segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Fotografia e Neo-realismo (1945)



Entre as movimentações que marcam o início do movimento neo-realista nas artes plásticas portuguesas, logo em 1945, não parece haver lugar para a fotografia, pelo menos em condições de visibilidade que passem pela sua exibição ou publicação. O que não quer dizer que não tenha havido imediatos ecos de um novo contexto criativo, ou só reflexivo, também nessa área, como se comprova pela publicação de um curto texto de Aragon, "O Pintor e a Fotografia", na página semanal  "Arte" do diário A Tarde, Porto, nº 8, de 29 de Julho de 1945 - publicação onde o neo-realismo nas artes plásticas tem o seu baptismo e lançamento.
Tratava-se (como foi identificado por Emília Tavares **nº2) de um breve extracto da comunicação apresentada pelo poeta no primeiro dos debates parisienses conhecidos como “A Querela do Realismo”, em 1936, ao tempo da Frente Popular, e terá sido certamente Victor Palla - que desde muito  cedo se  interessava por fotografia - a comunicar esse texto, a que fez referência numa entrevista de 1992 (*** n. 3).

Pintor

"O novo realismo que virá, queiramo-lo ou não, verá na fotografia, não um inimigo, mas um auxiliar da pintura", diz Aragon, e é a esse texto que deverá ser associado o uso da fotografia pelos pintores neo-realistas: mesmo para os pintores que fotografaram, como Lima de Freitas (filho de um profissional com estúdio em Évora), como Cipriano Dourado e talvez Rogério Ribeiro, os documentos fotográficos são apenas auxiliares da pintura. 

O que digo é que a pintura de amanhã utilizará tanto o olho fotográfico como o olho humano. Anuncio um novo realismo na pintura, o que não tem nada a ver com o regresso a um realismo antigo” - Querelle du Réalisme, ed. Cercle d’Art, 1987, pp. 94-95 (trad. do original). Mas Louis Aragon não reduzia a fotografia à condição de documento para artistas. Defende o instantâneo, as novas possibilidades dos 35 mm e refere calorosamente o seu "amigo Cartier" (Bresson) e as fotografias que fez no México e em Espanha.

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Entretanto, um crítico identificado com o neo-realismo, António Ramos de Almeida, incluíra uma breve reflexão sobre a fotografia numa conferência proferida e publicada em 1941 que se reeditou em 1945. É um texto incipiente onde a fotografia é pensada sobre o modelo da pintura, e concretamente sobre o paradigma expressionista da verdade da deformação - contra a cópia da natureza pelo academismo tardo-naturalista, o realismo não pode ser fotográfico:

“É que a realidade da arte, embora objectiva, não pode ser fotográfica. A realidade em si mesma é amorfa. Até a fotografia para ser artística tem de focar de certa maneira artificial a realidade, isto é, o específico da arte reside num artifício e o artifício é uma maneira de deturpar a realidade com uma semelhança da realidade. E é assim porque a realidade é inapreensível na sua plena totalidade, impossível de cópia ou de pastiche. (…) O artista serve-se portanto de um artifício para representar e reproduzir a realidade (...) o pintor usa os artifícios pictóricos que, deformando a realidade, dão a visão pictórica da realidade. (...) No cinema, os artifícios são tantos e tais, que o artista consegue reproduzir a totalidade da realidade. Eis a razão do seu triunfo, da sua acessibilidade, da sua contagiante humanidade.” António Ramos de Almeida, A Arte e a Vida, "Cadernos Azuis - Literatura e Arte," ed. Livraria Latina, Porto, 1945, 2ª ed., pp 19-21.

Curiosamente, esta breve referência à fotografia (que começara, aliás, por se publicar em 1938, na revista Sol Nascente, num artigo de Ramos de Almeida sobre o romance brasileiro contemporâneo) viria a ser transcrita num destaque em caixa na página mensal “Fotografia” do Jornal do Barreiro já em 1955, a 5 de Maio, poucos dias antes da abertura da 9ª Exposição Geral de Artes Plásticas, onde houve nove expositores de fotografias. Tratar-se-ia então de contrariar o interesse pelo realismo documental que começava a acompanhar a aura da exposição “The Family of Man”, objecto de notícias e de grande expectativa desde 1954, também em Portugal. 

A transcrição devia interpretar-se na perspectiva do modernismo formalista e da fotografia "pura" - "Até a fotografia para ser artística tem de focar de certa maneira artificial a realidade, isto é, o específico da arte reside num artifício e o artifício é uma maneira de deturpar a realidade com uma semelhança da realidade". Publicava-se, por sinal, junto do quadro classificativo em que Eduardo Harrington Sena sumariava a actividade expositiva dos amadores portugueses durante o primeira ano daquela página, de que era o responsável. 
Dois textos de 1936 e 38 eram republicados em 1945 (e um deles de novo transcrito em 1955), o que ilustra quer a escassez de reflexões dedicadas à fotografia quer a quase suspensão do tempo que os anos da II Guerra constituem quanto à criação e à interpretação, mesmo se o país não a conheceu no seu território.

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