões e múltiplos sinais para a construção de sentidos (o título é muitas vezes uma proposta de leitura). As referências à publicidade, à comunicação massificada estão em geral ausentes, tal como a perspectiva crítica ou a violência que dominam em muito da nova figuração ou arte pop.
Entre 1965 e 1975, R. B. passou a construir objetos de três dimensões, dotados de movimento - máquinas. As figuras ganham uma ainda maior simplicidade (são quase brinquedos), mas movimentam-se graças a complexos mecanismos eléctricos e electrónicos que o próprio pintor fabrica artesanalmente. São, por exemplo, um banco de jardim, uma palmeira e uma ventoinha que agita as suas folhas; ou um arco-íris constituído por seis lâminas de cor que oscilam aleatoriamente movidas por 13 motores; ou um golfinho que salta entre lâminas ondulantes, o mar, e que até pode ser «chamado» com a voz ou batendo as palmas. Conhecidos por «modelos reduzidos», os objectos de R.B. acentuam a comunicabilidade do seu trabalho, desafiando a «seriedade» da arte para reencontrar uma dimensão directamente lúdica, onde a diversão, a fantasia, a infância são palavras-chaves.
O terceiro momento (haveria que falar, não fosse este percurso apenas esquematizado, nas peças escultóricas integradas em espaços colectivos, como no Hospital Distrital do Barreiro), é o da exposição da Ana Isabel. Aí se vêem quadros - o «regresso à pintura» é de 75! - onde se sobrepõem três espaços, em geral quartos teatralmente representados (as três paredes), ou três momentos de um mesmo espaço, em que se acrescentam, ou faltam, uma porta, uma janela, uma escada, etc., e que se preenchem com personagens e objectos (reconhecíveis ou não, como antes acontecia), que também parcialmente se repetem de plano para plano, se deslocam, se modificam.
Ao contrário das primeiras obras referidas, existe agora um espaço definido, tradicional, e os objectos têm volume, por vezes sombra; por outro lado, o quadro continua a não ter um centro, nos seus três planos sucessivos. O seu teor narrativo intensifica-se (a b.d. é uma comparação fácil), e a presença do movimento, na leitura que percorre os três quartos e o aparecer e desaparecer dos objectos - como se em cada um se fizesse uma nova tentativa de recordar um espaço e uma situação -- é também a manitestação de um tempo.
A memória, sabendo-se como nela se juntam o real e o sonho, ou a fantasia, o consciente e o inconsciente, será assim algo que estrutura esta pintura sempre diretamente comunicativa e supostamente «fácil», cuja leitura se faz reconhecendo e recomeçando um idêntico processo de perturbação dos níveis do real.
Estamos longe de uma pintura que se dê como propósito a investigação dos elementos (a luz, a cor..) dela própria, como exercício de reflexão virtuosística. No entanto, no próprio espaço desejado de uma larga comunicação, R. B. inscreve, sobre o imediato carácter lúdido do seu jogo, uma aprofundada revisão da história da pintura, ensaiando e transgredindo todos os seus códigos nas suas figuras miniaturizadas. É de novo a memória que se exerce, a história que se revê na aparente banalidade de um gesto quotidiano. Perpétuo descentramento.
(Galeria Ana Isabel, Rua da Emenda, 111)

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(Esta semana - DN 14-4-1984)
O REGRESSO

A exposição de René Bertholo numa galeria de Lisboa (de que há uma semana se assinalou a importância noutra página) e também a de Jorge Martins integrada na evocação que o Centro de Arte Moderna dedicou ao poeta Saint-John Perse, que constitui (constituem?) a sua terceira apresentação desde o fim da temporada passada, vêm tornar manifesto que se encontra praticamente restabelecido o mercado das artes plásticas em Portugal.
Se é verdade que o mercado pode ser tema de interessantes discussões, parece incontestável que é no seu funcionamento e na sua lógica que se confirmam - sempre antes dos museus - os valores de criação neste domínio das artes (e diz-se «confirmam», para deixar à crítica e à teoria funções de descoberta ou explicação). Sabe-se também como as alterações político-económicas surgidas com o 25 de Abril vieram pôr em causa os fundamentos de todos os mercados - mas não importa agora, também, julgar as causas da referida «normalização», dez anos depois.

O que se afigura decisivo é aquelas exposições, e outras anteriores, como as de Costa Pinheiro, Paula Rego ou Eduardo Luís (a de António Dacosta é um caso diferente, por se tratar de um recente regresso à pintura e de um pintor de outra geração), virem significar o contacto regular com artistas que, desde os anos 60, ou finais de 50, desenvolveram a sua actividade criativa no estrangeiro, integrados - e não como epígonos - nos movimentos internacionais que vêm renovando as artes.
De facto, apesar dos círculos mundanos, das academias e outros meios mais ou menos institucionais viverem das pequenas glórias caseiras, que duramente defendem os pequenos privilégios, a realidade das artes plásticas é internacional e a sua história, tal como o seu mercado, não têm fronteiras. Como se prova pelos casos raros de um Amadeu, uma Vieira, uma Paula Rego, uma Lourdes Castro, um René Bertholo, um Jorge Martins, e pouco mais.

É natural que esse refazer de contactos venha a produzir como efeito uma moralização daquilo que têm sido os critérios do gosto público - formado, na ausência de mercado, por um pequeno comércio e seu cortejo de pobres favores. No entanto, na falta de uma política estatal de cultura (vejam-se as portas fechadas da Galeria Almada Negreiros e observe-se como os artistas apenas vão servindo para abrilhantar jantares de governantes), há que sugerir à Fundação Gulbenkian que prolongue a sua acção permitindo rever e principalmente descobrir o que foram esses itinerários artísticos percorridos no estrangeiro. Para todos os artistas citados, e alguns outros mais jovens, a apresentação de retrospectivas (na medida em que for ainda possível reunir as obras dispersas lá por fora) é - não a homenagem que certamente dispensariam - mas o preenchimento de graves lacunas culturais nossas. Foi em geral a Gulbenkian que, felizmente, os ajudou a partir; cabe-lhe agora a responsabilidade e o mérito do «regresso».