quarta-feira, 27 de agosto de 2025

TROCAS NEO-REALISTAS DE 1945

FERNANDO LANHAS, PÁSSAROS E ROCHEDOS, 1945, exposto agora no Atelier-Museu, "Neorrealismos...". 

JÚLIO POMAR, MULHER COM UMA PÁ 1945, Col. Fernando Lanhas. 

O mais significativo par de obras trocadas por Júlio Pomar e outros artistas, colegas e camaradas, e sem dúvida o mais relevante, inclui "Mulher com uma Pá" e "Pássaros e Rochedos", de Fernando Lanhas, ambos de 1945, que sinalizam a relação de cumplicidade que se estabeleceu logo depois da chegada de Pomar à escola do Porto, sendo Lanhas figura decisiva no seu itinerário pelas Exposições Independentes, a página «Arte», a Missão Estética de Évora e a Galeria Portugália. Pelo seu lado, Pomar promoveu a apresentação do primeiro quadro abstracto de Lanhas na Exposição Independente levada a Lisboa em 1945. 

Ambos os quadros ficaram inéditos, num tempo em que poucas obras se produziam, e quando tudo o que se pintava se ia mostrar logo nos Salões, lembrava Pomar. E assim desconhecidos ficaram por muito tempo, ambos não assinados e não datados, não expostos e fora do mercado. Intencionalmente inéditos, deliberadamente escondidos? Ficará sem se saber, mas é uma intrigante coincidência, como se de um pacto se tratasse. 

O quadro de Pomar mostrou-se pela primeira vez – por iniciativa de Fernando Guedes, e Lanhas – em 1967-68, em Bruxelas, Paris e Madrid ("Art Portugais. Peinture et Sculpture du Naturalisme à nos Jours", organização SNI e Gulbenkian); fora reproduzido em 1965 pelo mesmo Fernando Guedes num artigo sobre as Exposições Independentes, que não consta ter integrado («Vinte anos depois», Colóquio nº 32, fevereiro). Com o título "Mulher" esteve na retrospectiva de 1978, por escolha do artista. Quanto a Lanhas, a sua pintura foi exposta só na primeira retrospectiva, na Galeria Almada Negreiros, SEC, e Casa de Serralves, em 1988, por lembrança minha, mas não houve tempo para a reproduzir na monografia "Os sete rostos", de Fernando Guedes, ed. INCM, nem no catálogo - o que só veio a acontecer na 2ª retrospectiva, em 2001 (Museu de Serralves). 

Mulher com uma Pá é seguramente anterior às pinturas da 9ª Missão Estética do mesmo ano (de que Gadanheiro é emblema), pintado no Porto a seguir a "A Guerra", "Taberna" (antiga col. Rui Pimentel) e "Café" (a primeira colecção é desconhecida, depois Manuel de Brito), num tempo de rápida circulação por maneiras diferentes: de uma pintura de formas recortadas e lisas, decorativamente planificada, a uma áspera deformação expressionista que ficou sem paralelo. É uma pintura maior, singular e rude, que só terá alguma equivalência na "Varina Comendo Melancia" de 1948, ambas irreverentes e desamparadas, como as duas mulheres que se equilibram na pá e no braço desconforme. Picasso e Portinari comparecem na desarticulação e desmontagem do corpo, com as mãos e pés desmesurados que são marca do tempo. A expressão de dor associada ao trabalho duro é também inquietação, mais que revolta, no espaço fechado e monumental de um arco que é uma dupla moldura, interior. Os cinzentos, que são únicos, lembram os de Lanhas, que por esse altura (ao tempo da página «Arte») pintava rostos amargos de mulheres, já depois de produções abstractas. Contágios? 

O óleo de Lanhas (sobre cartão, mais tarde colado sobre tela, 86,5 x 61,5 cm) é paralelo à construção dos sintéticos motivos arquitectónicos de "Cais" e à depuração geométrica do "Violino (O2.43.44)", aqui numa configuração de paisagem imaginada, de potente intensidade especulativa que o voo circular dos pássaros-aviões acentua. Poderá ler-se a simbologia da montanha, eixo do mundo, imagem da transcendência, caminho ascendente rodeado por aves ou anjos, se se tentar a interpretação. Também a 2ª guerra poderá ser aqui evocada. As gradações dos cinzentos contra um céu opaco, com uma matéria densa e quase lisa, a cor espatulada, antecedem as superfícies planas que acolhem sinais geométricos – a moldura veio prolongar a pintura, realizada pelo artista quando em 1988 acompanhou o quadro na retrospectiva. É aqui, nesta abstracção figurativa, que está mais patente a singular dimensão metafísica da sua pintura, que noutros casos se abeira do design. 

Uma das pistas para pensar o primeiro neo-realismo, no tempo que vai de 1945 a 1951, no espaço das artes plásticas, e em especial quanto à obra de Pomar, abre-se com a consideração dos quadros que ele trocou com outros artistas (Lanhas, Mário Dionísio, Victor Palla, João Abel Manta), em que se revelam afinidades e partilham experiências, e em especial se descobrem as heterodoxias comuns à revelia dos estereótipos conhecidos das "histórias". 

Num tempo inicial em que o mercado se restringia a intelectuais amigos ou cúmplices, incluindo nele as ofertas e as trocas entre colegas de escola e de ofício, alguns deles camaradas de partido, essas obras são particularmente significativas de interesses privados que convivem, sem contradição, com as militâncias expostas e/ou publicadas. 

ver "Depois do Novo Realismo", A Pomar, 2023, capítulo 9. "Trocas, mercados, colecções, p. 121-130 Posted at 00:21 in Atelier-Museu Júlio Pomar, Júlio Pomar, Lanhas, Neo-realismo | Permalink | Comments (0)

ISTO NÃO É / ISTO NÃO ERA UMA EXPOSIÇÃO
LEMBRANÇA de MAGRITTE no MNE e CIACJ: Um labirinto de lençóis e uma mesa-serpente de fotocópias

segunda-feira, 25 de agosto de 2025

Primitivismo e primarismo, um catálogo ilustrado

 

IMG_6625
IMG_6625
Houve tempos, já democráticos (ou tempos anteriores...), em que a investigação sobre relações ultramarinas e coloniais (não é o mesmo) se processava sem que o "primitivismo" ideológico (ou primarismo, o que não é o mesmo) tingisse a exploração e a exposição dos respectivos resultados. A informação internacional, designadamente francesa, podia sustentar referências e conhecimentos. Recuou-se... a partir da FCT e dos institutos universitários. Acabámos ao nível do Bloco, tal como aconteceu com a exp. ainda presente no Museu de Etnologia, "Desconstruir o colonialismo...", com direcção de Isabel Castro Henriques, autora importante num penoso fim de carreira.

Escreve-se logo a abrir o texto de apresentação: "A colonização e os fascismos, e o desenvolvimento da cultura e do consumo de massas no seio do mal-estar da Europa, impulsionaram o fascínio e a fetichização em torno de culturas que foram consideradas «remotas», «primordiais», «primitivas», «ingénuas», «arcaicas», «selvagens», «primevas», entre outras designações."
Há por aí uma grande amálgama de tempos e opiniões - e "fascínio" e "fetichização em torno" são pistas inseguras.

Desconsiderar o iluminismo e as ciências antropológicas, no seu crescimento sucessivo; a dinâmica complexa das explorações, aventuras e ocupações de terreno, e das deportações, emigrações e colonatos; em Portugal, o republicanismo e o progressismo colonialistas à volta da Seara Nova, mesmo que ainda talvez acriticamente racistas; bem como as contradições internas do colonialismo e entre políticos de Lisboa e colonos, são tropelias chocantes que têm aqui curso académico, escolar e museográfico.
 
É certo que a específica perspectiva de trabalho é a valorização artística do "primitivo", o "primitivismo" moderno, que é uma sequência de rupturas (o cubismo, o expressionismo, o dadaísmo, a antropofagia brasileira, etc), mas isso não justifica que se misturem e se recortem e censurem realidades históricas de contexto.
Não quis ir a Guimarães, à exposição, para não conflituar com duas comissárias que me são simpáticas (já tinha ido a Braga ver uma muito irregular exposição universitária sobre a Lunda e o Museu do Dundo, que teve outra origem e ficou bem sem catálogo...), mas digo agora que o catálogo, que finalmente folheei e logo fui comprar (textos sintéticos, graficamente atraente, imp. Maiadouro, 38€, 408 pags, tiragem não indicada), é um repositório muito vasto de imagens (ilustrações, capas e cromos) relativas à exploração ultramarina e colonial que vale a pena percorrer, com alerta quanto à cegueira académica e  aos desvios facciosos.


"Problemas do primitivismo - a partir de Portugal", Mariana Pinto dos Santos e Marta Mestre (editoras), ed. Centro Internacional de Artes José de Guimarães / A Oficina CIPRL e Documenta. Nov. 2024.


Retomo na íntegra o parágrafo inicial: "Pode considerar-se que aquilo que ficou conhecido como «primitivismo» tem uma longa história <estendendo para trás o conceito com o anacronismo necessário>, mas foi no fim do século XIX e princípio do século XX que se expressou de forma inequívoca. A colonização e os fascismos, e o desenvolvimento da cultura e do consumo de massas no seio do mal-estar da Europa, impulsionaram o fascínio e a fetichização em torno de culturas que foram consideradas «remotas», «primordiais», «primitivas», «ingénuas», «arcaicas», «selvagens», «primevas», entre outras designações. A apreciação e valorização por artistas, intelectuais e marchands de objectos vindos de territórios não europeus, na maioria colonizados, mas também vindos de contextos locais, como a arte popular, a par do desenvolvimento exponencial das técnicas de reprodução de imagens, fizeram irradiar a estética primitivista na cultura visual da modernidade no Ocidente." <aliás, fizeram a modernidade anti-académica do séc XX>
 
Por exemplo, há pequenos reparos que apontam censuras: chateia-me que a propósito de Cruzeiro Seixas, que viveu em Angola entre 1954 e 1964, que "participou activamente no espaço cultural luandense" e nomeadamente colaborou com o "Museu de Angola", não se refira o patrocínio e o apoio público do industrial e coleccionador-patrono Manuel Vinhas ("A Cuca é da UPA, a Nocal é de Portugal", dizia-se). Eram conhecidas e estão editadas as suas críticas mais ou menos explícitas da política colonial, de exigências desenvolvimentistas (pp. 300-305 capítulo "Mar Português", texto de Marta Mestre 303). Mecenas de Luís Pacheco e tantos outros, os seus discursos, as duas exposições de arte moderna que patrocinou em Luanda, o livro final "Profissão Exilado" mereciam presença.
 
Outro exemplo: nas páginas dedicadas a José de Guimarães (artesanato coleccionado, fotografias, pintura), referem-se "os anos que viveu em Angola" mas omite-se que estava em Angola como militar, engenheiro militar, durante a guerra colonial (pps. 148-153, capítulo "Ingénuo"; e 286-287, "no contexto da guerra colonial” - não é uma acusação). Já Cruzeiro Seixas viera embora no início da guerra... J.G. é um caso significativo de duplo profissional, sempre militar de carreira (de nome José Maria Fernandes Marques) e artista independente, que frequentou meios da Oposição e veio a trabalhar na NATO na Bélgica (nada contra a NATO...), o que permitiu reforçar a sua circulação internacional. Reformou-se como coronel.

Foto Mario Bastos IMG_0007 macondes 1 9M

FOTO: O Salazar maconde revisto por Pancho Guedes; e na mesma vitrine o cipaio (policia nativo), interrogatório na esquadra (cena de polícia) e vários animais. Foto Mário Bastos/CML. (ver pags 150-159 do catálogo "As Áfricas e Pancho Guedes". Fotos José Manuel Costa Alves.) Aqui págs 162-163 cat. Problemas...
) 

A versatilidade da orgulhosa população maconde, que resistiu à invasão alemã da 1ª Guerra, encabeçou a resistência anti-colonial e em parte se instalou perto de Maputo, sustentando o regime e mantendo tradições iniciáticas, tem como especialidade própria a prática da escultura, em aldeias de artesãos que cumprem encomendas, antes ao gosto colonial e depois ao gosto moderno.

Um dos testes que tenho usado para aferir a qualidade e seriedade das investigações ultramarinas é a presença de Pavia, Manuel Ribeiro de Pavia, ilustrador de Castro Soromenho - e este como escritor colonial e 1º escritor angolano.
 
 

1 2 Soromenho pavia1956 Pavia IMG_5672
De CASTRO SOROMENHO  - A MARAVILHOSA VIAGEM DOS EXPLORADORES PORTUGUESES Lisboa. 1946-8, Empresa Nacional de Publicidade.

 

E também o fotógrafo Elmano da Cunha e Costa, advogado, autor de um metódico levantamento de tipos e costumes em Angola, protegido e colaborador de Henrique Galvão, expositor no SNI e hostilizado por Salazar.

E o antropólogo Carlos Estermann, (1889–1976), missionário espiritano que esteve 50 anos baseado no Sul de Angola (1926–1976), com uma grande produção científica

E a Exposição Angola 1938 que recebeu e intimidou Carmona à chegada a Luanda, imposta e produzida exclusivamente por forças locais. E o sempre ignorado Plano de Fomento então aprovado à força mas que ficou incumprido no tempo da 2ª Guerra.

 

Tudo foi mais rico e complexo do que querem fazer parecer.

IMG_6653 IMG_6650
IMG_6648
Nas fotos: Tudo* o que eu não li (às vezes consultei) - e uma oportunidade para pôr ordem nas estantes. (*Aliás, é só uma parte)

 

 

duas notas bibligráficas que aqui se sinalizam:

Sobre a produção fotográfica de um etnógrafo missionário de origem alemã: Estermann.

http://www.hisfotant.org/pt/on-the-photographic-production-of-a-german-origin-missionary-ethnographer/

 

MANUEL RODRIGUES VAZ, "Pintura colonial e Salões de Arte em Luanda. Do naturalismo paradisíaco à modernidade", Conferência na Universidade Nova, em Lisboa, a 17 de Maio de 2017.:

http://novaserie.revista.triplov.com/numero_65/manuel_rodrigues_vaz/index.html

domingo, 24 de agosto de 2025

RETRATO DE NORTON DE MATOS 1948