Expresso (Cartaz Actual de 16/6/2001, pp. 4 e 5, e antes/abaixo 19-08-2000)
Portugal em competição em Veneza com uma cenográfica instalação de João Penalva
Coexistem duas bienais em Veneza. Uma é a das representações nacionais,
apresentadas quer em pavilhões próprios nos Jardins do Castelo,
construídos desde 1907 numa bem curiosa sucessão de estilos
arquitectónicos (a bienal seguiu o modelo das exposições universais),
quer dispersas pela cidade em espaços variados, no caso dos países sem
pavilhão. Outra bienal, a grande exposição do director de cada edição, que
visa ser uma proposta cosmopolita sobre o estado da arte e o seu
futuro. Esse diálogo, em grande medida um diálogo de surdos, entre valores
nacionais e um ponto de vista internacional, no qual intervêm tanto os
países do centro como as periferias mais distantes (excepto a África),
é bem elucidativa das resistências à globalização da arte do mundo, que
não é o mesmo que «o mundo da arte».
Candidato à construção de casa própria desde 1995, para o que foi
convidado Álvaro Siza (mas nesse ano suspenderam-se todas as
solicitações nacionais), Portugal é um dos exilados dos «Giardini»,
compensando a localização periférica com a dignidade de um palácio
alugado e vontade de identificar-se com os valores dominantes do «art
world». Depois de Julião Sarmento e Jorge Molder, em 97 e 99, é João
Penalva quem ocupa o Palazzo Vendramin dei Carmini, por escolha do
comissário nacional designado para este ano, Pedro Lapa, director do
Museu do Chiado.


A palavra ocupar tem aqui pleno sentido porque a obra de Penalva se
instala cenograficamente ao longo de cinco salas comunicantes entre si,
configurando o espaço de um espectáculo sem actores, mas com projecções
de vídeo, a percorrer demoradamente para que seja possível detectar e
relacionar as pontas das numerosas histórias esboçadas pelo artista.
Trata-se de uma instalação, onde a decoração do palácio é em parte
utilizada no seu luxo decadente, em parte alterada e ocultada, para
acolher três grandes ecrãs, vitrinas com objectos ou documentos,
fotografias de grande formato, mobiliário e adereços diversos. Tudo
peças de um vasto «puzzle» montado com ambição de obra de arte total (um
conceito wagneriano), que por isso mesmo nunca se resolverá numa
narrativa ou chave únicas.
O título, "R.", preserva o segredo
sobre os «enredos» presentes. Saberão alguns, ou lerão na informação
disponibilizada, que a inicial designava Richard Wagner nos diários de
Cosima, e a obra do compositor alemão está presente através de "Os
Mestres Cantores de Nuremberga" (Die Meistersinger von Nürnberg). As duas salas sem ecrãs são-lhe
dedicadas - sem música, mas invadidas pelo som (e diálogos) dos vídeos
-, com material gráfico (imagem e texto: retratos de cantores,
fotografias de cena, fragmentos do libretto, etc) e adereços que se
dispõem nas vitrinas e nas paredes, ocupando espaços da decoração mural.
Na mais pequena, apenas um idêntico expositor com bolas de papel:
«Cinco críticas muito más a produções de "Os Mestres Cantores"». A citação
de Wagner também referirá a relação pessoal de Penalva com os (alguns)
críticos. No modelo e uso das vitrinas pode reconhecer-se a referência a
Joseph Beuys.
Mais do que a homenagem a Wagner, importa aqui o argumento daquela
ópera e também o trânsito entre identidade artística e intimidade
pessoal, fazendo um desvio da obra do compositor para a relação com a
sua mulher, da arte à vida. "Os Mestres Cantores" é a história de um prova
de admissão à respectiva corporação prestada por um jovem aristocrata. O
tema envolve um concurso, com regras definidas e júri, logo, as ideias
de exame, prova, êxito ou derrota, aprendizagem, perfeição, cumprimento
de normas e originalidade. A esses tópicos Penalva associou ilustrações
do mundo competitivo do desporto, dos concursos de dança ou patinagem no
gelo e mesmo do Festival da Eurovisão, evocando o desaire da
«Desfolhada» cantada por Simone em 1969 noutra vitrina de documentos e
em fotografias de época. Implicitamente, é a própria participação de
Penalva na Bienal que está presente como problema.
O desporto comparece em grandes fotografias a preto e branco dos
pódios onde se consagram os vencedores e, em especial, num vídeo de
poderoso impacto (projectado em alternância com um texto da ópera) no
qual se vê um atleta na prova de argolas, filmado em planos fragmentados
e muito aproximados, com a concisão e o ritmo de um «spot»
publicitário. Toda a instalação dialoga com esse vídeo, que opõe o
vermelho-vivo do fato aos tons barrocos do cenário, a urgência mecânica à
lentidão dos outros filmes sem acção, o impacto directo dessas imagens
breves à possível densidade narrativa de tudo o resto, um corpo vivo a
um mundo de memórias.
Os dois outros ecrãs são preenchidos por imagens quase fixas (um lago
da Suiça próximo de Lucerna e um pedaço de paisagem filmada na Madeira,
com uma fogueira) acompanhadas por uma presença marcante de textos
literários, cartas passionais, o diário de Cosima, etc. - lidos em
esperanto com legendas em inglês. Uma dessas projecções é feita sobre um
pequeno palco precedido por um piano, diante de filas de bancos
desirmanados. O contraste da decoração luxuosa das salas e de algum
mobiliário com a precaridade pobre de outros elementos é uma das notas
que se reconhecerão lentamente, a somar a outros sentidos alegóricos do
trabalho de Penalva.
A representação é acompanhada por um catálogo trilingue sobre a
instalação, prefaciado por Pedro Lapa, e por uma volumosa monografia
sobre a obra de Penalva, em edição Electa, também encadernada, com
textos em inglês do comissário e de Mark Gisbourne e Guy Brett, mais um
diálogo de Yuko Hasegawa com o artista. Esses são elementos de uma acção
promocional de grande escala que tem procurado, desde 1997 (após a mais
pobre participação de 95, em que compareceram Croft, Cabrita Reis e
Chafes, o que foi uma boa ideia de programação), conferir visibilidade à
presença nacional. Conduzida pelo Instituto de Arte Contemporânea, em
moldes idênticos aos usados nos festivais de cinema, a operação inclui
«marketing» profissionalizado, jantar e festa oferecidos no pavilhão
(este ano substituindo o fausto do Pap'Açorda por um mais económico menu
italiano), e a presença de alguns convidados, incluindo imprensa, como
se diz, especializada. (1)
Perfil
João Penalva
nasceu em Lisboa em 1949 e reside e trabalha em Londres desde 1976, onde
estudou na Chelsea School of Art até 1981. No seu itinerário artístico
há que contar os anos anteriores dedicados à dança, tendo chegado a
fazer parte da companhia de Pina Bausch, e mais tarde trabalhou como
cenógrafo. Em 1990 foi como pintor que expôs no Centro de Arte Moderna,
em Lisboa; passou, na década seguinte, a apresentar instalações e
montagens de materiais diversos com sentido narrativo. Para além de
expor regularmente em Londres, representou Portugal na Bienal de São
Paulo de 1996 e o Centro Cultural de Belém organizou em 1999 uma ampla
mostra do seu trabalho. Entre outras participações em mostras
internacionais, destaca-se a presença na 2ª Bienal de Berlim.
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E a história desta bienal começara assim com a nomeação do comissário:
Pedro Lapa comissário da Bienal de Veneza
Expresso Cartaz (actual) 19-08-2000
O MINISTRO da Cultura, José Sasportes (2), nomeou Pedro Lapa, director do
Museu do Chiado, para comissariar a representação portuguesa na próxima
Bienal de Veneza, que decorrerá em 2001. Depois da retoma das
representações nacionais, em 1995, sucederam-se nessas funções José
Monterroso Teixeira, que seleccionou José Pedro Croft, Pedro Cabrita
Reis e Rui Chafes; Alexandre Melo, que apresentou Julião Sarmento em
1997, e Delfim Sardo, com a escolha de Jorge Molder, em 1999. Portugal
continua, no entanto, a não possuir um pavilhão próprio no recinto da
Bienal, sendo forçado a alugar um espaço exterior de menor visibilidade.
Pedro Lapa comissariou - no Museu do Chiado, cujo quadro integrou em
1990 (ainda Museu Nacional de Arte Contemporânea) - a retrospectiva de
Jorge Vieira, foi co-responsável pela retrospectiva de Mário Eloy e
dirigiu mais recentemente a exposição e o catálogo «raisonné» dedicados a
Joaquim Rodrigo. Entre outros projectos, conta-se a apresentação, desde
1995, de dois ciclos de mostras de jovens artistas no mesmo museu (o
ciclo «Interferências» prossegue com uma instalação de Miguel Palma),
tendo ainda integrado temporariamente o quadro do Centro de Exposições
do Centro Cultural de Belém, onde programou, a mostra inglesa
«Life/Live» e exposições de Picabia e Júlia Ventura. Actualmente, Pedro
Lapa prepara uma antologia de Man Ray para o museu que dirige, uma
mostra de Stan Douglas e ainda uma colectiva de jovens artistas
portugueses para a Culturgest e uma outra, internacional, a ser
apresentada na Fundição de Oeiras com o título «More Words About
Building and Food». Num texto recente sobre os anos 90, «O Grupo e as
Suas Migrações», publicado na revista «Arte Ibérica» de Fevereiro deste
ano, Pedro Lapa assumira uma posição muito negativa face ao curso da
arte nos anos 80, condenando o «efeito de moda que os 'regressos à
pintura' e todos os neo-expressionismos representavam», bem como face
aos «investimentos promocionais em artistas contemporâneos já
consagrados nessa década», a propósito de uma falta de promoção
institucional dos artistas revelados nos anos 90 que se teria verificado
nos anos mais recentes.
Quanto aos artistas surgidos na última
década, valorizava o «reactivar de uma perspectiva crítica, através de
deslocações forjadas pela apropriação dos tradicionais meios de
comunicação de massas e respectivas recontextualizações ideológicas». No
mesmo artigo destacava os percursos de João Penalva, João Paulo
Feliciano, João Louro e João Tabarra, Fernando José Pereira, Miguel
Palma, Ângela Ferreira, Augusto Alves da Silva, Cristina Mateus ou
Francisco Tropa, tendo alguns deles apresentado instalações no Museu do
Chiado.
(1) Tinha decidido não ir a Veneza (apesar de Szeemann) mas Sasportes insistiu/investiu na cobertura da representação nacional, e fui a convite do MC, o que aconteceu só nesta edição.
(2) Sasportes inaugurou um novo modelo de escolha da representação, atribuindo-a a um museu ou instituição artística. A seguir coube a Serralves e depois o modelo foi abandonado.