sábado, 16 de junho de 2001

Veneza 2001: João Penalva, "R."

 "Um palácio em Veneza"

Expresso (Cartaz Actual de 16/6/2001, pp. 4 e 5, e antes/abaixo  19-08-2000)

Portugal em competição em Veneza com uma cenográfica instalação de João Penalva

Coexistem duas bienais em Veneza. Uma é a das representações nacionais, apresentadas quer em pavilhões próprios nos Jardins do Castelo, construídos desde 1907 numa bem curiosa sucessão de estilos arquitectónicos (a bienal seguiu o modelo das exposições universais), quer dispersas pela cidade em espaços variados, no caso dos países sem pavilhão. Outra bienal, a grande exposição do director de cada edição, que visa ser uma proposta cosmopolita sobre o estado da arte e o seu futuro. Esse diálogo, em grande medida um diálogo de surdos, entre valores nacionais e um ponto de vista internacional, no qual intervêm tanto os países do centro como as periferias mais distantes (excepto a África), é bem elucidativa das resistências à globalização da arte do mundo, que não é o mesmo que «o mundo da arte».

Candidato à construção de casa própria desde 1995, para o que foi convidado Álvaro Siza (mas nesse ano suspenderam-se todas as solicitações nacionais), Portugal é um dos exilados dos «Giardini», compensando a localização periférica com a dignidade de um palácio alugado e vontade de identificar-se com os valores dominantes do «art world». Depois de Julião Sarmento e Jorge Molder, em 97 e 99, é João Penalva quem ocupa o Palazzo Vendramin dei Carmini, por escolha do comissário nacional designado para este ano, Pedro Lapa, director do Museu do Chiado.





A palavra ocupar tem aqui pleno sentido porque a obra de Penalva se instala cenograficamente ao longo de cinco salas comunicantes entre si, configurando o espaço de um espectáculo sem actores, mas com projecções de vídeo, a percorrer demoradamente para que seja possível detectar e relacionar as pontas das numerosas histórias esboçadas pelo artista. Trata-se de uma instalação, onde a decoração do palácio é em parte utilizada no seu luxo decadente, em parte alterada e ocultada, para acolher três grandes ecrãs, vitrinas com objectos ou documentos, fotografias de grande formato, mobiliário e adereços diversos. Tudo peças de um vasto «puzzle» montado com ambição de obra de arte total (um conceito wagneriano), que por isso mesmo nunca se resolverá numa narrativa ou chave únicas.

O título, "R.", preserva o segredo sobre os «enredos» presentes. Saberão alguns, ou lerão na informação disponibilizada, que a inicial designava Richard Wagner nos diários de Cosima, e a obra do compositor alemão está presente através de "Os Mestres Cantores de Nuremberga" (Die Meistersinger von Nürnberg). As duas salas sem ecrãs são-lhe dedicadas - sem música, mas invadidas pelo som (e diálogos) dos vídeos -, com material gráfico (imagem e texto: retratos de cantores, fotografias de cena, fragmentos do libretto, etc) e adereços que se dispõem nas vitrinas e nas paredes, ocupando espaços da decoração mural. Na mais pequena, apenas um idêntico expositor com bolas de papel: «Cinco críticas muito más a produções de "Os Mestres Cantores"». A citação de Wagner também referirá a relação pessoal de Penalva com os (alguns) críticos. No modelo e uso das vitrinas pode reconhecer-se a referência a Joseph Beuys.

Mais do que a homenagem a Wagner, importa aqui o argumento daquela ópera e também o trânsito entre identidade artística e intimidade pessoal, fazendo um desvio da obra do compositor para a relação com a sua mulher, da arte à vida. "Os Mestres Cantores" é a história de um prova de admissão à respectiva corporação prestada por um jovem aristocrata. O tema envolve um concurso, com regras definidas e júri, logo, as ideias de exame, prova, êxito ou derrota, aprendizagem, perfeição, cumprimento de normas e originalidade. A esses tópicos Penalva associou ilustrações do mundo competitivo do desporto, dos concursos de dança ou patinagem no gelo e mesmo do Festival da Eurovisão, evocando o desaire da «Desfolhada» cantada por Simone em 1969 noutra vitrina de documentos e em fotografias de época. Implicitamente, é a própria participação de Penalva na Bienal que está presente como problema.

O desporto comparece em grandes fotografias a preto e branco dos pódios onde se consagram os vencedores e, em especial, num vídeo de poderoso impacto (projectado em alternância com um texto da ópera) no qual se vê um atleta na prova de argolas, filmado em planos fragmentados e muito aproximados, com a concisão e o ritmo de um «spot» publicitário. Toda a instalação dialoga com esse vídeo, que opõe o vermelho-vivo do fato aos tons barrocos do cenário, a urgência mecânica à lentidão dos outros filmes sem acção, o impacto directo dessas imagens breves à possível densidade narrativa de tudo o resto, um corpo vivo a um mundo de memórias.

Os dois outros ecrãs são preenchidos por imagens quase fixas (um lago da Suiça próximo de Lucerna e um pedaço de paisagem filmada na Madeira, com uma fogueira) acompanhadas por uma presença marcante de textos literários, cartas passionais, o diário de Cosima, etc. - lidos em esperanto com legendas em inglês. Uma dessas projecções é feita sobre um pequeno palco precedido por um piano, diante de filas de bancos desirmanados. O contraste da decoração luxuosa das salas e de algum mobiliário com a precaridade pobre de outros elementos é uma das notas que se reconhecerão lentamente, a somar a outros sentidos alegóricos do trabalho de Penalva.

A representação é acompanhada por um catálogo trilingue sobre a instalação, prefaciado por Pedro Lapa, e por uma volumosa monografia sobre a obra de Penalva, em edição Electa, também encadernada, com textos em inglês do comissário e de Mark Gisbourne e Guy Brett, mais um diálogo de Yuko Hasegawa com o artista. Esses são elementos de uma acção promocional de grande escala que tem procurado, desde 1997 (após a mais pobre participação de 95, em que compareceram Croft, Cabrita Reis e Chafes, o que foi uma boa ideia de programação), conferir visibilidade à presença nacional. Conduzida pelo Instituto de Arte Contemporânea, em moldes idênticos aos usados nos festivais de cinema, a operação inclui «marketing» profissionalizado, jantar e festa oferecidos no pavilhão (este ano substituindo o fausto do Pap'Açorda por um mais económico menu italiano), e a presença de alguns convidados, incluindo imprensa, como se diz, especializada. (1)

     Perfil      
João Penalva nasceu em Lisboa em 1949 e reside e trabalha em Londres desde 1976, onde estudou na Chelsea School of Art até 1981. No seu itinerário artístico há que contar os anos anteriores dedicados à dança, tendo chegado a fazer parte da companhia de Pina Bausch, e mais tarde trabalhou como cenógrafo. Em 1990 foi como pintor que expôs no Centro de Arte Moderna, em Lisboa; passou, na década seguinte, a apresentar instalações e montagens de materiais diversos com sentido narrativo. Para além de expor regularmente em Londres, representou Portugal na Bienal de São Paulo de 1996 e o Centro Cultural de Belém organizou em 1999 uma ampla mostra do seu trabalho. Entre outras participações em mostras internacionais, destaca-se a presença na 2ª Bienal de Berlim.

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E a história desta bienal começara assim com a nomeação do comissário:

Pedro Lapa comissário da Bienal de Veneza
Expresso Cartaz (actual) 19-08-2000

O MINISTRO da Cultura, José Sasportes (2), nomeou Pedro Lapa, director do Museu do Chiado, para comissariar a representação portuguesa na próxima Bienal de Veneza, que decorrerá em 2001. Depois da retoma das representações nacionais, em 1995, sucederam-se nessas funções José Monterroso Teixeira, que seleccionou José Pedro Croft, Pedro Cabrita Reis e Rui Chafes; Alexandre Melo, que apresentou Julião Sarmento em 1997, e Delfim Sardo, com a escolha de Jorge Molder, em 1999. Portugal continua, no entanto, a não possuir um pavilhão próprio no recinto da Bienal, sendo forçado a alugar um espaço exterior de menor visibilidade.

Pedro Lapa comissariou - no Museu do Chiado, cujo quadro integrou em 1990 (ainda Museu Nacional de Arte Contemporânea) - a retrospectiva de Jorge Vieira, foi co-responsável pela retrospectiva de Mário Eloy e dirigiu mais recentemente a exposição e o catálogo «raisonné» dedicados a Joaquim Rodrigo. Entre outros projectos, conta-se a apresentação, desde 1995, de dois ciclos de mostras de jovens artistas no mesmo museu (o ciclo «Interferências» prossegue com uma instalação de Miguel Palma), tendo ainda integrado temporariamente o quadro do Centro de Exposições do Centro Cultural de Belém, onde programou, a mostra inglesa «Life/Live» e exposições de Picabia e Júlia Ventura. Actualmente, Pedro Lapa prepara uma antologia de Man Ray para o museu que dirige, uma mostra de Stan Douglas e ainda uma colectiva de jovens artistas portugueses para a Culturgest e uma outra, internacional, a ser apresentada na Fundição de Oeiras com o título «More Words About Building and Food». Num texto recente sobre os anos 90, «O Grupo e as Suas Migrações», publicado na revista «Arte Ibérica» de Fevereiro deste ano, Pedro Lapa assumira uma posição muito negativa face ao curso da arte nos anos 80, condenando o «efeito de moda que os 'regressos à pintura' e todos os neo-expressionismos representavam», bem como face aos «investimentos promocionais em artistas contemporâneos já consagrados nessa década», a propósito de uma falta de promoção institucional dos artistas revelados nos anos 90 que se teria verificado nos anos mais recentes.

Quanto aos artistas surgidos na última década, valorizava o «reactivar de uma perspectiva crítica, através de deslocações forjadas pela apropriação dos tradicionais meios de comunicação de massas e respectivas recontextualizações ideológicas». No mesmo artigo destacava os percursos de João Penalva, João Paulo Feliciano, João Louro e João Tabarra, Fernando José Pereira, Miguel Palma, Ângela Ferreira, Augusto Alves da Silva, Cristina Mateus ou Francisco Tropa, tendo alguns deles apresentado instalações no Museu do Chiado.

(1) Tinha decidido não ir a Veneza (apesar de Szeemann) mas Sasportes insistiu/investiu na cobertura da representação nacional, e fui a convite do MC, o que aconteceu só nesta edição.

(2) Sasportes inaugurou um novo modelo de escolha da representação, atribuindo-a a um museu ou instituição artística. A seguir coube a Serralves e depois o modelo foi abandonado.

Veneza 2001: Harald Szeemann

 "Volta ao mundo"

EXPRESSO/Cartaz, Actual de 16/6/2001, pp. 6 e 7 (e  9/6/2001)

O «Palco da Humanidade» Plateau of Humankind, segundo Harald Szeemann

Vinte e oito pavilhões nacionais nos Jardins, 21 pela cidade, incluindo os do colectivo latino-americano, de Singapura, Taipé e repúblicas ex-soviéticas. Mais as duplas representações que se multiplicam, da Espanha, Holanda, Suiça, etc., e várias mostras «a latere». Ao gigantesco programa, cada vez mais um mercado mundial de exposições, soma-se o projecto do comissário-geral, a ocupar o vasto Pavilhão da Itália (que fica sem presença própria) e um quilómetro de edifícios fabris, o Arsenal, herança da antiga potência marítima.



A 49ª edição é frágil na mostra dos países, pelo menos aos olhos estrangeiros a cada um deles. As atenções voltam-se para o «centro» e as pulsões multiculturais ficam sempre por justificar-se, porque o localismo dos grandes é muito mais poderoso. É o caso norte-americano, onde Robert Gober aparece debilitado num exercício de espaços e objectos perdidos. Ou da França de Pierre Huyghe, com jogo de luzes no tecto, interactivo, e vídeo com heroína Manga.

Já o britânico Mark Walling (n. 1959) dispara uma rajada de ideias jocosas com provocações à pátria e a Deus, desde a bandeira nacional de cores trocadas (irlandesas) e a falsa fachada do pavilhão até ao demasiado humano "Ecce Homo" moldado em resina com coroa de espinhos de arame farpado dourado ou à música de Handel a acompanhar o trânsito em «slow motion» por uma porta de aeroporto ("O Limiar do Reino"). Em "Anjo", o próprio artista com bengala de cego vai descendo uma escada rolante que sobe, entoando uma melopeia: fica ilustrada com humor bastante a desrazão do mundo e da arte.

Mais sério é o pavilhão alemão (estilo imperial de 1938) onde uma estreita porta, ao cabo de uma hora de espera, dá acesso a um velho prédio que se percorre como um labirinto de espaços alterados, secretos e absurdos, que desembocam em escadas e corredores cada vez mais estreitos, em quartos despojados ou com estranho mobiliário, em portas fechadas. Vem à memória o esconderijo de Anne Frank, mas a situação ultrapassa todas as referências, partindo de um mundo pessoal e proporcionando uma insólita experiência. Há vários anos que Gregor Schneider (n. 1969) tem recriado esse espaço, já comparado à estrutura do inconsciente, agora premiado com um justo Leão de Ouro para o melhor pavilhão.

Das periferias fica na memória o chão lavrado de pintura do polaco Leon Tarasewicz, ambiente de cor a compensar a penúria da modalidade; o humor do velho egípcio Ramzi Mostafa, pioneiro modernista em trânsito entre culturas; a dureza auto-sacrificial dos vídeos de Ene-Liis Semper (Estónia). O brasileiro Ernesto Neto é mais eficaz no Arsenal, com os odores exóticos dos seus volumes-sacos de pano. Sem a ambição de se ver tudo.

Entretanto, a mostra de Harald Szeemann é em si mesmo uma dupla volta ao mundo: inventário dos temas que fazem o bom e mau humor da Humanidade, mapa dos jogos e angústias que moldam o quotidiano vivido e também a gratuitidade ou gravidade da arte. O projecto é em absoluto generalista, reúne artistas de todas as idades e disciplinas, e o autor atribuiu-lhe a ambição e o título de «Palco da Humanidade». Associou-o à polémica exposição fotográfica «The Family of Man», de 1959, num apelo «ao que há de eterno no homem, na base dos enraizamentos locais», e ao programa humanista de «Identidade/Alteridade», de Jean Clair, Veneza'95, mas recusando separar figuração e abstracção em arte. Chamou «Plataforma do Pensamento» ao coração da mostra, onde colocou o "Pensador"  e "O Homem que Marcha" de Rodin ao lado de esculturas populares ou ingénuas e divindades hindus.

Mal recebida por alguns pelo seu ecletismo e, diz-se, por não trazer nada de novo, a opção do velho comissário, que em 1969 e 72 («When Attitudes Become Form» e Documenta de Kassel) ajudou a consagrar as tendências mais radicais, parece voltar-se da arte para o mundo: «Não estamos face a novas revoluções da arte, como no fim dos anos 60, mas num clima de crescente interesse pela existência humana».

Apesar do predomínio do vídeo («a jovem geração exprime-se com a imagem em movimento»), Szeemann fez saber do seu interesse em mostrar pintura e lamentou que só pudesse dispor do pavilhão italiano para tal, por razões de climatização. Aí juntou alguns nomes consagrados (Cy Twombly, Gerhard Richter, Helmut Federle) e jovens como o filipino Manuel Ocampo, o alemão Neo Rauch e o costa-riquenho Federico Herrero. E ele próprio se distanciou do excesso de projecções, que constitui uma queixa recorrente dos visitantes: «Espero que em breve haja menos vídeo, porque começo a estar um pouco cansado...»

Claramente dirigida a um largo público, a mostra associa obras de impacto certo, como os manequins de Ron Mueck, que levam a presença do corpo ao extremo da incerteza entre ilusão e verdade, central a toda a arte (construtor de bonecos para séries de TV, Mueck fez um Pinóquio para servir de modelo a Paula Rego, de quem é genro, e nunca mais parou), a peças de escândalo de recentes mostras londrinas (o papa caído de Maurizio Cattelan, os «clips» eróticos de Chris Cunningham), mas também a outras produções mais discretas ou poéticas, num percurso estruturado por tópicos antropológicos, sem ser escolar ou demagógico.

Um núcleo aproxima figurações do corpo (realismo de Mueck e pequenos monstros criados por Xiao Yu; vídeos contemplativos ou manipulados), adiante há referências ao mundo colonial (imagens recuperadas e algum exotismo multicultural), depois ao desporto (dois treinadores reagem a um jogo invisível; um jogo de futebol disputado de fato completo; duas equipas de futebol e basket no mesmo recinto, com referência a segregações raciais). Diante de uma série fotográfica sobre Chernobil estão os surpreendentes desastres de automóvel, desde os anos 50, de um polícia suíço (Arnold Odermatt); diante dos corpos excessivos do cinema de Cunningham está a observação microscópica e pictural do vídeo de Bill Viola. A tradição da fotografia documental é recuperada num trabalho de Cristina Garcia Rodero sobre cultos vudu e o fotógrafo Nick Wapplington distribui posters de falsos portais da Internet pelos corredores.

Não se trata de sacrificar as obras às intenções da montagem, antes de inseri-las em conjuntos significantes que as justificam ou valorizam, mesmo quando é escasso o impacto individual. Por outro lado, o próprio pluralismo temático e a diversidade das linguagens e das formas concede ao espectador um lugar soberano onde o envolvimento emocional ou intelectual com algumas obras pode coexistir com o desinteresse ou rejeição de outras, sem quebra da relação de empatia habilmente tecida por Szeemann, mesmo que pareça ceder a compromissos com vedetas (as fotos de calendário de Vanessa Beecroft) ou acolha projectos infelizes <?>, como a instalação final de Kabakov, "Nem Todos Serão Levados para o Futuro", um apeadeiro com quadros caídos e o comboio que parte... Próxima, a gigantesca espiral de oblíquas paredes de aço, de Richard Serra, é uma forma que parece nascer do espaço fabril do Arsenal, mas provocar tonturas (a alguns) é um destino pouco credível para uma escultura penetrável.

O lixo faz parte da actualidade artística que Szeemann condensa na sua mostra (o saco de plástico passado a bronze de Gavin Turk, "Saco de lixo"). Um gesto de humor sintetiza no quadrado de um púbis recortado um dos ícones que marcou o século (Malevitch) e a carne sexuada que a abstracção construtiva combateu: a obra de Tanja Ostojic, jugoslava, n. 1972, terá sido vista por Szeemann, está reproduzida no catálogo mas não é «exposta». A nostalgia e a caricatura da pintura ganham uma presença tão simbólica quanto real com os dois operários que vão cobrindo sucessivamente de branco e de preto, durante os cinco meses da Bienal, as paredes de uma galeria (ideia do búlgaro Nedko Solakov, n. 1957).

Do impossível inventário ressalvem-se as presenças portuguesas: o vídeo de João Onofre, Casting, e a instalação de Egon Ekoyan e Julião Sarmento, na qual imagens fragmentadas de corpos se projectam num estreito corredor onde o espectador quase esbarra no ecrã. Eficaz provação oferecida ao voyeurismo de cada um e ruptura com a rotina da passiva contemplação de tanto vídeo.

(Fotos: «Uma Vida (Preto e Branco)», de Nedko Solakov, com operários em actividade durante cinco meses / «Sem Título (Rapaz)», de Ron Mueck / «Saco de Lixo», em bronze pintado, de Gavin Turk / «Quadrado Negro sobre Branco (no meu Monte de Venus)», de Tanja Ostojic / Espiral de aço de Richard Serra/ «Anjo», vídeo de Mark Wallinger)

history-biennale-arte

The 49th International Art Exhibition took place from June 10 to November 4, 2001, under the title Plateau of Humankind. It was directed, as the 1999 edition, by the Swiss critic Harald Szeemann and attracted over 243,400 visitors. Szeemann said that “No set theme was applied in choosing the artists; indeed, it is their work which decides the dimension of the event. The Venice Biennale hopes to serve as a raised platform offering a view over humankind”. A key work by Joseph Beuys, The End of the Twentieth Century, was exhibited. According to Szeemann, “It was Beuys above all who was the indefatigable spokesman for the concept of liberty”. Alongside Beuys, various other artists of the 20th century were exhibited: “Cy Twombly, whose generous gestures restore myth to the modern world; Richard Serra, the creator of a new concept of the monumental; Niele Toroni, the champion of painting as trace. Then come a number of those contemporary artists who have focused on the human figure – for example, Ron Mueck”.

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Expresso Cartaz Actual 9/6/2001
Prémios da Bienal de Veneza

Cy Twombly e Richard Serra distinguidos com dois Leões de Ouro

A 49ª edição da Bienal de Veneza, que hoje se inaugura, atribuiu dois Leões de Ouro aos artistas norte-americanos Cy Twombly e Richard Serra, designados como mestres da arte contemporânea. As distinções foram concedidas por proposta de Harald Szeemann, director da Bienal e comissário da exposição paralela «Palco da Humanidade», em que ambos participam. Outros prémios são hoje anunciados, para o melhor pavilhão nacional, para mais outros três artistas representados na Bienal e ainda para quatro jovens participantes. 

Cy Twombly nasceu em Lexington, Virginia, em 1928, pertencendo à geração de Robert Rauschenberg e Jasper Johns, marcada pelo expressionismo abstracto. A sua pintura, inicialmente informal, caracteriza-se por uma despojada e elegante escrita de sinais alusivos, próxima dos «graffiti», em que comparecem gestos gráficos, letras e algarismos ou mais raras figuras, numa aproximação gestual a símbolos culturais e temas da mitologia helénica. Depois de ter viajado por África, Espanha e Itália, deixando-se marcar pelo fascínio da antiguidade clássica, instalou-se em Roma,em 1957, onde ainda reside. A sua obra, luminosa e discreta, influenciou os pintores alemães e italianos revelados nos anos 70.

Richard Serra, escultor, nasceu em São Francisco em 1939, sendo famoso pelas suas paredes ondulantes em aço industrial, com grandes dimensões, de herança minimalista, onde se manifestam questões de escala e equilíbrio. A sua colocação em espaços públicos foi várias vezes objecto de contestação.

A Bienal de Veneza decorre até 4 de Novembro, com a presença de João Penalva como representante oficial de Portugal, enquanto João Onofre, com um vídeo, e Julião Sarmento, com um filme em colaboração com Atom Egoyan, participam na exposição de Harald Szeemann.

sábado, 2 de junho de 2001

2001, Surrealismo em Badajoz e no Chiado (Antes e depois de 1947 )

Antes e depois de 1947 

 

Fases, rupturas, gerações e divergências na cronologia do surrealismo português 


  2/6/2001


O surrealismo português não se deixa converter facilmente em objecto de estudo «científico» e a exposição do Museu do Chiado é mais um testemunho das divergências e tensões que o movimento continua a suscitar. Apesar do recurso aos espólios pessoais dos intervenientes desavindos em 1948, que permite apresentar, pela primeira vez, um panorama «unitário» do período organizado do surrealismo (1947-50), permanece actuante a oposição entre as teses historiográficas sustentadas por José-Augusto França, grandemente centradas no seu activo papel de crítico, e, por outro lado, a recusa protagonizada por Mário Cesariny, também antólogo e historiador militante do movimento, de deixar interpretar como mais um estilo numa sucessão «progressiva» de estilos o que para alguns continuou a ser uma inspiração viva e libertadora. 


Basta observar a diversidade dos horizontes cronológicos seguidos nas duas vertentes da mostra, artes plásticas e literatura, para reconhecer que o título «Surrealismo em Portugal, 1934-1952» recobre abordagens que não se conciliaram no seu duplo comissariado. 1952 foi a data adoptada por França para encerrar a retrospectiva dos Anos 40, em 1982. A actual reincidência volta a ter em conta a exposição de Fernando Azevedo, Fernando Lemos e Vespeira na Casa Jalco, mas não corresponde, de facto, à data da dispersão dos colectivos, que ocorre em 49 quanto ao Grupo Surrealista de Lisboa (aquele em que, aliás, Azevedo e Vespeira intervieram) e durante 51, mas muito mais informalmente, quanto a Os Surrealistas.


Para além das individuais sucessivas de Cruzeiro Seixas e Cesariny, outras exposições de Eurico Gonçalves e Dante Júlio, em 54 (Galeria de Março), António Areal, Carlos Calvet e Jorge Vieira, em 56 (Gal. Pórtico), permitiriam não estabelecer qualquer fronteira naquele ano, e o mesmo acontece face às edições de poesia e de textos de intervenção que continuaram a ocorrer. Mais exactamente, a data de 52 é conveniente para os que entenderam abandonar ou superar o movimento (ou o estilo) surrealista, mas improcedente para os que permaneceram fiéis ao «propósito inicial» ou que por ele se interessaram ainda ao longo das décadas de 50 e 60 (até Mário Botas, possivelmente).


A propósito, até para observar como a história foi sendo reconstruída, é curioso recordar a crítica que França publicou em 52 na «Seara Nova» sobre a exposição da Casa Jalco, desviando-a de qualquer justificação surrealista para a apontar como abertura a novas orientações genericamente «não figurativas», que pouco depois terão sequência na sua defesa da abstracção geometrista, como um novo capítulo de informação parisiense. Falta às revisões produzidas por novos autores o contacto sistemático com as fontes do tempo, trocando-se a informação em primeira mão por sínteses que nunca foram sujeitas a qualquer reexame.


Não sendo esta a primeira retrospectiva que se quis distanciar das polémicas entre os anteriores protagonistas, é indispensável confrontá-la com os critérios seguidos pelos dois anteriores ensaios. Ambos divergem da actual mostra quanto aos prolegómenos do surrealismo nacional, antes da fase que vai de 1939 a 47, graças à inclusão de obras de Júlio (Reis Pereira), e também quanto à continuidade da inspiração surrealista. Em 83, Luís de Moura Sobral apresentou em Montréal «Le Surréalisme Portugais», propondo-se sumariar um período de 1934 a 1960, com a representação adicional de Eurico, António Quadros, Areal e Gonçalo Duarte. Em 99, «Desenhos dos Surrealistas em Portugal. 1940-1966», promovida pelo Instituto de Arte Contemporânea no Museu Soares dos Reis, com organização de Paulo Henriques, incluiu também Areal e Eurico, apesar da sua abordagem muito concisa.


Encontram-se nos textos introdutórios ao presente catálogo, e em especial no longo ensaio de María de Jesús Ávila, argumentos em defesa das opções agora praticadas, mas é improvável que estas façam escola. Ao tomar por limite a data de 52, a pretexto do desmembramento dos grupos assumidos como tais, usa-se uma lógica vanguardista sustentada por um sentido finalista da sucessão dos estilos artísticos que desentende o que pretendeu ser a ruptura surrealista.


Este critério restritivo tem, no entanto, a vantagem prática de permitir uma muito alargada exibição do período organizado do movimento, de 47 a 50 (levado até 52), pondo em relação, mais do que em confronto, os dois grupos referidos. Esse efeito atenuar-se-ia provavelmente com uma selecção mais alargada no tempo e nos critérios de admissão - onde também deveriam caber, para as mesmas datas, a produção surrealista ou surrealizante de Nadir Afonso e Jorge de Oliveira, mais o pouco que sobreviveu de Manuel d'Assumpção. Assim estruturada, a exposição documenta de forma consistente o que, para além de configurar um movimento surrealista mais ou menos incipiente (note-se a coincidência temporal com o movimento Cobra, de herança surrealista), foi parte de uma importante afirmação geracional, das mais fortes que o século XX conheceu em Portugal, contando com as orientações não surrealistas.


Por outro lado, reconhece-se que a actual mostra é muito marcada pela sequência (discutível mas coerente) da programação do Museu, que passou pelas iniciativas dedicadas a Jorge Vieira, A. Pedro, Vespeira e Lemos, sem esquecer a colecção do próprio J.-A. França, orientação essa que tem proporcionado o alargamento do acervo com aquisições e doações. É essa lógica que justificará, sem servir de legitimação, a inclusão de Jorge Vieira, que nunca se pretendeu surrealista, relacionando-se com o movimento num convívio pessoal e estético aberto a outras inspirações. Mesmo se é forte a articulação poética e plástica com outras obras expostas, a sua presença é problemática dadas as implicações doutrinárias do movimento e contradiz o perfil de independência que a sua retrospectiva de 1995 lhe reconheceu.


Entretanto, através da organização espacial da exposição fica bem patente que não há movimento surrealista em Portugal até 1947, embora houvesse pintores surrealistas ou praticantes de pintura surrealista, em conformidade com informações internacionalmente disponíveis desde os anos 30. O subtítulo do catálogo «Consolidação. 1940-47» é inadequado porque, mais do que de continuidade, importa falar em ruptura entre diferentes fases. Não é a pintura de Pedro e de Cândido (nem o fulgor breve de Dacosta entre 1939 e 42), que conduz à movimentação de 47, nascendo esta com uma nova geração que mais ou menos informalmente se buscava desde 42-43, se interessou pelo neo-realismo em 1945 (jornal «A Tarde») e em 47 foi colher inspiração directa a Paris no regresso de Breton.


A investigação sobre os antecedentes surrealizantes teria que alargar-se às poéticas do imaginário e às expressões do sonho e da loucura em Dominguez Alvarez (Figuras de um Sonho, os «homens tortos», etc.), Mário Eloy e Júlio, levando também em conta a afirmação de Cesariny de que Arpad Szenes e Vieira da Silva foram os «introdutores do surrealismo na pintura portuguesa da década de 30».


Quanto à primeira fase do surrealismo nacional, o carácter de ruptura atribuído à exposição de Pedro e Dacosta na Casa Repe (1940) tem de ser prudentemente compatibilizado com a aparição regular da sua pintura nos salões do SPN, desde 39, depois no SNI, em 45, e na SNBA em 46 e 47 (1ª e 2ª EGAP), associada entretanto à confusa produção de Cândido Costa Pinto. Por outro lado, é indispensável que ao vanguardismo de Pedro em 34 se associe a sua militância fascista (é então comissário da propaganda de Nacional Sindicalismo e a ida para Paris é um «semi-exílio» solidário com Rolão Preto, como França ensinou), tal como importa referenciar na extrema direita as figuras de Dutra Faria e Ramiro Valadão, co-autores dos primeiros «cadavre-exquis» ditos surrealistas.


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Surrealismo em Portugal

MEIAC, Badajoz   

17/3/2001


Uma primeira retrospectiva «unitária» do movimento foi organizada em 1984 [aliás 1983]  em Montreal, por Luís de Moura Sobral, mas em Portugal as muitas susceptibilidades dos participantes (ou proprietários?) foram impedindo uma séria abordagem histórica dos acontecimentos. J.-A.França fez na exposição sobre os anos 40 (Gulbenkian, 1982) uma reconstituição facciosa, e Mário Cesariny preferiu sempre à história académica a acção directa, ou poética. 

Por iniciativa espanhola, que evoluiu para uma co-produção com o Museu do Chiado (onde se apresentará a partir de 24 de Maio), chega-se agora a um balanço alargado com duplo comissariado de Perfecto Quadrado (literatura) e María Jesús Ávila (artes plásticas), o qual terá como limites cronológicos os anos de 1934 e 52 — em Montreal continuara-se até 1960, incluindo justamente novas aparições que do surrealismo se reclamaram, em especial os trânsitos pelo Café Gelo (Eurico, Calvet, Areal, etc., etc.). 

Quanto aos chamados primórdios, a antologia que se inaugurou ontem deverá confirmar alguns factos insólitos, que progressivas simplificações dos discursos históricos não têm sabido valorizar: 1) as primeiras obras apontadas como surrealistas são da autoria do então fascista António Pedro, militante (camisa azul) do movimento Nacional-Sindicalista de Rolão Preto, proibido por Salazar — por isso ele se exilou em 1934; 2) nos anos seguintes, o surrealismo manifestou-se regularmente nos salões do SNP/SNI (39, 42, 44, 45), no quadro das iniciativas modernizadoras patrocinadas por António Ferro, acrescentando-se então a Pedro as obras de António Dacosta (até 42; Prémio Souza-Cardoso desse ano) e Cândido Costa Pinto — a memória da exposição de 40 na Casa Repe não podia alterar o peso dessa marca de origem; 3) em 1947, Cândido começou a desenhar as capas surrealistas da colecção «Vampiro» e em 49 faz selos do Correio. Tornava-se necessária uma ruptura geracional, mas ela foi depressa prejudicada por diversas e duradoiras querelas. As questões relativas ao pioneirismo e à «introdução» do surrealismo devem ser reduzidas às justas proporções decorrentes de um grande atraso em relação ao início do movimento e de uma grande insuficiência/incoerência ideológica dos seus primeiros agentes (e de uma grande incipiência prática também, em vários casos). E importam sempre mais as obras do que as suas etiquetas. (Até 29 Abril)



Surrealismo

Museu do Chiado   

(Inaugura a 24 Maio)

19-05-2001

A única revisão histórica do surrealismo português realizara-se em 1983, em Montreal, por iniciativa de Luís Moura Sobral; em 1999, o IAC dedicou uma antologia ao desenho surrealista, organizada por Paulo Henriques e Fernando Cabral Martins (ficou esquecida na cronologia do presente catálogo). A dificuldade, até agora, foi obter luz verde dos dois representantes dos grupos desavindos no final dos anos 40 e fazer aceitar a Cesariny uma abordagem histórico-académica do que ele pretende que seja uma inspiração ainda viva (o outro é o historiador e académico J.-A. França). 

Em co-produção com o MEIAC de Badajoz, María Jesús Ávila e Perfecto E. Cuadrado dirigiram as vertentes de artes plásticas e literatura de uma retrospectiva de grande escala que reúne muitas obras esquecidas ou pouco vistas e que deu origem à publicação de um extenso volume. Ao reconhecimento dos méritos da iniciativa deverá associar-se a discussão sobre os critérios cronológicos seguidos (de António Pedro à Casa Jalco, 1934-52, embora a amostragem literária escape a tal espartilho), as exclusões de várias figuras singulares (Júlio, algum Arpad Szenes e o círculo de Vieira da Silva, Nadir Afonso e depois Eurico, entre outros), a ocultação de algumas originalidades ideológicas do surrealismo nacional (o compromisso fascista de António Pedro, em 34, e a oficialização do «estilo surrealista» nos salões do SNI ao longo da década de 40), a menorização da excepcional pintura dos primeiros anos de António Dacosta face às ambições escolares e inábeis do mesmo Pedro, etc., etc.


18/08/2001 

Depois de duas antologias de muito menor escala, em 1983, em Montreal, e em 99, no Porto, esta apenas dedicada ao desenho, o Museu do Chiado, em colaboração com o MEIAC de Badajoz, conseguiu finalmente propor uma retrospectiva histórica do surrealismo português com propósitos de levantamento exaustivo, para o que era preciso contar com o acesso aos espólios pessoais de protagonistas desavindos. 

María de Jesús Ávila encarregou-se da pesquisa das obras e da investigação na área das artes plásticas, enquanto Perfecto E. Quadrado assegurou a presença do domínio literário na exposição e no catálogo, sendo particularmente curioso que cada um dos comissários tenha adoptado diferentes programas cronológicos. Até à actualidade no segundo caso e delimitado pela data de 1952 no primeiro, adoptando-se, no entanto, essa data para o título genérico (1934-1952). 

A ocupação do espaço do museu é propícia a uma separação nítida entre os dois momentos do surrealismo em Portugal. O primeiro não tem marcas de movimento nem produz doutrina: associado ao diletantismo de António Pedro e à fulgurante pintura inicial de Dacosta, estabelece uma das datas míticas da historiografia nacional (1940, exp. da Casa Repe) e esgota-se no folclorismo academizante de Cândido Costa Pinto. Por inventariar ficam outras aproximações à informação surrealista internacional, trazidas por Arpad Szenes, ou expressas por derivas oníricas de Júlio, Alvarez e Eloy. 

O segundo momento tem um forte sentido de afirmação geracional e é para vários artistas um período de afirmação, com ou sem continuidade, embora o próprio limite temporal estabelecido privilegie aqueles que se desligam do movimento, na medida em que interrompe abruptamente a obra dos que, como Cesariny e Cruzeiro Seixas, a ele se mantiveram fiéis. Com as suas polémicas opções, fica de qualquer modo apresentado um panorama de referência sobre um dos momentos de vitalidade e renovação da arte portuguesa. (Até 23 Set.)