segunda-feira, 1 de janeiro de 2018

MARIA LAMAS FOTÓGRAFA






 Em 1947, quando Maria Lamas dá início às suas viagens pelo país para a publicação de 'As Mulheres do Meu País', tem 53 anos, e fora até há pouco directora de 'Modas e Bordados', jornalista e romancista. "Resolvi arranjar uma máquina e ser eu, também, fotógrafa", lê-se numa notícia publicada no boletim 'Ler - informação bibliográfica', Publicações Europa-América (Maio-Junho 1948, pág. 10).
"A obtenção de fotografias, confessa, foi uma das maiores dificuldades que encontrou, pois queria-as ‘verdadeiras, expressivas, com valor documental e inéditas’. Acabará por assumir-se como repórter fotográfica, num trabalho pioneiro" – 'O Primeiro de Janeiro', Porto, 28 de Abril de 1948 (entrevista na pág. "Das artes e das letras").
Os seus inúmeros retratos de mulheres devem ser vistos como uma grande aventura fotográfica, com um sentido de documentário social, de denúncia e de esperança ou optimismo que tem de ser associado ao neo-realismo, como uma contribuição muitíssimo original (o neo-realismo nunca teve fronteiras conceptuais fechadas e pode/deve ser identificado como tal, ou como aproximação a, sem que os autores dele se reclamem).
Herdeiras de uma prática fotojornalística recorrente - o retrato individual que acompanha as notícias - , as fotos de ML têm uma verdade e uma energia contagiantes, que desde logo decorrem e comungam da situação concreta do inquérito e do voluntarismo da autora. Toda a ambição esteticista ou artística está ausente: são documento e testemunho, tanto das mulheres encontradas no terreno como na atitude da autora. Nunca foram expostas até aos anos 2000 (e seguramente não foram pensados como objecto de exposição, ou colecção, ou edição autónoma), e nem mesmo foram incluídos ou referenciados, ao que julgo, nas exposições documentais tardias sobre Maria Lamas.
Não referidos por António Sena na sua história, permaneceram como material não visto, não reconhecido, não valorizado, ignorado pelo neo-realismo oficial (o das EGAP de 1946 a 1950...) e também, naturalmente, pelos meios da "arte fotográfica", em que também o neo-realismo penetrou (Lyon de Castro, Cabrita e outros). Não um não-dito da fotografia portuguesa, que por vezes continua a incomodar quem se rege por etiquetas e não por dados visíveis.
São na maior parte das vezes retratos individuais e também de grupo. Retratos directos e frontais realizados nos locais de trabalho, como que interrompendo momentaneamente a faina. Noutros casos são mesmo momentos ou situações de trabalho que se ilustram, procurando registar a dureza do esforço físico. Totalmente despidas de efeitos de luz e sombra, feitas sob o sol directo e cru, as imagens prescindem também de toda a anedota ou nota de mistério, à beira de uma impressão de banalidade que se desmente na cumplicidade dos olhares trocados, na firmeza, confiança ou dignidade dos rostos, na eficácia documental das roupas, utensílios e outros objectos visíveis, numa objectividade enxuta e tocante. A banalidade, o banal (a suspensão da arte), é um tema essencial da prática e da teoria fotográficas, que se manifestara uma década antes durante a "polémica do flagrante" e foi tendo sucessivos afloramentos (Walker Evans, a Pop, etc)
Cada fotografia é acompanhada por várias linhas de texto que ultrapassam a condição de simples legendas para fornecer informações complementares e comentar o contexto económico e social de cada situação.
Realizadas por um fotógrafo-não-fotógrafo (nem profissional, nem "amador", no sentido habitual de aficionado da arte fotográfica), que apenas por necessidade recorreu por algum tempo a um "caixote Kodak", estas fotografias suplantam o interesse das restantes imagens do livro, assinadas por um heteróclito grupo de outros autores. Essa outra muito vasta antologia fotográfica documental que ML escolhe e inclui no seu livro comprovam a forte relação com o medium (com o acesso a importantes acervos e o relacionamento com fotógrafos, ou seja, uma cultura fotográfica assinalável) para além da produção própria.
No seu recente livro (Maria Lamas, Mulher de Causas - biografia breve, ed. Município de Torres Vedras, 2017) e nos comentários que deixou escritos numa nota abaixo, José Gabriel Pereira Bastos acrescenta informações essenciais para se perceber o contexto ideológico e político, profissional e pessoal, da obra de M.L.



































Dois, três pontos: 
1. os pintores e os teóricos do NR não reconheceram a fotografia senão como documento para artistas ou informação (mesmo que vários deles fotografassem: Lima de Freitas, Cipriano Dourado e outros - ver "Ciclo do arroz"). Colocando a prioridade no 'neo' (realismo) e logo na fuga ao naturalismo, entendem a 'deformação' como índice do moderno - a fotografia não deforma, copia. 
2. o NR plástico que se inicia em 1945, com pioneirismo em relação à França ou à Inglaterra (que estavam mais ocupados com a Guerra e a reconstrução), depende em especial da informação norte-americana que é amplamente distribuída durante a 2ª Guerra (Biblioteca americana, Academia de Belas Artes, etc), com foco nos realistas americanos de direita e de esquerda (Benton e Ben Shan), mexicanos e brasileiros: todos eles são à época a nova arte própria da América, antes de se afirmar Pollock e o expressionismo abstracto. Não há lugar para falar em realismo socialista de imposição soviética antes de c. 1948, ou mm 1952, e aí começa a divisão no campo NR e afins, que é até essas datas um espaço pluralista e livre. 
3. Até c. 1952 e à querela dos intelectuais, e o 'desvio de esquerda', não se pode atribuir à linha do PC a condução da criação intelectual e artística; as estruturas são frágeis e as figuras que se destacam como criadores, mesmo entrando no PC, têm mais importância que os controleiros e que uma direcção fraca e distante. É necessário não ver Stalin por toda a parte antes de se extremar a Guerra Fria. 
4. O destino soviético de M. Lamas, por um lado, e as afinidades titistas de Adelino Lyon de Castro (com Piteira Santos, a Ler, Mário Soares, etc), para mais morto por doença muito cedo (1953), devem ter inviabilizado ou pelo menos demorado o reconhecimento das suas contribuições fotográficas durante décadas. Para além do que deriva da escassa cultura visual reinante, como se observa neste "caso" Lamas levantado por uma experiêrcia ensaística do Manuel Villaverde Cabral.

Adenda
É um artigo de Manuel Villaverde Cabral publicado no Vol.12 nº 23 | 2017 de Comunicação Pública
"Fotografia e Propaganda no Estado Novo Português", com o título
"Texto e imagem fotográfica no primeiro contra-discurso durante o Estado Novo: «As mulheres do meu país» de Maria Lamas" 
que justifica o regresso à obra fotográfica de M.L.

Depois de apontar textos antigos no blog Typepad e em especial "O neo-realismo na fotografia portuguesa, 1945 – 1963"
publicado em INDUSTRIALIZAÇÃO EM PORTUGAL NO SÉCULO XX. O CASO DO BARREIRO, Actas do Colóquio Internacional Centenário da CUF do Barreiro, 1908-2008, Universidade Autrónoma de Lisboa, 2010. Pp. 423-442.
(colóquio que teve lugar no Auditório Municipal Augusto Cabrita, Barreiro, 8-10 de Outubro de 2008. Painel 4 - Do Realismo ao Neo-realismo: imagens do trabalho e do operário na arte portuguesa)
https://www.academia.edu/525938/O_neo-realismo_na_fotografia_portuguesa_1945_1963

...passei a referir-me ao texto do MVC, recém-chegado tarde e descuidadamente a assuntos de fotografia:
1

  " "convém clarificar nesta secção inicial que não se pode falar d’As Mulheres do meu País como um foto-livro. Com efeito, no período do Estado Novo (1934-1974), há apenas um foto-livro propriamente dito, a saber, Lisboa: Cidade Triste e Alegre dos arquitectos Costa Martins e Victor Palla (1959)"
O MVC vem destacar a importância do livro de ML, redescoberto a partir de 2002 graças à notável reedição da Caminho dirigida por José António Flores, onde o facsimili se recortou para incluir a reprodução das fotos originais da Maria Lamas. (Com uma 2ª ed. logo em 2003 que acabou em parte laminada pela Leya.) António Sena na sua história ignorou (ou ocultou) a obra e a autora, fotógrafa de um livro só. 
Mas MVC engana-se ao identificar apenas um "foto-livro propriamente dito" no período do Estado Novo (1934-1974, se é que o E.N. veio até esta data). Eu alargaria o conceito de foto-livro para incluir "As Mulheres..." porque a presença da fotografia é essencial à reportagem-ensaio, que é também um ensaio fotográfico - mas não se percebe como MVC esquece ou ignora os foto-livros do regime, os de Artur Pastor e alguns outros."

O MVC quereria referir-se ao único foto-livro contra o regime... (como lembrou o Zé Neves e o MVC agradeceu:"Obviamentre, obrigado Zé!" 
Mas qualificar de livro "contra o regime" o de Palla e Costa Martins é redutor para a obra e para o regime...
 
A nota acima motivou uma resposta de Filomena Serra (directora da publicação e esposa do publicado) que tenta iludir a falta de razão:
 
(3 Dez) "Nao é a primeira vez que Alexandre Pomar se esconde por detrás das três letras MVC evitando colocar o nome por extenso para assim passar despercebido por ele e dizer mal enviesando o que Manuel Villaverde Cabral escreve e fá-lo com todo o à vontade e desfaçatez aqui no seu cantinho. De facto Manuel Villaverde Cabral usa pouco o Facebook e tenho evitado dizer-lhe o que AP escreve por aqui apunhalando pelas costas. Manuel Villaverde Cabral conheceu Maria Lamas muito bem e foi aliás a primeira pessoa que ele viu em Paris quando lá chegou como exilado. Leia bem o texto que em caso nenhum desmerece Maria Lamas, bem pelo contrário. O texto exprime uma profunda admiracao pela mulher e pela fotógrafa. Sim são fotografias "caseiras" e nada desmerecedoras. Nao percebeu? Tem a certeza que leu bem ou tresleu? O fotógrafo Luiz Carvalho compreendeu muito bem. AP deita areia para os olhos de quem provavelmente nao leu. AP é historiador? AP é sociólogo? NÃO! Já alguma vez escreveu mais de 6 páginas sobre Maria Lamas? Que eu saiba Não! Mas continua a espalhar a verborreia neo neo neo que utilizava no jornal Expresso, e agora já bastante enferrujada. Resta-me dizer como co-editora que o artigo de Manuel Villaverde Cabral foi sujeito tal como todos os outros textos a dois peer review anónimos na área da história da fotografia."

2. 

Voltei assim ao assunto:
" Ainda Maria Lamas fotógrafa, em resposta breve a Filomena Serra que veio defender em comentários pouco visíveis o historiador Manuel Villaverde Cabral enquanto observador de fotografia, servindo-se de uma opinião de Luiz Carvalho.
As fotos "parecem feitas por uma principiante", escreve MVC, enquanto LC intitula "as fotos caseiras de ML" uma confusa nota onde se baralha: "É evidente que é um olhar nada treinado, sem técnica nem intenção narrativa. São testemunhos frontais, simples e daí a sua coerência ao ter criado um discurso visual que ultrapassou as suas intenções iniciais." - o que quer isto dizer?  
E que vale a qualificação atribuída por LC a ML face aos comissariados de Jorge Calado? Para não referir o que fui escrevendo sobre ML e que foi fazendo o seu curso... (não tenho presente o que terá escrito Emilía Tavares sobre ML). Se não ignora as exposições e os textos ( esta não é uma área de competência de MVC) impunha-se contra-argumentar. LC é um esforçado divulgador e um bom fotógrafo dado a ressentimentos (nem todos podem ser os melhores). 
ML é uma grande descoberta como fotógrafa : é preciso vê-la com disponibilidade e boa fé, admitindo que há artistas expontâneos, e inesperados, desconhecidos, sem fugir à surpresa e sem precisar de embrulhar as imagens (e a cegueira propria) em enredos ideológicos improdutivos. António Sena tb não a viu - ficam em boa companhia, mas errados: perdem uma pequena obra e um caso de excepção da fotografia portuguesa.
MVC conheceu bem ML ao tempo em que as suas fotografias não se valorizavam nem compreendiam. Posso dizer que conheci bem MVC e que com ele e outros fiz política em 74-75, depois de o admirar nos tempos do exílio, do esquerdismo e da investigação. Depois o mundo deu muita volta. MVC, como eu disse, tem as suas áreas de competência, tb na do comentário político actual, que às vezes partilho. Apesar de ter sido crítico de cinema, a fotografia é uma área em que vê pouco e mal. Insuficiência ou ausência de pesquisa, desde logo quanto à foruna crítica recente de LM; errada desvalorização da qualidade fotográfica da pequena obra de ML (que vale o esforçado LC face aos comissariados de Jorge Calado? - se não os ignora devia discuti-los). Investigar e argumentar são a chave operacional da questão. Gostaria de ter. continuado a ser amigo, cúmplice, camarada, visita de casa de MVC, se julga adequado pôr a divergência em termos pessoais.
Outros artigos da revista (importante por trazer atenção a uma área desabitada) merecem uma abordagem criticamente negativa, por exemplo sobre “propaganda colonial”.

3.
Desde 2009, pelo menos, Maria Lamas é reconhecida como uma grande fotógrafa, mesmo que de uma obra só e por um breve tempo - sem formação na área e sem ter feito exposições (a fotografia tem destes "acidentes", o que a torna ainda + interessante). O artigo de MVC ignora-o e, aliás, não chega a entender ML como fotógrafa - as fotos "parecem feitas por uma principiante", diz, e refere depois um olhar "tecnicamente principiante mas solidário com as personagens do seu livro", o que já é uma pista para entender esta obra - obra-prima de uma fotógrafa ingénua (?, mas com grande experiência da fotografia) ou outsider, tão melhor que tantos profissionais e amadores.

Para além de outros escritos dispersos, por duas vezes Jorge Calado levou ML a grandes exposições internacionais: expôs sete provas de época e uma prova moderna na mostra "Au Féminin", em Paris, no Centro Cultural da Gulbenkian, onde foi a artista mais representada (2009, há catálogo, esg.) e apresentou-a numa representação ibérica de apenas 10 fotógrafos na "Dubai Photo Exhibition 2016".

Basta uma pesquisa na internet para descobrir a fotógrafa Maria Lamas e, se MVC não a fez, devia ter pedido ajuda ou devia alguma comissão de avaliação científica da revista mandar o artigo para trás. MVC tem as suas áreas de competência, até como comentador político, mas neste caso a ousadia de falar do que não conhece e mal investigou não lhe correu bem. Tomemos o caso como exemplo, entre muitos outros, da descuidada compartimentação académica de saberes e da ignorância universitária. (4) 30 dez.

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