E cenas de naufrágios e refugiados, que têm a ver com notícias e imagens de travessias do Mediterrâneo - e o pintor inclui-se como retrato nessas cenas
Parte de um mail pessoal do João Francisco, e depois a folha de sala
Da natureza-morta à Pintura de história 
Dez anos depois da 1ª exposição, já na 111, o João Francisco conserva algumas características centrais do seu trabalho: a natureza-morta, pintura e desenho de observação diante de modelos (são paisagens) que constrói, a partir de uma prática de recolector - coleccionador. E essa prática da natureza-morta é também comentário ou releitura da história da arte, com extensão às referências literárias. É uma produção erudita mas que se vê (também) como prática brincada, às vezes próxima da banda desenhada pelo grafismo das formas e perspectivas. 
Aos actuais desastres e naufrágios mediterrânicos podem associar-se as anteriores paisagens marítimas do João Francisco que já eram trágico-marítimas ("Atlântida" e "Tempestade em Trouville - para E. Boudin", ambos de 2008) e também, de outro modo, as Ondas e Objectos flutuantes de uma exposição de 2014, e ainda a instalação "Sem título - trazido pelo mar para Joseph Cornell", de 2005/2012. Tudo se prolonga e reactualiza com novas referências e circunstâncias. Entretanto - mutação muito significativa, que deixa abertos novos passos -, a observação pode ser também imaginação, a natureza-morta acolhe o retrato do natural, usando o espelho e já não a imagem prévia.
 
Transcrevo um mail do João Francisco sobre a exposição "Mille-fleurs" que hoje (10 de Novembro) chega ao fim.
"Eu não sei se posso dizer que o tema 
dos refugiados e dos naufrágios seja o principal ou o único da exposição
 [ não, não é o único, talvez não seja o principal, mas é aquele que 
mais intensamente atinge o observador, logo no espaço inicial da 
exposição, quando se começa a identificar a presença dos migrantes e dos
 mortos do Mediterrâneo; não é rápida essa identificação, ela é elidida 
pelo autor e talvez a evitemos, porque a arte não trata dessas coisas...
 Só mais tarde, ao tentar escrever sobre a exposição, o assunto se me 
tornou evidente, irrecusável.] O ponto de partida foram de facto as 
tapeçarias mille-fleurs, que realmente admiro e que me intrigam. A 
vontade de fazer algo a partir delas era já antiga. E o painel grande 
com as flores e os animais mortos foi o que inicialmente surgiu dessa 
referência (e que nesse sentido talvez se possa dizer que a ela mais 
esteja preso).
As outras pinturas da exposição surgiram autónomas a esta peça maior mas mantendo, para mim, esta procedência:
- por um lado na série mille-fleurs (as 
colagens sobre os desenhos de bordados reutilizados) onde se joga com a 
ideia de "cartão", ou seja, de algo que está a meio caminho entre a 
ideia e um outro objecto final a realizar, e onde sigo mais ou menos o 
aparato das tapeçarias referidas: um motivo central rodeado de elementos
 pequenos, mais ou menos parecidos, no que vejo também uma ironia com a 
repetição tão cara ao minimalismo. Interessou-me explorar a relação 
entre o que eu pintei e os elementos já existentes nas páginas 
encontradas, essa conversa entre o novo e o antigo, a passagem do tempo 
também, no fundo. Tudo isto tendo em conta a ironia e o anacronismo que 
consiste em falar hoje de uma forma de arte completamente morta e 
especifica como é a da tapeçaria. (que acresce também ao facto de ser já
 eu um pintor de "naturezas mortas" , um género "menor");
- e por outro nas pinturas a acrílico 
mais pequenas ("as paisagens"), que exploram temas que poderiam também 
ser motivos para tapeçarias (substituindo-se às cenas épicas de 
batalhas, mitologias, paisagens mais ou menos exóticas).
Tendo dito isto, o tema dos refugiados e
 dos naufrágios tornou-se bastante importante, aparecendo várias vezes, 
bem como pela primeira vez a inclusão de corpos, ou fragmentos deles 
(quase sempre o meu) , que interagem com os objectos estáticos da 
natureza morta, ou que parecem fazer um comentário à "acção".
É também 
como diz, senti que era um assunto delicado e melindroso, em relação ao 
qual tive muitas dúvidas durante o processo - se devia ou podia ser 
explorado - , e que achei melhor não nomear (embora o tenha feito 
indirectamente nos títulos: " o náufrago", "figura a observar um 
naufrágio", "no mediterrâneo", "sob as ondas").
 
Agrada-me também, como lhe disse, esse desafio de deixar, dando algumas 
pistas, que o espectador entre no jogo, em vez de explicar e dissecar 
por completo as imagens (prefiro que elas interpelem o espectador, que 
criem um diálogo). Interessa-me no fundo que as imagens vivam por si e 
sejam eficazes, e que não sejam meras ilustrações de uma ideia inicial 
ou literária. E daí as pinturas evocarem o drama dos naufrágios sem 
reproduzirem ou partirem das imagens deles com que somos regularmente 
confrontados (a construção no atelier destas amálgamas de corpos e 
ondas, em substituição dos reais, acaba por não me parecer menos trágica
 e inquietante). São no fundo coisas muito fora de moda e nada 
contemporâneas: símbolos, alegorias. Um pouco como as estátuas dos 
"duplos" do antigo Egipto.
Mais do que o drama específico no 
Mediterrâneo talvez seja a morte, e o tempo, um dos fios condutores da 
exposição. Ela aparece em algumas das paisagens (as paisagens onde 
surgem caveiras aludem às fantásticas imagens, maioritariamente 
medievais/renascentistas, do juízo final, onde o inferno é mostrado 
muitas vezes como um monstro de enorme boca aberta por onde entram as 
pobres almas condenadas....); no "Lázaro", que estando morto volta à 
vida; nas velas, acesas ou apagadas; nas flores, frescas ou murchas, 
reais ou artificiais; no Mársias, esfolado vivo como castigo; no próprio
 painel "mille-fleurs", no diálogo entre os animais mortos e as flores 
aparentemente vivas (ainda, mas isso é um jogo antigo da pintura de 
naturezas-mortas....).
Sem título - mille-fleurs (1. pinceladas numa paisagem/ 2. Lázaro / 3. as pinceladas flutuantes / 4. debaixo das ondas), 2018
 E leia-se a "folha de sala" escrita pelo João Francisco:
mille-fleurs
O assunto que talvez 
possa agregar o conjunto de pinturas recentes que aqui se apresentam é o
 da paisagem. Apesar de serem assumidamente naturezas-mortas, na medida 
em que consistem em objectos reais, dispostos e observados, estas 
imagens olham para o exterior, lá para fora. Falam de montanhas e 
desertos, do mar e de florestas, de ruínas, de jardins. Olham também 
através deles para o interior (não serão as paisagens aí ainda mais 
perigosas e sombrias?).
O título da exposição e muitas das peças
 apresentadas partem de um tema que importa explicar: mille-fleurs ou 
mil flores. É o termo utilizado para agrupar um conjunto de tapeçarias 
produzidas no norte da França e na Flandres sensivelmente entre o final 
da Idade Média e o início do Renascimento. O que as torna num grupo 
específico é o uso que fazem, de forma repetitiva e obsessiva, da 
representação de flores e plantas que, rodeando por completo os 
elementos em destaque (que podem ir de damas com unicórnios a caçadores,
 personagens galantes ou mitológicas), criam um espaço mais mítico que 
natural, mais caracterizado por uma exuberância decorativa que pela 
sugestão de uma paisagem real onde as figuras se inserem. Estas 
representações de flora, a que muitas vezes é também adicionada a 
presença de pequenos animais, são no entanto extremamente fiéis: são 
reconhecíveis com facilidade as espécies de planta selvagens e de 
cultivo doméstico, o que anuncia a cultura humanista e científica do 
Renascimento.
Realizado ao longo de vários meses o 
vasto conjunto de pequenas pinturas mille-fleurs pode ser entendido 
simultaneamente como memória desse tempo que passa, e como retrato de um
 espaço específico, de um jardim, registando e mostrando o que lá 
cresceu e morreu. Assimilando a estrutura formal das referidas 
tapeçarias em que as plantas se encadeiam de forma regular criando como 
que uma grelha, esta peça é uma afirmação do fascínio que a natureza, 
por mais remota ou doméstica, real ou mítica que seja, continua a 
realizar.
A descoberta fortuita de um conjunto numeroso de esquissos 
utilizados para bordar despoletou outro conjunto de peças: nessa memória
 ou fantasma dos desenhos que foram passados para um outro suporte 
têxtil, reconheci a dos “cartões” das tapeçarias, modelos em tamanho 
real do que iria ser tecido e que, devido à constante e violenta 
utilização, raramente sobreviveram (e de que os cartões para os Actos 
dos apóstolos de Rafael são uma notável excepção). Criando um fundo 
relativamente homogéneo a colagem destes desenhos, todos referentes com 
graus diversos de realismo e estilização a plantas, permitiu a 
construção de um campo onde a pintura acontece. É neste jogo entre o que
 se oculta e o que permanece visível que estas páginas encontram 
sentido.
Falando das paisagens em si talvez as vejamos como 
pessimistas e escuras. Por vezes inquietantes e inóspitas. Possivelmente
 também irónicas ou ridículas. Talvez tenham de ser assim. Fazendo 
minhas as palavras de Bernard: (...) e saí para a rua sozinho, de 
impermeável vestido, e as montanhas eternas fizeram-me sentir enjoado e 
nada sublime (Virginia Woolf, As Ondas)."
Se
 o João Francisco fosse um candidato a artista minimal-conceptual diria,
 ele ou algum curador por ele, que "reflecte sobre"... Mas ele não diz, 
nem sugere, pelo contrário, entrega-nos à nossa eventual vontade de 
atenção / interpretação ou à nossa cegueira. Quem pensará que uma obra 
de arte aborda (trata de..., tem por tema) assuntos sérios, e não é só a
 apropriação indiferente de uma imagem mediática ou um 'mero' exercício 
auto-referencial, dedicado à ideia de arte e à tradição da sucessão de 
formas (novas?), referido à 'soberania' da arte e ao 'Mundo da Arte' 
(como se lê com maíuscula e aparente convicção à entrada do ex-CAM, 
actual Museu Gulbenkian - "Anos 2000", dizem eles). 
O
 João Francisco não explica sobre (o) que 'reflecte'; pelo contrário, 
vai apontando para outras pistas, que teremos de seguir antes e depois 
de descobrirmos o assunto mais forte das suas obras recentes.
 
Ele
 não refere os retratos e auto-retratos que lá estão; não sinaliza as 
'vanitas' (variedade de naturezas-mortas que nos confrontam com a 
morte); não fala de pintura de história, que já não se povoa de 
mitologias e realezas mas se enfrenta ao quotidiano, à política, à 
história em que vivemos.
 
Alguém
 terá já tratado em pintura os dramas dos migrantes e refugiados 
africanos que se afundam no Mediterrâneo? É o que faz o João Francisco. E
 é muito forte.
 
 
 
 Sem título - nas ondas / um náufrago / a torrente, 2008 
 
"Sem título - Tempestade em Trouville - para E. Boudin", 2008, óleo sobre tela, 160 x 180 cm.