À procura de um autor
13-11-99
AURÉLIO DA PAZ DOS REIS
Palácio Foz
(Até 5 de Dezembro)
PIONEIRO do cinema, em 1896, fotógrafo amador, até cerca de 1920, floricultor premiado e comerciante, político republicano, Aurélio da Paz dos Reis (1862-1931) é um curioso personagem portuense. A exposição que o Centro Português de Fotografia lhe dedicou há tempos, na Cadeia da Relação, chegou a Lisboa abreviada, numa apresentação que sublinha o interesse documental das imagens que deixou mas que não permite ainda conhecer, de facto, o que foi a respectiva obra e o lugar que ocupou na fotografia do seu tempo.
Fazem parte do espólio que lhe sobreviveu 2464 positivos e 9260 negativos, em geral chapas de vidro estereoscópicas, que permitiam a visão binocular em relevo, embora ele também as usasse para obter panorâmicas ou captar duas imagens diferentes. É através das provas originais (que não se expõem), das vistas estereoscópicas que produziu e comercializou (mas que aqui não se dão a ver), dos postais que editou e das fotografias que expôs e com que ganhou prémios nos Salons ou que publicou na imprensa (duas das fotos expostas, sobre o Carnaval dos Fenianos, foram editadas na «Ilustração Portuguesa», em 1906) que a sua actividade poderia ser conhecida e localizada na sua época histórica – que já é a da plena maturidade da fotografia e não a era dos pioneiros.
Aurélio da Paz dos Reis (1862-1931), um portuense ilustre
A opção seguida, mostrando apenas tiragens de 1998 impressas a partir dos negativos originais (de muito boa qualidade mas com escassas referências técnicas), transforma radicalmente as condições de visibilidade e exposição da sua produção fotográfica, por via de uma prática que poderia ser designada por arqueologia criativa. Existem certamente dois Paz dos Reis: o que foi visto no seu tempo e o que é recriado a partir do seu espólio de negativos – proporcionar esse confronto seria de grande interesse.
Sucede que a fotografia estereoscópica, divulgada a partir da Exposição Universal de Londres de 1851, se vulgarizou nas duas décadas seguintes como entretenimento social e instrumento de divulgação (antes da multiplicação das edições em formato «carte de visite»), mas perdeu depois quase todo o seu impacto perante a novidade do cinema, ficando no final do século restrita a alguns grupos de amadores especializados (ver, por exemplo, La Photographie Stéréoscopique sous le Second Empire, Biblioteque Nationale de France, 1995). Paz dos Reis ter-se-á mantido até ao final fiel a esse processo já anacrónico.
As imagens estereoscópicas caracterizavam-se em geral por uma ambição de realismo (de início recreado em estúdio) que se acentuava pela presença da terceira dimensão, funcionando como «tranches de vie» de um mundo em rápida mudança. Aparentemente, o realismo das imagens recuperadas de Paz dos Reis tem essa mesma origem, já em alternativa ao documentarismo cinematográfico, que ele rapidamente abandonou, faltando demonstrar que as provas fotográficas que o próprio imprimiu e divulgou (e não só as que agora se retiram do seu espólio de negativos, com maior ou menor arbitrariedade) se afastavam deliberadamente do gosto salonista da época para tirar partido estilístico ou estético do instantâneo documental, quase cinematográfico, que mais tarde se viria a apreciar.
As desfocagens parciais, os enquadramentos instáveis e desiquilibrados, a sugestão do movimento, que são atraentes nas imagens aqui expostas, antecipando o fotojornalismo posterior – como em Carnaval dos Girondinos, 1906; as Batalhas de Flores no Palácio de Cristal e em Espinho, 1907; a Visita de D. Manuel II ao Porto, 1908; os retratos de António José de Almeida, Bernardino Machado, etc –, tinham curso apenas no âmbito do espectáculo das vistas estereoscópicas ou eram aceites pelo autor nas suas provas impressas?
Ficam por esclarecer algumas questões determinantes, enquanto o material original não for estudado e exposto, e permanece a dúvida, com a recuperação dos negativos que tem vindo a ser feita, quanto a estar-se perante uma recreação ou manipulação das imagens fotográficas e das suas condições de exposição. A exposição do Porto levava ao excesso essa intervenção criativa, com a apresentação de montagens sequenciais e caixas de luz, e o catálogo, entretanto, orienta-se para a narrativa biográfica e histórica, deixando por analisar a prática fotográfica.
Entretanto, tem de sublinhar-se o contributo testemunhal das imagens expostas sobre a vida quotidiana no início do século, especialmente a da sua cidade do Porto: as ruas, as festividades e os acontecimentos políticos (os comícios, o 5 de Outubro em Lisboa), a actividade comercial, os transportes, a vida social e cultural (o Photo-Velo Club, de 1900, por exemplo), os desportos, etc, com extensão a Paris, na Exposição Universal de 1900. É um imenso património iconográfico que assim se põe em circulação, mesmo que se desconheça ainda se essas imagens têm, de facto, um ou vários autores.
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