sábado, 28 de agosto de 2004

2004, Serralves, "Circa 1968" 3, Arte e Política (Interfunktionen)

 Expresso 28-08-2004

"Arte e política"


Os anos conturbados de 1968 a 1975 revistos numa perspectiva que dissocia a vanguarda artística e o envolvimento político

Cinco anos depois da exposição que inaugurou o Museu de Serralves, regressa-se a «Circa 68», ou seja, a algumas das manifestações artísticas de um tempo de todas as contestações, quando terminava a era de optimismo e desenvolvimento acelerado que, nos países do Ocidente, se seguiu ao fim da II Guerra Mundial. Após a exacerbação da Guerra Fria, com a edificação do Muro de Berlim, em 1961, a crise dos mísseis em Cuba, no ano seguinte, e o envolvimento militar no Vietname, em 1964, tem início um década de radicalização política e social que extravasa os quadros partidários e parlamentares, prolongando-se nos movimentos antiautoritários e num contexto de «mal-estar cultural» antiburguês de profundas consequências. Os ecos da Revolução Cultural na China e o terceiro-mundismo da «tricontinental» de Havana, a partir de 1966, as revoltas estudantis e Maio de 68, os diversos esquerdismos e a passagem à guerrilha urbana e ao terrorismo (a fracção Exército Vermelho, na Alemanha, e as Brigadas Vermelhas, em Itália, a partir de 1970), a invasão da Checoslováquia (68) e o golpe de Estado que derruba Allende (73) são alguns marcos essenciais.

Nada ou quase nada desse muito conturbado mundo político está explicitamente presente na actual mostra (a excepção, sem a pretensão de ter assistido a todas as projecções, será um filme de Wolf Vostell, de 1969, onde se vêem apenas as palavras «estado de emergência» projectadas sobre as paredes de Munique ao longo de sete soporíferos minutos). Poderá dizer-se que, nesta recuperação museológica dos objectos e documentos das acções artísticas destes anos de revolta, a arqueologia oculta a história.

«Por Trás dos Factos», título que no Porto não se traduziu (ao contrário do que aconteceu em Barcelona), sugere uma ligação subterrânea ou oculta da arte com os acontecimentos sociais e políticos. Mas é, de facto, a um fechamento da arte sobre si mesma que quase sempre se assiste, enquanto experiência dos seus limites (a inovação, ainda) e fronteiras (incluindo tudo o que poderia ainda ser não-arte), «reflexão» sobre a identidade essencial do fazer artístico, os seus códigos linguísticos e o contexto da circulação dos objectos (por exemplo, Hans Haacke apresenta os sucessivos proprietários de um quadro de Seurat), ou como a sua própria autocontestação («a arte corrompe», dizia Jochen Gerz; é «objectivamente reaccionária», insistia Buren).

Observa-se em paralelo uma ensimesmada e narcísica exposição do artista em si mesmo, do seu rosto e corpo, muitas vezes nu e em vários casos em acções autosacrificiais (Gunther Brus e Valerie Export), que podem ter a interacção com o espectador como pretexto ou privilegiar o exame conceptual do «eu» físico e psíquico no espaço fechado do estúdio (nas impressivas obras de Bruce Nauman). Preferindo os comportamentos artísticos às obras, numa lógica de recusa da autonomia do objecto de arte e do seu destino mercantil, «há um deslocamento da obra dita aurática para o artista aurático... a dessacralização da arte culmina na fetichização/histerização do artista», como escreve Birgit Pelzer num importante texto do catálogo que foi traduzido em A Obra de Arte sob Fogo. Inovações Artísticas 1965-1975 (co-edição de Serralves com o jornal «Público»).

No entanto, ao contrário do que leva a supor a escolha das obras e documentos expostos (sempre de artistas que colaboraram na revista alemã «Interfunktionen», mas sem coincidirem com as aí reproduzidas), os anos em causa são marcados por uma tendência generalizada da arte para a sua politização, o que, entre muitas intervenções de circunstância (e de instrumentalização da arte), inclui o uso militante das imagens e várias formas críticas de realismo.

A alegada neutralidade da pop é interrompida em 1965 pelo F-111 de Rosenquist, Rauschenberg utiliza imagens da actualidade serigrafadas, Kienholz é um crítico violento da sociedade americana, Golub e Nancy Spero são artistas políticos, Mark Di Suvero desenha a monumental Tower for Peace em Los Angeles onde se acumularam pequenos quadros de 400 artistas (1966) e exila-se depois em Itália, as «Angry Arts Week’s» sucedem-se em 1967, a Art Workers Coalition é criada em 1969, etc. Muitas obras de Öyvind Falström têm um explícito conteúdo militante, a Figuração Crítica francesa organiza em 69 a Sala Vermelha pelo Vietname, e o Salon de la Jeune Peinture declara-se ao lado da classe operária; na Alemanha, em 1970, grandes colectivas intitulam-se «Funções da Arte na Nossa Sociedade» e «Arte e Política»; o Equipo Crónica intervém na Espanha franquista; Baselitz e Schonebeck, Lupertz e Penk enfrentam o passado alemão, Polke propõe com ironia o Realismo Capitalista. A cronologia publicada em Face à l’Histoire (Centre Pompidou/Flammarion, 1996) é eloquente.

Dedicando-se às neovanguardas dos anos 60/70, circunscrevendo um universo de experimentação interdisciplinar com diferentes «media» e formas artísticas em que o vídeo toma um papel cada vez maior entre as linguagens artísticas, a abordagem da exposição toma a condição de vanguarda como um valor intrínseco, desfazendo-se das formas intervenientes do compromisso político. O ponto de vista «artistically correct», que dissocia a vanguarda artística e a política, pretende ser também uma forma de localizar nessa década os inícios da arte actual: «Foi em 1968 que se inventou um fenómeno ao qual se deu o nome de ‘arte contemporânea’», diz o agressivo marketing de Serralves.

Behind the Facts. Interfunktionen 1968-75
Museu de Arte Contemporânea de Serralves, Porto, até 3 de Outubro

Keith Arnatt, «I’m a Real Artist», 1969-72
«Salsicha de Literatura», de Dieter Roth, 1969   

II

Expresso 04-09-2004

"Comércio de ruínas"
Segunda visita aos vestígios das rupturas artísticas de 1968

Esta exposição não se percorre numa circulação mais ou menos contemplativa por entre objectos. Em princípio não há, não deveria haver, objectos, mas sim acções e comportamentos, embora estes, recuperados como história, se assemelhem perigosamente a obras de museu. À contemplação, alegadamente passiva, de objectos de arte autónomos, desligados das circunstâncias do seu tempo e lugar, deveria substituir-se a interacção, o envolvimento cúmplice ou reactivo com os propósitos críticos que os motivaram, enquanto arte ou não-arte, contra as convenções artísticas e sociais suas contemporâneas. Estamos, é preciso notar, não no terreno da criação artística especializada, onde a especulação formal levaria sempre mais longe a crítica da tradição, mas no campo da revolução artística, da utopia social e do radicalismo político.
Quando, como escrevia o crítico francês Jean Clay na revista «Studio International» em 1970, se assistia «à agonia do regime cultural mantido pela burguesia nas suas galerias e museus». Mais do que uma ou várias visitas, aliás, seria necessário viver no museu e transferir a realidade colectiva do quotidiano para o seu interior, porque a coincidência romântica entre a arte e a vida foi uma ambição das neovanguardas das décadas de 60/70. Ou, mais prosaicamente, porque assim o exigiria a extensão dos numerosos filmes e vídeos que se exibem - a experiência seria de um aborrecimento mortal.

Entre as projecções eternizadas em «loop» ou em exibição rotativa, não se percam os 96 minutos do filme de Mauricio Kagel, La Baignoire de «Ludwig van», de 1969, uma das mais importantes obras «expostas», discretamente situada no fim da ala direita do museu. Vale a pena acompanhar a câmara que visita a casa onde Beethoven supostamente nasceu, através dos quartos imaginados por Ursula Burghardt, Joseph Beuys, Robert Filliu, Diether Roth, Stephan Wewerka e o próprio Kagel (uma sala de música integralmente revestida por pautas), enquanto se ouve a peça que compôs a partir das sinfonias do seu antecessor.

Neste caso trata-se de um filme e não propriamente da exploração de novos «media», a qual constituía uma das orientações essenciais da revista alemã «Interfunktionen», de 1968-75, cuja evocação serve de argumento à exposição, mas o seu carácter interdisciplinar, em conformidade com o interesse de Kagel pelo teatro musical, satisfaz a defesa da abolição de fronteiras entre disciplinas artísticas. Esta ambição, que já não era inovadora, tinha então como referência mais directa o movimento Fluxus, criado em 1962 nos Estados Unidos, com origem no ensino de John Cage, mas que na Alemanha teve um desenvolvimento menos dadaísta e zen e mais retoricamente político, com Beuys e Wolf Vostell. Os dois tiveram uma influência preponderante nos primeiros tempos da revista de Colónia, e a exposição inclui igualmente obras de Maciunas (as suas latas de alimentos não são arte pop, mas a sua caricatura), George Brecht e D. Roth.

A música, entretanto, está especificamente presente através de obras de Philip Glass, Steve Reich, Kagel e Jon Gibson, que se podem ouvir em auscultadores. Mas são as imagens projectadas que predominam na exposição, continuada, aliás, pela apresentação simultânea da «galeria televisiva» de Gerry Schum. É através do filme e também da fotografia que podem entrar no museu as acções que pretenderam sair dos espaços fechados do atelier e da galeria, com o propósito de intervir na natureza, de a tomar directamente como material, de reviver a ideia de sublime nas imensas paisagens americanas e/ou recusar a recuperação mercantil dos objectos. Seria este último aspecto que mais aproximou a revista dos artistas que se identificam com a Earth Art ou Land Art, como Robert Smithson (a sua Spiral Jetty é tema de um filme), Walter de Maria ou Richard Long.

Outra corrente que está presente através da mediação do filme e da fotografia é a da arte corporal, onde o corpo é usado como objecto ou matéria, nas «missas negras» dos accionistas vienenses (Günther Brus e Valerie Export) ou em acções de Bruce Nauman, Vito Acconci e outros, identificados com a Body Art, enquanto em Rebecca Horn é essencial a criação de próteses ou adereços. Com o aparecimento do vídeo portátil, em 1965, passava-se do registo documental de «happenings» e rituais a outro tipo de «performances» que exploravam a interacção com a imagem espelhada no ecrã (Body Press, de Dan Graham). Entretanto, as correntes do cinema experimental dos anos 50 e o «underground» dos 60 (Robert Frank e a contracultura beat, os Fluxfilms, Warhol) prolongavam-se no cinema dito estruturalista ou conceptual com a desconstrução ou destruição das qualidades materiais do filme (Paul Sharits, George Landow e Wilhelm & Birgit Hein).

O diversificado panorama que a exposição propõe recorta a realidade dos anos 68-75 a partir do activismo da revista «Interfunktionen», surgida da contestação à IV Documenta de Kassel e da agitação da Academia de Dusseldorf, protagonizadas pelo movimento Lidl de Immendorff (as suas pinturas de 1974 pretendiam-se maoístas) e por Beuys, então afastado do ensino. Ao contrário da informação de Serralves, é errado atribuir uma «reaccionária concepção de arte» a uma Documenta inteiramente voltada para a actualidade, que expunha a pop, a arte cinética, instalações ou «environments» e incluía Edward Kienholz, Öyvind Fahlström e também D. Roth e Beuys. No entanto, é oportuno acompanhar algumas questões de fundo que se levantam no catálogo e no livro co-editado por Serralves e o «Público».

Ulrich Loock, director-adjunto do museu, refere que, «dado o fracasso do projecto político da ‘geração de 1968’, não surpreende que hoje se suspeite que a revolução aparentemente bem sucedida verificada na arte cerca de 1968 tenha, na verdade, sido uma revolução conservadora», remetendo para a análise crítica de Birgit Pelzer sobre «estes anos extremamente politizados, amargos, apaixonados, rebeldes, utópicos».

Perdidas as ruas, as neovanguardas ganhavam, a troco da sua neutralização política, a entrada nos museus e no mercado, passando das margens para os centros do poder. É o que sugere Birgit Pelzer: «Ao ratificarem o arbitrário e o absurdo de toda a problemática sobre o valor em arte, estas práticas interpretaram-na, em última análise, estritamente segundo os próprios termos do mercado, ao ponto de hoje anteciparem e explorarem a sua própria recuperação através desses mesmos mecanismos.»
«Instalações cada vez mais gadgetizadas, legitimando-se muitas vezes através de pseudoquestões sociopolíticas, introduzem o espectador numa cacofonia ensurdecedora e na sua própria obsolescência programada. Assistimos agora a eventos de marketing promocional para produtos de consumo em lugar de práticas de pesquisa, de experimentação, de laboratórios de preocupações e dúvidas.»

«Behind the Facts»
Museu de Serralves, até 3 Outubro

legendas
Joseph Beuys, cerimónia messiânica de um escultor social, xamã e activista político
Psicodrama sacrificial de Günther Brus   

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