sábado, 5 de junho de 1999

1999, Serralves: Circa 1968

 Expresso 5 Jun. 99

"Expor um paradigma"

A arte contemporânea começa em 68 ? O Museu de Serralves oferece obras e argumentos para o debate

«COM 'Circa 1968', a exposição inaugural do museu, apresenta-se um projecto museológico, uma filosofia de colecção e um conjunto de experiências artísticas que se definem pela superação dos limites de qualquer programa que as pretenda caracterizar e condicionar».
É assim que Vicente Todolí e João Fernandes definem sem definir, caracterizam sem caracterizar, a abertura das actividades do Museu de Serralves, num texto de introdução ao catálogo tão breve como conceptualmente fugidio.
O que seria uma biblioteca limitada a experiências literárias, uma temporada de concertos que só apresentasse experiências musicais? Felizmente, se os «experimentalismos» abundam no percurso da exposição inaugural – tantas vezes como vestígios de interrogações datadas, de contestações já descontextualizadas ou de tentativas de «superações de limites» –, há também algumas obras oferecidas ao olhar do visitante, algumas descobertas que se propõem à sua experiência sensível e intelectual, essa sim decisiva.

Ao fetichismo do experimental, que parece transferir para a criação artística o método das ciências, Picasso respondeu em 1923: «Tenho dificuldade em compreender a importância atribuída à palavra pesquisa (recherche) quando se trata de pintura moderna. Parece-me que procurar (chercher) não tem nenhum sentido em pintura. O essencial é encontrar (...) Quando pinto, o meu objectivo é mostrar o que encontrei e não aquilo de que estou à procura.» Não era só de pintura, obviamente, que Picasso falava.

Ter-se-á passado, entretanto, da arte moderna à arte contemporânea, como sucedeu ao nome do museu do Porto? Essa questão de mudança de eras tem-se posto com frequência, em torno de sucessivas datas, mas, sem o recuo do tempo, fazer história de arte a quente tem mais a ver com a vontade de administrar o presente do que com o rigor historiográfico ou crítico. Lembre-se que já se chamou Museu de Arte Contemporânea ao acervo quase só oitocentista que deu lugar ao Museu do Chiado.

O projecto actual de Serralves assenta na intenção de fazer vingar no campo das artes plásticas a teses de uma linha divisória «circa 1968», que não decorreria das turbulências políticas dos anos 60 – a contestação à guerra do Vietname, a Grande Revolução Cultural Proletária, as crises estudantis, etc – mas que de algum modo as acompanhou e simbolicamente reflectiu num processo de retorno ao activismo das vanguardas históricas dos anos 10 e de busca de diferentes modalidades de criação que não fossem recuperáveis pelo mercado e o museu (burgueses).
Foram anos de rápida sucessão de movimentos programáticos – arte minimal e pós-minimal, conceptual, «process art», «arte povera», «land art», «body art», etc –, em que a reactivação da ideia de vanguarda se identificou com estratégias ditas de anti-arte e não-arte: «o 'quase nada' do ascetismo abstracto, último reduto da essência da pintura, e o 'não importa o quê', herdeiro de Dada, última paródia da arte» (Raymonde Moulin, L'Artiste, L'Institution et le Marché, 1992).
Algumas grandes exposições, especialmente «Quando as Atitudes se Tornam Formas», dirigida por Harald Szeemann, em 1969 (em Berna, Krefeld e Londres), serviriam para marcar a ruptura contemporânea – e também uma das suas características decisivas, o predomínio do nome do comissário sobre os dos artistas e até mesmo dos estilos ou movimentos.

Dizem os directores de Serralves: «A partir da segunda metade da década de 60 questiona-se a autonomia e a 'essência' da obra de arte» (mas essas nunca foram noções fixas e sempre os artistas, ou alguns artistas, as questionaram nas suas obras); «assiste-se então à redefinição da condição da obra de arte, a um cruzamento de géneros formais, ao uso do filme, da fotografia e do texto como suportes de projectos conceptuais, a uma pesquisa das relações entre arte e vida que acompanham a agitação de novas ideias políticas e sociais, assim como a uma ruptura do conceito de moldura (...)» (só recobrindo a história anterior com o manto de uma mítica imobilidade da «tradição» é que alguma destas atitudes pode ser apresentada como alteração decisória); «o conceito de vanguarda torna-se globalizador, fazendo emergir na experiência artística aspectos globais da vida» (mas a vanguarda, que não é o mesmo que inovação, foi sempre globalizadora e em geral até totalitária).

Os comissários procuram tornar credível uma «mudança de paradigma», mas este termo tem de ser observado com radical desconfiança. É possível situar outras rupturas ou mudanças de paradigma nos anos 45-50, com a generalização da ideia de modernidade como encadeamento de inovações técnicas e estilísticas, e outra vez nos inícios de 60, com a internacionalização plena do campo artístico e o início da institucionalização da «tradição do novo» a cargo do Estado providência cultural.
A seguir a 68, logo outro paradigma surgiu nos finais dos anos 70, com a rejeição pósmoderna da visão teleológica das vanguardas e, depois dos «experimentalismos», a revalorização das disciplinas tradicionais.
No final do século revê-se a sua história sabendo que os grandes artistas participaram (ou não) nos movimentos de vanguarda mas conseguiram sempre escapar-lhes, construindo obras próprias que lhes são irredutíveis; revalorizam-se os períodos tardios e as carreiras solitárias, contrárias ao historicismo vanguardista e exteriores à actual academização das «linguagens experimentais», que é simétrica ao conservadorismo dos Salões do século anterior. A arte mais viva do presente segue outros caminhos e os museus centrais já não o ignoram.

O que importa nesse limiar proposto «circa 68» é o ritmo actual da rotação dos revivalismos, que recuperam e fetichizam como tradição o que a quis contestar. É também o peso das limitações dos meios financeiros postos à disposição da colecção, demasiado exíguos para disputar no mercado peças de períodos anteriores, mesmo do início dos anos 60 (todos os outros «paradigmas» são mais caros). E é, em especial, espelhando em 1968 os gostos institucionais de 1999, o propósito de usar o museu como pólo administrativo da criação.
Cite-se outra vez Raymonde Moulin, que é uma socióloga incontestada e não um crítico panfletário da «arte contemporânea»: «A arte orientada para o museu é uma arte que possui as características sociológicas da arte de vanguarda: define-se por uma dupla contestação, a da arte e a do mercado. Intelectual e hermética, é sustentada à partida pela comunidade artística e pelo círculo restrito dos profissionais da arte. Sobretudo, é uma arte assistida, cujos preços directores são os preços-museus, um termo de grande ambiguidade» (op. cit., pág 68).

Seria oportuno, entretanto, analisar detidamente o afirmado programa de «diálogo entre os contextos artísticos nacional e internacional», para notar como se utilisa a abstracção «arte internacional» (existe uma literatura ou um cinema internacionais?). A mitificação do internacional, tomando um regime de circulação como fórmula de valoração de artistas, certificada por uma rede de «especialistas» também internacionais, sustenta a antiga lógica do evolucionismo vanguardista mas nos moldes de uma degenerescência burocrática e faz ignorar quer a complexidade das relações entre centros e periferias quer o carácter local que marca a generalidade das dinâmicas criativas (os internacionais alemães são localizáveis em Dusseldorf ou em Berlim, entre os americanos distinguem-se os de Nova Iorque e os da costa Oeste, por exemplo).

Mas há aspectos positivos que devem ser realçados: uma ideia de colecção que não se interessa (exclusivamente) por «obras que sejam meras ilustrações de teorias», a escolha de algumas obras «mais íntimas» que divergem dos estereótipos e imagens de marca dos estilos, uma montagem que se distancia de «uma exposição de movimentos», através de salas que procuram uma lógica própria – segundo Todolí, a relação com a fotografia, o interesse pela paisagem, o espírito abstracto dos materiais, o paisagismo como auto-retrato, a redefinição da pintura, etc. Por outro lado, deverá notar-se a inclusão de obras que não se integram na lógica dominante do período de 1965-75, como são, no final, as notáveis pinturas de Georg Baselitz, Susan Rothemberg, A. R. Penck e Neil Jenney, artistas que já então subvertiam a tese da «mudança de paradigma», trabalhando sobre mais decisivas linhas de continuidade que atravessam todo o século.

II


Expresso 19-06-1999
Na inauguração do Museu de Serralves


"Despojos da luta e da festa"
As contestações dos anos 60 (e as modas dos 70) não resistem no espaço do museu. Os outros rebeldes menos efémeros foram excluídos

CIRCA 1968
Museu de Arte Contemporânea de Serralves, Porto (Até 29 de Agosto)

«NÃO TENHO nada contra os objectos de arte, simplesmente não tenho vontade de os fazer», dizia Lawrence Weiner, em 1969. Essa atitude de desqualificação da arte pode ter sido um exemplo particular, vivido em Nova Iorque, da ética cultural libertária do final dos anos 60, mas, três décadas depois, encontrar escrita na parede do museu a frase "Ao dobrar da esquina" / "Around the blend" é uma situação muito pouco estimulante.
Desacompanhada de informações sobre o contexto histórico e programático da arte conceptual, a «obra» é ilegível; integrada nesse contexto é uma mera informação sobre uma atitude, é um episódio anedótico e datado de um momento crítico da arte e da sociedade ocidental. Os slogans e cartazes de Maio de 68, ou de outras lutas da época, não se vêem nos museus de arte contemporânea, que são fiéis zeladores da autonomia e ensimesmamento da arte, ao contrário do que apregoam. Mas as «proposições» de Weiner encontram-se sempre em qualquer museu periférico e servem para os situar, aos olhos dos entendidos, numa rede de estabelecimentos elegantes que coleccionam «obras reveladoras de elementos de niilismo».


Lê-se no «Roteiro» oferecido aos visitantes de «Circa 1968»: «A montagem da exposição e os circuitos que nela são possíveis permitem ao visitante o confronto entre perspectivas, práticas e entendimentos diferenciados que sublinham o carácter disruptivo das obras que nela se apresentam».
Carácter disruptivo? Diz a 8ª edição do Dicionário da Porto Editora que o termo, em electrotecnia, refere o «salto de uma faísca entre dois corpos carregados de electricidade»; do latim «diruptio», «fractura, ruptura». O comissário Vicente Todolí parece usar a metáfora da faísca quando pretende que «as obras falam directamente ao espectador», o que justificará quer a exiguidade da informação disponível sobre a sua exposição – apenas uma lista de artistas por sala e um breve enunciado programático, pouco mais desenvolvido no catálogo – , quer a aparente arbitrariedade das escolhas e soluções de montagem. Se o visitante não notar a faísca (a aura dos objectos fetichizados), se não «ouvir» as obras expostos, sempre ficará a saber pelo folheto que «a exposição resulta das interrogações que cada obra suscita».

Quanto a rupturas, não há museu mais avançado que o do Porto. Procure-se em qualquer capital, Londres, Paris, Madrid, Nova Iorque, etc, e não se encontra uma tal dinâmica de «superação de ideias pré-estabelecidas e de preconceitos». Os grandes museus centrais ainda não dividiram o século XX em moderno e contemporâneo (pós-moderno?), nem deram conta da «mudança de paradigma» que ocorreu «circa 68», o que, pelo menos, lhes permitiria resolver o grave problemas das reservas superlotadas. Parece que ainda «pensam o museu como uma realidade estática», mas em Serralves já se sabe que «a arte é a busca ou o ultrapassar dos limites» e que o museu é «um novo fórum, um lugar de discussão e de superação dos limites dos indivíduos que nele coincidem» (cat.). Nunca se usaram as palavras de modo mais displicentemente terrorista para justificar os limites de uma visão restritiva da arte contemporânea.

O Centro Pompidou expõe Hockney e Robert Delaunay?, o Rainha Sofia mostra Roberto Matta e a arte cicládica?, a Tate Gallery revê Pollock e o círculo de Bloomsbury? Não se trata de um permanente reexame de fronteiras e valores, mas de meras concessões ao gosto do público e de sobrevivências das convenções estéticas e técnicas da tradição da arte (moderna). Em Serralves, a palavra-chave é «superação dos limites» e as obras que interessam são as que se caracterizam como «linguagens experimentais», revelam «elementos de niilismo», traduzem «uma subjectividade radicalmente livre» (a que se chamarão «obras idiossincráticas»), ou as que representam uma «traição estética» («até nos artistas mais conceptuais»).

O resultado global é um panorama onde, afinal, não há lugar para «o confronto entre perspectivas, práticas e entendimentos diferenciados», preenchido por uma produção em grande parte academizada no seu vanguardismo escolar e exangue, fechada sobre problemáticas que não são de modo algum contextualizadas, concentrada sobre os mesmos nomes de sempre (com três ou quatro desconhecidos que são irrelevantes), tantas vezes visível como a sacralização do quase nada, da banalidade e da insignificância, em oposição aos espaços criados por Álvaro Siza – sem faísca possível.
Um acervo árido, desvitalizado, autista e triste (o humor e a ironia, tal como o prazer, quase sempre foram banidos) em que quase nada faz reviver a agitação frenética, as lutas e as festas, dos anos 60. Uma selecção estereotipada e censória (as grandes alternativas do tempo estão ausentes), onde a arte se aplica em representar a sua desaparição, antecipando «a banalidade, o desperdício, a mediocridade como valor e como ideologia», para citar Baudrillard («Le Complot de l'Art», 1998).

No interior do terreno institucional da arte contemporânea, o museu, tudo é igualmente consagrado como arte e não resta ao espectador qualquer espaço livre «para questionar os limites do que poderá ou não ser considerado como arte», ao contrário do que se diz ser a proposta de «Circa 1968». A questão, aliás, é um logro, como Duchamp demonstrou de uma vez por todas. O que importa não é distinguir os objectos entre arte e não-arte, mas sim, num panorama em que tudo se equivale desde que cooptado pela área profissional da arte, experimentar e ajuizar a diferença de intensidades formais e significantes, de densidades estéticas e qualidades objectuais. Se tal distinção não pode ser universalmente provada, ela deve ser argumentável, ainda que o programa desta exposição vise destituir as condições possíveis de debate. Mas num dos textos do catálogo, Robert Pincus-Witten, o desencantado autor da etiqueta «pós-minimalismo», nota que, «ironicamente, quando a arte pós-moderna alcança alguma importância, a linguagem usada para a louvar é decalcada no discurso da pintura e da escultura – qualidade, beleza, originalidade, significado, termos de um género de facto proscrito à partida pelo debate pós-moderno».

Por vezes, consultando os escassos elementos disponíveis, parece sugerir-se uma sustentação teórica das escolhas na tese de uma mudança de paradigma que teria ocorrido em torno de 68, demonstrando as obras históricas da década de 65-75 uma ruptura substancial com que começaria o período da arte contemporânea. Mas Todolí corrige: não se trata de «a» história da arte que começa em torno de 68, mas de «uma história», a sua, «uma visão subjectiva e pessoal», estabelecida pelo comissário-artista: «nem a colecção nem a exposição inaugural têm a intenção de contar o que se passou – isso seria repetir a história ortodoxa ou fazer uma arqueologia» («El País»).

De facto, em «Circa 1968», proposta como «exposição-manifesto», «o ponto de partida é mais ou menos 1968, mas aquela época considerada do ponto de vista de agora»; «a base da selecção é a época de 60 vista a partir de hoje»; «as obras desta colecção, embora tenham sido feitas nesse período parecem feitas hoje». Para além da banalidade (uma história actual do impressionismo é feita a partir de hoje, necessariamente, revendo as histórias feitas antes) e do equívoco (são algumas obras de hoje que retomam as estratégias anteriores), trata-se de gerir uma rede ora idiossincrática ora institucionalmente consensual de exclusões e cooptações, através de uma selecção de objectos feita numa banda muito estreita da criação da época. A etiqueta «arte contemporânea» não é usada como uma marca cronológica em aberto, mas como um critério programático para recortar da pluralidade das práticas e das concepções artísticas de uma década anterior um segmento específico, quase sempre a sua área mais pobre e menos significante. Um segmento que é, no momento presente, tacticamente reciclado pelos gostos dominantes e oferecido à escassez de recursos do mercado institucional periférico, em oposição a outras e mais fortes realidades.

Quando Todolí diz da exposição e do museu que «não é uma colecção sobre movimentos» («a mim não me interessam os movimentos», etc), inviabiliza o entendimento das obras de um tempo que se caracterizou, de facto, pela emergência continuada e concorrencial de movimentos, e em que as obras, associadas a uma derradeira reactivação de lógicas vanguardistas, estiveram sempre intrinsecamente ligadas a tendências e teorias, quase sempre capitaneadas por críticos-ideólogos e apresentadas sob novas etiquetas estilísticas, com o seu cortejo de interditos e de formulários impositivos.

No contexto do decénio 65-75, grande parte da produção artística que se pretendeu de vanguarda sustentou-se numa intenção de prevalência da teoria sobre o objecto (opondo-se ao que seria, na «arte tradicional», a predominância do objecto sobre a teoria). Ao pretender, hoje, que as obras que escolheu «não são ilustrações de teorias», «não representam tendências», Todolí procede a uma operação radical de descontextualização que as transforma em objectos arbitrários e põe em prática uma concepção instrumental de fetichização de vestígios que é apenas uma lógica de administração do poder.

Sucede, porém, que a afirmação não é verdadeira e que «Circa 1968», no seu sector «internacional», é quase totalmente uma exposição de movimentos – de alguns movimentos –, estando ausentes os artistas exteriores a essa lógica da sucessão das tendências.

São «imagens de marca» ilustrativas da «arte povera» italiana as obras de Kounellis, Merz, Anselmo e Zorio, colocadas na sala central. Tal como são obras exemplares, quanto ao conglomerado «eccentric abstraction», «anti-form» ou «process art» que reage ao formalismo minimalista, as peças de Eva Hesse, Robert Morris, Bruce Nauman, Richard Serra e Barry Le Va. Mas, nas proximidades desta área norte-americana teriam uma densidade mais do que experimental obras de Louise Bourgeois, Kienholz ou Robert Ryman, e a oposição ao reducionismo ascético ou a implicação nas contestações políticas do tempo («circa 68») deveriam passar por Mark di Suvero, Kitaj, Peter Saul, Leon Golub e Nancy Spero, se não se preferisse o ensimesmamento à conflitualidade estética que mais radicalmente «questionou a autonomia e a 'essência' da obra de arte».

São ilustrações da arte conceptual mais anti-objectualista as presenças de Weiner e Mel Bochner, excluindo todavia a componente mais política do movimento (Victor Burgin e Art & Language, por exemplo) ou mais «linguística» (Kosuth). O mesmo sucede com as obras da «land art» e «arte ecológica», de Oppenheim e Smithson, Long e Fulton e suas variações regionais, com que se continua a percorrer um quadro arqueológico da época.

A alegada fuga às «imagens de marca» e a distância face aos movimentos é, de facto, tacticamente distribuída. Encontra-se no apagamento da arte Pop (e das suas sequelas «funk», «psicadelic», hiper-realismo), então dominante embora invisível na exposição, apesar da presença de Warhol e de Rosenquist (com um «ambiente» que é uma experiência exaltante, mas distanciada da matriz Pop). De Oldenburg, as peças compradas para a colecção são irrelevantes; de Rauschenberg, também anterior à Pop e um dos grandes artistas das rupturas pioneiras da década de 50 (com Cage e Merce Cunningham, Kaprow e Jim Dine, etc) mostram-se duas das mais fortes obras da exposição, na antiga Casa, onde a presença literal dos detritos se estrutura com a energia de uma disposição formal que não os anula enquanto objectos recuperados (é uma «traição estética»). Estão ausentes os realismos que se pretendiam críticos, a arte Op (MoMA, «The Responsive Eye», em 65), o cinetismo e em especial a arte minimal («Primary Structures», Jewis Museum, e «Systemic Painting», Guggenheim, N.I., 66), embora muitas das obras mostradas sejam apenas o seu negativo. Se a contestação radical do accionismo vienense não é evocada, o carácter extremo do «happening», «performance» e «body art» dilui-se em vestígios autistas ou é remetido para ciclos de vídeo; Fluxus, sem Nam June Paik e Wolff Vostell, com um Beuys funerário, perde o seu sentido interventivo. Muito do que os anos 60 tiveram de marcante assumiu com coerência o seu carácter efémero e só sobreviveu como informação; essa energia questionadora da arte e do mundo declinou com o final da década e fechou-se depois sobre a interrogação conceptual da natureza da arte ou a afirmação da subjectividade narcísica. Desapareceu a inquietação e a alegria desse tempo nos objectos congelados pelo museu.

Igualmente decisivo é observar como a atenção prestada ao uso da fotografia, numa sala própria, está presa a uma visão essencialista do uso dos «media», enquanto desqualificação e sucedâneo da pintura, nunca como abertura sobre os recursos da imagem e a presença do real, persistindo assim a fronteira aristocrática que sempre exclui a fotografia que não se reivindica da condição artística e do espaço da arte. É também por isso que a sala dedicada à «redefinição da pintura» não é muito mais que uma reconstituição do formalismo reducionista (embora se sigam Susan Rothenberg e Georg Baselitz).

Outro ponto marcante é a recuperação normalizadora do que foi a originalidade radical das duas exposições comissariadas por Harald Szeemann («Quando as Atitudes se Tornam Forma», em 69, e Documenta VII, em 72), que já então tinham carácter retrospectivo. Na segunda, aberta a obras «representantes de todas as imagens do mundo», compareciam «a arte conceptual e o hiper-realismo enquanto direcções apresentadas segundo pontos de vista formais», a par da linha das «mitologias individuais enquanto campos da criação subjectiva dos mitos», onde cabiam, justamente, mas com escândalo, as obras de doentes mentais e a arte religiosa popular.

Sobre o decénio em causa, dizia Szeemann, em 1991: «Hoje é possível ver a história dessa arte com recuo: a rebelião silenciosa e as primeiras manifestações, de 1966 a 1969, o estilo em 1971, a moda em 1973» (L'Art de L'Exposition, Ed. du Regard, 1998).

Uma diferente história de rebeldes, com Picasso (até 72), Balthus, Freud e Hockney e tantos outros fica por contar, e poderia ter em Philip Guston uma figura paradigmática, porque o seu regresso à figuração em 1966 foi um dos maiores choques do decénio, enfrentando com duradouras consequências o consenso vanguardista.

No início da década de 80, constatava-se que «a sobreacentuação da ideia de autonomia em arte que provocou o minimalismo e a sua consequência extrema, a arte conceptual, estava votada à esterilidade. Rapidamente, a vanguarda dos anos 70, com a sua concepção puritana, rígida, desprovida de qualquer alegria sensual, perdeu o seu impulso criativo e começou a estagnar», escrevia Christos M. Joachimides, ao apresentar a exposição «Um Novo Espírito da Pintura», em 1981.

A ocultação de obras e de memórias permite duvidosas operações. Mas talvez haja, de facto, uma perspectiva teórica subjacente à exposição, que pode ter a sua chave numa breve referência a um «conceito de vanguarda»: a selecção das obras realizadas em torno de 68 que parecem feitas hoje seriam as que «reapropriam interpretações particulares dos momentos euforizantes das experiências de vanguarda sucedidas entre meados dos anos 10 e meados dos anos 20». Que calendário é este que, além de tudo o resto, exclui o vanguardismo cubista, futurista, órfico, etc? Exactamente o que teria tido início com o dadaismo (Zurique, 1916), integra o construtivismo soviético, com ou sem o seu destino produtivista, e exclui o surrealismo (Paris, 1924). Desligado do seu contexto histórico, é um exercício de diletantismo pessoal e de arbitrariedade institucional. Soa terrivelmente datada outra frase de Todolí: «O modelo anterior – metafísico, do artista que está no estúdio – foi rejeitado. Os muros do estúdio tornaram-se falsos e a pergunta em questão é: se há limites e onde é que eles estão?» (entrevista ao «DN»).

Há, no entanto, outras situações onde a tese do paradigma e a exposição-manifesto aparecem justificadas por uma razão excessivamente prosaica: a falta de dinheiro para adquirir outras obras, para iniciar a colecção sobre outro «paradigma». «Tomando em conta as possibilidades, hoje, de começar uma colecção neste país, com um orçamento modesto em termos internacionais, percebemos à partida que ainda se podiam comprar coisas desta época – dos anos 60 – bastante em conta», diz Todolí («City»). De facto, uma tela de Lucian Freud (o retrato da mãe do pintor, de 1982) custou perto de 600 mil contos num leilão de 18 de Maio, o que equivale à verba total de três dos cinco anos de aquisições previstos para o museu do Porto.

O orçamento disponível e o programa do museu mantêm o círculo vicioso que desde sempre domina Serralves: sem meios financeiros e vontade política não há um programa museológico credível, e sem este (sem um projecto pluralista, não sectário, comunicativo e socialmente implantado, sustentado na possibilidade de fundamentar juízos de valor estético) nunca existirão os meios necessários, nem se justifica, aliás, que eles surjam.

EM PORTUGUÊS

A PRESENÇA portuguesa em «Circa 1968» deveria ter uma análise cuidada se não fosse por demais evidente que ela resulta em grande medida de uma mera gestão de compromissos e conveniências: por um lado excessiva – 37 para 70 estrangeiros –; por outro, em grande parte exterior ao tópico orientador da exposição, a tese da mudança de paradigma. Que fazem Fernando Lanhas, Paula Rego, Júlio Pomar, Jorge Martins, António Sena e outros em «Circa 1968», senão prosseguirem o que Todolí chama «a 'pintura de cavalete' não problematizada», quando «as obras começam a a sair para fora da tela» e tem lugar «a ruptura do conceito de moldura, o qual dá lugar à invasão do espaço interior e, por vezes, exterior...» (roteiro)?

Porque não estão representados Menez (que terá colaborado com João Vieira no quadro O Gato, de 67), João Cutileiro, Costa Pinheiro («Os Reis», em 1966; os projectos ambientais lúdicos de «Citymobil – arte-projecto», em 67-75) ou Eduardo Luís? Não importa. É bem melhor estarem ausentes, denunciando-se a arbitrariedade das escolhas, do que depositados numa cave mal iluminada e de acesso tortuoso, a sala nacional da exposição, porque não foi possível, disse-se, estabelecer pontos de diálogo com outros artistas – o que só significa que os grandes contemporâneos estrangeiros foram eliminados.

Entretanto, oferece-se a feliz oportunidade de observar como em tantos casos os artistas portugueses colocados em situação de «diálogo» internacional ficam tragicamente remetidos à situação de intérpretes menores do ar do tempo, de epígonos amaneirados de problemáticas alheias ou de «introdutores» em Portugal de qualquer estilo ou moda (desde os anos 50 que a crítica nacional foi assegurando esse método de avaliação e promoção de artistas, sempre de efeitos devastadores).

Não é esse o caso de Lourdes Castro, René Bertholo e Eduardo Batarda, a quem cabe, com o admirável e inclassificável Oyvind Fahlstrom (1928-1976), a representação exclusiva de um largo campo de trabalho em torno dos poderes e ilusões da imagem (chamou-se-lhe na altura neo-figuração, figuração narrativa, mitologias quotidianas, etc) que atravessou a década de 60.

Note-se ainda, por último, a aberrante representação da crítica portuguesa no catálogo, fazendo emparceirar os dois textos de protagonistas da época, Germano Celant e Robert Pincus-Witten, ou o estudo de Antje von Gravenitz sobre «O mito de '1968' na Alemanha», muito útil para entender o contexto regional dos alunos de Beuys, com uma prosa esforçadamente escolar de alguém que só podia ter um contacto indirecto com a época em causa e que a comenta com os piores vícios do academismo vanguardista.