publicado em INDUSTRIALIZAÇÃO EM PORTUGAL NO SÉCULO XX. O CASO DO BARREIRO, Actas do Colóquio Internacional Centenário da CUF do Barreiro, 1908-2008, Universidade Autónoma de Lisboa, 2010. Pp. 423-442.
(colóquio que teve lugar no Auditório Municipal Augusto Cabrita,
Barreiro, 8-10 de Outubro de 2008. Painel 4 - Do Realismo ao
Neo-realismo: imagens do trabalho e do operário na arte portuguesa)
tb disponível em Scribd
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(...)
os resultados de alguma pesquisa tornaram possível abordar um período
pouco conhecido da fotografia portuguesa, por forma a isolar um conjunto
de imagens e de autores que podem justificar, como sucede em Espanha e
em Itália, o uso do termo neo-realismo. O texto é um momento de uma
investigação em curso, ainda necessariamente fragmentária.
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Apesar da natureza culturalmente retrógrada do regime de Salazar, ele acompanhou os outros países autoritários dos anos 30 numa relação moderna com a fotografia, usando-a com grande eficácia enquanto instrumento de representação e propaganda. Apropriou-se de linguagens vanguardistas em publicações de paginação arrojada (o álbum Portugal 1934, por exemplo - edição do Secretariado da Propaganda Nacional, SPN) e adoptou orientações de uma modernidade formal mais sóbria ou clássica por ocasião das comemorações de 1940. Atraiu para a sua órbita ou dependência os melhores profissionais, que não podiam encontrar um real mercado de trabalho fora dos círculos do poder ou da imprensa, e também os amadores de Arte Fotográfica, por muito tempo associados da antiga Sociedade de Propaganda de Portugal (1), onde as elites se encontravam sem atritos visíveis com a estratégia do SPN, antecessor do Secretariado Nacional de Informação, SNI.
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Apesar da natureza culturalmente retrógrada do regime de Salazar, ele acompanhou os outros países autoritários dos anos 30 numa relação moderna com a fotografia, usando-a com grande eficácia enquanto instrumento de representação e propaganda. Apropriou-se de linguagens vanguardistas em publicações de paginação arrojada (o álbum Portugal 1934, por exemplo - edição do Secretariado da Propaganda Nacional, SPN) e adoptou orientações de uma modernidade formal mais sóbria ou clássica por ocasião das comemorações de 1940. Atraiu para a sua órbita ou dependência os melhores profissionais, que não podiam encontrar um real mercado de trabalho fora dos círculos do poder ou da imprensa, e também os amadores de Arte Fotográfica, por muito tempo associados da antiga Sociedade de Propaganda de Portugal (1), onde as elites se encontravam sem atritos visíveis com a estratégia do SPN, antecessor do Secretariado Nacional de Informação, SNI.
Esse
casamento da fotografia com o regime, que nunca foi linear nem isento de
tensões internas entre inovação e conservadorismo, ficou depois
sobre-exposto, já no pós-guerra, com o protagonismo de um inspector da
PIDE e artista amador, Rosa Casaco. Foi o autor das imagens da
intimidade ambígua do ditador revelada em 1952 no livro Férias com Salazar
de Christine Garnier (Lisboa, Companhia Nacional Editora), e era por
meados da mesma década o fotógrafo com maior circulação nos salões.
Para além do ambiente de repressão política e de opressão censória que pesava sobre o país, a presença reconhecida de Rosa Casaco nas agremiações amadoras (pertencia ao Grémio Português de Fotografia e, desde 1950, ao Foto Clube 6 x 6, e era também sócio da Real Sociedade Fotografica de Madrid e da Photographic Society of America, entre outras associações), a sua participação nos júris dos concursos e, em geral, nos salões nacionais e internacionais da primeira metade dos anos 50 – período que constitui o período áureo do salonismo "moderno" por toda a parte, em Portugal e lá fora -, seria a possibilidade de um objectivo policiamento do meio fotográfico e terá sido um argumento certamente desmobilizador para outros interessados em fotografar. Agostinho Barbieri Cardoso, que veio a ser dirigente da Pide, era também fotógrafo amador.
Em Lisboa, quase todos mergulhavam juntos nas tinas dos mesmos dois laboratórios, o de António Paixão na Filmarte, à Rua de Santa Justa, e o de Mário de Oliveira Camilo nos Armazéns do Chiado - bons profissionais que eram também assíduos expositores "amadores". O arquitecto, designer e fotógrafo Sena da Silva referiu a incomodidade de se sentir "a tomar banho com todos aqueles personagens" num texto memorialista publicado em 1983 (ver Sena da Silva, Uma Retrospectiva, Porto, Fundação de Serralves, 1990).
Poderá falar-se efectivamente de uma absorção da fotografia pelo regime em todas as dimensões públicas da sua prática, e tal ocorreu, aliás, com qualidades estéticas que autorizaram António Sena – autor da até agora única história da fotografia portuguesa, História da Imagem Fotográfica em Portugal, 1939-1997, Porto, Porto Editora, 1998 - a falar de uma “fotogenia do Estado Novo” no título do VI capítulo, relativo ao período que vai de 1920 até 1945.
Aquela absorção verifica-se na imprensa tradicional, sujeita a uma rigorosa censura, nos magazines ilustrados que aparecem em 1928 (O Notícias Ilustrado, dirigido por Leitão de Barros), nas edições de propaganda (Portugal 1934 e Images Portugaises, também uma edição SPN, de 1937), nas exposições oficiais (as fotomontagem murais na Exposição de Paris de 1937, de Alvão e Mário Novais (2)). E verifica-se também, desde 1932, nos Salões de Arte Fotográfica do Grémio Português de Fotografia, secção da Sociedade Propaganda de Portugal, que tinham lugar na Sociedade Nacional de Belas Artes e no Clube Fenianos do Porto.
Essa situação de captura da fotografia pelo regime, que seria agravada depois pela carência de materiais fotográficos provocada pela 2ª Guerra, com efeitos até perto do final da década de 40, justificará, em grande medida, que nos meios intelectuais e artísticos se tenha mantido um longo silêncio sobre as práticas e as virtualidades da fotografia, enquanto as agremiações amadoras davam continuidade mais ou menos ensimesmada às tradições retóricas de uma arte elitista, inicialmente restrita a pequenos grupos de amadores e aos seus salões.
O que se pode chamar a “fotogenia do Estado Novo” não se desvanece em 1945 e tem prolongamentos diversos no período de crescimento do salonismo que é a primeira metade dos anos 50. Além do êxito pessoal de Rosa Casaco, associam-se a áreas culturais do regime o culto tardio do picturialismo e também a defesa modernista da “fotografia pura” feita precisamente a partir do Barreiro, no Salão do Clube Desportivo da CUF e numa página mensal do semanário local, o Jornal do Barreiro, sob a orientação dedicada de Eduardo Harrington Sena, que também foi director do boletim do Foto Clube 6 x 6, de 1956 a 59 (3).
Deverão ser observados em pormenor alguns debates que animaram os círculos dos amadores fotográficos e as suas revistas, em momentos anteriores e posteriores à 2ª Guerra, contrariando a ideia de uma uniformidade estética sem tensões, mas é também significativo que não tenham tido ecos para lá das suas fronteiras especializadas. São particularmente interessantes as questões estéticas que atravessam os primeiros anos da revista Objectiva, a principal publicação sobre fotografia que circula a partir de 1937 e até 1945, com interrupções e mudanças de orientação.
De facto, a vulgarização do novo formato de 35 mm, o crescimento do mercado fotográfico e a abertura ao exterior dos salões (o I Salão Internacional de Arte Fotográfica é de Dezembro de 1937) tiveram consequências imediatas no confronto entre os tradicionais cultores dos “processos artísticos” e do pitoresco pictórico e, por outro lado, as novas tendências da fotografia directa e do instantâneo. Álvaro Colaço (um dos fundadores de Grémio Português de Fotografia em 1931) e A. Lacerda Nobre defendem nos primeiros números da Objectiva uma arte “que regista em flagrante um instante da Vida, o tal e qual”, associando a “fotografia pura, simples e grande” à escolha de novos “assuntos”, com atenção ao quotidiano vulgar da vida e da natureza, o que se manifesta em imagens do povo e em especial do trabalho, de intenção realista (mas não neo-realista). É a defesa “da arte concreta, fiel à natureza, da arte do vivo e sobre o vivo, da arte por assim dizer objectiva”, escreve Álvaro Colaço no nº 8, de Janeiro de 1938. João Martins e Silva Nogueira condenam então esse interesse pelo “banal” e “a arte brutalmente objectiva” (S. Nogueira), mas é o Padre Moreira das Neves que marca o rumo da ideologia e da propaganda, alinhando, logo em Maio de 1938, a Arte Fotográfica com as celebrações do Duplo Centenário da Fundação e Restauração de Portugal.
Era muito diferente de que é hoje o espaço público da fotografia, e eram círculos praticamente estanques entre si aqueles em que ela se praticava: os retratistas e fotógrafos de estúdio e de encomenda (Domingos Alvão, San Payo e Silva Nogueira, Mário Novais) – profissionais que em certos casos integram os júris dos salões e aí expõem; os fotógrafos de imprensa (o fotojornalismo – que contara antes com a excepcional e reconhecida notoriedade de Benoliel); os tais amadores fotográficos, com as suas agremiações e os respectivos salões – que no início dos anos 50 se descentralizam e democratizam (4), mas sem que as novas associações que então se criam consigam dar outro dinamismo às suas actividades (ao contrário do cine-clubismo, que lhes é contemporâneo). E, por vezes, muito raras vezes, os casos marginais de artistas plásticos que fazem e expõem fotografia: Fernando Lemos em 1952, Victor Palla em 55 e em 1958/9, João Cutileiro em 1961.
A fotografia de ambição documental não tem à época (e não terá até muito mais tarde) a meta da exposição nem é pensada como objecto de colecção. Visa a ilustração, a publicação em revista ou em livro – o caso de Victor Palla e Costa Martins não é excepção porque as suas duas exposições em Lisboa e Porto fazem-se para publicitar o lançamento de uma edição em fascículos. “Para o fotógrafo moderno o produto final do seu esforço é a página impressa, não a prova fotográfica”, afirmam os dois autores numa nota final do seu livro citando Irving Penn.
Fora o caso de certos profissionais mais famosos que promovem algumas raras exposições individuais de consagração (por exemplo, San Payo em 1950, no SNI), a exibição pública de fotografias fazia-se no quadro colectivo do Salão de Arte Fotográfica. E nesse sentido, pelo menos, é inovador o facto de em (apenas) três das suas edições as Exposições Gerais de Artes Plásticas, que se realizam anualmente na Sociedade Nacional de Belas Artes (1946-1956), com conhecidos vínculos aos meios oposicionistas, terem contado com secções de fotografia ao lado da pintura, da arquitectura, das artes decorativas (cerâmica, vidros, projectos de decoração mural, etc) e também da publicidade.
É também significativo observar que a entrada Fotografia da Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, em fascículo que terá sido publicado por volta de 1954, a aborda, embora em perto de 20 páginas (contando todos os termos que se lhe associam), apenas de um ponto de vista técnico e quanto à história dos processos e das câmaras (incluindo a fotografia astronómica e a ultra-rápida...), sem fazer qualquer referência a estéticas fotográficas ou a artistas com notoriedade no presente ou de importância histórica. O mesmo não se passa em entradas sobre o Cartaz, onde já se faz referência à "arte do Cartaz", também em Portugal, ou Gravura, por exemplo. Entretanto, os suplementos culturais de O Comércio do Porto (antologiados no volume 2 de Estrada Larga, Porto Editora, s.d.) podiam fazer amplos inquéritos sobre a cerâmica e o azulejo, a tapeçaria, o vidro e o livro, para construir um panorama sobre "A Arte Moderna em Portugal”, em 1953-54, sem levarem em consideração a fotografia.
Esse prolongado (quase) silêncio sobre a fotografia enquanto “medium” funcional, documental e também potencialmente artístico resulta, no entanto, mais de uma incapacidade de a identificar como objecto de uma reflexão específica do que de uma situação de inexistência de práticas fotográficas exploratórias ou já conscientes das suas virtualidades. Parece ser a propósito da exposição de Fernando Lemos na Galeria de Março, em Dezembro de 1952, que surgem as primeiras reflexões informadas sobre tendências recentes da criação fotográfica: José-Augusto França associa a Fotografia Subjectiva de Otto Steinert ao experimentalismo de Lemos, e Victor Palla, que então lhe seguia os passos como fotógrafo, aponta-lhe a possibilidade de um destino arquitectónico (5).
Mas, tal como em Itália e em Espanha, onde se começou recentemente a falar com insistência de uma fotografia neo-realista, explorando-a em grandes exposições a ela dedicadas, existiu também no Portugal do pós-guerra, desde 1945, de modo mais ou menos discreto ou oculto, uma fotografia atenta às condições de vida e de trabalho do povo, com sentido testemunhal e crítico, interessada em documentar e alterar a sociedade. Será, no entanto, só por volta de 1954-55, já no novo contexto internacional que tem por paradigma a mega-exposição “The Family of Man” (MoMA, Nova Iorque, 1955 e itinerante), que surgem condições favoráveis de recepção e de legitimação conceptual de uma fotografia de ambição documental e poética, próxima do cinema italiano e também da fotografia humanista francesa e da tradição social americana.
No espaço esteticamente pluralista e também multidisciplinar das Exposições Geral de Artes Plásticas da SNBA, onde se abriram secções fotográficas nas edições de 1946, 1950 e 1955, uma tal fotografia caracterizável - em termos mais ou menos imprecisos - como neo-realista (pelo menos, Adelino Lyon de Castro e Keil do Amaral, em 1950; Keil e Victor Palla em 1955) coexistiu com outras orientações formalistas, mas é muito significativo que não pareça ter despertado qualquer atenção crítica (6). Na 1ª Exposição Geral, em 1946, a presença de Mário Novais (fotógrafo principal da Exposição do Mundo Português) seguia, como outros casos, a memória da Exposição Independente de 1930: tratava-se de afirmar uma vasta unidade ou abertura política, com a participação de figuras muito presentes em iniciativas do regime, como Carlos Botelho e Bernardo Marques.
São decisivas para situar o contexto português algumas exposições organizadas em anos muito recentes, 2006-07 (7), dedicadas à fotografia do pós-guerra em dois países próximos, a Espanha e a Itália. A Espanha tinha uma idêntica distância face ao mundo das democracias vencedoras em 1945, e um regime repressivo que foi inicialmente mais feroz, mas que registou, a partir de meados dos anos 50, uma maior abertura política. Aí, a renovação modernizadora da fotografia, e o realismo ou neo-realismo fotográfico, explodem por volta de 1955-56 no interior das agremiações amadoras (explorando a sua relativa operacionalidade legal), numa relação de crescente crítica ao salonismo, mas beneficiando das suas estruturas e prémios. Importantes pólos renovadores implantam-se em Barcelona, Madrid e na distante Almería, onde se publica a revista Afal, 1956-63. Na Itália o contexto é muito diverso, marcado pela derrota do fascismo, mas também aí existe um extenso país rural e um profundo atraso económico-social. Tal como sucede em França, profissionais da informação e tendências fotográficas organizadas em grupos ou clubes participam numa movimentação que é em grande parte identificável como neo-realista, na esteira do cinema e da literatura.
De facto, ninguém, à época, se reclamou neo-realista em fotografia ou como tal terá sido explicitamente classificado (e possivelmente só o foi em sentido pejorativo), mas o argumento é irrelevante - quase todas as designações que se impuseram para nomear um período ou um estilo mais ou menos preciso foram adoptadas a posteriori ou recusadas por aqueles a quem o rótulo foi atribuído: maneirismo, barroco, impressionismo, cubismo, minimalismo são exemplos bastantes. No campo da história da fotografia também ninguém (pelo menos à época e ao nível das primeiras figuras) se pretendeu "fotógrafo humanista" e nunca essa fotografia humanista francesa foi uma escola ou movimento organizado nem teve manifesto. Isso mesmo foi reconhecido por ocasião da importante exposição (e edição) que em 1993 lhe foi precisamente dedicada, fixando um horizonte temporal alargado de 1930 a 1960 (Marie de Thézy, La Photographie Humaniste. 1930-1960. Histoire d’un Mouvement en France, ed. Contrejour).
Mais tarde, numa grande exposição internacional, Europa de Postguerra 1945-1965. Arte Despues del Diluvio, que teve lugar em 1995, em Barcelona e Viena, Marta Gili, ao apresentar o capítulo sobre fotografia, divide o panorama da época em três secções: uma “corrente humanista”, que procura as imagens do quotidiano para reafirmar “a esperança no futuro do ser humano”; um fotojornalismo que revoluciona a tradição documental assumindo os princípios da “concerned photography” e controlando a difusão das suas obras; e a retoma de propósitos de pura experimentação, em especial com Otto Steinert, o grupo Fotoform em 1949 e a Subjektive Fotografie a dinamizarem as afirmações da artisticidade do medium. Na primeira secção, onde Gérard Castello Lopes é o único português representado (com duas fotografias de 1957 e 1960 – e parece ser uma estreia nacional em grandes revisões históricas), Marta Gili não avança para uma distinção mais fina de modelos e refere sinteticamente que “a fotografia humanista, o realismo poético e a fotografia neo-realista reencontraram entre as ruinas do mundo a fé na infinita capacidade do ser humano para superar-se a si mesmo”. Há certamente distinções a fazer, quanto aos três países do Sul.
O tema (ou a hipótese) da fotografia neo-realista em Portugal nunca foi até agora abordado por qualquer exposição ou ensaio de conjunto. Importa assim abrir uma pista de investigação que suspenda as anteriores sínteses históricas que preguiçosamente se têm repetido, para procurar ainda imagens sobreviventes em diversos tipos de suportes (tanto originais como reproduzidas) e revisitar publicações da época.
O apoio das abordagens italianas e espanholas é essencial para ver o mesmo tempo do pós-guerra sob novas perspectivas, pondo em causa o "retrato" fixado na referida história de António Sena. Depois da “fotogenia do Estado Novo”, o capítulo seguinte chama-se “1946-1959 – A revolta silenciosa da intimidade”. Ao longo desse período o autor valoriza em especial (para além das obras de Fernando Lemos e Victor Palla/Costa Martins, que tiveram à época visibilidade e repercussão pública) a fotografia que não foi exposta nem publicada no seu tempo - e que ele próprio irá descobrir e expor pela primeira vez ao longo dos anos 80 e 90 na galeria-associação Ether. Deixando por identificar segmentos significativos da produção nacional deste período (Sena ignora Adelino Lyon de Castro e Maria Lamas, por exemplo, além de não valorizar como convém o efeito de “The Family of Man”), foi possível dar todo o destaque a algumas fugazes e confidenciais tentativas de modernização que não tiveram expressão pública nem consequências no seu tempo, e que foram depois vistos já em associação a direcções posteriores da fotografia.
Procura-se então reconsiderar aqui uma parte da fotografia portuguesa dos anos que se seguiram à II Guerra Mundial à luz de uma classificação que até agora, ao que julgo, não foi usada neste domínio: neo-realismo. Não se trata, porém, de uma simples extensão à fotografia do movimento que a partir de 1945 (e só talvez até 56) se afirmou na área das artes plásticas, tal como este não é coincidente com o movimento literário que se iniciou por volta de 1937. Significativamente, as barreiras ou incompreensões que existiram entre as artes plásticas e a fotografia, no campo realista, serão até mais poderosas do que entre qualquer delas e a literatura. Para o que poderão ter contribuido o facto de a cultura fotográfica se ter encerrado quase totalmente no academismo cultivado pelas agremiações de amadores, o maior risco político do testemunho fotográfico, e até alguns circunstancialismos partidários dos meios da oposição ao regime. E, por outro lado, a recusa dos realismos convencionais e “fotográficos”.
No caso das artes plásticas, é possível situar o neo-realismo, a sua dinâmica colectiva e pública, entre a página semanal “Arte” do jornal A Tarde, do Porto, em 1945, e a X Exposição Geral de Artes Plásticas, em 1956, com algumas continuidades individuais posteriores. Ainda que ao longo daqueles anos tivesse havido reorientações críticas e alterações de estratégias criativas, é possível considerar o movimento a partir de alguns manifestos e textos programáticos, de uma reflexão crítica sistemática e de uma certa coerência ou mesmo disciplina interna.
Quanto à fotografia neo-realista, onde não há lugar para falar em movimento nesse sentideo estrito, importa procurar acontecimentos com visibidade pública que estabeleçam as suas balizas principais (e julgo que só obras publicamente mostradas ou editadas interessam para estabelecer balizas efectivas): a participação de Adelino Lyon de Castro (em seu nome e com mais dois nomes de empréstimo) nos Salões de Arte Fotográfica do Grémio Português de Fotografia, a partir de 1946 (com a exibição da fotografia intitulada “Ex-homens”, logo nesse ano), e também a publicação em fascículos de As Mulheres do Meu País, de Maria Lamas, em 1948-50, cuja impressão tipográfica não pode ser considerada excelente (o que viria a afectar a sua memória, pelo menos até à cuidada reedição em fac-simile de 2002, pela Editorial Caminho), e cuja existência foi sempre mais valorizada em termos político-ideológicos do que fotográficos.
O limite cronológico terminal é marcado pelas exposições e edição de Lisboa Cidade Triste e Alegre, de Costa Martins e Victor Palla, em 1958-59, redescobertos no início dos anos 80, na Ether, sob condições de recepção muito diferentes. Poderá também falar-se de uma intenção neo-realista, talvez já academizada, em fotografias de Eduardo Gageiro expostas em salões e publicadas na Imprensa. Em 1963, João Cutileiro e Gérard Castello-Lopes fazem em Monsaraz um “levantamento” fotográfico destinado a acompanhar a tese de José Cutileiro A Portuguese Rural Society, só publicada em 1971, em Oxford. Gérard apenas publicara uma foto em 1961 no Photography Yearbook, ed. Condé Nast, Londres; João Cutileiro tinha mostrado retratos fotográficos, já como diferentes propósitos, numa exposição individual também de esculturas e desenhos, igualmente em 1961.
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Para além do ambiente de repressão política e de opressão censória que pesava sobre o país, a presença reconhecida de Rosa Casaco nas agremiações amadoras (pertencia ao Grémio Português de Fotografia e, desde 1950, ao Foto Clube 6 x 6, e era também sócio da Real Sociedade Fotografica de Madrid e da Photographic Society of America, entre outras associações), a sua participação nos júris dos concursos e, em geral, nos salões nacionais e internacionais da primeira metade dos anos 50 – período que constitui o período áureo do salonismo "moderno" por toda a parte, em Portugal e lá fora -, seria a possibilidade de um objectivo policiamento do meio fotográfico e terá sido um argumento certamente desmobilizador para outros interessados em fotografar. Agostinho Barbieri Cardoso, que veio a ser dirigente da Pide, era também fotógrafo amador.
Em Lisboa, quase todos mergulhavam juntos nas tinas dos mesmos dois laboratórios, o de António Paixão na Filmarte, à Rua de Santa Justa, e o de Mário de Oliveira Camilo nos Armazéns do Chiado - bons profissionais que eram também assíduos expositores "amadores". O arquitecto, designer e fotógrafo Sena da Silva referiu a incomodidade de se sentir "a tomar banho com todos aqueles personagens" num texto memorialista publicado em 1983 (ver Sena da Silva, Uma Retrospectiva, Porto, Fundação de Serralves, 1990).
Poderá falar-se efectivamente de uma absorção da fotografia pelo regime em todas as dimensões públicas da sua prática, e tal ocorreu, aliás, com qualidades estéticas que autorizaram António Sena – autor da até agora única história da fotografia portuguesa, História da Imagem Fotográfica em Portugal, 1939-1997, Porto, Porto Editora, 1998 - a falar de uma “fotogenia do Estado Novo” no título do VI capítulo, relativo ao período que vai de 1920 até 1945.
Aquela absorção verifica-se na imprensa tradicional, sujeita a uma rigorosa censura, nos magazines ilustrados que aparecem em 1928 (O Notícias Ilustrado, dirigido por Leitão de Barros), nas edições de propaganda (Portugal 1934 e Images Portugaises, também uma edição SPN, de 1937), nas exposições oficiais (as fotomontagem murais na Exposição de Paris de 1937, de Alvão e Mário Novais (2)). E verifica-se também, desde 1932, nos Salões de Arte Fotográfica do Grémio Português de Fotografia, secção da Sociedade Propaganda de Portugal, que tinham lugar na Sociedade Nacional de Belas Artes e no Clube Fenianos do Porto.
Essa situação de captura da fotografia pelo regime, que seria agravada depois pela carência de materiais fotográficos provocada pela 2ª Guerra, com efeitos até perto do final da década de 40, justificará, em grande medida, que nos meios intelectuais e artísticos se tenha mantido um longo silêncio sobre as práticas e as virtualidades da fotografia, enquanto as agremiações amadoras davam continuidade mais ou menos ensimesmada às tradições retóricas de uma arte elitista, inicialmente restrita a pequenos grupos de amadores e aos seus salões.
O que se pode chamar a “fotogenia do Estado Novo” não se desvanece em 1945 e tem prolongamentos diversos no período de crescimento do salonismo que é a primeira metade dos anos 50. Além do êxito pessoal de Rosa Casaco, associam-se a áreas culturais do regime o culto tardio do picturialismo e também a defesa modernista da “fotografia pura” feita precisamente a partir do Barreiro, no Salão do Clube Desportivo da CUF e numa página mensal do semanário local, o Jornal do Barreiro, sob a orientação dedicada de Eduardo Harrington Sena, que também foi director do boletim do Foto Clube 6 x 6, de 1956 a 59 (3).
Deverão ser observados em pormenor alguns debates que animaram os círculos dos amadores fotográficos e as suas revistas, em momentos anteriores e posteriores à 2ª Guerra, contrariando a ideia de uma uniformidade estética sem tensões, mas é também significativo que não tenham tido ecos para lá das suas fronteiras especializadas. São particularmente interessantes as questões estéticas que atravessam os primeiros anos da revista Objectiva, a principal publicação sobre fotografia que circula a partir de 1937 e até 1945, com interrupções e mudanças de orientação.
De facto, a vulgarização do novo formato de 35 mm, o crescimento do mercado fotográfico e a abertura ao exterior dos salões (o I Salão Internacional de Arte Fotográfica é de Dezembro de 1937) tiveram consequências imediatas no confronto entre os tradicionais cultores dos “processos artísticos” e do pitoresco pictórico e, por outro lado, as novas tendências da fotografia directa e do instantâneo. Álvaro Colaço (um dos fundadores de Grémio Português de Fotografia em 1931) e A. Lacerda Nobre defendem nos primeiros números da Objectiva uma arte “que regista em flagrante um instante da Vida, o tal e qual”, associando a “fotografia pura, simples e grande” à escolha de novos “assuntos”, com atenção ao quotidiano vulgar da vida e da natureza, o que se manifesta em imagens do povo e em especial do trabalho, de intenção realista (mas não neo-realista). É a defesa “da arte concreta, fiel à natureza, da arte do vivo e sobre o vivo, da arte por assim dizer objectiva”, escreve Álvaro Colaço no nº 8, de Janeiro de 1938. João Martins e Silva Nogueira condenam então esse interesse pelo “banal” e “a arte brutalmente objectiva” (S. Nogueira), mas é o Padre Moreira das Neves que marca o rumo da ideologia e da propaganda, alinhando, logo em Maio de 1938, a Arte Fotográfica com as celebrações do Duplo Centenário da Fundação e Restauração de Portugal.
Era muito diferente de que é hoje o espaço público da fotografia, e eram círculos praticamente estanques entre si aqueles em que ela se praticava: os retratistas e fotógrafos de estúdio e de encomenda (Domingos Alvão, San Payo e Silva Nogueira, Mário Novais) – profissionais que em certos casos integram os júris dos salões e aí expõem; os fotógrafos de imprensa (o fotojornalismo – que contara antes com a excepcional e reconhecida notoriedade de Benoliel); os tais amadores fotográficos, com as suas agremiações e os respectivos salões – que no início dos anos 50 se descentralizam e democratizam (4), mas sem que as novas associações que então se criam consigam dar outro dinamismo às suas actividades (ao contrário do cine-clubismo, que lhes é contemporâneo). E, por vezes, muito raras vezes, os casos marginais de artistas plásticos que fazem e expõem fotografia: Fernando Lemos em 1952, Victor Palla em 55 e em 1958/9, João Cutileiro em 1961.
A fotografia de ambição documental não tem à época (e não terá até muito mais tarde) a meta da exposição nem é pensada como objecto de colecção. Visa a ilustração, a publicação em revista ou em livro – o caso de Victor Palla e Costa Martins não é excepção porque as suas duas exposições em Lisboa e Porto fazem-se para publicitar o lançamento de uma edição em fascículos. “Para o fotógrafo moderno o produto final do seu esforço é a página impressa, não a prova fotográfica”, afirmam os dois autores numa nota final do seu livro citando Irving Penn.
Fora o caso de certos profissionais mais famosos que promovem algumas raras exposições individuais de consagração (por exemplo, San Payo em 1950, no SNI), a exibição pública de fotografias fazia-se no quadro colectivo do Salão de Arte Fotográfica. E nesse sentido, pelo menos, é inovador o facto de em (apenas) três das suas edições as Exposições Gerais de Artes Plásticas, que se realizam anualmente na Sociedade Nacional de Belas Artes (1946-1956), com conhecidos vínculos aos meios oposicionistas, terem contado com secções de fotografia ao lado da pintura, da arquitectura, das artes decorativas (cerâmica, vidros, projectos de decoração mural, etc) e também da publicidade.
É também significativo observar que a entrada Fotografia da Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, em fascículo que terá sido publicado por volta de 1954, a aborda, embora em perto de 20 páginas (contando todos os termos que se lhe associam), apenas de um ponto de vista técnico e quanto à história dos processos e das câmaras (incluindo a fotografia astronómica e a ultra-rápida...), sem fazer qualquer referência a estéticas fotográficas ou a artistas com notoriedade no presente ou de importância histórica. O mesmo não se passa em entradas sobre o Cartaz, onde já se faz referência à "arte do Cartaz", também em Portugal, ou Gravura, por exemplo. Entretanto, os suplementos culturais de O Comércio do Porto (antologiados no volume 2 de Estrada Larga, Porto Editora, s.d.) podiam fazer amplos inquéritos sobre a cerâmica e o azulejo, a tapeçaria, o vidro e o livro, para construir um panorama sobre "A Arte Moderna em Portugal”, em 1953-54, sem levarem em consideração a fotografia.
Esse prolongado (quase) silêncio sobre a fotografia enquanto “medium” funcional, documental e também potencialmente artístico resulta, no entanto, mais de uma incapacidade de a identificar como objecto de uma reflexão específica do que de uma situação de inexistência de práticas fotográficas exploratórias ou já conscientes das suas virtualidades. Parece ser a propósito da exposição de Fernando Lemos na Galeria de Março, em Dezembro de 1952, que surgem as primeiras reflexões informadas sobre tendências recentes da criação fotográfica: José-Augusto França associa a Fotografia Subjectiva de Otto Steinert ao experimentalismo de Lemos, e Victor Palla, que então lhe seguia os passos como fotógrafo, aponta-lhe a possibilidade de um destino arquitectónico (5).
Mas, tal como em Itália e em Espanha, onde se começou recentemente a falar com insistência de uma fotografia neo-realista, explorando-a em grandes exposições a ela dedicadas, existiu também no Portugal do pós-guerra, desde 1945, de modo mais ou menos discreto ou oculto, uma fotografia atenta às condições de vida e de trabalho do povo, com sentido testemunhal e crítico, interessada em documentar e alterar a sociedade. Será, no entanto, só por volta de 1954-55, já no novo contexto internacional que tem por paradigma a mega-exposição “The Family of Man” (MoMA, Nova Iorque, 1955 e itinerante), que surgem condições favoráveis de recepção e de legitimação conceptual de uma fotografia de ambição documental e poética, próxima do cinema italiano e também da fotografia humanista francesa e da tradição social americana.
No espaço esteticamente pluralista e também multidisciplinar das Exposições Geral de Artes Plásticas da SNBA, onde se abriram secções fotográficas nas edições de 1946, 1950 e 1955, uma tal fotografia caracterizável - em termos mais ou menos imprecisos - como neo-realista (pelo menos, Adelino Lyon de Castro e Keil do Amaral, em 1950; Keil e Victor Palla em 1955) coexistiu com outras orientações formalistas, mas é muito significativo que não pareça ter despertado qualquer atenção crítica (6). Na 1ª Exposição Geral, em 1946, a presença de Mário Novais (fotógrafo principal da Exposição do Mundo Português) seguia, como outros casos, a memória da Exposição Independente de 1930: tratava-se de afirmar uma vasta unidade ou abertura política, com a participação de figuras muito presentes em iniciativas do regime, como Carlos Botelho e Bernardo Marques.
São decisivas para situar o contexto português algumas exposições organizadas em anos muito recentes, 2006-07 (7), dedicadas à fotografia do pós-guerra em dois países próximos, a Espanha e a Itália. A Espanha tinha uma idêntica distância face ao mundo das democracias vencedoras em 1945, e um regime repressivo que foi inicialmente mais feroz, mas que registou, a partir de meados dos anos 50, uma maior abertura política. Aí, a renovação modernizadora da fotografia, e o realismo ou neo-realismo fotográfico, explodem por volta de 1955-56 no interior das agremiações amadoras (explorando a sua relativa operacionalidade legal), numa relação de crescente crítica ao salonismo, mas beneficiando das suas estruturas e prémios. Importantes pólos renovadores implantam-se em Barcelona, Madrid e na distante Almería, onde se publica a revista Afal, 1956-63. Na Itália o contexto é muito diverso, marcado pela derrota do fascismo, mas também aí existe um extenso país rural e um profundo atraso económico-social. Tal como sucede em França, profissionais da informação e tendências fotográficas organizadas em grupos ou clubes participam numa movimentação que é em grande parte identificável como neo-realista, na esteira do cinema e da literatura.
De facto, ninguém, à época, se reclamou neo-realista em fotografia ou como tal terá sido explicitamente classificado (e possivelmente só o foi em sentido pejorativo), mas o argumento é irrelevante - quase todas as designações que se impuseram para nomear um período ou um estilo mais ou menos preciso foram adoptadas a posteriori ou recusadas por aqueles a quem o rótulo foi atribuído: maneirismo, barroco, impressionismo, cubismo, minimalismo são exemplos bastantes. No campo da história da fotografia também ninguém (pelo menos à época e ao nível das primeiras figuras) se pretendeu "fotógrafo humanista" e nunca essa fotografia humanista francesa foi uma escola ou movimento organizado nem teve manifesto. Isso mesmo foi reconhecido por ocasião da importante exposição (e edição) que em 1993 lhe foi precisamente dedicada, fixando um horizonte temporal alargado de 1930 a 1960 (Marie de Thézy, La Photographie Humaniste. 1930-1960. Histoire d’un Mouvement en France, ed. Contrejour).
Mais tarde, numa grande exposição internacional, Europa de Postguerra 1945-1965. Arte Despues del Diluvio, que teve lugar em 1995, em Barcelona e Viena, Marta Gili, ao apresentar o capítulo sobre fotografia, divide o panorama da época em três secções: uma “corrente humanista”, que procura as imagens do quotidiano para reafirmar “a esperança no futuro do ser humano”; um fotojornalismo que revoluciona a tradição documental assumindo os princípios da “concerned photography” e controlando a difusão das suas obras; e a retoma de propósitos de pura experimentação, em especial com Otto Steinert, o grupo Fotoform em 1949 e a Subjektive Fotografie a dinamizarem as afirmações da artisticidade do medium. Na primeira secção, onde Gérard Castello Lopes é o único português representado (com duas fotografias de 1957 e 1960 – e parece ser uma estreia nacional em grandes revisões históricas), Marta Gili não avança para uma distinção mais fina de modelos e refere sinteticamente que “a fotografia humanista, o realismo poético e a fotografia neo-realista reencontraram entre as ruinas do mundo a fé na infinita capacidade do ser humano para superar-se a si mesmo”. Há certamente distinções a fazer, quanto aos três países do Sul.
O tema (ou a hipótese) da fotografia neo-realista em Portugal nunca foi até agora abordado por qualquer exposição ou ensaio de conjunto. Importa assim abrir uma pista de investigação que suspenda as anteriores sínteses históricas que preguiçosamente se têm repetido, para procurar ainda imagens sobreviventes em diversos tipos de suportes (tanto originais como reproduzidas) e revisitar publicações da época.
O apoio das abordagens italianas e espanholas é essencial para ver o mesmo tempo do pós-guerra sob novas perspectivas, pondo em causa o "retrato" fixado na referida história de António Sena. Depois da “fotogenia do Estado Novo”, o capítulo seguinte chama-se “1946-1959 – A revolta silenciosa da intimidade”. Ao longo desse período o autor valoriza em especial (para além das obras de Fernando Lemos e Victor Palla/Costa Martins, que tiveram à época visibilidade e repercussão pública) a fotografia que não foi exposta nem publicada no seu tempo - e que ele próprio irá descobrir e expor pela primeira vez ao longo dos anos 80 e 90 na galeria-associação Ether. Deixando por identificar segmentos significativos da produção nacional deste período (Sena ignora Adelino Lyon de Castro e Maria Lamas, por exemplo, além de não valorizar como convém o efeito de “The Family of Man”), foi possível dar todo o destaque a algumas fugazes e confidenciais tentativas de modernização que não tiveram expressão pública nem consequências no seu tempo, e que foram depois vistos já em associação a direcções posteriores da fotografia.
Procura-se então reconsiderar aqui uma parte da fotografia portuguesa dos anos que se seguiram à II Guerra Mundial à luz de uma classificação que até agora, ao que julgo, não foi usada neste domínio: neo-realismo. Não se trata, porém, de uma simples extensão à fotografia do movimento que a partir de 1945 (e só talvez até 56) se afirmou na área das artes plásticas, tal como este não é coincidente com o movimento literário que se iniciou por volta de 1937. Significativamente, as barreiras ou incompreensões que existiram entre as artes plásticas e a fotografia, no campo realista, serão até mais poderosas do que entre qualquer delas e a literatura. Para o que poderão ter contribuido o facto de a cultura fotográfica se ter encerrado quase totalmente no academismo cultivado pelas agremiações de amadores, o maior risco político do testemunho fotográfico, e até alguns circunstancialismos partidários dos meios da oposição ao regime. E, por outro lado, a recusa dos realismos convencionais e “fotográficos”.
No caso das artes plásticas, é possível situar o neo-realismo, a sua dinâmica colectiva e pública, entre a página semanal “Arte” do jornal A Tarde, do Porto, em 1945, e a X Exposição Geral de Artes Plásticas, em 1956, com algumas continuidades individuais posteriores. Ainda que ao longo daqueles anos tivesse havido reorientações críticas e alterações de estratégias criativas, é possível considerar o movimento a partir de alguns manifestos e textos programáticos, de uma reflexão crítica sistemática e de uma certa coerência ou mesmo disciplina interna.
Quanto à fotografia neo-realista, onde não há lugar para falar em movimento nesse sentideo estrito, importa procurar acontecimentos com visibidade pública que estabeleçam as suas balizas principais (e julgo que só obras publicamente mostradas ou editadas interessam para estabelecer balizas efectivas): a participação de Adelino Lyon de Castro (em seu nome e com mais dois nomes de empréstimo) nos Salões de Arte Fotográfica do Grémio Português de Fotografia, a partir de 1946 (com a exibição da fotografia intitulada “Ex-homens”, logo nesse ano), e também a publicação em fascículos de As Mulheres do Meu País, de Maria Lamas, em 1948-50, cuja impressão tipográfica não pode ser considerada excelente (o que viria a afectar a sua memória, pelo menos até à cuidada reedição em fac-simile de 2002, pela Editorial Caminho), e cuja existência foi sempre mais valorizada em termos político-ideológicos do que fotográficos.
O limite cronológico terminal é marcado pelas exposições e edição de Lisboa Cidade Triste e Alegre, de Costa Martins e Victor Palla, em 1958-59, redescobertos no início dos anos 80, na Ether, sob condições de recepção muito diferentes. Poderá também falar-se de uma intenção neo-realista, talvez já academizada, em fotografias de Eduardo Gageiro expostas em salões e publicadas na Imprensa. Em 1963, João Cutileiro e Gérard Castello-Lopes fazem em Monsaraz um “levantamento” fotográfico destinado a acompanhar a tese de José Cutileiro A Portuguese Rural Society, só publicada em 1971, em Oxford. Gérard apenas publicara uma foto em 1961 no Photography Yearbook, ed. Condé Nast, Londres; João Cutileiro tinha mostrado retratos fotográficos, já como diferentes propósitos, numa exposição individual também de esculturas e desenhos, igualmente em 1961.
Três momentos: 1 - Documentos
Arq. Francisco Castro Rodrigues, Évora, 1945, página de um dossier relativa à IX Missão Estética de Férias da Academia Nacional de Belas Artes.
6 provas fotográficas de 6,6 x 5 cm coladas sobre papel. Doação do autor ao Museu do Neo-Realismo, Vila Franca de Xira. (Estas ou outras provas iguais serviram de documentação para O Gadanheiro (Gadanha), de 1945, e Camponês com Gadanha, de 1951, de Júlio Pomar.)
Será
interessante observar algumas fotografias que serviram de documentos
para artistas – e concretamente para artistas neo-realistas, entre 1945 e
1952 – como provas factuais do que se poderia considerar uma primeira
oportunidade perdida. É o caso de algumas fotografias de trabalho
coladas na folha de um dossier do arq. Francisco Castro Rodrigues, que
integrou a IX Missão Estética de Férias em Évora, em 1945, e que hoje
fazem parte da colecção do Museu do Neo-Realismo, de Vila Franca de
Xira. Outras fotografias conhecidas em provas de muito pequeno formato
também nunca terão sido expostas ou publicadas à época e conservaram-se
no acervo documental de Júlio Pomar. Uma série inclui imagens da Nazaré,
de autor desconhecido, e outras duas séries são testemunhos sobre o
trabalho do arroz nas lezírias do Tejo. As segundas são certamente obra
de pintores que fotografaram: Lima de Freitas (o pai, David Freitas,
teve um estúdio de fotografia em Évora), Cipriano Dourado ou Rogério
Ribeiro.
É uma produção que não se terá entendido como autónoma (a que não se reconheceu uma identidade própria) e que não aspirava ao reconhecimento como arte fotográfica, nem os seus autores (quando não anónimos) se consideraram fotógrafos. Pode ser útil pensar por que razão essas ou outras fotografias como elas não chegaram às Exposições Gerais de Artes Plásticas (1946-56), onde estes autores expuseram com assiduidade. Algumas breves referências à fotografia publicadas por esses anos dão achegas para a resposta.
Um crítico identificado com o neo-realismo, António Ramos de Almeida, incluíra uma breve reflexão sobre a fotografia numa conferência publicada em 1941 e reeditada em 1945. É um texto incipiente onde a fotografia é pensada sobre o modelo da pintura, e concretamente sobre o paradigma expressionista da verdade da “deformação”:
“É que a realidade da arte, embora objectiva, não pode ser fotográfica. A realidade em si mesma é amorfa. Até a fotografia para ser artística tem de focar de certa maneira artificial a realidade, isto é, o específico da arte reside num artificício e o artifício é uma maneira de deturpar a realidade com uma semelhança da realidade. E é assim porque a realidade é inapreensível na sua plena totalidade, impossível de cópia ou de pastiche. (…) E assim o pintor usa os artifícios pictóricos que, deformando a realidade, dão a visão pictórica da realidade.” António Ramos de Almeida, A Arte e a Vida, Livraria Latina, Porto, 1945, 2ª ed., pp 19-20.
Curiosamente, este trecho viria a ser parcialmente transcrito em destaque na página mensal “Fotografia” do Jornal do Barreiro em 1955, a 5 de Maio, poucos dias antes da abertura da IX Exposição Geral de Artes Plásticas, onde houve nove expositores de fotografias. Tratar-se-ia já de contrariar a voga do realismo fotográfico que então começava a acompanhar a aura da exposição “The Family of Man”, objecto de grande expectativa desde 1954. A transcrição devia então interpretar-se como defesa de práticas formalistas e publicou-se por sinal junto do quadro classificativo em que Eduardo Harrington Sena sumariava a actividade expositiva dos amadores portugueses durante o primeira ano daquela página.
Também em 1945, publicou-se na já referida página “Arte” do diário A Tarde (a 29 de Julho), sob o título “O Pintor e a Fotografia”, um breve extracto em “caixa” de uma intervenção de Louis Aragon nos debates parisienses conhecidos como “A Querela do Realismo”, de 1936. É a esse texto que deve ser associado o uso da fotografia pelos pintores neo-realistas:
“A fotografia ensina a ver, vê aquilo de que um olho não se apercebe. Ela será no futuro não o modelo do pintor no sentido antigo dos modelos de academia, mas o seu auxiliar documental, no mesmo sentido em que as colecções de jornais são indispensáveis ao romancista. Alguém diz que o diário, a reportagem, é um concorrente do romance? É esse absurdo que se comete quando se opõe fotografia e pintura. O que digo é que a pintura de amanhã utilizará tanto o olho fotográfico como o olho humano. Eu anuncio aqui um novo realismo na pintura. Isto é, que não supõe de modo algum o regresso a um realismo antigo.” Louis Aragon, in Querelle du Réalisme, ed. Cercle d’Art, 1987, pp. 94-95 (tradução do original francês).
Note-se que Aragon não reduzia a fotografia à condição de documento para artistas. Na mesma intervenção, defende o instantâneo, as novas possibilidades das 35 mm e refere concretamente o amigo Cartier-Bresson e as suas fotografias de Espanha e do México.
É uma produção que não se terá entendido como autónoma (a que não se reconheceu uma identidade própria) e que não aspirava ao reconhecimento como arte fotográfica, nem os seus autores (quando não anónimos) se consideraram fotógrafos. Pode ser útil pensar por que razão essas ou outras fotografias como elas não chegaram às Exposições Gerais de Artes Plásticas (1946-56), onde estes autores expuseram com assiduidade. Algumas breves referências à fotografia publicadas por esses anos dão achegas para a resposta.
Um crítico identificado com o neo-realismo, António Ramos de Almeida, incluíra uma breve reflexão sobre a fotografia numa conferência publicada em 1941 e reeditada em 1945. É um texto incipiente onde a fotografia é pensada sobre o modelo da pintura, e concretamente sobre o paradigma expressionista da verdade da “deformação”:
“É que a realidade da arte, embora objectiva, não pode ser fotográfica. A realidade em si mesma é amorfa. Até a fotografia para ser artística tem de focar de certa maneira artificial a realidade, isto é, o específico da arte reside num artificício e o artifício é uma maneira de deturpar a realidade com uma semelhança da realidade. E é assim porque a realidade é inapreensível na sua plena totalidade, impossível de cópia ou de pastiche. (…) E assim o pintor usa os artifícios pictóricos que, deformando a realidade, dão a visão pictórica da realidade.” António Ramos de Almeida, A Arte e a Vida, Livraria Latina, Porto, 1945, 2ª ed., pp 19-20.
Curiosamente, este trecho viria a ser parcialmente transcrito em destaque na página mensal “Fotografia” do Jornal do Barreiro em 1955, a 5 de Maio, poucos dias antes da abertura da IX Exposição Geral de Artes Plásticas, onde houve nove expositores de fotografias. Tratar-se-ia já de contrariar a voga do realismo fotográfico que então começava a acompanhar a aura da exposição “The Family of Man”, objecto de grande expectativa desde 1954. A transcrição devia então interpretar-se como defesa de práticas formalistas e publicou-se por sinal junto do quadro classificativo em que Eduardo Harrington Sena sumariava a actividade expositiva dos amadores portugueses durante o primeira ano daquela página.
Também em 1945, publicou-se na já referida página “Arte” do diário A Tarde (a 29 de Julho), sob o título “O Pintor e a Fotografia”, um breve extracto em “caixa” de uma intervenção de Louis Aragon nos debates parisienses conhecidos como “A Querela do Realismo”, de 1936. É a esse texto que deve ser associado o uso da fotografia pelos pintores neo-realistas:
“A fotografia ensina a ver, vê aquilo de que um olho não se apercebe. Ela será no futuro não o modelo do pintor no sentido antigo dos modelos de academia, mas o seu auxiliar documental, no mesmo sentido em que as colecções de jornais são indispensáveis ao romancista. Alguém diz que o diário, a reportagem, é um concorrente do romance? É esse absurdo que se comete quando se opõe fotografia e pintura. O que digo é que a pintura de amanhã utilizará tanto o olho fotográfico como o olho humano. Eu anuncio aqui um novo realismo na pintura. Isto é, que não supõe de modo algum o regresso a um realismo antigo.” Louis Aragon, in Querelle du Réalisme, ed. Cercle d’Art, 1987, pp. 94-95 (tradução do original francês).
Note-se que Aragon não reduzia a fotografia à condição de documento para artistas. Na mesma intervenção, defende o instantâneo, as novas possibilidades das 35 mm e refere concretamente o amigo Cartier-Bresson e as suas fotografias de Espanha e do México.
Autor desconhecido (Lima de Freitas?), faina do arroz , imediações de Vila Franca de Xira, 1952-53, 6, 9 x 10 cm. Col. particular
2 - Maria Lamas e Adelino Lyon de Castro
Os casos singulares e quase esquecidos de Maria Lamas e Adelino Lyon de Castro, muito diferentes entre si, exigirão desenvolvimentos monográficos distintos. A primeira publicou os seus notáveis retratos de trabalhadoras no livro As Mulheres do Meu País, que ela mesma editou em fascículos em 1948-50. O segundo afirmou-se nas agremiações amadoras, participou nesse mesmo livro e na V Exposição Geral de Artes Plásticas (SNBA, 1950), vencendo o 1º e único Salão do Jornal do Barreiro (também em 1950, uma data charneira).
Maria Lamas ( 1893-1983 ) foi fotógrafa por necessidade e só por brevíssimo tempo, durante a preparação de As Mulheres do Meu País, uma investigação sociológica que é também uma grande reportagem ilustrada com as fotografias que fez expressamente para esta edição e igualmente com uma vasta recolha de fotografias de temática social de muitos autores da primeira metade do século, de Domingos Alvão a alguns interessantes desconhecidos como José Loureiro Botas, Júlio Vidal e Firmino Santos. É um leque muito vasto e variado (onde se junta a fotografia romântico-naturalista, o populismo, o fotojornalismo documental ou miserabilista), e que merece ser analisado por si mesmo; inclui, por exemplo, a Foto Beleza, Arnaldo Garcês, Artur Pastor e amadores e estúdios regionais como Álvaro Laborinho (Nazaré), Júlio Goes (Nazaré), Joel Mira (Caldas), Demóstenes Espanca (Évora), os Perestrelos da Madeira. Muitos outros serão já de improvável identificação.
Maria Lamas, “Jovens trabalhadoras das minas de São Pedro da Cova. As raparigas começam a trabalhar ali aos catorze anos. Fazem a remoção, ou seja o transporte do carvão ou da pedra, à cabeça, em gigos , como se vê na fotografia. (...)”, pág. 372 de As Mulheres do meu País, 1948-1950, ed. Actuális, Distribuidores Gerais, Lisboa. 2ª edição, Caminho, 2003 (reeditado em facsimile usando as provas originais de M.L., o que lhe assegurou uma qualidade de impressão muito superior à 1ª edição). Col. Herdeiros de Maria Lamas
Em 1947, quando Maria Lamas dá início às suas viagens pelo país, tem 53 anos, e fora antes directora de Modas e Bordados, jornalista e romancista. "Resolvi arranjar uma máquina e ser eu, também, fotógrafa", lê-se numa notícia publicaba no boletim Ler - informação bibliográfica, Publicações Europa-América (Maio-Junho 1948, pág. 10).
"A obtenção de fotografias, confessa, foi uma das maiores dificuldades que encontrou, pois queria-as ‘verdadeiras, expressivas, com valor documental e inéditas’. Acabará por assumir-se como repórter fotográfica, num trabalho pioneiro" – O Primeiro de Janeiro, Porto, 28 de Abril de 1948 (entrevista na pág. "Das artes e das letras").
Os seus inúmeros retratos de mulheres devem ser vistos como uma grande aventura fotográfica, com um sentido de decumentário social, de denúncia e de esperança ou optimismo que tem ser associado ao neo-realismo, como uma contribuição muitíssimo original. Herdeiros de uma prática fotojornalística recorrente, o retrato individual que acompanha as notícias, eles têm uma verdade e uma energia contagiantes. Nunca foram expostos, nem mesmo, ao que julgo, nas exposições documentais sobre Maria Lamas.*
São na maior parte das vezes retratos individuais e também de grupo. Retratos directos e frontais realizados nos locais de trabalho, como que interrompendo momentaneamente a faina. Noutros casos são mesmo momentos ou situações de trabalho que se ilustram, procurando registar a dureza do esforço físico. Totalmente despidas de efeitos de luz e sombra, as imagens prescidem também de toda a anedota ou nota de mistério, à beira de uma impressão de banalidade que se desmente na cumplicidade dos olhares trocados, na firmeza, confiança ou dignidade dos rostos, na eficácia documental das roupas, utensílios e outros objectos visíveis, numa objectividade enxuta e tocante.
Cada fotografia é acompanhada por várias linhas de texto que ultrapassam a condição de simples legendas para fornecer informações complementares e comentar o contexto económico e social de cada situação.
Realizadas por um não-fotógrafo (nem profissional, nem "amador", no sentido habitual de aficionado da arte fotográfica), que apenas por necessidade recorreu por algum tempo a um "caixote Kodak", estas fotografias suplantam as restantes imagens assinadas pelo heteróclito grupo de outros autores.
Gosto de pensar (sem ter quaisquer provas para isso) que foi na sequência e por efeito da publicação de As Mulheres do Meu País, cujo último fascículo é de 15 de Abril de 1950, que a fotografia entrou na V Exposição Geral, em Maio. Para voltar a abrir a EGAP à fotografia, Adelino Lyon de Castro poderia ter sido o agente de ligação a Francisco Keil do Amaral, arquitecto e também fotógrafo, animador do Inquérito à Arquitectura Popular (1955-61), figura de reconhecida autoridade intelectual e cívica no meio artístico.
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Adelino Lyon de Castro (1910-1953) foi um amador fotográfico com larga participação nos salões do tempo e um percurso original interrompido pela morte precoce. Expositor nos salões do Grémio desde 1946, foi membro do Foto Clube 6 x 6 (fundado em 1950; pertenceu ao seu Conselho Artístico). Voltou a expor “Ex-homens” em 1950 na V Exposição Geral de Artes Plásticas e no I Salão de Arte Fotográfica do Jornal do Barreiro, onde foi distinguida com o Grande Prémio, sob o título “Vagabundos”; aí ganhou também o 1º Prémio de Instantâneo com “Rua em festa”. (Nesse mesmo Salão apareceu Augusto Cabrita, que em 1955 expõe na IX EGAP – mas essa não será uma história neo-realista.)
Está presente com dez fotografias no livro de Maria Lamas e foi-lhe dedicado em1980 o álbum monográfico O Mundo da Minha Objectiva, edição de Publicações Europa-América de que fora co-fundador com o irmão Francisco Lyon de Castro.
Foi repórter desportivo, tendo acompanhado em 1952 os jogos olímpicos na Finlândia para duas publicações. E foi também editor de Ler, Jornal de Letras, Arte e Ciências, periódico editado pela Europa-América em 1952-53. A publicação foi forçada ao encerramento pelo governo em 1953, depois da morte do editor, e esteve antes no centro de uma grave crise interna aos meios culturais da Oposição, combatida pelo PCP por ser orientada por Fernando Piteira Santos, excluído em 1950 e então acusado com Mário Soares de pro-americanismo. (O episódio é desenvolvido por Pacheco Pereira no 3º vol. de Álvaro Cunhal, ed Temas e Debates, Lisboa, 2005, em capítulos que se chamam “A purga dos intelectuais” e “O jornal Ler, ‘orgão do SNI’”.)
É certamente possível considerar que a recepção e a memória póstuma do neo-realismo fotográfico terá sido prejudicada por razões políticas, embora de sentido oposto. Adelino Lyon de Castro foi silenciado enquanto inimigo do PCP; Maria Lamas foi esquecida por ter sido uma bandeira da respectiva propaganda.
O que se conhece da obra interrompida de Adelino Lyon de Castro, através do seu álbum póstumo e de fotografias enviadas aos salões que se conservam no seu espólio, comprova um itinerário inscrito no seu tempo mas em que a Arte Fotográfica não é uma prática convencional, solúvel entre as outras reproduções dos catálogos. Sem ser um fotógrafo de ruptura, terá assumido o papel mais difícil de manter a integração no meio e disputar os respectivos prémios ao mesmo tempo que exibia as suas preocupações de solidariedade humana – estão lá os efeitos de luzes e sombras, os reflexos na água e as transparências das velas, as perspectivas arrojadas que convêm aos amadores, mas nunca se trata da mera exibição do virtuosismo técnico.
Em 1956, três anos depois da morte de Adelino Lyon de Castro, e precisamente num boletim da agremiação de amadores salonistas a que pertencera, o Foto Clube 6 x 6, Manuel Ruas, um homem ligado ao cinema, veio apontá-lo como “exemplo de humanismo”, lembrando que ele “procurou sempre que as suas obras transmitissem Vida, a Vida do Homem: o seu trabalho, as suas angústias, as suas esperanças” – “In Memoria”, Boletim do Foto Clube 6 x 6, Lisboa, nº 3, Novembro-Dezembro de 1956. A identificação ideológica e estética com o neo-realismo é clara, mas é difícil avaliar se a mensagem obtinha eco nos círculos salonistas da fotografia ou se chegava a meios mais amplos. Quando em 1980 foi publicado o álbum sobre a obra de Adelino Lyon de Castro, por iniciativa do seu irmão, as fotografias não terão sido observadas com atenção, porque as preocupações e estratégias do tempo apontavam noutras direcções.
Adelino Lyon de Castro, "Peixeiras", in "O Mundo da Minha Objectiva", Publicações Europa-América, 1980, n.p.; "Vendedeiras de peixe, no Porto", in "As Mulheres do Meu País", p. 412. Col. Espólio do Adelino Lyon de Castro, Museui do Chiado, Lisboa
3 – O efeito “The Family of Man”
É já sob o estímulo da exposição “The Family of Man”, MoMA, 1955) e das notícias que a precederam desde 1954 (em especial na revista Fotografia, de Março, nº 2, onde é transcrita na íntegra o extenso apelo de Edward Steichen à participação de amadores e profissionais), que outros autores iriam protagonizar uma intenção modernizadora da fotografia portuguesa.
Victor Palla, que foi um homem de múltiplos interesses e muito atento a todas as modernidades, trocou as anteriores pesquisas mais experimentalistas pela descida à rua e terá levado logo a nova orientação à IX Exposição Geral de Artes Plásticas (1955), segundo os testemunhos que ainda se podem recolher. Com o também arquitecto Costa Martins iniciaria pela mesma altura a aventura do livro sobre Lisboa.
O especialíssimo “Índice” comentado com que termina Lisboa Cidade Triste e Alegre fornece um amplo e actualizado quadro de referências fotográficas internacionais, usando muita informação norte-americana a equilibrar o apreço pelo realismo poético francês (o acesso à informação não é hoje maior…), e aí se refere como espaço próprio de trabalho a “nova escola naturalista, documental”. A exposição “veio mostrar que também entre nós existem artistas integrados num movimento realista de arte fotográfica” – escreveu-se à época na revista Binário (António Freitas: "Fotografia e realismo", Lisboa, Out. 1958). Ernesto de Sousa viu no livro a “demonstração de um cinema realista que podíamos ter e ainda não tivemos" (revista Imagem, Lisboa, nº 25, Fev. 1959).
Separadamente, um grupo informal formado por Carlos Afonso Dias, Sena da Silva, Gérard Castello-Lopes e outros começava a reunir-se em Cascais numa espécie de clube fotográfico privado e ensaiou por algum tempo propósitos de renovação do olhar e de levantamento fotográfico do país.
Globalmente, essa é uma produção que se reclama da tradição documental e responde à fotografia humanista e comprometida do pós-guerra (Cartier-Bresson, Eugene Smith), mas que rapidamente se identifica com os processos de ruptura da 2ª metade dos anos 50, orientando-se para uma assumida subjectividade documental (Ed van der Elsken, Robert Frank, William Klein, etc) e para uma liberdade criativa onde se exercita um olhar mais céptico do que optimista. Mas em geral, ao contrário do que sucedeu em Espanha, os novos autores deixaram de fotografar pelo final dessa década.
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NOTAS
(1) A confusão entre a SPP e a SPN é muito frequente - e a investigação sobre a primeira, fundada em 1906, e que desde 1934 utilizou também a designação Touring Club Português, é demasiado escassa: é uma estranha ausência na historiografia recente, que deveria estar mais atenta a continuidades profundas no que respeita aos interesses das classes dominantes. De facto, a oficialização de vários dos serviços ou secções da SPP foi sendo acompanhada pela respectiva integração no SPN e, ainda mais tarde, no SNI; mas o seu carácter apolítico e o hábito da colaboração estreita com os governos, da monarquia à república e depois à ditadura, justificou uma transição certamente sem grandes conflitos ideológicos, desde os tempos de Magalhães Lima aos de Marcelo Caetano - ambos foram presidentes da Assembleia Geral da SPP. O Grémio Português de Fotografia, que organizou os Salões de Arte Fotográfica desde 1932 até 1956, na sua sede, na SNBA e a seguir no SNI, e no Clube Fenianos do Porto, era uma secção da Sociedade de Propaganda de Portugal.
2) Ilustrando a importância desse meio moderno de propaganda, a fotomontagem de dimensões murais, Mário Novais aponta os "180 metros quadrados de montagens para a Exposição Anti-Comunista realizada no SPN", que decorrera também em 1937, num artigo de M. Jesus Garcia na revista Objectiva, intitulado "Mário Novais concede-nos uma entrevista e dá-nos uma lição de fotomontagem" (nº 24 - 4 da 2ª série - de Julho de 1941, Lisboa).
(3) O Salão Nacional do Grupo Desportivo da CUF começa em 1952, com o número 2, embora a edição anterior fosse restrita a associados. Torna-se internacional em 1955. A página mensal “Fotografia” publicou-se entre 1954 e 57 no Jornal do Barreiro, o qual tinha tomado a iniciativa de organizar em 1950 um 1º Salão de Arte Fotográfica com o seu nome, onde foram premiados Adelino Lyon de Castro e Augusto Cabrita.
(4) Seguindo numa breve pesquisa o itinerário de Adelino Lyon de Castro encontram-se envios de fotografias para as Exposições Fotográficas de Campismo no Ateneu Comercial de Lisboa, de 1947 a 52; para salões do Ateneu Artístico Vilafranquense (o 3º em 1952), da Voz do Operário (1950-53), ou de iniciativa local, por exemplo em Santo Tirso, 1952, para além dos mais famosos salões do Barreiro, adiante referidos. Os mesmos ou outros envios, assegurados pelo Foto Clube 6 x 6, seguiam para vários salões no estrangeiro, acumulando anotações e selos de admissão. Não é possível ainda avaliar a importância deste activismo associativo e fotográfico, mas convém pôr de parte o opróbio lançado sobre o salonismo em geral. Lyon de Castro não seria o único fotógrafo empenhado em “assuntos” de índole social como expressão de angústias e esperanças, como escreveu Manuel Ruas (ver adiante).
5) José Augusto-França, “Nota sobre ‘Fotografia Subjectiva’”, O Comércio do Porto, 10 de Março de 1953. Victor Palla, “O Olho Quadrado”, A Arquitectura Portuguesa, Lisboa, nº 6, Maio-Junho de 1953.
(6) Tem de ser referido como pioneiro o estudo de Emília Tavares, "Fotografia e neo-realismo em Portugal" publicado em Batalha pelo Conteúdo, Exposição Documental, Movimento Neo-realista Português, edição do Museu do Neo-Realismo, Vila Franca de Xira, 2007 (pp. 263-273). Aí se procurou identificar o percurso dos fotógrafos representados nas três edições das Exposiçoes Gerais que acolheram representações de fotógrafos.
(7) Dessas abordagens italianas e espanholas destaco em especial, Mirades Paral.leles. La fotografia realista a Itàlia i Espanya, com direcção de David Balsells, Barcelona, 2006, e NeoRealismo. La nueva imagen en Italia. 1932-1960, de Enrica Viganò, Madrid, 2007, bem como a investigação exaustiva de Laura Terré Alonso, Historia del Grupo Fotográfico AFAL 1956/1963, edição Photovision, 2006, e a exposição La Escuela de Madrid. Fotografía 1950-1975, Madrid, 2006.
ADENDA
* Depois da redacção deste texto, duas exposições trouxeram novos dados à investigação sobre este tema: Batalha de Sombras - Colecção de Fotografia Portuguesa dos Anos 50 do Museu do Chiado, no Museu do Neo-Realismo, Vila Franca de Xira, 2009 (7 de Março a 14 de Junho), comissariada por Emília Tavares; e Au Féminin / Women Photographing Women, no Centro Cultural Calouste Gulbenkian, Paris, 2009 (24 de Junho a 29 de Setembro), da autoria de Jorge Calado, onde Maria Lamas foi a autora com maior número de fotografias expostas (8) entre uma centena de mulheres fotógrafas (séc. XIX-XXI). Ambas foram acompanhadas por catálogos com os mesmos títulos.