quinta-feira, 16 de abril de 2015

O artista espontâneo

O Rui Poças chamou fotógrafo espontâneo ao António Saramago, que expõe na Pickpocket (até 24 de Abril). A fórmula ou classificação parece-me rara, ou não me lembrava de a encontrar.

Depois encontrei artista espontâneo num escrito de Fernando Pessoa referente a Alberto Caeiro:

"Dir-lhe-ei, e estou certo que concordará comigo, que nada há mais raro neste mundo que um artista espontâneo — isto é, um homem que intelectualiza a sua sensibilidade só o bastante para ela ser aceitável pela sensibilidade alheia; que não critica o que faz, que não submete o que faz a um conceito exterior de escola ou de moda, ou de “maneira”, não de ser, mas de “dever ser”."
Fernando Pessoa, carta a Adolfo Rocha (Miguel Torga), Junho de 1930

O parágrafo surge assim no seu contexto:
"Em substância, e expondo discursivamente, o ponto de vista que lhe expus é o seguinte:
1) Toda a arte se baseia na sensibilidade, e essencialmente na sensibilidade;
2) A sensibilidade é pessoal e intransmissível;
3) Para se transmitir a outrem o que sentimos, e é isso que na arte buscamos fazer, temos que decompor a sensação, rejeitando nela o que é puramente pessoal, aproveitando nela o que, sem deixar de ser individual, é todavia susceptível de generalidade, portanto, compreensível, não direi já pela inteligência, mas ao menos pela sensibilidade dos outros.
4) Este trabalho intelectual tem dois tempos: a) a intelectualização directa e instintiva da sensibilidade, pela qual ela se converte em transmissível (é isto que vulgarmente se chama “inspiração”, quer dizer, o encontrar por instinto as frases e os ritmos que reduzam a sensação à frase intelectual; b) a reflexão crítica sobre essa intelectualização, que sujeita o produto artístico elaborado pela “inspiração” a um processo inteiramente objectivo — construção, ou ordem lógica, ou simplesmente conceito de escola ou corrente.
5) Não há arte intelectual, a não ser, é claro, a arte de raciocinar. Simplesmente, do trabalho de intelectualização, em cuja operação consiste a obra de arte como coisa, não só pensada, mas feita, resultam dois tipos de artista: a) o inspirado ou espontâneo, em quem o reflexo crítico é fraco ou nulo, o que não quer dizer nada quanto ao valor da obra; b) o reflexivo e crítico, que elabora, por necessidade orgânica, o já elaborado.
       
Dir-lhe-ei, e estou certo que concordará comigo, que nada há mais raro neste mundo que um artista espontâneo — isto é, um homem que intelectualiza a sua sensibilidade só o bastante para ela ser aceitável pela sensibilidade alheia; que não critica o que faz, que não submete o que faz a um conceito exterior de escola ou de moda, ou de “maneira”, não de ser, mas de “dever ser”."

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Há duas outras referências a poeta espontâneo noutros textos de Pessoa:

Fernando Pessoa (, que) inventou um “poeta espontâneo”, de nome Alberto Caeiro (“O extraordinário valor da obra do sr. A.C. está precisamente em ela ser obra de um místico materialista, de um abstracto que só trata das coisas concretas, dum ingénuo e simples que não pensa senão complexamente, dum poeta da Natureza que o é do espírito, dum poeta espontâneo cuja espontaneidade é o produto de uma reflexão profunda.”, (...) «A. C. ( Artigo para A Águia», in Pessoa por Conhecer - Textos para um Novo Mapa, ed. Teresa Rita Lopes, Estampa, Lisboa, 1990)

"Pretende o Poeta de si-próprio que é (1) um poeta materialista, (2) um poeta concreto, i[sto] é, das coisas sem acréscimo de ideias preconcebidas, (3) um poeta espontâneo, (4) um poeta da Natureza, isto é, anti-metafísico, e (5) um poeta ingénuo e simples.
s.d. Pessoa por Conhecer - Textos para um Novo Mapa. Ed. Teresa Rita Lopes. Lisboa: Estampa, 1990  - 357e.

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É óbvio que se trata de um sentido diferente do de criação espontânea, imediatista, não reflectida, automática.

Não é a mesma coisa que "outsider" / marginal, ou bruto/ "brut", ou ingénuo / "naif". E pode ser uma classificação útil, não carregada de sentidos com um inoportuno significado histórico e sociológico.

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Em Bruxelas existe um Musée de l'Art Spontané: http://www.musee-art-spontane.be/
( Le Musée d'Art Spontané regroupe différentes formes non codifiées d'expression artistique allant de l'art naïf à l'art brut )
mas esses alinhamentos e conglomerado são habitualmente penosos.

O termo art spontané ou spontaneus art não está na wikipedia.

DEFINITIONS (clássicos)
Jean Dubuffet
Nous entendons par là [Art Brut] des ouvrages exécutés par des personnes indemnes de culture artistiques, dans lesquels donc le mimétisme, contrairement à ce qui se passe chez les intellectuels, ait peu ou pas de part, de sorte que leurs auteurs y tirent tout (sujets, choix des matériaux mis en œuvre, moyens de transposition, rythmes, façons d’écritures, etc.) de leur propre fond et non pas des poncifs de l’art classique ou de l’art à la mode. Nous y assistons à l’opération artistique toute pure, brute, réinventée dans l’entier de toutes ses phases par son auteur, à partir seulement de ses propres impulsions. De l’art donc où se manifeste la seule fonction de l’invention, et non celles, constantes dans l’art culturel, du caméléon et du singe.
Jean Dubuffet, tiré de L’Art Brut préféré aux arts culturels, Paris, Galerie René Drouin, 1949.


Lucienne Peiry, directora da Collection de l'Art Brut
L’Art Brut et l’art naïf, l’art enfantin, l’art primitif
Les créateurs d'art naïf voisinent avec les auteurs d'Art Brut par l’originalité et l’inventivité qui animent pareillement leurs productions. Issus généralement d’un milieu populaire, ni les uns ni les autres n’ont suivi de formation artistique: ils disposent d’une culture simple, souvent rudimentaire, et s’engagent dans la création avec spontanéité. Mais les peintres naïfs se réfèrent à l’art traditionnel et officiel auquel ils empruntent les sujets (paysages, portraits et scènes de genre), les procédés de figuration (perspective linéaire ou aérienne) et la technique (peinture à l’huile sur tableau de chevalet). Tout en étant autodidactes, ils rêvent de palmes académiques, d’intégration, de reconnaissance, et sont attirés par l’institution muséale. Ils aspirent à la consécration culturelle et sociale. A l’inverse, l’auteur d’Art Brut ignore les instances culturelles, les normes et valeurs de l’art officiel, ou s’y montre indifférent voire réfractaire.
http://www.artbrut.ch/fr/21006/definitions-art-brut

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