Transcrevo um mail do João Francisco sobre a exposição Mille-fleurs que hoje (10 de Novembro) chega ao fim.
"Eu não sei se posso dizer que o tema
dos refugiados e dos naufrágios seja o principal ou o único da exposição
[ não, não é o único, talvez não seja o principal, mas é aquele que
mais intensamente atinge o observador, logo no espaço inicial da
exposição, quando se começa a identificar a presença dos migrantes e dos
mortos do Mediterrâneo; não é rápida essa identificação, ela é elidida
pelo autor e talvez a evitemos, porque a arte não trata dessas coisas...
Só mais tarde, ao tentar escrever sobre a exposição, o assunto se me
tornou evidente, irrecusável.] O ponto de partida foram de facto as
tapeçarias mille-fleurs, que realmente admiro e que me intrigam. A
vontade de fazer algo a partir delas era já antiga. E o painel grande
com as flores e os animais mortos foi o que inicialmente surgiu dessa
referência (e que nesse sentido talvez se possa dizer que a ela mais
esteja preso).
As outras pinturas da exposição surgiram autónomas a esta peça maior mas mantendo, para mim, esta procedência:
- por um lado na série mille-fleurs (as
colagens sobre os desenhos de bordados reutilizados) onde se joga com a
ideia de "cartão", ou seja, de algo que está a meio caminho entre a
ideia e um outro objecto final a realizar, e onde sigo mais ou menos o
aparato das tapeçarias referidas: um motivo central rodeado de elementos
pequenos, mais ou menos parecidos, no que vejo também uma ironia com a
repetição tão cara ao minimalismo. Interessou-me explorar a relação
entre o que eu pintei e os elementos já existentes nas páginas
encontradas, essa conversa entre o novo e o antigo, a passagem do tempo
também, no fundo. Tudo isto tendo em conta a ironia e o anacronismo que
consiste em falar hoje de uma forma de arte completamente morta e
especifica como é a da tapeçaria. (que acresce também ao facto de ser já
eu um pintor de "naturezas mortas" , um género "menor");
- e por outro nas pinturas a acrílico
mais pequenas ("as paisagens"), que exploram temas que poderiam também
ser motivos para tapeçarias (substituindo-se às cenas épicas de
batalhas, mitologias, paisagens mais ou menos exóticas).
Tendo dito isto, o tema dos refugiados e
dos naufrágios tornou-se bastante importante, aparecendo várias vezes,
bem como pela primeira vez a inclusão de corpos, ou fragmentos deles
(quase sempre o meu) , que interagem com os objectos estáticos da
natureza morta, ou que parecem fazer um comentário à "acção".
É também
como diz, senti que era um assunto delicado e melindroso, em relação ao
qual tive muitas dúvidas durante o processo - se devia ou podia ser
explorado - , e que achei melhor não nomear (embora o tenha feito
indirectamente nos títulos: " o náufrago", "figura a observar um
naufrágio", "no mediterrâneo", "sob as ondas").
Agrada-me também, como lhe disse, esse desafio de deixar, dando algumas
pistas, que o espectador entre no jogo, em vez de explicar e dissecar
por completo as imagens (prefiro que elas interpelem o espectador, que
criem um diálogo). Interessa-me no fundo que as imagens vivam por si e
sejam eficazes, e que não sejam meras ilustrações de uma ideia inicial
ou literária. E daí as pinturas evocarem o drama dos naufrágios sem
reproduzirem ou partirem das imagens deles com que somos regularmente
confrontados (a construção no atelier destas amálgamas de corpos e
ondas, em substituição dos reais, acaba por não me parecer menos trágica
e inquietante). São no fundo coisas muito fora de moda e nada
contemporâneas: símbolos, alegorias. Um pouco como as estátuas dos
"duplos" do antigo Egipto.
Mais do que o drama específico no
Mediterrâneo talvez seja a morte, e o tempo, um dos fios condutores da
exposição. Ela aparece em algumas das paisagens (as paisagens onde
surgem caveiras aludem às fantásticas imagens, maioritariamente
medievais/renascentistas, do juízo final, onde o inferno é mostrado
muitas vezes como um monstro de enorme boca aberta por onde entram as
pobres almas condenadas....); no "Lázaro", que estando morto volta à
vida; nas velas, acesas ou apagadas; nas flores, frescas ou murchas,
reais ou artificiais; no Mársias, esfolado vivo como castigo; no próprio
painel "mille-fleurs", no diálogo entre os animais mortos e as flores
aparentemente vivas (ainda, mas isso é um jogo antigo da pintura de
naturezas-mortas....).
Sem título - mille-fleurs (1. pinceladas numa paisagem/ 2. Lázaro / 3. as pinceladas flutuantes / 4. debaixo das ondas), 2018
mille-fleurs
O assunto que talvez possa agregar o conjunto de pinturas recentes que aqui se apresentam é o da paisagem. Apesar de serem assumidamente naturezas-mortas, na medida em que consistem em objectos reais, dispostos e observados, estas imagens olham para o exterior, lá para fora. Falam de montanhas e desertos, do mar e de florestas, de ruínas, de jardins. Olham também através deles para o interior (não serão as paisagens aí ainda mais perigosas e sombrias?).
O assunto que talvez possa agregar o conjunto de pinturas recentes que aqui se apresentam é o da paisagem. Apesar de serem assumidamente naturezas-mortas, na medida em que consistem em objectos reais, dispostos e observados, estas imagens olham para o exterior, lá para fora. Falam de montanhas e desertos, do mar e de florestas, de ruínas, de jardins. Olham também através deles para o interior (não serão as paisagens aí ainda mais perigosas e sombrias?).
O título da exposição e muitas das peças
apresentadas partem de um tema que importa explicar: mille-fleurs ou
mil flores. É o termo utilizado para agrupar um conjunto de tapeçarias
produzidas no norte da França e na Flandres sensivelmente entre o final
da Idade Média e o início do Renascimento. O que as torna num grupo
específico é o uso que fazem, de forma
repetitiva e obsessiva, da representação de flores e plantas que, rodeando por completo os elementos em destaque (que podem ir de damas com unicórnios a caçadores, personagens galantes ou mitológicas), criam um espaço mais mítico que natural, mais caracterizado por uma exuberância decorativa que pela sugestão de uma paisagem real onde as figuras se inserem. Estas representações de flora, a que muitas vezes é também adicionada a presença de pequenos animais, são no entanto extremamente fiéis: são reconhecíveis com facilidade as espécies de planta selvagens e de cultivo doméstico, o que anuncia a cultura humanista e científica do Renascimento.
repetitiva e obsessiva, da representação de flores e plantas que, rodeando por completo os elementos em destaque (que podem ir de damas com unicórnios a caçadores, personagens galantes ou mitológicas), criam um espaço mais mítico que natural, mais caracterizado por uma exuberância decorativa que pela sugestão de uma paisagem real onde as figuras se inserem. Estas representações de flora, a que muitas vezes é também adicionada a presença de pequenos animais, são no entanto extremamente fiéis: são reconhecíveis com facilidade as espécies de planta selvagens e de cultivo doméstico, o que anuncia a cultura humanista e científica do Renascimento.
Realizado ao longo de vários meses o
vasto conjunto de pequenas pinturas mille-fleurs pode ser entendido
simultaneamente como memória desse tempo que passa, e como retrato de um
espaço específico, de um jardim, registando e mostrando o que lá
cresceu e morreu. Assimilando a estrutura formal das referidas
tapeçarias em que as plantas se encadeiam de forma regular criando como
que uma grelha, esta peça é uma afirmação do fascínio que a natureza,
por mais remota ou doméstica, real ou mítica que seja, continua a
realizar.
A descoberta fortuita de um conjunto numeroso de esquissos utilizados para bordar despoletou outro conjunto de peças: nessa memória ou fantasma dos desenhos que foram passados para um outro suporte têxtil, reconheci a dos “cartões” das tapeçarias, modelos em tamanho real do que iria ser tecido e que, devido à constante e violenta utilização, raramente sobreviveram (e de que os cartões para os Actos dos apóstolos de Rafael são uma notável excepção). Criando um fundo relativamente homogéneo a colagem destes desenhos, todos referentes com graus diversos de realismo e estilização a plantas, permitiu a construção de um campo onde a pintura acontece. É neste jogo entre o que se oculta e o que permanece visível que estas páginas encontram sentido.
Falando das paisagens em si talvez as vejamos como pessimistas e escuras. Por vezes inquietantes e inóspitas. Possivelmente também irónicas ou ridículas. Talvez tenham de ser assim. Fazendo minhas as palavras de Bernard: (...) e saí para a rua sozinho, de impermeável vestido, e as montanhas eternas fizeram-me sentir enjoado e nada sublime (Virginia Woolf, As Ondas)."
A descoberta fortuita de um conjunto numeroso de esquissos utilizados para bordar despoletou outro conjunto de peças: nessa memória ou fantasma dos desenhos que foram passados para um outro suporte têxtil, reconheci a dos “cartões” das tapeçarias, modelos em tamanho real do que iria ser tecido e que, devido à constante e violenta utilização, raramente sobreviveram (e de que os cartões para os Actos dos apóstolos de Rafael são uma notável excepção). Criando um fundo relativamente homogéneo a colagem destes desenhos, todos referentes com graus diversos de realismo e estilização a plantas, permitiu a construção de um campo onde a pintura acontece. É neste jogo entre o que se oculta e o que permanece visível que estas páginas encontram sentido.
Falando das paisagens em si talvez as vejamos como pessimistas e escuras. Por vezes inquietantes e inóspitas. Possivelmente também irónicas ou ridículas. Talvez tenham de ser assim. Fazendo minhas as palavras de Bernard: (...) e saí para a rua sozinho, de impermeável vestido, e as montanhas eternas fizeram-me sentir enjoado e nada sublime (Virginia Woolf, As Ondas)."
Se
o João Francisco fosse um candidato a artista minimal-conceptual diria,
ele ou algum curador por ele, que "reflecte sobre"... Mas ele não diz,
nem sugere, pelo contrário, entrega-nos à nossa eventual vontade de
atenção / interpretação ou à nossa cegueira. Quem pensará que uma obra
de arte aborda (trata de..., tem por tema) assuntos sérios, e não é só a
apropriação indiferente de uma imagem mediática ou um 'mero' exercício
auto-referencial, dedicado à ideia de arte e à tradição da sucessão de
formas (novas?), referido à 'soberania' da arte e ao 'Mundo da Arte'
(como se lê com maíuscula e aparente convicção à entrada do ex-CAM,
actual Museu Gulbenkian - "Anos 2000", dizem eles).
O
João Francisco não explica sobre (o) que 'reflecte'; pelo contrário,
vai apontando para outras pistas, que teremos de seguir antes e depois
de descobrirmos o assunto mais forte das suas obras recentes.
Ele
não refere os retratos e auto-retratos que lá estão; não sinaliza as
'vanitas' (variedade de naturezas-mortas que nos confrontam com a
morte); não fala de pintura de história, que já não se povoa de
mitologias e realezas mas se enfrenta ao quotidiano, à política, à
história em que vivemos.
Alguém
terá já tratado em pintura os dramas dos migrantes e refugiados
africanos que se afundam no Mediterrâneo? É o que faz o João Francisco. E
é muito forte.
Dez
anos depois da 1ª exposição, já na 111, o João Francisco conserva
algumas características centrais do seu trabalho: a natureza-morta,
pintura e desenho de observação diante de modelos/paisagens que
constrói, a partir de uma prática e recolector - coleccionador. E essa
prática da natureza-morta é também comentário ou releitura da história
da arte, com extensão às referências literárias. É uma produção erudita
mas que se vê (também) como prática brincada, às vezes próxima da banda
desenhada pelo grafismo das formas e perspectivas.
Aos
actuais desastres e naufrágios mediterrânicos podem associar-se as
anteriores paisagens marítimas de J.F. que já eram trágico-marítimas
("Atlântida" e "Tempestade em Trouville - para E. Boudin", ambos de
2008) e também, de outro modo, as Ondas e Objectos flutuantes de uma
exposição de 2014, e ainda a instalação "Sem título - trazido pelo mar
para Joseph Cornell", de 2005/2012. Tudo se prolonga e reactualiza com
novas referências e circunstâncias. Entretanto - mutação muito
significativa, que deixa abertos novos passos -, a observação pode ser
também imaginação, a natureza-morta acolhe o retrato do natural, usando o
espelho e já não a imagem prévia.
"Sem título - Tempestade em Trouville - para E. Boudin", 2008, óleo sobre tela, 160 x 180 cm.
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