"Os sonhos de Sevilha"
Expresso / Actual de 09-10-2004

Harald Szeemann (FOTO: Jorge Rico, Biacs 2004)
Uma nova bienal ao pé da porta, com a excelente marca da direcção Szeemann
Pedro Cabrita Reis
De Santa Fé a Gwanju (Coreia do Sul), passando por Istambul, Valência
ou Tirana, multiplicam-se as bienais, com a ambição de projectar
cidades e abrir novas plataformas regionais para o mercado globalizado
da arte. Veneza e São Paulo ocupam a primeira linha por antiguidade e
mobilizam as representações oficiais dos países. À distância vêm
Havana, por já antigas razões políticas, e Sydney, que este ano foi
comissariada por Isabel Carlos, mais Berlim, Lodz, Lyon, Busan, Xangai,
Taipei, Moscovo, etc., em geral a cargo de uns poucos comissários
itinerantes, para além da bienal Manifesta, ela própria itinerante.
A I Bienal Internacional de Arte Contemporânea de Sevilha (BIACS) foi
«Feijoeiro», de João Pedro Vale
Inventor da figura do comissário-autor (ou artista) e adepto da exposição enquanto medium, ficou famoso em 1969 com a colectiva «Quando as Atitudes se Tornam Forma», logo seguida pela Documenta de 1972, e nunca mais interrompeu um itinerário muito idiossincrático, reafirmado, entre muitas outras ocasiões, na direcção das bienais de Veneza de 1999 e 2001. Com prestígio bastante para seguir as suas obsessões pessoais e interrogar com cepticismo um tempo que compara ao «Outono da Idade Média» no prefácio do catálogo, é hoje um personagem incómodo para o «mainstream» institucional: «um criticado e já decadente Szeemann», segundo Rosa Olivares no último editorial da revista «Exit Express», de Madrid. Tem mantido uma intensa actividade em Espanha e organizou por ocasião do Forum de Barcelona «La Belleza del Fracaso / El Fracaso de la Belleza», mais um dos seus notáveis títulos.
A nova bienal nasceu da obstinação de Juana de Aizpuru, 30 anos galerista em Sevilha e desde 1983 em Madrid, fundadora da Arco, sendo sustentada por uma fundação que recolhe apoios públicos, empresariais e particulares. Os meios são limitados, mas conta com o emblemático cenário do Monasterio de la Cartuja de Santa María de las Cuevas, conjunto monumental que vem do século XIV, foi quartel das tropas napoleónicas e até há pouco fábrica de louças e porcelanas, da qual conserva cinco grandes fornos-chaminés, aí se instalando em 1997 o Centro Andaluz de Arte Contemporânea (CAAC). Szeemann volta a provar o imenso talento para tirar partido dos lugares e proporcionar aos autores um diálogo enriquecedor com as suas características.
Com 62 artistas (15 espanhóis, vários de Sevilha), esta bienal não quis ser um mapa do universo, um «digest» de notoriedades ditas emergentes ou a proclamação de um novo conceito ou direcção inovadora, ambições muito repetidas que rapidamente se esquecem. Sob o título «La Alegria de Mis Sueños», usando um verso de Camarón de la Isla com uma grande extensão de sentidos possíveis, é ela própria um pequeno mundo poético em que se espelham os interesses ecléticos e as apostas por vezes inesperadas de Szeemann, para quem a última revolução das artes plásticas data de há 40 anos. Como ele próprio diz, é «um mundo provisório dentro de uma arquitectura muito poderosa».
No «puzzle» com que a exposição colectiva se constitui como um pessoal universo poético coexistem os artistas consagrados, como Richard Serra e Ulrich Rückriem (os seus blocos de granito sem título lembram anónimos túmulos, numa sombra do horto), nomes com presença insistente no circuito mediático, como Annette Messager, Tracey Emin, Georg Herold, Ernesto Neto, Santiago Serra, Tobias Rehberger ou (com menos interesse) Joseph Kosuth, e outros mais periféricos ou desconhecidos, jovens artistas de territórios ignorados. Homenagens a grandes artistas recentemente falecidos, como Chillida e Juan Muñoz (Descarrilamiento, de 2001, a sua última obra, quatro vagões de um comboio de alta velocidade em aço cortén, deixando ver um labirinto interior), mas também «outsiders» como o italo-africano Sarenco ou os fotógrafos Vieitez e Tichy’.
Encalhado no lago artificial à entrada da Cartuxa, o camião antidistúrbios da "Fuente" de Fernando Sánchez Castillo é uma poderosa metáfora de um espaço livre para a arte e a utopia. Passado o pórtico, estão junto ao muro interior três mastros de bandeiras e um sereno rapazinho enforcado num deles. É mais uma graça de Maurizio Cattelan que deu imediato escândalo: provocação de mau gosto ou denúncia da violência sobre as crianças? O artista recusa fornecer interpretações, e o debate amplia o interesse da obra. No centro do pátio instalou-se, como um navio inclinado, a escultura New Union, de Richard Serra, feita de duas placas de aço encurvadas de quatro metros de altura, com 40 toneladas (é uma variante inédita de Union of the Torus and the Sphere, de 2001, a sua primeira forma fechada). Entretanto, uma alta estrutura de andaimes encobre a estátua de Colombo, que habitou a hospedaria do mosteiro e aí está enterrado – subindo as escadas, vêmo-lo no interior de uma banal sala de estar, devolvido a uma escala humana. Tem sido esse o processo de actuação, em edifícios e monumentos, do japonês Tatsurou Bashi, instalado em Colónia.
Já no interior da igreja, os suíços Gerda Steiner e Jörg Lenzlinger instalaram na primeira capela uma Fonte da Juventude, cujas flores brotam de restos urbanos e sobem até à cúpula. No Pátio Mudejar cresceu e tombou o Feijoeiro, de João Pedro Vale, ilustrando o conhecido conto infantil, e a seguir é Pedro Cabrita Reis que ocupa o vasto refeitório do mosteiro com uma poderosa disposição de estruturas que iluminam o espaço, em construção ou em ruínas, numa irresolúvel tensão. Chiharu Shiota (Osaka-Berlim) instalou no Pátio das Pérgolas, entre plantas trepadeiras e uma moldura de centenas de velhas janelas de todos os tamanhos, 40 camas ocupadas (na inauguração) por outras tantas jovens «performers», como um espaço para os sonhos a que o título geral se refere. Serge Spitzer (Bucareste-Nova Iorque) altera um dos espaços das antigas hortas dos frades com milhares de pedras cerâmicas coloridas; adiante está instalada uma casa gorda de Erwin Wurm (Fat House. I Love My Time, I Don’t Like My Time, de 2003), que inclui no interior o seu célebre Carro Gordo, agora em filme animado e falante.
Road to Tate Modern, filme de Sener Özmen e Erkan Özgen
É também muito forte a presença do vídeo e do filme, não tanto pela quantidade como pelo interesse das obras escolhidas, em vários casos associado à manifestação de temáticas sociais dos conturbados países dos Balcãs ou da fronteira turca: a emigração albanesa em Apparizione, de Adrian Paci; a dilaceração da Jugoslávia na instalação de Maja Bajevic’, de Sarajevo; as divisões religiosas no duplo vídeo de Gülsün Karamustafa, da Turquia, de onde também vem o divertido filme de Sener Özmen e Erkan Özgen onde encarnam D. Quixote e Sancho Pança a cavalgar pelas montanhas da Anatólia, Road to Tate Modern. De Stephen Dean, francês instalado em Nova Iorque, projectam-se Volta (já visto no CAV de Coimbra) e Pulse, passando das multidões do futebol a rituais indianos, sempre como um fabuloso trabalho da cor de corpos em movimento. Jun Nguyen-Hatsushiba ergue dois «memoriais» vietnamitas (em co-produções norte-americanas) rodados debaixo de água. Oracle, de Minnette Vári, da África do Sul, Furor Latino, de Pilar Albarracín (1968, Sevilha; também com uma interessante exposição nas Real Atanaranzas, comissariada por Rosa Martínez), La Orquestra de los Milagros, de Alonso Gil (1969, Badajoz-Sevilha), são outras presenças apreciáveis.
Entretanto, Szeemann refere ter tido «a tentação de apresentar o medium fotográfico de uma maneira diferente, visto a partir dos seus conteúdos». É o caso de Cristina Garcia Rodero, que depois de ter fotografado os ritos vodu no Haiti ocupa duas salas separadas dedicadas a séries inéditas sobre os cristãos coptas da Etiópia e uma concentração «new age» no deserto de Black Rock, no Nevada («Burning Man»), ou o da norte-americana Lucinda Devlin, com um inventário rigoroso de lugares termais («Water Rites»), a suceder a «The Omega Suite», sobre os lugares da pena de morte. E também de duas figuras originalíssimas: Virxilio Vieitez, galego de Soutelo de Montes (n. 1930), fotógrafo de aldeia nos anos 1958/70, que os Encontros de Braga já mostraram; e Miroslav Tichy, checo de Brno (n. 1926), antigo pintor com passagem pela prisão, figura de «clochard» (que é apresentado através de um documentário), construtor de câmaras precárias e autor muito «voyeurista» de fotos furtivas e desfocadas, deficientemente impressas e pior conservadas, mas assim mesmo mais reveladoras de um visionarismo marginal e inclassificável.
A presença da pintura é também afirmativa, com o filipino Manuel Ocampo e o agora muito disputado Neo Rauch, curiosas aguarelas de Shahzia Sikander (n. 1969, Paquistão-Nova Iorque), pintura murais de Federico Herrero (1978, Costa Rica). E Biljana Djurdjevic’, de Belgrado (n. 1973), pintando a violência do mundo com um perturbador realismo crítico, que permite a um colaborador de Szeemann (Hans-Joachim Müller) escrever no catálogo, decerto com excessivo entusiasmo, que a «pintura, declarada morta (…), goza de uma vitalidade inquebrantável e de uma força de auto-renovação que nenhum outro suporte artístico demonstra».






