A agência de comunicação que escreve os textos de parede do CCB (é uma hipótese benevolente...) devia ser reexaminada. Isto é muito mau, provado pelas fotos apropriadas do percurso expositivo.
Muita coisa mudou no Pós-Guerra (ver por exemplo, "Postwar", Enwezor, Munique 1916), entre projectos de reconstrução, o início da Guerra Fria, os medos nucleares e as expectativas de progresso - e com importantes trocas intercontinentais: surrealista para lá, abstracções ditas expressionistas para cá. A exposição dita permanente "Uma deriva atlântica. As artes do século XX a partir da Coleção Berardo" marca esse período com dois textos de parede que confusamente se intitulam AINDA A PINTURA I e II, como se o "ainda" tivesse algum sentido, sugerindo um lamento, crítico / críptico.
Ou seja, segundo o mainstream escolar, as vanguardas (anos 10/20) tinham condenado a pintura. Mas não a extinguiram, e ela regressava sempre, inconvenientemente plural e indisciplinada, logo no 1º Pós-Guerra como "regresso à ordem", que é tido por reaccionário, depois como liberdade decorativa ou libertária, nos anos 30 surrealistas... muito pintavam os surrealistas com automatismos e inconscientes dirigidos, como aqui se comprova. E continuava durante e depois da 2ª Guerra, alheia ou cúmpice das imposições das ditaduras nazi e estalinista, e realismos autoritários equivalentes, mas depois voltando à superfície diversa, resistente (os artistas da Resistência), e em muitos casos intérprete e agente da reconstrução europeia: o realismo social norte americano dos anos 30/50, o neo-realismo no México que invadira os EUA, logo o neo-realismo em Portugal (há um pioneirismo geracional em 1945, fruto de um isolamento informado), em França depois, antes de chegar o realismo socialista de exigência soviética.
De facto reafirmam-se realismos que marcaram os anos 30 europeus, impulsionados pela Revolução Mexicana e a América do New Deal, de um realismo social e regionalista anti-fascista: foi consagrado como o primeiro estilo original do continente americano, não europeu. Sob a influência dos surrealistas expatriados, o expressionismo abstracto tornava-se o estilo dominante em Nova York, pronto para exportação como padrão do mundo livre, então como poderosa novidade, ao mesmo tempo individualista e linguagem colectiva que durou duas gerações. É esse um panorama plural e também conflitual, em que se reencontram os velhos mestres europeus e surgem novas geraçãoes de pintores.
Não, no rescaldo da 2ª Guerra Mundial "as profundas transformações políticas e sociais então vividas" não "questionaram a antiga supremacia hierárquica da pintura a cavalete" (sic!) e a necessidade de um regresso à ordem" (este um assunto antigo que englobava a nova objectividade esquerdista). E é prematuro invocar "o espectro das novas tecnologias da imagem que haviam invadido a vida quotidiana", face" à pluralidade de outras linguagens estéticas como a escultura, o cinema, a televisão ou a música": a França virou-se para a reabertura dos museus, o retorno dos mestres e a recuperação das antigas tradições artísticas, o vitral, a tapeçaria, etc; a Inglaterra estava a reconstruir-se e esperou por 1950 para um primeiro grande festival; Portugal e a Geração de 45 foram mais rápidos e originais...
ROLAND PENROSE, ANOITECER, 1940
Sim, "a pintura conheceu um novo fôlego na segunda metade do século XX", após o fim da Guerra, e poupe-se o disparate: "apesar dos abalos que as vanguardas lhe infligiram antes e continuariam a infligir" (os abalos eram os da guerra e dos fascismos), mas sempre que se fala de pintura aparece o fantasma insidioso e "gauchiste" do mercado: "estimulada por um mercado em crescimento". Há tambémuma subtil referência a Greenberg, para os íntimos: estimulada "pelas teorias modernistas dos críticos que exaltavam a exploração do medium e a arte abstracta".
Porque o que lhes importa, aos autores desta escrita, é o "incorporar a experimentação e a iconoclastia da vanguarda". Mas a iconoclastia provém da religião...
Acrescenta-se: "Em muitos artistas a pintura tornou-se um comentário à sua própria história, interrogando passado e presente, com a consciência finissecular crescente do seu papel na construção da modernidade ocidental." Percebe-se? A pintura como comentário da pintura! "A consciência finissecular crescente" (há-de vir o fim prometido, radioso e nulo).
E uma lamúria final e autofágica: "Ainda a pintura, apesar de tudo; ou, apesar de tudo, ainda a pintura, consolidando-se enquanto referência histórica quando parecia ter estado em vias de extinção."
RAIO! Não se extinguiu ainda. Acabem com ela, é para isso que ocupam os museus.
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