Os corpos do século
16-10-99
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SEM catálogo, a exposição da Culturgest é um corpo amputado. Não se exigia um álbum luxuoso, que só os direitos de autor tornariam de preço proibitivo, uma vez que esta é uma mostra inédita e não uma co-produção com circulação internacional assegurada. Também não é só uma questão de princípio: são tão poucas as imagens que se viram, é tão grande a carência de traduções das obras de referência e mesmo tão escassa a circulação de catálogos estrangeiros, que inevitavelmente faltam as referências indispensáveis para saber situar, associar e atribuir sentido às obras que se mostram.
O «jornal» editado para a ocasião não chega a servir de guia aos núcleos da montagem (também não há textos de parede), não identifica como autores, quando não se trata de imagens anónimas, os fotógrafos expostos (as tabelas ficam-se pelos dados mínimos) e nem mesmo se deixa um registo das peças mostradas que nos venha a garantir que, antes do século ter terminado, se expôs em Lisboa o Adão e Eva de Frank Eugene, de 1905, publicado na «Camera Work» nº 30, em 1910, ou o auto-retrato de Lee Friedlander Canyon of Chelly, Arizona, 1983. O propósito foi meritório mas teria sido preferível que se adequasse a dimensão do projecto aos meios disponíveis e, se estes não chegavam para um século, mostrassem-se só duas ou três décadas nas adequadas condições, sem cortar em informação e ensaios. (Em tempo: durante dois anos a Culturgest tentou, de facto, produzir o catálogo em questão.)
Lee Friedlander, «Nu, Phoenix, Arizona, 1978»
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Feito o aviso, deve dizer-se que o espectáculo das imagens – o espectáculo dos corpos exibidos, esplendorosos ou mortificados, e também o das fotografias expostas – é aliciante.
Um século de fotografias, sintetizado em 540 obras, podia apresentar-se num alinhamento monótono de cronologias ou disciplinas. Em vez disso, a arquitectura difícil da Culturgest foi transformada num percurso animado por sucessivos espaços e núcleos diferenciados. O tema geral fragmenta-se em capítulos que vão renovando sempre as pistas de abordagem e confrontando datas, linguagens e géneros (temáticos e sexuais), com uma desordem aparente que estimulará a perspicácia do espectador. A fotografia – se existe uma entidade única que agregue a infinidade dos processos técnicos e dos usos das imagens fotográficas – expõe-se em toda a sua imensa diferença de técnicas, suportes, formatos, intenções e destinos sociais.
Mostram-se fotogravuras, uma ou outra albumina, alguns postais, platinas, cópias de transparências para lanternas de projecção, as habituais provas de halogenetos de prata, cibachromes, impressões de polaroides gigantes, um tapete de revistas de moda, um poster de Olivero Toscani para a Benetton. E também reproduções fotográficas de imagens científicas obtidas em ecrãs electrónicos por novos meios de diagnóstico ou investigação, como os ultra-sons e as ressonâncias magnéticas. Mostram-se imagens de circulação clandestina, fotografias que desde o início foram candidatas à condição da arte (destinadas à exposição) e outras reconhecidas como tal depois de terem cumprido a sua função primeira, a publicação na imprensa periódica, nos casos da moda, do desporto ou da reportagem – as imagens terríveis dos campos de concentração, de Lee Miller, Prisioneiros com restos humanos, Buchenwald, 1945, e John Phillips, Danzig, Polónia: o fim da guerra pára a transformação de corpos em sabão, 1945).
Na concepção e na montagem, «O Século do Corpo» recorda «À Prova de Água», que a Expo'98 e Jorge Calado mostraram no CCB, e valerá a pena, porque houve catálogo (embora tardio), revisitar alguns dos núcleos onde o corpo era o fio condutor: «Na Praia», «Natação», «Lavagens» e «Águas Humanas». Tal como então sucedia, o itinerário é balizado por instalações fotográficas: «Microcosmos (O Corpo Torna-se Corpo)» – começa-se com a formação da vida e a evidência neutra do corpo físico (Chuck Close), as novas possibilidades e escalas do olhar, a arte e a ciência; adiante Mar de Sol, do escultor (?) inglês Andrew Sabin, é uma construção labiríntica que representa a «Mente (O Labirinto da Memória)»; depois, a passagem nocturna e a paisagem «abstracta» do interior do corpo, «Investigação (Os Olhos da Ciência)»; por fim, «Macrocosmos (Corpos Celestes»), de Pierre Radisic, fazendo do erotismo da pele a promessa dos céus. A marcar emblematicamente o acesso à mostra há ainda o voyeurismo genial de Helmut Newton (o díptico Elas Avançam, Nuas e Vestidas, Paris, 1981), a sublinhar outro dos pares essenciais, nu e vestido, num trajecto que se fará sempre entre dualidades e cruzamentos: homem e mulher, vida e morte, juventude e velhice, público e privado, prazer e dor, exterior e interior, matéria e espírito, apolíneo e dionisíaco, etc.
Clarence H. White e Alfred Stieglitz, «Torso», 1909 (fotogravura publicada na revista «Camera Work»),
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Entretanto, sucedem-se os capítulos decisivos da mostra, estruturados por tópicos que se abrem sempre a leituras plurais. Primeiro, «O Olhar (O Espelho da Alma») e «Carne (A Condição Universal»: o retrato e a identidade pessoal, o rosto e o corpo inteiro, reais ou manipulados; depois, a materialidade física, até ao informe (Leon Levinstein, Conney Island, c. 1950). Mas as pistas baralham-se e ambas as secções dedicam especial atenção à passagem e efeitos do tempo (Nicholas Nixon e Giacomelli, Avedon e os retratos do pai, em «O Olhar»), ou às idades do corpo sentidas na intimidade dos laços pessoais com os modelos (Emmet Gowin e Sally Mann).
Adiante, «Ícone (Ídolos e Ideais)» percorre uma galeria de paradigmas da beleza, do nu simbolista aos corpos míticos do cinema e da moda, passando pelos cultos da forma física (o método Desbonnet e o naturismo). Faltam aqui os corpos maquínicos e urbanizados dos anos 20 (Rodchenko e Moholy-Nagy, dois ausentes) e a sua conversão em heróis do povo ou da raça. «Gesto (A Linguagem do Corpo)» vai das tatuagens e das máscaras, SM ou étnicas, com trânsito pelo desporto e a dança, até à área da «body art» (o pioneiro Schwarzkogler, accionista vienense), destacando os rituais fotográficos de Dietter Appelt e a experiência da natureza do finlandês Arno Rafael Minkkinen.
«Desejo (Eros e Vénus)» concentra-se nas convenções e descobertas do erotismo (Christer Stromholm, Sem Título, c. 1955), enquanto «Dor (O Corpo Atormentado)» e «Poder (O Corpo como Campo de Batalha») fazem a chamada à realidade do corpo vulnerável à doença e ao mal, mostrando que este foi o século das mais extremas formas de aniquilamento, desde as trincheiras de 14-18 até aos campos de extermínio. Entretanto, se esses núcleos acentuam a condição social do corpo, «Forma (Objectos de Beleza)» faz o inventário das suas modalidades mais formalmente fotográficas, por uma longa sequência de sub-capítulos: «Fragmentos», «Figuras Humanas», «Geometrias», «Metamorfoses» e «Prazeres». Por fim, «Ficção (O Sonho do Corpo)» propõe-nos os espelhos do imaginário. Mas as secções nunca são estanques e muitas das imagens poderiam trocar de lugar.
Imogen Cunningham, «Nu, 1932»
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As fotografias, provas de época e peças de colecção (não as habituais reproduções que uniformizam as dimensões e as qualidades materiais das imagens) vieram de museus, galerias e acervos particulares de todo o mundo e também dos artistas. Por exemplo, do Musée de L'Elysée de Lausanne – de que William Ewing (1), o comissário da mostra, é director (sucedendo a Charles-Henri Favrot) – , da Maison Européenne de Paris, do Museu Nicéphore Niépce de Chalons-sur-Saône, do Met de Nova Iorque, da National Gallery de Ottava, do Museu Ludwig de Colónia, do Fotomuseum/Stadtmuseum de Munique, etc. De Portugal, apenas uma fotografia, de José Manuel Rodrigues (Odivelas, 1997), a recordar com toda a justiça a sua recente retrospectiva na Culturgest (mas teria sido positivo se W. Ewing, que trouxe tantos fotógrafos suíços, aproveitasse a missão para lançar um olhar exterior sobre os nossos corpos e «corpus» fotográficos).
A propósito, convém assinalar a opção centralista e eurocêntrica que marca esta exposição – algo distanciada da lógica multiculturalista da programação da própria Culturgest («Uma Casa do Mundo») e também contrária, aliás, à acertada atenção às diferenças dos olhares sobre o corpo que guiou o projecto, nomeadamente quanto às que terão por origem ou por projecto assumido a diversidade dos sexos e das opções sexuais.
No século XIX, a fotografia é quase sempre uma actividade profissional ou artística masculina (Lady Hawarden e Julia Margaret Cameron foram casos raríssimos) e por maioria de razão o foi a fotografia do nu, que como «modelos para artistas» ou com intenção manifestamente «licenciosa» punha em cena os códigos do erotismo masculino com recurso a modelos profissionais e prostitutas. O corpo do homem foi mais raramente representado e o homoerotismo teve presença ambígua em algumas «academias» ou «nus estéticos», tornando-se mais explícito, nos anos 80, em Wilhelm von Gloeden (vejam-se ainda os adolescentes pseudo-clássicos de Sem título, c. 1910).
Arno Rafael Minkkinen, «Krupio, Finlândia, 1987»
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A desigualdade sexual começou a mudar com o modernismo picturialista – com Gertrud Käsebier, Alice Boughton (Areia e Rosas Selvagens, 1909, da «Camera Work») e Anne Brigman (Alma do Pinheiro Destruído, 1907) – e muda mais radicalmente com o modernismo realista de Imogen Cunningham (que principiou por ser também picturialista e de que a exposição exibe cinco provas, reconhecendo-lhe o lugar magistral) ou, por exemplo, das não representadas Margarethe Mather e Tina Modoti (fotógrafas, modelos e amantes de Edward Weston). O reconhecimento do pleno estatuto artístico da fotografia e a admissão frequente do nu nas exposições foram coincidentes no tempo, e, ainda que começassem por seguir-se as regras de composição e os padrões simbólicos legitimados pela pintura, há uma evolução essencial da representação dos corpos que tem a ver com a possibilidade de se substituir os modelos profissionais, com as suas poses estereotipadas, por modelos ocasionais e «amadores», de quem é legítimo supor a cumplicidade e mesmo a co-autoria dos resultados fotográficos.
O Torso de 1907 («Camera Work», 1909) de Clarence H. White e Alfred Stieglitz é uma obra marcante; uma década depois, Stieglitz abandona a caução simbolista pela abordagem realista e «puramente» fotográfica, mas também já cruamente sexuada, da longa série de retratos de Georgia O'Keeffe, que viria a ser sua mulher e pintora de consagrada carreira (a sua ausência na exposição, como, mais tarde, de Kiki de Montparnasse, se não erro, é a vários títulos lamentável). Essas fotografias estão na origem dos nus de Weston (mostram-se três ou quatro das suas fotografias de 1936, feitas com Charis Wilson em Oceano e Santa Mónica), numa direcção que será ainda aprofundada genialmente por Lee Friedlander (Nu, Phoenix, Arizona, 1978). Já com outra lógica, o sentido da intimidade com os modelos, como se de fotografias de família se tratasse, continuará com Harry Callaham (Eleanor, Aix-en-Provence, c.1958) e Emmet Gowin (Edith e Elijah, Newtown, Pensilvânia, 1974) e também com Nicholas Nixon e Sally Mann. Por outro lado, os enquadramentos muito fechados praticados por Stieglitz são paradigmáticos da estratégia do fragmento explorada pelo modernismo vanguardista (o capítulo dedicado ao fragmento começa com fotografias médicas de 1925).
Parte substancial da exposição é dedicada à fotografia feita por mulheres (outros nomes: Claude Cahun, Laure Albin-Guillot, Helen Levitt, Dianne Arbus, Francesca Woodman, Nam Goldin, Ann Mandelbaum). Passam por elas a desconstrução das imagens idealizadas ou dominadoras e diferentes relações entre sujeito e objecto, mesmo se não será viável isolar um modo de olhar feminino. Uma outra linha de afirmação de diferenças é a que se estabelece através da larga presença da visão erótica homossexual masculina, desde Wilhelm Plüschow e Vicenzo Galdi, com a produção da Western Photo Gilde, depois através de grandes nomes da fotografia de moda como George Hoyningen-Huené, Horst P. Horst, George Platt Lynes, Herbert List, até Mapplethorp (faltando Bruce Weber).
É todo um outro campo de necessárias diferenciações, o dos olhares exteriores ao centralismo ocidental, que a exposição deixa por explorar, com a excepção breve de alguns japoneses (Eikoh Hosoe, Araki e poucos mais), Alvarez Bravo, evidentemente, e as participações isoladas do cubano Julio Mitchel ou da colombiana Lucana. A fotografia etnográfica e/ou exótica foi muito abundante no séc. XIX, mas, para além de George Rodger e Leni Riefenstahl, as fronteiras do mundo continuaram ainda a abrir-se com Pierre Verger, em África e no Brasil, a descoberta do paraíso amazónico fez-se com José Medeiros, Maureen Bisilliat ou Claudia Andújar, surgiram fotógrafos africanos como Malick Sibidé, Samuel Fosso ou Rotimi Fani-Kayode. Na América Latina, o trabalho escultural feito com o corpo é diferente nas fotografias de Mário Cravo Neto, Gerardo Suter, Luis González Palma ou Marta Maria Paráez Bravo.
Por último, há ainda que questionar a legitimidade do título. Este não foi, de facto, «O Século do Corpo», o qual já tinha sido exaustivamente explorado e consumido no séc. XIX, logo a partir de 1840 com os primeiros daguerreotipistas. Na pintura e na escultura, o rosto e o corpo fazem uma travessia do século em grande parte subterrânea, ocultados pela iconoclastia da abstracção e recalcados pelas idealizações das vanguardas, como mostrou a decisiva exposição de Jean Clair, em 1995, na Bienal de Veneza. Os muitos corpos fotográficos do século são os da proliferação da imagem impressa, durante muitas décadas essencialmente empenhada no inventário e denúncia das desordens do mundo e da opressão dos povos; só a partir de meados dos anos de 70, o trabalho sobre e com o corpo voltou a ocupar um largo lugar (predominantemente narcísico) na criação fotográfica. O título proposto é mais mediático que justo.
(1) Autor do livro The Body (Photoworks of the Human Form), ed. Thames and Hudson, 1994.
Organizada em doze secções - Microcosmos, O Olhar, Carne, Mente, Ícone, Gesto, Desejo, Forma, Dor, Poder, Investigação e Ficção – a mostra percorre as diversas áreas em que a fotografia se relaciona com o corpo, como a dança e o desporto, a medicina, a antropologia, a publicidade, a reportagem, a arte, num panorama que inclui muitos dos melhores fotógrafos do século.
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