sábado, 17 de novembro de 2018

ETHER 4. 1992 "Olhos nos olhos" (Olho por Olho)

sobre a exposição Olho por Olho - Uma História de Fotografia em Portugal 1839-1992. 

1992, Maio/Agosto


artigo de JORGE CALADO
publicado no EXPRESSO/Revista de 18 Julho 1992
pps 56-57-58-59

(Publicada a primeira história da fotografia portuguesa, António Sena mostra na Ether a primeira retrospectiva. Retoma-se parte do panorama que foi levado à Europália e assinalam-se os dez anos de actividade de uma associação a quem se deve um trabalho seriíssimo de estudo e divulgação da fotografia)
 Cunha Moraes, "Banana, Margens do Rio Zaire", c. 1878; Costa Martins / Victor Palla, foto de "Lisboa 'Cidade Triste e Alegre'", 1956-59


FOI PRECISO esperar mais de 150 anos para se começar a perceber o que foi, tem sido, é a fotografia em Portugal.  Neste processo de estudo, inventariação, pesquisa e apresentação fomos os últimos. Como escreveu um investigador inglês, «early photography in Portugal is probably the worst documented of any country with the exception of some of the more obscure areas of Africa» (a fotografia antiga em Portugal é provavelmente a pior documentada de qualquer país, à excepção da das regiões mais obscuras da África). Para citar apenas os exemplos mais próximos, pode constatar-se que a fotografia brasileira está bem estudada; a de Espanha nem é bom falar - deixa-nos a perder de vista. 
A fotografia portuguesa é toda a fotografia feita em Portugal mais a produzida por portugueses no estrangeiro. Não há especificidades estéticas que a distingam das suas congéneres europeias ou americanas. Quer queiram quer não, a fotografia é uma arte para «estrangeirados», pois, como bem notou Gérard CastelIo Lopes, os nossos fotógrafos «só se servem de um ingrediente nacional: a água» - tudo o resto é importado. Em Portugal, os fotógrafos corriam atrás do espírito dos tempos e reviam-se nos exemplos que vinham de fora. Como acontecia no resto do panorama artístico, o atraso era de rigor e os modelos seguidos nem sempre os melhores. Mas bem ou mal, o «corpus» fotográfico português é o nosso retrato; o retrato das nossas paisagens e costumes, dos nossos monumentos e das nossas histórias, que a vida é a mesma em qualquer parte do mundo - nasce-se, cresce-se, ama-se e morre-se. A pátria é um acidente geográfico, tal como a família é um acidente biológico. Mas, já que nascemos e/ou vivemos aqui, temos o dever de preservar e estudar a nossa herança cultural, e a fotografia é uma parte integrante desta, talvez a mais importante porque é, simultaneamente, cultura e reflexão e registo das outras culturas. 


Por muito incrível que pareça, o primeiro panorama histórico da fotografia portuguesa só foi construído em 1991, para a Europália - foi a exposição Portugal 1890-1990, comissariada por António Sena. Com as lacunas inevitáveis em trabalho pioneiro feito com precárias condições de apoio, esta exposição revelou, na sua plenitude, o trabalho de um fotógrafo excepcional - Joshua Benoliel (1873-1932) -, mostrou em profundidade e em contexto cronológico o período áureo da fotografia portuguesa - os anos 50 - e não esqueceu alguns «olhares inquietos» da actualidade. Para completar o retrato, aproveitou-se a oportunidade para apresentar também uma antologia dos fotógrafos estrangeiros que passaram por Portugal no período de 1930-1990. 
Foram cerca de 280 fotografias, divididas pelos museus de fotografia de Charleroi e Antuérpia. É pena que não tenha havido vontade de a repetir em Portugal ou que não se tenha acedido aos pedidos de meia dúzia de países para a circular, mas a verdade é que os nossos responsáveis culturais ainda julgam que o trabalho dos outros não deve ser pago. 
Na mesma altura, e integrada na série «Sínteses da Cultura Portuguesa» da Imprensa Nacional-Casa da Moeda (outra iniciativa do Comissariado para a Europália'91), publicou António Sena a sua Uma História de Fotografia, que é efectivamente a primeira história de fotografia portuguesa que aparece em Portugal. Ao que dizem, a edição esgotou rapidamente, mas a resposta dos críticos não deixou de ser curiosa - ou o silêncio total ou a exclusiva e mesquinha preocupação em verificar quem vinha ou não vinha mencionado. Os factos pouco interessam desde que as vaidades de cada um estejam devidamente acauteladas. Não é de admirar. Em Portugal, qualquer bicho-careta que tenha duas linhas publicadas num jornal ou apareça na televisão a dizer meia dúzia de banalidades para encher o telejornal fica logo rotulado de especialista ou mesmo com fama de teórico. Pouco interessa que por detrás do penacho ou tabuleta não esteja nenhum trabalho sério de estudo, investigação ou, ao menos, de boa divulgação. Apesar das proclamações em contrário, a qualidade é árvore que não dá fruto em terra lusa e os poucos frutos que aparecem não deixam semente. Claro que neste país de doutores, os falsos patriotas continuam a berrar, tal como o doutor Pangloss, que tudo vai bem neste melhor dos mundos, mas quem verdadeiramente ama o país sabe que as coisas podiam ser bem melhores e quer, por isso, modificar o estado das coisas. Trata-se apenas de aplicar à esfera cultural os critérios que há muito Popper definiu para o progresso científico - a refutabilidade, a tentativa de demonstração de que os factos são falsos antes de poderem ser declarados verdadeiros.

Julgo que é este o programa da Ether, a associação (com galeria) sem fins lucrativos dedicada ao estudo e à divulgação da fotografia portuguesa, fundada por António Sena e companheiros, em 1982, e esta também a razão dos engulhos que tal propósito causa a muito boa (e má) gente. Mas os factos falam por si, e os dez anos da Ether trouxeram os primeiros estudos e «monografias» de fotógrafos como José Francisco Azevedo, Daniel Blaufuks, Carlos Calvet, Marques da Costa, Carlos Afonso Dias, Rui Laginha, Gérard Castello Lopes, comandante António José Martins, Victor Palla/Costa Martins, Francisco Rúbio, Augusto Alves da Silva, Sena da Silva, que ficarão para a história da fotografia portuguesa. Esta obsessão salutar com a monografia/catálogo, onde todas as imagens vêm reproduzidas, é fundamental - uma garantia de que algo fica para os vindouros estudiosos se apoiarem. Perdidas as imagens na voragem da delapidação crónica do nosso património, a história da nossa fotografia tem de ser fatalmente construída com base na documentação. 
Uma História de Fotografia é, acima de tudo, aquilo que é mais útil e precioso nesta fase de arranque: uma síntese de referências. De acordo com o autor, reúne-se pela primeira vez «um conjunto antológico de textos e imagens, na sua grande maioria inéditos para o leitor contemporâneo, muitas vezes de difícil localização e consulta, apoiado por uma bibliografia específica de forma a possibilitar a pesquisa e as contaminações mais imprevisíveis». Naturalmente, a síntese principia com as notícias sobre o anúncio da fotografia publicadas na Imprensa portuguesa no mesmo ano de 1839. Os começos pareciam ser promissores e mostravam actualização. Inevitavelmente, os iniciadores ou divulgadores da fotografia em Portugal são estrangeiros: Wenceslau Cifka, Frederick Flower, William Barclay, o Barão de Forrester, Paul Plantier, P.K. Corentin, Alfred Fillon, Francisco Rocchini, Emilio Biel. Esta «internacionalização» haveria de perdurar durante várias décadas e é um sintoma não tanto do nosso atraso como do nosso cosmopolitismo e abertura ao exterior. 
A localização de Portugal no extremo da Europa faz do país um cais - ponto de partida para a descoberta, mas também ponto de chegada. Apenas dois exemplos de um passado relativamente recente: o melhor retrato português dos anos 60 foi feito pelo americano Neal Slavin, e a revolução de Abril ficou com a imagem de marca das fotografias de Salgado, Gaumy, Le Querrec e Dukat. 
O que é trágico é que, para além da falta de estudos sérios e sistemáticos, também não tenha havido cuidado em conservar o nosso património fotográfico (como sempre, as excepções não alteram a regra). É certo que o mesmo sucedeu com todo o outro património artístico (veja-se por onde andaram os Painéis de S. Vicente!), mas, no caso da fotografia, a sua fragilidade e baixo estatuto tornaram-na ainda mais vulnerável. Falo, evidentemente, de positivos da época («vintage») em bom estado de conservação, que é esse o objectivo último da arte fotográfica. Não há nada que os substitua, e a grande maioria deve ter acabado nos caixotes do lixo, oficiais e particulares. Como tantas vezes acontece, safamo-nos de um extremo para ir cair no outro, e hoje assiste-se à insistência ridícula em preservar a totalidade dos negativos de fotógrafos maiores e menores, sem distinção de qualidade. 
Entretanto, a Colecção Nacional de Fotografia, iniciada há quatro anos, não teve continuidade, não foi divulgada ou explorada, e está sabe Deus em que condições miseráveis de conservação. (Sim, como seu formador, tenho obrigação de alertar para o que podia ser feito e não foi. A Casa de Serralves pretendia-a para o seu fundo fotográfico, mas em dois anos não foi capaz de programar e organizar a sua exibição).  



TUDO ISTO vem a despropósito da exposição com que a Ether comemora os seus dez anos de actividade - Olho por Olho. Uma História de Fotografia em Portugal - 1839-1992 - e que é (só) a primeira grande exposição retrospectiva da fotografia portuguesa, desde os seus primórdios até à actualidade. É mais um marco importante nas realizações da Ether, a juntar às exposições que organizou para a SEC, comemorativas dos 150 anos da descoberta da fotografia (Nível de Olho, 1989, e 1839-1989. Um Ano Depois, 1991), ao Fotoporto de 1990, à já citada participação na Europália ou, mais recentemente, à preciosa componente fotográfica do Colóquio/Letras, onde a fotografia portuguesa tem presença destacada. 
Há quem veja nisto o invejável estatuto de delegado oficioso do poder para a esfera fotográfica, mas a verdade é que a Ether continua a ser o parente pobre que se tolera porque trabalha no duro e bem. Em 1990, o subsídio da SEC foi de 2000 contos, o ano passado foi zero e este ano foi de 3440 contos, que, como toda a gente sabe, não chega para montar uma única exposição e produzir o respectivo catálogo. Também acho que ninguém tem o direito de exigir subsídios, mas em contrapartida o Estado deve promover a fotografia através dos seus museus e não o faz. 

Organizada em duas partes (a segunda, inaugurada a 30 de Junho, manter-se-á à vista na galeria até 8 de Agosto), Olho por Olho reúne 130 obras e mais de 30 documentos fundamentais (tudo em originais), envolvendo cerca de 100 autores. Só isto fazia da exposição um acontecimento a não perder. Mas depois há o rigor que a Ether põe em todas as suas produções, desde a encenação imaginativa (sem os exageros que começam a proliferar por aí, onde as montagens de novo-rico, típicas de país pobre que gosta de malbaratar os dinheiros públicos, abafam as obras expostas) às legendas modelares (e onde é que se observa tal rigor na tabulação? Não é, certamente, nos museus e outras exposições de fotografia em Portugal). 
Dir-se-á que o espaço é pequeno, mas não mais acanhado que um livro, que muitos (fotógrafos incluídos) consideram o meio ideal para mostrar e ver fotografia. É pelo menos um espaço que nos ensina a olhar, que permite a intimidade e o confronto de imagens. Ao mesmo tempo, a montagem proposta recupera historicamente a maneira tradicional de expor fotografia, com as imagens a trepar ou a descer pelas alvuras da alvenaria. Era assim que os vitorianos e mestres idiossincratas como W. Eugene Smith gostavam de se apresentar, e foi também assim que se instalou no Palácio de Cristal do Porto, em 1886, a primeira (e última!) Exposição Internacional de Fotografia. Repare-se como o retrato do filho do fotógrafo Paulo Nozolino (da série Kuan, 1989) fica ao nível dos olhos da criança ou, a abrir, como o calotipo estereoscópico da Torre de Belém, de J. Silveira (c. 1850), da I Parte, rimava posicionalmente com a albumina de Rocchini da mesma Torre de Belém (mais os moinhos da Outra Banda, antes de 1874) da II. 


OLHO por Olho (exposição) acompanha de perto Uma História de Fotografia (livro), que pode bem ser considerada o seu catálogo (secundado por um «Anexo» agora publicado em edição artesanal privada). Embora se siga uma sequência que é um misto de classificação temática (retrato, naturezas mortas ... e vivas, fotogenia do Estado Novo, etc.) e cronológica, há citações constantes do passado e referências cruzadas. Por exemplo, os guarda-chuvas democráticos e anónimos de Benoliel (Sem Título, c. 1910) e o chapéu-de-chuva individualista e dinâmico de Sena da Silva (Sem Título, Lisboa, 1956-7); a marina poluída da Algés-Trafaria (1990) de Augusto Alves da Silva e a expansão amniótica de Banana, Margens do Rio Zaire (1878) de Cunha Moraes; as orlas creneladas da Quinta da Mitra, Évora (1971) a preto e branco e a cores de Gérard Castello Lopes e o perfil da rocha do Olhar do Sítio, Nazaré (1988) de Rui Fonseca; ou a curiosíssima justaposição da foto de Benoliel «O quintanista de Direito, Mário Monteiro, acompanhado do seu colega de Medicina Bissaia Barreto, despede-se de Pinto Quartin expulso de Coimbra», publicada no Arquivo Gráfico da Vida Portuguesa, 1903-18, com a fotografia do «slide-show» (Sem Título, Coimbra, 1981) de Nozolino, em que se mostra a mesma imagem de Benoliel. 
Há, aliás, uma louvável preocupação pedagógica em demonstrar as ligações e cumplicidades entre os vários processos fotográficos e a fotomecânica. Um dos momentos mais reveladores da I Parte da exposição era precisamente a apresentação comparada das várias versões da Porta das Capellas Imperfeitas de Emílio Biel/Cunha Moraes (c. 1900) impressa a brometo, albumina ou fototipia (invertida, claro, em relação ao original). 
Pelo que se conhece, Cunha Moraes (1857-1920), discípulo de Emilio Biel, foi o primeiro grande fotógrafo português. Ele é o primeiro a não ter medo de encher o rectângulo com o espaço vazio (corporizado pelas vastidões do ar ou da água) e como resultado as suas fotografias respiram pureza e desassombro. A sua obra desenvolveu-se principalmente em Angola, na altura das viagens da costa à contracosta (é o autor da fabulosa Affrica Occidental, 1882-88). 
Entretanto, em Portugal, Emilio Biel registava a lenta industrialização do país (Caminhos-de-Ferro do Minho e do Douro, 1879-1885), a arte e a arquitectura, e o amador Carlos Relvas dedicava-se aos prazeres da paisagem e à inventariação diletante das obras de arte. Este último autodeclarou-se introdutor da fototipia em Portugal (e a histórica Declaração Fototípica de 1875 teve honras de parede na I Parte), mas esta também pode muito bem ter sido cá revelada por Emilio Biel, que a praticou exaustivamente com virtuosismo. 
Relvas foi todavia dos primeiros portugueses a conseguir nomeada nos meios fotográficos internacionais (o que na mixórdia dos «Salons» e quejandos não significa necessariamente uma distinção) e esteve presente (I Parte) com duas belas fototipias da Exposição de Arte Ornamental (1883), uma vertical de coronha de bacamarte ornamentada a prata, outra horizontal de um jogo de sofás, em contraponto com interior análogo de Benoliel (Sem Título, Lisboa, 1907), ambos no espírito de Atget, um fotógrafo que certamente desconheciam. 

POR TODO o século XIX e por muito do século XX perpassam as influências académicas, visíveis também na pintura. O Caminho para a Pedra Bella, Gerez (c. 1885-6) de Biel, embora mais repousado, não é muito diferente da Primavera (1882) de Alfred Keill, hoje na Colecção Anastácio Gonçalves. Ver Pousão (1859- 1884), Silva Porto (1850-1893), Marques de Oliveira (1853-1927), etc. é ver os modelos que inspiraram ou reflectiram tanta fotografia portuguesa de paisagem, retrato ou impressão do pitoresco. Depois há os epígonos, com a fotografia ruralista de Domingos Alvão (1872-1946) em sintonia com a artificialidade bucólica de Carlos Reis (1863-1940) ou até, apesar do seu cosmopolitismo forçado, com as preocupações estéticas de um Veloso Salgado (1864-1945). São os tempos de exaltação do bom povo português, sorridente mas de pé descalço, marcados pela popularidade perdurável de As Pupilas do Senhor Reitor (1875). É também por isto que um bom Núcleo ou Departamento de Fotografia ficaria bem num museu como o de Arte Contemporânea ou, se não se pusesse o problema do espaço, na Casa José Malhoa, hoje Casa-Museu Anastácio Gonçalves. 
Imposto por necessidades pragmáticas de rapidez e objectividade, o modernismo aparece, sub-reptício, pelas vias do documentalismo e fotojornalismo. A I Parte de «Olho por Olho» tinha exemplos soberbos de interiores depurados e rigorosos como os de Sem Título, Porto Amélia (Moçambique, 1890's) da Casa Lazarus, ou de nudez funcional à espera de indústria como a do também Sem Título, Porto (c. 1909) de Simbolino do Nascimento. E há depois o génio de Benoliel, um precursor da modernidade, misto da imprevisível candura de Erich Salomon e da contaminação surrealista de Cartier Bresson. 
Benoliel ainda não teve a grande retrospectiva a que tem direito. A exposição da Europália, notável a vários títulos, baseou-se na Fototeca da ex-Direcção-Geral da Comunicação Social, mas outros arquivos mantêm-se renitentemente fechados ou bloquados por tiranetes burocratas. É o velho problema do “não faz nem deixa fazer” e quando se faz, faz-se mal, espatifando estupidamente oportunidades.  Casos recentes incluem o de ele mesmo, Joshua Benoliel - Repórter Parlamentar (Assembleia da República,1989), uma selecção pífia e mal impressa, ou o do Cunha Moraes das Viagens a Angola, 1877-1897 (Encontros de Coimbra, 1991) mal servido por um conjunto de imagens banais que o desmerecem, ainda por cima reproduzidas sem qualquer respeito pelos valores tonais ou noção de escala. Mas nem tudo são tristezas. Mesmo agora, no Porto, a Imago Lucis montou uma bela e importante exposição, O Vinho do Porto, com fotografias de Biel, Alvão, Guedes de Oliveira e outros, acompanhada de catálogo de qualidade, com texto que se pode ler. É caso para saudar, pela raridade (só é pena ter falhado a legendagem). 


DEPOIS DAS visões contraditórias e da fotogenia do Estado Novo (1920-1948), «Olho por Olho» escrutina aquilo a que Sena chama os olhares inquietos que antecedem a revolução doméstica. Por essa Lisboa andavam à coca meia dúzia de fotógrafos, prontos a cultivar uma liberdade clandestina e destinados a modificar as coisas. Dá gosto vê-los finalmente reunidos, às claras.  
O pontapé de saída (e a bola caiu num charco!) é dado pela exposição e posterior publicação de Lisboa, Cidade Triste e Alegre (1959), de Victor Palla e Costa Martins. Apesar do luto - e houve logo quem denunciasse as fotografias negras e tremidas -, é um dos mais belos livros fotográficos da década (e não me refiro, claro, apenas a Portugal). Sena da Silva esteve por um triz para fazer o livro sobre Portugal para a prestigiosa La Guilde du Livre de Lausanne, e teria sido bem melhor que o Portugal des Voiles (1959) de Max-Pol Fouchet. 
Depois há Carlos Afonso Dias e Carlos Calvet e a figura tutelar (já nessa altura) de Gérard CastelIo Lopes. Eram amigos e nota-se. Eram também amigos de Lisboa e do prazer libertário, sempre em mudança, da rua. Cá está o magala a rondar a esquina de Gérard C.L. (Lisboa, 1957) e o mirone do Cais do Sodré, também à esquina, de Carlos Calvet (Sem Título, 1956). E a vigiar tudo e todos, o S que os bufos da Mocidade traziam na cintura, e que o olho atento de Gérard C.L. foi subliminalmente encontrar no Père Lachaise, Paris (1958), desfeiteado por uma pedrada. E a propósito, quem foi o autor daquela magistral fotografia de Salazar depois do acidente (1968)? O velho ditador reduzido a uns olhos ansiosos e suplicantes, mal encaixilhados pela nesga da janela do carro. 

Na sua selecção, Sena consegue ainda evitar os tiques monótonos da fotografia portuguesa actual que é «escura, tremida, desfocada e torta». Não sei se a culpa é de Jorge Molder e Paulo Nozolino, sem dúvida os dois fotógrafos activos mais influentes, mas os discípulos (e «filhos imberbes», chama-lhes Sena) seguem-lhes as pisadas sem metade do talento, o que é deprimente. Molder está presente com três imagens da série Uma Exposição (1980) que, sem ser do mais representativo, denunciam já a sua preferência pelo formato quadrado e uma preocupação com o silêncio através do mistério das penumbras. Há fotografias que berram (e esse é, muitas vezes, o seu único objectivo), mas as de Molder emudecem. São fotografias literárias em que o diálogo se processa à superfície do papel. 
Sobressai na montagem a câmara ao cimo das escadas da galeria, na charneira entre os dois principais espaços de exposição. Aí se confrontam três magníficos trabalhos de Helena Almeida, a grande senhora da fotografia portuguesa (e por que é que em Portugal não tem havido grandes mulheres fotógrafas, ao contrário do que acontece na Grã-Bretanha ou na América?), com o que de mais interessante Daniel Blaufuks já produziu (um dos Dípticos virados a azul, de 1987-88) e com a novidade, no panorama nacional, do rigor frio de Augusto Alves da Silva. O espaço parece ter sido talhado por medida. As imagens aquáticas de Blaufuks, mergulhadas num nicho como em piscina vertical; Almeida a corporizar linhas e a rasgar superfícies; impávido e sereno, Alves da Silva mostra, em grande formato, a nova objectividade. E, num toque provocatório plenamente justificado, lá está também a paisagem alterada do Douro com a Estação de Villa Meã (1882-3) de Biel. 

ESTA É uma exposição a descobrir, em várias visitas, curtas e longas. Para mais, a documentação exposta é riquíssima, com raridades como o Catálogo dos 1os Encontros de Fotografia (Coimbra, 1980), o número de O Século Ilustrado com Eduardo Gageiro («A Fotografia Portuguesa Além-Fronteiras»), Amália fotografada por Silva Nogueira, Salazar na Intimidade (1954) pelo sinistro inspector da PIDE Rosa Casaco ou o catálogo da primeira exposição de Fernando Lemos, «Refotos - Anos 40» (1982). E como me posso ter esquecido de uma das obras-primas expostas, precisamente uma fotografia de Fernando Lemos (Sem Título, 1957), que nos faz aguardar ainda mais ansiosamente a exposição prometida pela Fundação Gulbenkian há vários anos, ou do imprescindível Augusto Cabrita (e repare-se como Lemos vai bem ao lado de Cabrita, independentemente dos temas e opções estéticas de cada um)? 

Volto ao princípio. Esta não é uma feira de vaidades, mas sim uma cumplicidade de ternuras. Ainda grassam por cá os grandes equívocos da fotografia e o maior é pensar que ela é apenas uma questão de jeito. Depois, é só pedir a uma dúzia de escritores (às vezes mais) e a altas individualidades (e o Presidente da República vai a todas) para alinhavarem uns textos pretensiosos a condizer, e sai o livro, com direito a passagem pelo telejornal. O que está à vista na Ether é «the real thing», fotografia da verdadeira e nossa. É de não desviar o olhar. 

Foto António Pedro Ferreira

(publicavam-se à data artigos com 22 275 caracteres)

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