sábado, 3 de abril de 1993

1993, Frank Thiel na Módulo, Fontcuberta na Gal. Pedro Oliveira

FRANK THIEL, Módulo, Lisboa

JOAN FONTCUBERTA, Gal. Pedro Oliveira, Porto 

“Documentos”

EXPRESSO/Cartaz 03.04.1993, pag.17



Apenas a sequência das inaugurações permite que se aproximem num comentário único estas duas exposições. Ou o interesse de ambas, sobre diversíssimas bases. Ou, ainda, a possibilidade de serem tomadas como exemplos da vastidão do continente fotográfico.

Frank Thiel é um jovem alemão, nascido a Leste (em 1966) e passado a Ocidente antes da queda do muro. Com uma história dramática de um ano de prisão no fim da adolescência e uma libertação a troco de dinheiro, no contingente das «vendas» anuais feitas pelas autoridades ditas socialistas. Vive em Berlim desde 1985, onde fez estudos de fotografia; ganhou em 1990 o prémio da Kodak alemã e nesse ano expôs, por isso, em Arles. A primeira individual data de 1991, em Berlim, e logo no ano seguinte integrou uma importante mostra colectiva alemã que circulou em Espanha, «Einsamkeit, un sentimiento aleman», ao lado de Bernd & Hilla Becher, Jochen Gerz, Thomas Ruff e Roland Fischer (exp. comissariada por Rosa Olivares — Tarazona Foto 1992, Zaragoza; «La Caixa», Madrid e Barcelona; Palma de Maiorca). No próximo ano, participará numa colectiva de fotografia a apresentar por Lisboa'94 no CCB («Depois de Amanhã»).

A Módulo mostra fotografias de 89 e 90 pertencentes a duas séries, «Potsdam» e «Muro de Berlim». Sempre em preto e branco e de pequeno formato, resultam da impressão simultânea de dois disparos sequenciais (dois negativos contíguos) — é sempre de um falso díptico que se trata, de uma imagem panorâmica feita de pontos de vista distintos, mas aproximados, e não de uma colagem ou associação de fotografias. As provas conservam as «janelas» do negativo e servem-se de sumptuosos processos de impressão que sugerem uma velatura prévia do papel e criam halos em torno dos objectos, diminuindo os brancos mas conservando uma grande riqueza de pormenor nos negros. 

Outras séries conhecidas de catálogos — uma sequência de 24 soldados do regimento Friedrich Engels ou imagens de monumentos da ex-RDA — são impressas em grande formato, 215 cm, e mantêm a construção com dois (ou mesmo quatro) negativos, mas Frank Thiel sabe usar igualmente a cor e os planos únicos em fotografias das torres de vigia do muro de Berlim ou de portões fechados. Excepto nessas fotos a cor, associáveis mais directamente à mais recente vaga da nova objectividade alemã, pós-conceptual e «fria» (Ruff, Struth, etc), os trabalhos de Frank Thiel instalam no registo informativo uma deliberada ambiguidade. 

A suas fotografias constituem um olhar pessoal sobre um cenário em transformação, claramente estruturado por uma memória que parece quer reencontrar no presente a realidade essencial de um tempo já ultrapassado, como se Frank Thiel buscasse na ex-RDA as fotografias que não fez antes. O rigor da informação passa por um modo de olhar que relativiza o carácter imediato do registo através dos sinais de um código próprio e de uma prática de laboratório tornada evidente.

O seu trabalho é sempre documental, mas afasta-se deliberadamente do fotojornalismo que se exerce como crença ingénua na verdade das provas. O testemunho sobre a realidade social alemã é imediatamente marcado por um efeito de distanciamento introduzido pela composição dupla da imagem e por um modo de impressão que torna fantomáticas todas as existências: as janelas abertas na prova denunciam a vigilância e o cepticismo de um olhar ainda clandestino, enquanto o falso díptico se deixa interpretar como a herança profunda de uma Alemanha dividida. 

Joan Fontcuberta é um catalão (n. 1955, Barcelona) já com duas décadas de carreira, apresentado pela primeira vez entre nós nos Encontros de Coimbra de 1986. Objecto de uma intensa circulação internacional, inclusivamente americana (MoMA, 1988), teve uma importante mostra antológica organizada pelo IVAM (Valência) em Novembro de 1992, acompanhada por um catálogo que reune as suas séries desde Herbarium, nas quais se aprofunda um trabalho de pesquisa sobre a «verdade» da fotografia e sobre a natureza do medium.

Naquela série, Fontcuberta fazia uma homenagem irónica a Karl Blossfeldt, substituindo as plantas e flores das suas fotografias históricas por criações fantasistas, mas mantendo a mesma aparência de objectividade. Depois, levou mais longe a denúncia da confiança ingénua na fotografia numa série seguinte, Fauna, realizada de parceria com Pere Formiguera, que consistiu na simulação de documentos fotográficos (e também de textos, desenhos, radiografias, etc) idênticos aos usados pelos investigadores de ciências naturais. A sua obra posterior manteve a mesma relação irónica com o uso informativo da fotografia, ao mesmo tempo que se constituia num inventário de experiências (científicas?) sobre as possibilidades do medium fotográfico; em Frottogrames os negativos foram sujeitos a fragmentações, raspagens sobre os objectos fotografados e remontagens, de que resultou um renovado picturialismo.

Os trabalhos mostrados no Porto («Palimpsestos», 1989-92) integram-se nesse itinerário de experimentação de atelier e laboratório, retomando a técnica do fotograma (fixação de contornos e sombras por contacto directo dos objectos com a película fotográfica), mas utilizando suportes já previamente impressos: ilustrações e materiais publicitários, papel de parede, tecidos estampados, puzzles, etc. Na origem da série estão os interiores kitsch de hotéis americanos. As composições articulam-se por vezes em grandes dípticos ou trípticos, reunindo superfícies impressionadas sobre tela, em geral por plantas e flores, com tecidos decorativos originais e sem intervenção. Ao mesmo tempo que os objectos criados parecem colocar-se por inteiro no terreno sem fronteiras da pintura, numa estratégia de apropriação neo-conceptual, Fontcuberta mantém processos de trabalho rigorosamente fotográficos e dá sequência à sua pesquisa experimental sobre a relação entre a natureza e a sua represtação.

É no entendimento do seu trabalho anterior que assenta a recepção possível dos seus novos trabalhos, directamente ameaçados pela estratégia decorativa que aí se interroga e pelo kitsch dos materiais que utiliza como suporte.

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