sábado, 23 de setembro de 2006

1994, 2006, Sommer Ribeiro

 Sommer Ribeiro, a Gulbenkian, o CAM

...a propósito da exposição "50 Anos de Arte Portuguesa" e dos 50 anos da Gulbenkian... porque faltam alguns dados para se fazer a história.

1 . Em 28/05/94 referi no Expresso  a saída por reforma do arq. José Sommer Ribeiro do Centro de Arte Moderna, que dirigira desde o início (1983):
"CAM: passagem de testemunho"

2 . e a 23/09/2006 publiquei uma brevíssima notícia necrológica

Sommer Ribeiro (1924-2006)

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Também se pode ver, no Diário de Notícias de 20 de Julho de 1981, em página inteira, n.n. ("Reportagem"):

"No 25º aniversário da Fundação
SEGUNDO MUSEU GULBENKIAN É DEDICADO À ARTE MODERNA"

publicado na véspera da inauguração da exposição "Antevisão do Centro de Arte Moderna", com base numa entrevista com Sommer Ribeiro, defenindo-se aí o respectivo programa e recordando-se as vicissitudes que conheceu o seu projecto.

1 .

Image2

2. Sommer Ribeiro (1924-2006)
23-09-2006

"Director e administrador da Fundação Arpad Szenes - Vieira da Silva, desde a sua inauguração em 1994, José Sommer Ribeiro faleceu no dia 16, em Lisboa, vítima de cancro. Foi também o primeiro director do Centro de Arte Moderna da Fundação Gulbenkian (FG), entre 1983 e 94, e em ambos os casos esteve desde o início associado à definição dos respectivos projectos e à sua instalação. Anteriormente, dirigira o Serviço de Exposições e Museografia da FG, criado em 1969, mas a ligação a esta instituição iniciara-se logo no ano da sua criação, em 1956, ao participar na equipa que lançou os primeiros estudos relativos à construção da futura sede.
Nascido a 26 de Junho de 1924, em Lisboa, José Aleixo da França Sommer Ribeiro, que se formara em arquitectura em 1951, teve um papel decisivo na renovação e abertura do panorama artístico nacional ao longo de várias décadas, com independência face às diversas tendências e gerações. Na Fundação Gulbenkian, sobre a qual gostava de dizer que entrara como soldado raso e saíra como coronel, contou com uma relação pessoal de grande confiança da parte de Azeredo Perdigão, o que lhe foi permitindo lançar sucessivos projectos na área das artes plásticas.
Para além da organização de centenas de exposições, e em especial de numerosas retrospectivas, teve uma participação muito influente na aquisição pela Gulbenkian do acervo de Amadeo de Souza-Cardoso e de parte significativa da colecção de Jorge de Brito, bem como na criação da Fundação Arpad Szenes - Vieira da Silva."

sexta-feira, 18 de agosto de 2006

2003, 2006, Jorge de Brito

 Jorge de Brito, a colecção e a Gulbenkian

sábado, 20 de maio de 2006

Brasil, 2006, «Artistas Viajantes e o Brasil no Século XIX»

 Pintores viajantes

À descoberta do Brasil no século XIX 


20-05-2006, Expresso


 

FOTOS COLECÇÃO BRASILIANA / FUNDAÇÃO ESTUDAR

 


Panorama do Rio de Janeiro, da autoria do diplomata belga Benjamin Mary, de c. 1835 (30 x 312 cm, pormenor)

 


O Brasil colonial queria-se um segredo bem guardado. Foi sob o domínio holandês (1630-54) que os pintores Frans Post e Albert Eckhout deram a conhecer à Europa as paisagens do Nordeste e, o segundo, a flora e a população, acompanhando as expedições científicas do governador-capitão Johan Maurits van Nassau. Um quadro de Post (Olinda) expõe-se na Colecção Rau.


A reconquista significou o regresso do «black-out», até a família real chegar de Lisboa, em 1808, fugindo às tropas de Napoleão. Nesse ano abriram-se os portos aos estrangeiros e revogou-se a proibição das manufacturas. Vieram depois as missões diplomáticas, comerciais e também artísticas e científicas, ficando na história a Missão Francesa de 1816, já com pintores que eram exilados bonapartistas. Com a proclamação do Reino Unido e da independência (1822), a difusão das imagens da corte, da capital e da vastidão do Brasil tornava-se parte do processo de afirmação da sua identidade nacional.


A nova política iconográfica, em que se associavam sem fronteiras reconhecíveis a descrição topográfica e a arte da paisagem, a exploração naturalista e a atracção pelo exótico, era favorecida pela chegada de mais pintores viajantes, pela curiosidade científica do século XIX e o gosto romântico pelo pitoresco ou o sublime dos lugares distantes, além de poder contar com o êxito da litografia, que atingira níveis de produção industrial antes da descoberta da fotografia. São as fascinantes imagens desse novo mundo que chegaram ao Palácio da Ajuda (e já antes estiveram no Museu Soares dos Reis), no regresso do ano do Brasil em França.


 



«Natureza-morta com Flores», de Agostinho José da Motta, 1873

 

No Museu da Vida Romântica de Paris exibiram-se com um catálogo que por cá não se editou, sob o título «Os Pintores Viajantes Românticos no Brasil (1820-1870)». Quase tudo o que se expõe, aliás, tem origem na Colecção Brasiliana dum grande antiquário parisiense, Jacques Kugel, que foi casado com a poetisa Merícia de Lemos e durante a II Guerra viveu em Portugal. É um acervo de excepcional qualidade, até há pouco tempo desconhecido, agora pertencente à Fundação Estudar e confiado à Pinacoteca do Estado de São Paulo.


Abrem a mostra os retratos da família real, reunidos a outros do Palácio de Queluz, e estampas da sagração de Pedro I e da aclamação de Pedro II, da autoria de Jean-Baptiste Debret (parente e seguidor modesto de David, professor de influência neoclássica no Brasil). Destacam-se a Marquesa de Belas por Nicolas-Antoine Toney, outro pintor da Missão Francesa, e a imperatriz Tereza Cristina por F.-A. Biard, já de 1858.


Mais surpreendente é a secção «O Registo dos Viajantes», aberta pelo panorama do Rio de Janeiro de Benjamin Mary, onde os estudos da vegetação em primeiro plano se sobrepõem à paisagem desenhada ao longo de mais de três metros. Seguem-se as vistas desenhadas por Karl von Planitz (c. 1840) num preto e branco muito fotográfico, em aguada de tinta da China, enquanto as gravuras a água-tinta aguarelada dum álbum de Johann Jacob Steinmann, editado em Basileia em 1839, antecipam em absoluto o bilhete postal colorido. Depois de mais panoramas de Henry Chamberlain, tenente da marinha britânica e artista amador, as gravuras em água-forte e buril feitas a partir dos desenhos do alemão Thomas Ender, ou as litografias do livro de viagem de Johann Moritz Rugendas (seguidor de Humbolt, desenhador documentalista romântico) são outros exemplos maiores da arte da descrição de lugares, enquanto as cópias das aguarelas do arquitecto militar português Joaquim Cândido Guillobel fazem o registo de tipos urbanos brasileiros, em especial de figuras de escravos.


O último núcleo é dedicado à pintura da paisagem, que já se antecipava num soberbo nascer do sol sobre a baía do Rio pintado pelo italiano Alessandro Ciccarelli (1844) em fulgurantes tons de laranja e ouro. O anterior registo «parafotográfico» dos álbuns de gravuras dá lugar às mais amplas visões embelezadas pela imaginação e o gosto românticos, nomeadamente na representação de negros e índios. É o caso da importante tela de François-Auguste Biard, Índios da Amazónia Adorando o Deus-Sol (c. 1860), que supostamente os surpreende numa floresta densa e misteriosa. Biard viajara pelo Egipto, Síria e Lapónia, possuindo o Louvre uma sublime aurora boreal em Magdalena Bay, exposta no Salon de 1941, à altura de um Friedrich ou dos grandes paisagistas norte-americanos da Escola de Hudson.


Outros viajantes, como o inglês Charles Landseer, o italiano Nicolau Facchinetti, multiplicam as vistas do interior do Brasil, e dois brasileiros têm presenças importantes: vejam-se a Grande Cascata da Tijuca, de Manuel de Araújo Porto-Alegre (1806-1879), já formado na Academia Imperial de influência francesa (que aprofundou em Paris, onde conheceu e retratou Garrett); e duas luxuriantes naturezas-mortas de Agostinho José da Motta (1824-1878), que actualizam em vernáculo o exemplo barroco de Albert Eckhout.


«Artistas Viajantes e o Brasil no Século XIX» 

 

Galeria de Pintura do Rei D. Luís, Palácio da Ajuda, até 16 de Julho

 


sábado, 1 de abril de 2006

2006, 1956-2006, Gulbenkian

 Gulbenkian 1956-2006

Fundação Gulbenkian, na comemoração dos 50 anos

"Os primeiros anos"

Expresso/Actual de 01-04-2006

O tempo da inauguração da Sede é já o do marcelismo. Os inícios da Fundação datam de meados da pesada década de 50. Salazar aprovou-a num decreto onde frisa que Calouste Sarkis Gulbenkian escolheu Portugal porque apreciava «a tranquilidade que entre nós se desfruta e estimava o que há de estável nas instituições e no equilíbrio social». O recado era claro. Na administração, o liberal Azeredo Perdigão tinha à sua volta vários dignitários do regime (Pedro Teotónio Pereira, Francisco Leite Pinto, etc.). Mas é entre 1956 e 69 que se constrói a imagem mítica da FG como um estado dentro do Estado.

Logo em 1957 abre a 1ª Exposição de Artes Plásticas da FG, na SNBA, com polémicas públicas entre tradicionalistas e modernos. A 2ª fez-se em 61, na FIL, mais pacificamente, e ficou sem continuidade. Também em 57 inauguravam-se os Festivais Gulbenkian de Música, descentralizados e repetidos anualmente até 1970. Mais discretamente, a atribuição de bolsas para graduações no estrangeiro começara logo em 56, e abrem-se os primeiros concursos anuais em 58, abrangendo as ciências, as letras e as artes. O país não era exactamente um deserto (as dinâmicas associativas tinham então grande importância, sem paralelo num presente em que quase tudo depende do Estado e do mercado), mas abria-se um outro espaço público, semi-oficial, à margem do regime e do seu Secretariado Nacional de Informação (o SNI). Improvisava-se uma espécie de Ministério da Cultura alternativo ao que ainda não existia.

Também em 57 tem início o projecto do «Corpus da Azulejaria em Portugal», de Santos Simões, a que se seguiriam os inventários da Talha, da Pintura Maneirista, dos Solares. Lança-se no mesmo ano a construção do Instituto Calouste Gulbenkian do Laboratório Nacional de Engenharia Civil e também o projecto do Planetário em Belém. Muitos outros laboratórios, centros de investigação, serviços hospitalares vão depois receber subsídios para equipamentos e edifícios. Apoiam-se restauros de igrejas, museus regionais, cine-teatros, asilos, residências para estudantes, etc.

Distribuída por Paris, Washington e Londres, a colecção do Fundador é trazida para Lisboa entre 58 e 60, ao cabo de difíceis trâmites jurídicos. Apresenta-se em Paris, Lisboa e Porto, entre 60 e 64, até se instalar no Palácio Pombal em Oeiras, em 65, onde as inundações de 67 farão estragos. Em 58 arranca o Serviço de Bibliotecas Itinerantes, com as primeiras 15. E também o Centro de Estudos de Economia Agrária, seguido em 61 pelo Instituto Gulbenkian de Ciência.

A revista «Colóquio» começa em 59, sob a direcção de Reynaldo dos Santos e Hernâni Cidade. Em 60 abre a Casa de Portugal na Cidade Universitária de Paris (o Centro Cultural de Paris em 65). Em 61 apresenta-se a «Arte Britânica do Século XX», na SNBA, e inicia-se a itinerância pelos Açores e Madeira, depois pelo continente, de mostras de Arte Portuguesa Contemporânea, o que dá lugar a algumas aquisições de obras. Em 65, «Um Século de Pintura Francesa», na FIL, acolheu 100 mil visitantes.

Em 62 tinha arrancado a Orquestra, à partida apenas uma formação de câmara de 13 elementos; o Coro surge em 64; o Grupo Gulbenkian de Bailado em 65, a partir de um anterior Grupo Experimental de Ballet. Entre 62 e 65 atribuem-se Prémios de Crítica de Arte. Em 64 decorre o 1º Ciclo Gulbenkian de Teatro, em 33 localidades; o 2º é só em 71, o 3º e último em 72, mas lembram-se as digressões do Piraikon Theatron em 63 e 68, do Piccolo Teatro de Milão e do Nô japonês em 67. Pelo caminho, tinha-se subsidiado o Teatro Experimental do Porto e o Teatro Moderno de Lisboa (o apoio ao cinema e as grandes retrospectivas são já dos anos 70).

Viriam a conhecer-se em 1975 balanços muito críticos do passado da Fundação, quando, por momentos, pairou a ameaça da estatização. Houve compromissos com o regime e contornaram-se algumas das suas proibições. Entre a prudência e o risco, sob o comando pessoal, por vezes autocrático, de Azeredo Perdigão, a FG ajudara o país a mudar.

sábado, 27 de agosto de 2005

2005, Shogi Ueda em Madrid, La Caixa

 Japão por perto

Shogi Ueda em Madrid

«Uma Linha Subtil, Shoji Ueda (1913-2000)», Madrid, La Caixa, 2005

Ueda_zuroku

 

O fotógrafo Shoji Ueda numa retrospectiva em digressão por Espanha 


EXPRESSO Actual de 27-08-2005

   

 

 

«Quatro Raparigas em Pose», 1939

 


Há muito tempo que é uma banalidade chamar ao Japão o «país da fotografia», e não só por de lá virem quase todas as câmaras, mas continuamos a conhecer muito pouco as suas imagens. Embora o mundo seja hoje global, os canais de circulação são quase exclusivamente ocidentais e a dificuldade da língua também não ajuda a reter os nomes dos fotógrafos, das exposições e livros ou dos inúmeros grupos e revistas regionais. Araki e Sujimoto já foram expostos em tempos mais favoráveis, e na colectiva «À Prova d’Água», a pretexto da Expo’98, Jorge Calado incluiu 21 japoneses. Depois, têm-se perdido outras oportunidades, como a de trazer à Europa a grande retrospectiva norte-americana de Shomei Tomatsu, considerado o fundador da fotografia japonesa moderna, ou mesmo só de fazer passar a fronteira a antologia de Shoji Ueda que a Fundação la Caixa apresentou em Junho-Julho em Madrid e pôs em circulação, em colaboração com o Museu de l’Élysée, de Lausanne. Está até Outubro em Palma de Maiorca e em Janeiro-Fevereiro transfere-se para Málaga (onde se poderá aproveitar para visitar o simpático Museu Picasso) - encontra-se ainda por confirmar uma anterior passagem por Córdova. Seguirá depois para a Suíça e por Roterdão e Paris numa digressão de dois anos. O desinteresse das instituições é tanto mais estranho quanto os comissários Gabriel Bauret e William Ewing, o director daquele museu, tiveram já diversas colaborações com os Encontros de Coimbra e com a Culturgest.


Shoji Ueda (1913-2000) é talvez o mais singular dos fotógrafos japoneses e aquele cuja carreira, sempre discreta, atravessou um horizonte temporal mais longo e diversificado, desde a «fotografia artística» de inspiração pictorialista, que no Japão se prolongou pelos anos 30, até ao fim da década de 90. A 2ª Guerra Mundial, ou Guerra do Pacífico (1941-45), foi só um intervalo na sua obra, quando escasseava o material fotográfico e era recrutado por duas vezes para o Exército, só por brevíssimos períodos devido a debilidade física. Logo que o conflito termina, Ueda regressa aos seus cenários de areia e às composições encenadas com figuras, imobilizadas como objectos, desenvolvendo o seu «Teatro das Dunas» com um humor e uma serenidade totalmente à margem do fotojornalismo documental que orientava então a fotografia japonesa. Hiroshi Hamaya (1915-1999) era um exacto contemporâneo dedicado ao documentário humanista e membro da Magnum, enquanto a ocupação norte-americana e as marcas deixadas por Hiroxima e Nagazaki iam servindo de desafio para a renovação radical que a agência Vivo e a revista «Provoke» protagonizaram, com Tomatsu, Eikoh Hosoe e Daido Moryama. Mas é também no pós-guerra, isolado na sua região de Tottori, que começa a trajectória profissional heterodoxa de Ueda, como que indiferente às mudanças de tempos e centrada na intimidade de um universo imóvel.


Edward Steichen, que o descobriu por altura da digressão de «The Family of Man», incluiu-o numa mostra do MoMA, em 1960. Quando as suas exposições e publicações se sucediam no Japão, redescobrindo-se o seu percurso solitário, Arles mostrou-o pela primeira vez em 1978 (voltou em 87) e o Photo Fest de Houston homenageou-o em 88. Em 1995 inaugurou-se o Museu da Fotografia Shoji Ueda em Houki-cho, nas imediações das dunas de Tottori e do Monte Daisen, com as 12 mil imagens que doou e um notável projecto premiado do arquitecto Shin Takamatsu - um dos seus quatro corpos é ocupado por uma câmara escura gigante que projecta a imagem invertida do monte sagrado. Daí procedem todas as fotografias desta primeira grande retrospectiva fora do Japão, e quase todas são provas de época com uma fabulosa qualidade de impressão a preto e branco.


 

FOTOS SHOJI UEDA OFFICE, TOKIO

 

«Lago», 1959

 

A mostra intitulada «Uma Linha Subtil, Shoji Ueda (1913-2000)», reúne 151 fotografias de 70 anos de trabalho (1929-1999), o que corresponde a uma carreira paralela à de Álvarez Bravo, tão idiossincrática e localmente universal como a do mexicano (embora um dos textos do catálogo, de Iizawa Kôtarô, lhe aponte como característica a «falta de nacionalidade»). Se é usual atribuir-lhe um «estilo único», é mais a forma muito pessoal como se relacionou com as grandes tendências da fotografia, apropriando-se delas com a segurança e independência de um projecto íntimo, que marca o seu percurso.


As primeiras fotografias expostas, feitas a partir dos 16 anos, alternam os pigmentos a óleo pictorialistas com as experiências do fotograma, da solarização, do contraluz forte e das perspectivas picadas ou dos pontos de vista rasantes ao chão, circulando entre o gosto dominante nos concursos e a informação internacional de vanguarda (a exposição «Film und Foto» chegou em 1931 ao Japão). Aos 19 anos (1932), depois de uma breve formação em Tóquio, logo que acabou os estudos secundários, abriu o seu primeiro estúdio (e loja) de fotografia, permanecendo quase sempre na sua região de Tottori, em ligação com círculos de amadores. Aliás, Ueda continuou depois a definir-se como «um fotógrafo rural amador», lembrando o universo dos clubes e salões da «fotografia artística» em que se integrou muito cedo. Numa entrevista confessou a admiração por Jacques-Henri Lartigue, o mestre a quem elogiou a ilimitada curiosidade.


A informação surrealista, que teve largo curso no Japão, está presente numa natureza morta de 1937 que junta um manequim e um guarda-chuva a chapéus voadores; mais tarde é óbvia a relação com as paisagens de objectos de Tanguy (Pequenos Náufragos, 1950) e também com Magritte, através dos retratos com acessórios imprevistos e dos jogos espaciais de escalas e perspectivas irrealistas, servindo-se do cenário abstracto e sem profundidade das dunas, de uma luminosidade pura e transparente. Otto Steinert incluiu-o na versão japonesa da «Fotografia Subjectiva», em 1956, e as paisagens de neve e as superfícies de águas, ou as posteriores «Visões da Paisagem», de 1970-80, possuem o sentido apurado da pesquisa formal da abstracção norte-americana (Siskind, Callaham), mas o seu grafismo tem a nudez poética e a subtileza interior da sensibilidade japonesa mais antibarroca. O provinciano da remota região de Izumo, na costa interior do Mar do Japão, nascido em Saikaminato, é um fotógrafo bem informado, que deixou os processos pré-modernistas sem nunca se prender a correntes vanguardistas, tão inclassificável como os seus temas, colhidos no quotidiano e nas imediações da sua casa.


Seis núcleos traçam a continuidade da sua obra em sequência cronológica: as primeiras fotografias (1929-1940), onde já surgem as encenações de figuras nos espaços desérticos da praia; o mais famoso «Teatro das Dunas» (1945-51), com retratos e auto-retratos com adereços; «Da natureza morta à paisagem», anos 50; o «Calendário das Crianças» através da variação das estações do ano, de 1955-1970; «Paisagens e Memórias», 1970-85, com as séries «Visões da Paisagem», 1970-80; «Pequena Biografia», 1974-85; «Recordações sem Som», com imagens de uma viagem pela Europa, de 1972-73. Por fim, o humor do «Regresso às Dunas», 1980-99, com o trabalho de encomenda «Moda nas Dunas», e as últimas imagens, as «Ondas Negras» em homenagem ao monge budista chinês Ganjin, descendo a noite sobre o mar.

shoji ueda office


sábado, 4 de junho de 2005

2005, Joshua Benoliel, LisboaPhoto


Benoliel - Génio ou mito?


Joshua Benoliel continua a ser um fotógrafo desconhecido

Expresso Actual de 04-06-2005   


LisboaPhoto, Cordoaria

É chocante notar que vêm dos arquivos de «L’Illustration», de Paris, e
«ABC», de Madrid, quase todas as provas de época expostas na mostra
dedicada a Benoliel, para além de dois álbuns do Arquivo Histórico
Militar, com milhares de provas de contacto sobre os preparativos da
intervenção na I Guerra. Se fica documentada a actividade do
correspondente internacional, com originais cheios de anotações,
retoques e marcas editoriais («L’Illustration»), também se ilustra o
desprezo nacional pelo património fotográfico.

Benoliel é uma das vítimas dessa fatalidade, apesar de ter gozado em
vida, e depois dela, dum imenso prestígio. É provável que não se tenha
esgotado a hipótese de descobrir outras provas de particulares e
instituições (o Paço de Vila Viçosa tem mais de duas centenas que não
foram cedidos para a exposição da Cordoaria). Mas no caso dum
foto-repórter com tão grande obra impressa, principal intérprete da
aparição da imprensa ilustrada com os progressos fotomecânicos no
início do século XX, não há que fetichizar as edições «vintage». As
imagens publicadas devem ser vistas neste caso como originais (com as
soluções gráficas que nesse tempo se inventavam - expondo-se edições e
não fac-similes colados nas paredes). E os negativos sobreviventes são
sempre um manancial para reimpressões.

Joshua Benoliel (1873- 1932) reuniu um espólio de mais de 60 mil negativos em cerca de 30 anos de trabalho, mais intenso de 1906 a 1918 como colaborador principal do magazine semanal de «O Século», a «Ilustração Portuguesa». Era o «filme da vida duma nação», «o documentário da nossa vida política, social, mundana, desportiva, teatral, etc.», dizia a promoção do Arquivo Gráfico da Vida Portuguesa 1903-1918, História da Vida Nacional em Todos os seus Aspectos, que Rocha Martins prefaciou em 1933 com um texto que continua a ser a quase única fonte de informação sobre o homem e o fotógrafo («Os grandes objectivos duma objectiva célebre», ver História da Imagem Fotográfica em Portugal, de António Sena).

Quando a edição se interrompeu ao cabo de seis fascículos, não saíra da 1ª Parte, «Os últimos anos de um reinado» (D. Carlos). Começa com «As viagens dos chefes de Estado a Portugal», desde Eduardo VII e Afonso XIII, em 1903, e junta no 2º capítulo «A viagem de D. Carlos a Espanha» (1906) e «O Movimento Operário em Portugal», sobre o comício socialista do 1º de Maio de 1907. Aí figuram as notáveis fotografias das mesas dos oradores, com Azedo Gneco, e da Imprensa, improvisadas sobre carroças. Depois passa às «Procissões», desde 1903, com observações atentas de grupos de mulheres nos passeios, e o capítulo 4º intitula-se «Cascais, Corte da Saudade»: «grupos de elegantes» na praia, tiro aos pombos e ténis, «As Gincanas de Automóveis». O exótico alinhamento prossegue com destaque para a rebelião do Cruzador D. Carlos (1906) e «Os Intransigentes de 1907» (a revolta académica, com «Os que furam a greve», «O julgamento dos díscolos», a solidariedade dos liceus lisboetas, até à bela imagem final da despedida de Paulo Quartim expulso de Coimbra, já dentro do comboio.

As circunstâncias políticas de 33 ou as dificuldades económicas da edição ditaram o seu fim. Depois, o arquivo foi-se dispersando, vendido a diversas entidades pelo seu filho Judah Benoliel (também destacado foto-repórter), em tempos de crise, e mais tarde por outros herdeiros. «O Século» veio a receber uns milhares de chapas de vidro que passaram para o Centro Português de Fotografia e estarão na Torre do Tombo (9334 negativos, ou cerca de 12 mil, segundo diferentes fontes), e o Arquivo Municipal conserva entre 4500 e 3500, entre outras colecções de menor vulto.

Por ocasião da Europália‘91, Benoliel foi apresentado por uma selecção de 34 fotografias, quase todas reimpressões modernas. A escolha de A. Sena afastou-se da abordagem cronológica e descritiva para ensaiar uma aproximação à singularidade do fotógrafo e de um olhar capaz de ser muitas vezes original, irreverente e poético. Foi a primeira e até agora única ocasião para se ver que, para além da quantidade e da importância documental do acervo do antigo «Século», o melhor trabalho fotográfico e gráfico de Benoliel escapa às rotinas e rituais do fotojornalismo, inventando outros momentos e pontos de vista, nos quais se desenham interesses e sentidos que só viriam a ter expressão significativa após as mutações da década de 20 (com a «nova visão», a Leica e a seguinte vaga de magazines ilustrados). Ao contrário das outras mostras que se repetiram em Portugal, esta ficou por Charleroi, acompanhada por um catálogo truncado.

De nacionalidade britânica (nascido em Lisboa de pais vindos de Gibraltar), judeu praticante, monárquico (Stuart caricatura-o em 1916 com uma coroa no alfinete da gravata azul e branca), viajado e culto (o padre Miguel A. de Oliveira, no Arquivo Gráfico, recorda-o em Sevilha e na Bélgica «explicando os segredos artísticos de Murillo e Van Dyck»), despachante de alfândega e bibliófilo, Benoliel é decididamente um personagem singular.

Não é conhecido o que pensava da fotografia, senão através da obra que iniciou quando as práticas amadoras e profissionais se tinham já banalizado e alguns aficionados cosmopolitas se interessavam pela «arte fotográfica» picturialista. Terá publicado a primeira reportagem em 1898 na revista «Tiro Civil», sobre as «Regatas do Centenário», e continuava a dedicar-se a temas desportivos e a frequentar a Corte («El Rei», em «Tiro e Sport», 1904) quando entrou como «free-lancer» para a «Ilustração Portuguesa» e se tornou o cronista dos últimos anos conturbados da Monarquia e dos primeiros da República. Terá apenas participado numa exposição beneficente de amadores em Cascais, com D. Carlos e a «alta sociedade», em 1903, e manteve-se depois à margem dos salões da fotografia artística (mesmo do que a «Ilustração» promoveu em 1910), mas as suas reportagens estiveram presentes na 1ª Exposição de Artes Gráficas, em 1913, e no ano seguinte numa mostra idêntica em Leipzig.

Gérard Castello-Lopes chamou-lhe «o único génio da fotografia portuguesa». Ian Jeffrey considerou-o «sem igual entre os pioneiros do fotojornalismo» (Time Frames: The Story of Photography, 1998, citado por Nuno Avelar Pinheiro em Pelos Séculos d’O Século, Torre do Tombo, 2002).

A actual exposição adopta uma lógica de arquivo, em resistência à consideração museológica e estética da fotografia utilitária ou vernacular (reservada à que enuncia a intencionalidade artística, seguindo cânones das artes plásticas). O que significa, em primeiro lugar, desvalorizar a possibilidade de reconhecer uma marca autoral, um estilo, um olhar próprio, uma qualidade fotográfica, no que se quer ver só como resposta técnica e ideológica às novas necessidades da imprensa ilustrada. O tema vem de Rosalind Krauss e liga-se à cegueira «ontológica» fixada na cesura ou corte, fingindo ignorar que as escolhas do enquadramento e do ponto de vista são fundamentos da originalidade da fotografia. A reflexão crítica de Szarkowski e os catálogos do MoMA são mais produtivos para a prática e a cultura fotográficas do que o marxismo académico da revista «October»: a questão também é política.

O que importa à comissária Emília Tavares é «desconstruir o mito» Benoliel, segundo disse à «Visão». Daí a quase ausência de escolha das fotografias «mais eloquentes», mais belas e significativas, e a insistência na quantidade, uniformizada por impressões demasiado escuras, de bordos negros como radiografias, sem interpretação de valores lumínicos, mesmo quando se conhecem as suas versões impressas. Daí a quase total ausência da visão inovadora com que Benoliel construiu as imagens da nova urbanidade do seu tempo (os aviões e automóveis, os desportos, os e as «elegantes» das avenidas, os ofícios urbanos, os ambulantes e os ociosos, a confluência das várias classes no espaço público - algumas dessas imagens essenciais são projectadas à entrada da mostra). Daí a concentração sobre temas da história política enquadrados por fórmulas ideológicas de suposto alcance universal.

Os capítulos sobre o regicídio (e a falsa questão do «instante perdido»), a implantação da República (e «a política das imagens»), que se prolonga nas variações obsessivas sobre «Imagem e Poder» e «Caos e Ordem», propõem a ideia que o fotógrafo é um mero instrumento da propaganda (burguesa), uma peça do discurso segregado pela imprensa ilustrada ao serviço dos vários poderes. Depois, «Geometria da Cidade» é um exercício de esteticismo anacrónico.

As multidões, os grupos (de grevistas ou de citadinos) e as figuras solitárias têm nas fotografias de Benoliel, com o seu sentido da profundidade de campo e do pormenor, uma presença que é, nas imagens mais conseguidas, e algumas podem descobrir-se na Cordoaria, a mais exaltante visão (encontrada e construída) do dinamismo urbano, nos trânsitos de um olhar atento à expressão das massas e à intimidade dos indivíduos, e à possível tensão entre elas. Com a liberdade e a verdade de que as melhores imagens podiam então ser testemunho, Benoliel deixou-nos um breve estado de graça da fotografia portuguesa. A herança continua a ser delapidada.

Joshua Benoliel - Repórter Fotográfico
Cordoaria, até 21 de Agosto

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Uma carta a propósito, da Comissária Emília Tavares, e a breve resposta

JOSHUA BENOLIEL
EXPRESSO, Actual de 18-06-2005
É sempre gratificante que um crítico de arte, com uma conhecida reputação, como é o caso de Alexandre Pomar, faça eco público das dificuldades dos investigadores (na verdade, os únicos que diariamente se confrontam com o património fotográfico nacional e o conhecem) sobre a falta de uma política de conservação e preservação desse mesmo património.

Quanto aos comentários acerca da exposição, torna-se necessário tecer algumas rectificações e esclarecimentos. Génio ou Mito? Parece-me uma questão estafada, secundária e muito antiga, que em nada abona para o conhecimento do trabalho de Joshua Benoliel, que Pomar parece não rever na exposição apresentada. É natural, já que algumas noções fundamentais sobre o que é o espólio fotográfico de um autor e a metodologia que deve ser empregue no seu estudo não estão, nem têm que estar, na base da sua formação, o que já é mais lamentável é que discorra acerca delas sem esse conhecimento, ou pelo menos não procure informação credível.

Comecemos precisamente pela questão de «lógica de arquivo, em resistência à consideração museológica e estética». Perante qualquer espólio fotográfico, a metodologia universal a adoptar é antes de mais a sua inventariação, separação por suportes e formatos, técnicas, estados de conservação e indexação dos seus conteúdos. Este trabalho arquivístico, que Pomar parece desprezar, é fundamental para discernir no conjunto global de imagens a construção da tal marca autoral, que não se prende a códigos lineares e obtusos sobre quem é génio e quem não é.

Estamos perante o trabalho de um foto-repórter, qualquer consideração estética não pode deixar de se colocar em confronto com este facto intrínseco e rearticulação ontológica do seu trabalho. «Cegueira ontológica» é querer instalar o trabalho de Benoliel num registo de genialidade estética novecentista, não atendendo à projecção que a sua obra teve no desenvolvimento de algo mais abrangente do que uma autoria, isto é, uma nova cultura visual.

A «concentração sobre temas da história política» apenas é demonstrativa e equitativa em relação ao conjunto geral do espólio e à sua qualidade. «Imagem e Poder» e «Caos e Ordem» são a análise latente de um período em que toda a construção política das imagens tem o seu início. Benoliel não é apenas, mas é também, um instrumento de construção de significados políticos e ideológicos, uma vez que a manipulação editorial das suas imagens foi sempre um exercício que extravasa o significado original das mesmas.

A questão só pode mesmo ser também política, quando falamos de imagem fotográfica e cultura de massas, mas Pomar terá de ampliar muito a sua bibliografia para a compreender, uma vez que essa questão surge muito antes do «marxismo académico da revista ‘October’» ou de Rosalind Krauss. Daí que o crítico considere que houve «fetichização das edições vintage», não compreendendo que essas mesmas edições são documentos absolutamente inéditos, que permitem entender todo o trabalho editorial sobre o «enquadramento e ponto de vista» do fotógrafo, obrigando-nos, no mínimo, a redimensionar o significado dos «fundamentos da originalidade da fotografia». Quanto às imagens publicadas existem nesta exposição, e em número muito superior aos fac-similes, que se resumem a 6, enquanto que são apresentadas 19 edições originais.

Pomar considera que a minha escolha de imagens deixou de fora as «mais eloquentes, mais belas e significativas», adjectivos e apreciação que só poderei discutir com o crítico quando souber quantas imagens, das 13 mil que constituem o espólio do fotógrafo, já viu, sem serem as publicadas e para além da selecção de 34 que António Sena realizou para a Europália 91. Custa-me a crer que o historiador, com o rigor que lhe é conhecido, tenha considerado que em 34 imagens estava resumida e totalmente abordada a originalidade do trabalho de Benoliel, conforme o faz Pomar.

Quanto às críticas à impressão das provas actuais, devia o crítico ter-se informado sobre o estado de conservação dos negativos originais, uma vez que esse aspecto técnico tem toda a relevância na produção das referidas impressões. Os negativos apresentam problemas diversos de deterioração, impossibilitando tecnicamente qualquer aproximação a impressões originais, e obrigando a um apurado trabalho para retirar o máximo de informação dos mesmos, que Paula Campos executou de forma irrepreensível e correcta. Além do mais, alimenta a inocente ilusão de que as edições originais ou as «vintage» constituem documentos fiáveis para comparação, ignorando que qualquer delas apresenta estados de deterioração da imagem, que falseiam os tão apreciados «valores lumínicos originais». O que Pomar confunde com uma radiografia é a impressão integral do negativo, conferindo-lhe uma identificação matérica, tantas vezes subvalorizada na abordagem fotográfica, e garantindo uma reprodução integral do enquadramento executado pelo autor.

A história da fotografia portuguesa é parca e inconsistente, precisamente porque se têm perdido demasiados anos a perseguir génios fotográficos, em detrimento do estudo articulado das suas obras, assim como permanecerá um beco sem saída, enquanto um certo caciquismo emplumado imperar, delapidando os empreendimentos que não possuem uma suposta autoridade intelectual histórica a apadrinhá-los. Deste modo, continua a ignorar-se o trabalho anónimo e desvalorizado desenvolvido em muitas instituições de ensino, museus e, de modo particular, por investigadores competentes.

A exposição de Benoliel, na Cordoaria, não pretendeu nunca ser um projecto arrogante e fechado sobre si mesmo, deseja-se que outros investigadores tenham a oportunidade de contribuírem com abordagens diferentes e complementares. Muitas outras questões ficam por discutir sobre a presente exposição, mas espero que o catálogo da mesma, a editar em final de Junho, possa desenvolver novas matérias para um debate construtivo e mais informado.
EMÍLIA TAVARES, comissária da exposição «Joshua Benoliel - Repórter Fotográfico»

N.R.

Alguns pormenores, entre muitas tergiversações: Não considerei que na exposição houvesse qualquer «fetichização das edições vintage»; a comissária é que agora sobrevaloriza o ineditismo das provas com retoques e marcas editoriais. A referência à «lógica de arquivo» e a Rosalind Krauss alude ao artigo sobre a fotografia do séc. XIX e de Atget incluído em «Le Photographique», como será óbvio para qualquer leitor informado (deixemos em paz a aura de Benjamin). Não pus em causa a qualidade do trabalho de impressão de Paula Campos, mas as opções que teve de seguir; com os «problemas diversos de deterioração» dos negativos, mais difícil terá sido cumprir a exigência de uniformizar as provas modernas.
A.P.

2005, Joshua Benoliel - LisboaPhoto

LisboaPhoto

Benoliel - Génio ou mito?

Joshua Benoliel - Repórter Fotográfico

Cordoaria (até 21 de Agosto)

Joshua Benoliel continua a ser um fotógrafo desconhecido

Expresso Actual de 04-06-2005   

É chocante notar que vêm dos arquivos de «L’Illustration», de Paris, e «ABC», de Madrid, quase todas as provas de época expostas na mostra dedicada a Benoliel, para além de dois álbuns do Arquivo Histórico Militar, com milhares de provas de contacto sobre os preparativos da intervenção na I Guerra. Se fica documentada a actividade do correspondente internacional, com originais cheios de anotações, retoques e marcas editoriais («L’Illustration»), também se ilustra o desprezo nacional pelo património fotográfico.

Benoliel é uma das vítimas dessa fatalidade, apesar de ter gozado em vida, e depois dela, dum imenso prestígio. É provável que não se tenha esgotado a hipótese de descobrir outras provas de particulares e instituições (o Paço de Vila Viçosa tem mais de duas centenas que não foram cedidos para a exposição da Cordoaria). Mas no caso dum foto-repórter com tão grande obra impressa, principal intérprete da aparição da imprensa ilustrada com os progressos fotomecânicos no início do século XX, não há que fetichizar as edições «vintage». As imagens publicadas devem ser vistas neste caso como originais (com as soluções gráficas que nesse tempo se inventavam - expondo-se edições e não fac-similes colados nas paredes). E os negativos sobreviventes são sempre um manancial para reimpressões.

Joshua Benoliel (1873- 1932) reuniu um espólio de mais de 60 mil negativos em cerca de 30 anos de trabalho, mais intenso de 1906 a 1918 como colaborador principal do magazine semanal de «O Século», a «Ilustração Portuguesa». Era o «filme da vida duma nação», «o documentário da nossa vida política, social, mundana, desportiva, teatral, etc.», dizia a promoção do Arquivo Gráfico da Vida Portuguesa 1903-1918, História da Vida Nacional em Todos os seus Aspectos, que Rocha Martins prefaciou em 1933 com um texto que continua a ser a quase única fonte de informação sobre o homem e o fotógrafo («Os grandes objectivos duma objectiva célebre», ver História da Imagem Fotográfica em Portugal, de António Sena).

Quando a edição se interrompeu ao cabo de seis fascículos, não saíra da 1ª Parte, «Os últimos anos de um reinado» (D. Carlos). Começa com «As viagens dos chefes de Estado a Portugal», desde Eduardo VII e Afonso XIII, em 1903, e junta no 2º capítulo «A viagem de D. Carlos a Espanha» (1906) e «O Movimento Operário em Portugal», sobre o comício socialista do 1º de Maio de 1907. Aí figuram as notáveis fotografias das mesas dos oradores, com Azedo Gneco, e da Imprensa, improvisadas sobre carroças. Depois passa às «Procissões», desde 1903, com observações atentas de grupos de mulheres nos passeios, e o capítulo 4º intitula-se «Cascais, Corte da Saudade»: «grupos de elegantes» na praia, tiro aos pombos e ténis, «As Gincanas de Automóveis». O exótico alinhamento prossegue com destaque para a rebelião do Cruzador D. Carlos (1906) e «Os Intransigentes de 1907» (a revolta académica, com «Os que furam a greve», «O julgamento dos díscolos», a solidariedade dos liceus lisboetas, até à bela imagem final da despedida de Paulo Quartim expulso de Coimbra, já dentro do comboio.

As circunstâncias políticas de 33 ou as dificuldades económicas da edição ditaram o seu fim. Depois, o arquivo foi-se dispersando, vendido a diversas entidades pelo seu filho Judah Benoliel (também destacado foto-repórter), em tempos de crise, e mais tarde por outros herdeiros. «O Século» veio a receber uns milhares de chapas de vidro que passaram para o Centro Português de Fotografia e estarão na Torre do Tombo (9334 negativos, ou cerca de 12 mil, segundo diferentes fontes), e o Arquivo Municipal conserva entre 4500 e 3500, entre outras colecções de menor vulto.

Por ocasião da Europália‘91, Benoliel foi apresentado por uma selecção de 34 fotografias, quase todas reimpressões modernas. A escolha de A. Sena afastou-se da abordagem cronológica e descritiva para ensaiar uma aproximação à singularidade do fotógrafo e de um olhar capaz de ser muitas vezes original, irreverente e poético. Foi a primeira e até agora única ocasião para se ver que, para além da quantidade e da importância documental do acervo do antigo «Século», o melhor trabalho fotográfico e gráfico de Benoliel escapa às rotinas e rituais do fotojornalismo, inventando outros momentos e pontos de vista, nos quais se desenham interesses e sentidos que só viriam a ter expressão significativa após as mutações da década de 20 (com a «nova visão», a Leica e a seguinte vaga de magazines ilustrados). Ao contrário das outras mostras que se repetiram em Portugal, esta ficou por Charleroi, acompanhada por um catálogo truncado.

De nacionalidade britânica (nascido em Lisboa de pais vindos de Gibraltar), judeu praticante, monárquico (Stuart caricatura-o em 1916 com uma coroa no alfinete da gravata azul e branca), viajado e culto (o padre Miguel A. de Oliveira, no Arquivo Gráfico, recorda-o em Sevilha e na Bélgica «explicando os segredos artísticos de Murillo e Van Dyck»), despachante de alfândega e bibliófilo, Benoliel é decididamente um personagem singular.

Não é conhecido o que pensava da fotografia, senão através da obra que iniciou quando as práticas amadoras e profissionais se tinham já banalizado e alguns aficionados cosmopolitas se interessavam pela «arte fotográfica» picturialista. Terá publicado a primeira reportagem em 1898 na revista «Tiro Civil», sobre as «Regatas do Centenário», e continuava a dedicar-se a temas desportivos e a frequentar a Corte («El Rei», em «Tiro e Sport», 1904) quando entrou como «free-lancer» para a «Ilustração Portuguesa» e se tornou o cronista dos últimos anos conturbados da Monarquia e dos primeiros da República. Terá apenas participado numa exposição beneficente de amadores em Cascais, com D. Carlos e a «alta sociedade», em 1903, e manteve-se depois à margem dos salões da fotografia artística (mesmo do que a «Ilustração» promoveu em 1910), mas as suas reportagens estiveram presentes na 1ª Exposição de Artes Gráficas, em 1913, e no ano seguinte numa mostra idêntica em Leipzig.

Gérard Castello-Lopes chamou-lhe «o único génio da fotografia portuguesa». Ian Jeffrey considerou-o «sem igual entre os pioneiros do fotojornalismo» (Time Frames: The Story of Photography, 1998, citado por Nuno Avelar Pinheiro em Pelos Séculos d’O Século, Torre do Tombo, 2002).

A actual exposição adopta uma lógica de arquivo, em resistência à consideração museológica e estética da fotografia utilitária ou vernacular (reservada à que enuncia a intencionalidade artística, seguindo cânones das artes plásticas). O que significa, em primeiro lugar, desvalorizar a possibilidade de reconhecer uma marca autoral, um estilo, um olhar próprio, uma qualidade fotográfica, no que se quer ver só como resposta técnica e ideológica às novas necessidades da imprensa ilustrada. O tema vem de Rosalind Krauss e liga-se à cegueira «ontológica» fixada na cesura ou corte, fingindo ignorar que as escolhas do enquadramento e do ponto de vista são fundamentos da originalidade da fotografia. A reflexão crítica de Szarkowski e os catálogos do MoMA são mais produtivos para a prática e a cultura fotográficas do que o marxismo académico da revista «October»: a questão também é política.

O que importa à comissária Emília Tavares é «desconstruir o mito» Benoliel, segundo disse à «Visão». Daí a quase ausência de escolha das fotografias «mais eloquentes», mais belas e significativas, e a insistência na quantidade, uniformizada por impressões demasiado escuras, de bordos negros como radiografias, sem interpretação de valores lumínicos, mesmo quando se conhecem as suas versões impressas. Daí a quase total ausência da visão inovadora com que Benoliel construiu as imagens da nova urbanidade do seu tempo (os aviões e automóveis, os desportos, os e as «elegantes» das avenidas, os ofícios urbanos, os ambulantes e os ociosos, a confluência das várias classes no espaço público - algumas dessas imagens essenciais são projectadas à entrada da mostra). Daí a concentração sobre temas da história política enquadrados por fórmulas ideológicas de suposto alcance universal.

Os capítulos sobre o regicídio (e a falsa questão do «instante perdido»), a implantação da República (e «a política das imagens»), que se prolonga nas variações obsessivas sobre «Imagem e Poder» e «Caos e Ordem», propõem a ideia que o fotógrafo é um mero instrumento da propaganda (burguesa), uma peça do discurso segregado pela imprensa ilustrada ao serviço dos vários poderes. Depois, «Geometria da Cidade» é um exercício de esteticismo anacrónico.

As multidões, os grupos (de grevistas ou de citadinos) e as figuras solitárias têm nas fotografias de Benoliel, com o seu sentido da profundidade de campo e do pormenor, uma presença que é, nas imagens mais conseguidas, e algumas podem descobrir-se na Cordoaria, a mais exaltante visão (encontrada e construída) do dinamismo urbano, nos trânsitos de um olhar atento à expressão das massas e à intimidade dos indivíduos, e à possível tensão entre elas. Com a liberdade e a verdade de que as melhores imagens podiam então ser testemunho, Benoliel deixou-nos um breve estado de graça da fotografia portuguesa. A herança continua a ser delapidada.


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Uma carta a propósito, da Comissária Emília Tavares, e a breve resposta

JOSHUA BENOLIEL
EXPRESSO, Actual de 18-06-2005

É sempre gratificante que um crítico de arte, com uma conhecida reputação, como é o caso de Alexandre Pomar, faça eco público das dificuldades dos investigadores (na verdade, os únicos que diariamente se confrontam com o património fotográfico nacional e o conhecem) sobre a falta de uma política de conservação e preservação desse mesmo património.

Quanto aos comentários acerca da exposição, torna-se necessário tecer algumas rectificações e esclarecimentos. Génio ou Mito? Parece-me uma questão estafada, secundária e muito antiga, que em nada abona para o conhecimento do trabalho de Joshua Benoliel, que Pomar parece não rever na exposição apresentada. É natural, já que algumas noções fundamentais sobre o que é o espólio fotográfico de um autor e a metodologia que deve ser empregue no seu estudo não estão, nem têm que estar, na base da sua formação, o que já é mais lamentável é que discorra acerca delas sem esse conhecimento, ou pelo menos não procure informação credível.

Comecemos precisamente pela questão de «lógica de arquivo, em resistência à consideração museológica e estética». Perante qualquer espólio fotográfico, a metodologia universal a adoptar é antes de mais a sua inventariação, separação por suportes e formatos, técnicas, estados de conservação e indexação dos seus conteúdos. Este trabalho arquivístico, que Pomar parece desprezar, é fundamental para discernir no conjunto global de imagens a construção da tal marca autoral, que não se prende a códigos lineares e obtusos sobre quem é génio e quem não é.

Estamos perante o trabalho de um foto-repórter, qualquer consideração estética não pode deixar de se colocar em confronto com este facto intrínseco e rearticulação ontológica do seu trabalho. «Cegueira ontológica» é querer instalar o trabalho de Benoliel num registo de genialidade estética novecentista, não atendendo à projecção que a sua obra teve no desenvolvimento de algo mais abrangente do que uma autoria, isto é, uma nova cultura visual.

A «concentração sobre temas da história política» apenas é demonstrativa e equitativa em relação ao conjunto geral do espólio e à sua qualidade. «Imagem e Poder» e «Caos e Ordem» são a análise latente de um período em que toda a construção política das imagens tem o seu início. Benoliel não é apenas, mas é também, um instrumento de construção de significados políticos e ideológicos, uma vez que a manipulação editorial das suas imagens foi sempre um exercício que extravasa o significado original das mesmas.

A questão só pode mesmo ser também política, quando falamos de imagem fotográfica e cultura de massas, mas Pomar terá de ampliar muito a sua bibliografia para a compreender, uma vez que essa questão surge muito antes do «marxismo académico da revista ‘October’» ou de Rosalind Krauss. Daí que o crítico considere que houve «fetichização das edições vintage», não compreendendo que essas mesmas edições são documentos absolutamente inéditos, que permitem entender todo o trabalho editorial sobre o «enquadramento e ponto de vista» do fotógrafo, obrigando-nos, no mínimo, a redimensionar o significado dos «fundamentos da originalidade da fotografia». Quanto às imagens publicadas existem nesta exposição, e em número muito superior aos fac-similes, que se resumem a 6, enquanto que são apresentadas 19 edições originais.

Pomar considera que a minha escolha de imagens deixou de fora as «mais eloquentes, mais belas e significativas», adjectivos e apreciação que só poderei discutir com o crítico quando souber quantas imagens, das 13 mil que constituem o espólio do fotógrafo, já viu, sem serem as publicadas e para além da selecção de 34 que António Sena realizou para a Europália 91. Custa-me a crer que o historiador, com o rigor que lhe é conhecido, tenha considerado que em 34 imagens estava resumida e totalmente abordada a originalidade do trabalho de Benoliel, conforme o faz Pomar.

Quanto às críticas à impressão das provas actuais, devia o crítico ter-se informado sobre o estado de conservação dos negativos originais, uma vez que esse aspecto técnico tem toda a relevância na produção das referidas impressões. Os negativos apresentam problemas diversos de deterioração, impossibilitando tecnicamente qualquer aproximação a impressões originais, e obrigando a um apurado trabalho para retirar o máximo de informação dos mesmos, que Paula Campos executou de forma irrepreensível e correcta. Além do mais, alimenta a inocente ilusão de que as edições originais ou as «vintage» constituem documentos fiáveis para comparação, ignorando que qualquer delas apresenta estados de deterioração da imagem, que falseiam os tão apreciados «valores lumínicos originais». O que Pomar confunde com uma radiografia é a impressão integral do negativo, conferindo-lhe uma identificação matérica, tantas vezes subvalorizada na abordagem fotográfica, e garantindo uma reprodução integral do enquadramento executado pelo autor.

A história da fotografia portuguesa é parca e inconsistente, precisamente porque se têm perdido demasiados anos a perseguir génios fotográficos, em detrimento do estudo articulado das suas obras, assim como permanecerá um beco sem saída, enquanto um certo caciquismo emplumado imperar, delapidando os empreendimentos que não possuem uma suposta autoridade intelectual histórica a apadrinhá-los. Deste modo, continua a ignorar-se o trabalho anónimo e desvalorizado desenvolvido em muitas instituições de ensino, museus e, de modo particular, por investigadores competentes.

A exposição de Benoliel, na Cordoaria, não pretendeu nunca ser um projecto arrogante e fechado sobre si mesmo, deseja-se que outros investigadores tenham a oportunidade de contribuírem com abordagens diferentes e complementares. Muitas outras questões ficam por discutir sobre a presente exposição, mas espero que o catálogo da mesma, a editar em final de Junho, possa desenvolver novas matérias para um debate construtivo e mais informado.
EMÍLIA TAVARES, comissária da exposição «Joshua Benoliel - Repórter Fotográfico»

N.R.

Alguns pormenores, entre muitas tergiversações: Não considerei que na exposição houvesse qualquer «fetichização das edições vintage»; a comissária é que agora sobrevaloriza o ineditismo das provas com retoques e marcas editoriais. A referência à «lógica de arquivo» e a Rosalind Krauss alude ao artigo sobre a fotografia do séc. XIX e de Atget incluído em «Le Photographique», como será óbvio para qualquer leitor informado (deixemos em paz a aura de Benjamin). Não pus em causa a qualidade do trabalho de impressão de Paula Campos, mas as opções que teve de seguir; com os «problemas diversos de deterioração» dos negativos, mais difícil terá sido cumprir a exigência de uniformizar as provas modernas.
A.P.