FIGURA.FICÇÃO
Catálogo da retrospectiva de René Bertholo no Museu de Serralves
7 de Abril - 28 de Maio de 2000
 (Inclui textos de John Ashbery, André Balthazar, João Fernandes, 
Sebastião Fonseca, José-Augusto França, Jean-Jacques Lavêque e Alexandre
 Pomar. As entrevistas foram conduzidas por Xavier Douroux & Frank 
Gautherot, Pierre Restany e Jean-Luc Verley.)
1. René Bertholo é um actores, é mesmo um dos protagonistas, que
intervêm na conjuntura em que, no início dos anos 60, em Paris, tal
como em outras capitais, se procede ao ensaio das condições de
possibilidade de uma figuração entendida como nova, isto é, defendida
como de ruptura ou de vanguarda face ao predomínio das expressões
abstraccionistas. 
Esse é um ciclo complexo em que às manifestações de um corte geracional
e cultural se associavam linhas mais ou menos subterrâneas de
continuidade com precedentes práticas realistas e, especialmente, com
orientações críticas dos valores instituídos que se interessaram por
várias formas de figuração primitivista (infantil, popular, grafitista,
etc), desde Dubuffet e Chaissac até às manifestações do grupo Cobra, de
Appel, Jorn, Constant e outros, sobre heranças do surrealismo
revolucionário belga e com sequência imaginista e situacionista. Aos
«novos realismos» que se aproximavam da interpretação de uma nova
«natureza industrial, mecânica, publicitária» (1) por via da
apropriação directa dos seus produtos e detritos (assemblage,
acumulação), somam-se então as práticas picturais que buscam a sua
renovação no reportório das imagens populares da cultura urbana, sob as
designações Pop e neofiguração, a qual, em versão mais parisiense, se
nomeava figuração narrativa e, a seguir, figuração crítica. A
respectiva consagração enquanto atitude vanguardista seria tão rápida
como efémera, logo desvalorizada como prática regressiva (2) e
substituída pela aceleração da lógica das rupturas, ao ritmo de uma
crescente dissociação dos circuitos de legitimação, a que o seu próprio
êxito público dera lugar. Diferentes atitudes radicais, que recuperavam
o vector da autonomia formalista ou escolhiam o primado da atitude,
poriam então em causa, outra vez, a continuidade da pintura como medium
ainda potencialmente inovador e relegavam para a área do «mainstream»,
ou para a travessia do deserto, quase todos os artistas que estiveram
associados àquele processo. 
A década é tumultuosa. Nela se encerra a guerra da Argélia e abre a do
Vietname (e também as guerras portuguesas), transportadas para o
interior das metrópoles, num processo em que os sucessos económicos do
pós-guerra são confrontados com a estagnação das expectativas políticas
geradas pela vitória aliada, identificando-se a contestação ideológica
com a miragem da emergência de alternativas nas periferias
pré-capitalistas. (A conjuntura política, que aqui se terá de supor
conhecida, voltará a ser referida a propósito da obra de R.B., na
medida em que ele próprio se vai confrontar claramente com as marcas
mais efémeras daquela.) É também uma década que assiste à substituição
das consagrações parisienses pelo dinamismo de um novo centro, Nova
Iorque, e também à afirmação de outras capitais, aonde chegam mais cedo
os ecos norte-americanos ou que têm mais experimentada a sua condição
periférica. A França nunca mais saberia, até hoje, defender os seus
artistas e os estrangeiros que acolhia, tornando-se doentiamente
dependente dos gestos de reconhecimento vindos do exterior.
Sendo um dos protagonistas de uma dinâmica colectiva de renovação, e é
raríssimo que na arte portuguesa se verifique, em vez da dependência ou
da sintonia, essa participação plena no centro da acção internacional,
René Bertholo é – em grande medida por isso mesmo (o confronto surdo
entre estrangeirados e «resistentes» que no interior se acomodaram
continua a atravessar o panorama nacional) – o último dos artistas
portugueses afirmados nos anos 60 a ser objecto de um olhar
retrospectivo. Valerá a pena enfrentar o atraso da revisão da sua obra,
que muitas vezes foi sendo apontada como indispensável, mas que tem
ainda em Serralves uma abordagem só antológica.
		 
					
				Ter-se-ia de falar da dispersão real de uma obra que percorre 
então um largo circuito internacional de exibição, da Itália aos países 
nórdicos e também aos Estados Unidos – neste caso, por sinal, integrando
 um importante panorama oficial francês, «Painting in France, 1900-1967», itinerante por Washington, Nova Iorque, Boston, Chicago e São Francisco,
 cuja reduzida projecção funcionou como decisivo revelador da 
menorização do centro parisiense. Uma obra dispersa é mais difícil de 
reunir, e conhece-se a regra da facilidade e a pobreza de meios que têm 
curso institucional entre nós; não há nada como as obras de gaveta e 
atelier para favorecer as «descobertas» de que se alimentam os 
comissários, com a vantagem adicional de não sujarem as mãos procurando 
num mercado privado que, para mais, não precisou dos seus préstimos.
Ter-se-ia de falar também numa obra quantitativamente escassa, ou 
lenta, que nunca se estabeleceu como cadeia de produção, ao arrepio de 
outras «fábricas» que se tornaram emblemáticas da década de 60 e 
serviram de modelo aos circuitos de distribuição que a partir de então 
se começaram a montar com uma lógica já não artesanal – estava a nascer,
 sobre a contestação da década, a indústria do espectáculo cultural. 
Mais ainda, notar-se-á que René Bertholo constrói, desde 60 até ao 
presente, um universo imaginário particularmente individualizado e 
coerente que sucessivamente se retoma e reorienta, configurando-se 
sempre sobre novas condições expressivas, através de rupturas interiores
 mais ou menos explícitas, o que corresponde à recusa em estabilizar uma
 imagem de marca administrável como repetição «ad eternum» de múltiplos 
predefinidos e bem reconhecíveis, a que se chama em muitos casos a 
carreira. Poucos dos seus contemporâneos internacionais escaparam a essa
 tentação e raros foram tão incisivos como ele ao rejeitarem o 
carreirismo artístico e mesmo «a profissão» de pintor.
Por outro lado, se os primeiros períodos marcantes da obra de René 
Bertholo se reconhecem como característicos (e caracterizadores) dos 
anos 60, servindo por isso mesmo a habitual mas muito discutível 
tendência historicista de privilegiar os momentos de primeira 
consagração dos movimentos e dos artistas – de que resulta, em geral, a 
valorização sucessiva de cada vez mais curtos ciclos criativos e um 
relegar desatento e indiferenciado das obras de maturidade para um 
pantanoso «mainstream» –,  a produção mais recente do pintor, que é 
decididamente mais realista e abre, por isso mesmo, um campo mais vasto 
de possibilidades à expressão da imaginação e do sonho, que desde o 
início a alimentava, é aquela que hoje mais nos deve interessar, pelas 
qualidades próprias da sua realização pictural e pela originalidade 
radical do seu universo ficcional. Um universo imagético acertado com o 
seu tempo de realização, na sua própria dimensão autobiográfica e nos 
ecos, sintomas e questionamentos que o atravessam, mesmo se a 
dependência de valores mais correntes e mais mediatizados impedirão 
alguns de o reconhecer. E, em especial, uma obra que se enfrenta com uma
 das questões decisivas deixada pela herança modernista, a da 
viabilidade da ficção depois da desconstrução das convenções e dos 
mitos. 
Uma tendência dominante que substitui a crítica das obras 
pela aplicação mecânica das grelhas cronológicas ou geracionais 
esforçar-se-á por sugerir, como sucede por exemplo a propósito de Paula 
Rego, que na pintura de René Bertholo ocorre uma sobrevivência de 
problemáticas dos anos 60 – a continuidade das tensões bipolares 
abstracção/neofiguração, representação/apresentação (e também se dirá, 
noutras prosas ainda mais inconsequentes, que enquanto pintura se trata 
do prolongamento de uma tradição já muitas vezes extinta...). Não 
importa. Se a cegueira não for fatal, reconhecer-se-á que o que existe 
de participação numa dinâmica colectivamente renovadora nos anos 60, 
expressando com originalidade própria um certo ar do tempo, ao intervir 
na reabertura de um campo de expressão figurativa sem abdicar da sua 
aprendizagem das lições do automatismo psíquico e da exploração 
abstraccionista, evolui e enriquece-se depois no sentido de uma cada vez
 maior afirmação individualizada para ser uma das obras incontornáveis 
do presente – o virar do século. 
O trabalho recente de René Bertholo
 (como todo o seu trabalho, aliás, ao longo de diversas fases) não é o 
congelamento de um estilo pessoal ou a circunscrição de uma linguagem 
imediatamente reconhecíveis como um domínio de produção assegurado por 
um «copyright», como sucede, por exemplo, com Arroyo, Erro, Klasen e 
outros nomes que acompanharam a chamada neofiguração, no que esta 
ambicionou afirmar como exercício da constatação e do comentário. Sob os
 vectores da continuidade, não se caracterizando as suas últimas duas 
décadas por uma mutação por fases bem delimitadas, a obra sempre lenta e
 numericamente escassa da maturidade recente de René Bertholo é um 
processo constante de reapropriação, análise e transformação das 
aquisições anteriores, que se resolve sempre por uma ampliação de 
possibilidades expressivas e pela integração de novos questionamentos e 
novas imagens. Passando da inicial simulação – só simulação - de um 
discurso narrativo à afirmação plena da necessidade e possibilidade da 
ficcionação pictural.
2. O 
período da pintura de René Bertholo habitualmente identificada com a 
figuração narrativa durou apenas cerca de quatro anos, de 62/3 a 66, e 
encerra-se em ruptura com a respectiva caracterização enquanto tendência
 (veja-se o significativo diálogo com Pierre Restany publicado no 
catálogo da exposição de 1965 na Galerie Mathias Fels). O período 
seguinte dos «modelos reduzidos» é mais longo, de 66 a 73, mas é também 
numericamente menos produtivo, dadas as próprias características 
técnicas desses trabalhos, para além de constituir uma linha de trabalho
 mais solitária, menos directamente integrável nas movimentações 
colectivas então dominantes. O seu «regresso à pintura», a partir de 
1974, é acompanhado por um investimento principal, até por ser 
intensamente absorvente enquanto trabalho efectivo, em intervenções no 
espaço urbano, ou obras de arte pública, que ocupam o artista entre 1972
 e 1983, com uma pronunciada dimensão utópica que René Bertholo quis 
tornar acessível a todos os públicos e depois identificar com uma 
tradição da escultura popular. A primeira numa rua de Paris, a pintura 
de uma empena da Rue Doussoubs, no âmbito de um programa estatal de 
encomendas de intervenção urbana que se iniciara no ano anterior com 
Morellet (3); depois em vários edifícios escolares franceses, com 
sucessivas experiências de diferentes materiais (mosaico, cerâmica ou 
complexas construções esculturais, como o pórtico do Collège du Luzard, 
em Noisiel, 1978); a última já em Portugal, com seis esculturas em betão
 armado colorido, no Hospital do Barreiro.
Irregularmente, a partir 
de 1974, com os acrílicos sobre papel que no ano seguinte expõe na 
Galerie Lucien Durand («Mirages»), e mais regularmente a partir da sua 
instalação definitiva em Portugal, esse «regresso à pintura» constitui a
 mais longa das fases da obra de René Bertholo, a que corresponde a 
produção, sempre lenta, do seu mais extenso corpo de trabalho. A 
continuidade com as pinturas da primeira metade dos anos 60 é evidente, 
até pela retoma mais ou menos sistemática de elementos sígnicos aí 
presentes, mas é muito mais decisiva a evolução constante que se vai 
operando no seu trabalho. 
Nele se assiste à transformação da 
estratégia de acumulação e espalhamento de pequenos sinais isolados 
(objectos reconhecíveis ou não reconhecíveis), em quadros que recusam a 
sua leitura como «estória», mesmo quando parecem sugeri-la pela 
utilização de processos idênticos aos da banda desenhada, numa 
investigação sobre as possibilidades da ampliação, localização e 
adensamento desses sinais, que passam a ser cada vez mais dotados de 
volume, «peso» e sombra (sem deixarem de ser em muitos casos 
«abstractos»), ao mesmo tempo que passam a organizar-se segundo 
diferentes modelos de representação explicitamente narrativa de um 
universo ficcional próprio, onde o imaginário é mais claramente afirmado
 como uma dimensão intrínseca do real. Nesses modelos investe-se por 
vezes um sentido reconhecidamente autobiográfico (as «mulheres 
imaginárias», os «quartos», a casa e a paisagem do Algarve, etc), ou 
são-no também através da revisitação da obra anterior; outros casos, 
como o das suas pinturas em «episódios», mostram-se claramente como 
dispositivos ficcionais abertos a uma pluralidade de leituras, porque 
também não partem de uma história preconcebida («num quadro há milhões 
de histórias», dizia o pintor numa entrevista de 1984); enquanto ainda 
noutros casos Bertholo faz uma referência explícita a personagens de 
ficções tradicionais – nos seus quadros de 1995 aparece o coelho de 
Alice, que também é uma referência privada a um desenho de António 
Dacosta (O Coelho do António, etc), a Carochinha, o Capuchinho Vermelho e
 certamente o feijoeiro mágico (Coluna Sem Fim, A Árvore da Vida). 
René
 Bertholo recusara em 1965 a identificação dos seus quadros como 
figuração narrativa, no momento em que a fórmula se institui. Ao 
responder a um Restany que o interroga sobre o «risco» de as suas 
«imagens subjectivas» se organizarem numa narrativa (récit), R.B. diz: 
«Primeiro sabes muito bem que não sou um narrativo. Eu não conto nada. 
Depois, o meu tratamento da imagem (nas suas modificações como nas suas 
repetições) é inteiramente instintivo e espontâneo.» O tópico da 
narração, assim negado, associava-se então quer à defesa de um certo 
automatismo de tradição surrealista quer à recusa da «crítica política 
do género Arroyo», bem como ao respeito pelo interdito modernista do 
«literário», que praticamente extinguira a pintura de história e de 
género. Restany fala de «uma arte de evasão», Bertholo propõe-se 
«divertir os outros» no texto que escreve para o mesmo catálogo; 
notar-se-á, no entanto, que ele próprio retoma aí a ideia de narrativa, 
distinguindo-a da constatação e da denúncia ou crítica políticas, para a
 inscrever no domínio da ficção: «Encontrar para uso dos adultos 
qualquer coisa que corresponda  ao mundo dos livros da escola, ao mundo 
dos álbuns de colorir. Contar-lhes histórias de fadas, regá-los com 
vapores coloridos, faze-los sorrir. Deixar-lhes, no entanto, qualquer 
coisa para fazer: dou-lhe um cosido já pronto, mas que cada um deve 
temperar a seu gosto». 
É na obra que cresce a partir de meados de 70
 que René Bertholo vai descobrir como é que as suas telas se podem 
organizar como construções ficcionais, sem que a pintura se torne 
ilustração de um texto prévio, sem dependências  ou conotações 
«literárias», e onde ao seu tratamento «instintivo e espontâneo» da 
imagem corresponda também uma não determinação das respectivas leituras 
pelos espectadores (4). A questão do movimento-tempo é decisiva nessa 
evolução, e ela tinha passado por diversas experiências anteriores de 
inscrição ou utilização da «durée», tanto na sua pintura como nos 
«modelos reduzidos», antes de se afirmar com decisiva clareza nas 
sequências, compartimentações e episódios do seu período dos «quartos».
Entretanto,
 é particularmente relevante na produção mais recente a lenta mutação do
 trabalho da pintura, que radicalizou uma investigação sobre os seus 
procedimentos através do que René Bertholo designou como «Quadricomias»,
 na exposição de 1995, na Galeria Fernando Santos, no Porto (também 
mostrada em Lisboa no ano seguinte), e, logo depois, com o início da 
utilização experimental das possibilidades do computador na concepção e 
estudo prévio dos seus quadros. Antes de voltar a considerar a obra de 
Bertholo no seu devir cronológico, é oportuno referir estas duas 
inovações processuais, pelo que elas revelam, em versão recentíssima, de
 uma atracção continuada pelo emprego de meios mecânicos (que já vem de 
uma exploração precoce das técnicas de impressão, nos anos 50, continua 
com a construção dos modelos reduzidos e, depois, nas máquinas 
musicais), mesmo se logo nos anos 60, à revelia da pressão do tempo, a 
sua pintura não se deixou seduzir pela apropriação fotomecânica das 
imagens nem pelo império da comunicação de massas.
Nas 
«Quadricomias», Bertholo adopta na aplicação da cor o processo usado na 
reprodução impressa da fotografia, a selecção de cores, restringindo a 
paleta a quatro tubos de óleo – azul cobalto, vermelhão, amarelo cadmium
 e um cinzento quase preto –, e utiliza a cor em camadas sucessivas no 
«preenchimento» de um desenho prévio, ou suspende aquela sequência para 
manter vastas áreas monocromáticas ou explorar um colorido não 
«naturalista», de aspecto artificial, com a luminosidade do neon ou do 
ecrã. O processo que então designava como «quadricomia» tinha largos 
antecedentes: por exemplo, em Jeux sans Issue, de 1977, um dos seus mais
 antigos «quartos», o pintor restringira-se à cor azul. E o início das 
suas pinturas dos anos 60 já tivera lugar com a decisão de colorir as 
formas desenhadas.
Depois, graças à exploração dos meios informáticos
 (scanner, computador e impressora), René Bertholo liberta-se do que 
havia de fastidioso no seu processo de trabalho, quando retoma elementos
 miniaturais dos seus quadros anteriores e os sujeita a operações de 
ampliação, fragmentação, repetição e sequenciação. Não se trata de o 
incluir em qualquer «revolução digital» de que resultem objectos de 
diferente natureza – e nada indica, entretanto, que os meios 
informáticos tenham trazido alterações substanciais ao que também já era
 criação de imagens virtuais pela pintura ou, noutros artistas, pela 
manipulação de fotografias através da fotomontagem e das alterações 
laboratoriais, para lá do que resulta ser mais fácil e mais «perfeito». 
No entanto, é certamente possível detectar na última exposição de 
Bertholo (1998, Cascais e Porto) uma maior variedade de processos de 
construção do quadro que parece resultar da maior agilidade consentida 
pelo computador aos seus estudos preparatórios: aí encontramos a imagem 
unificada sobre uma tela de grande formato, A Heroína; a utilização de 
dois, quatro ou seis espaços repetidos; a retoma do processo de 
espalhamento e acumulação de figuras, mas numa sobreposição total de 
elementos de onde fica ausente qualquer «fundo» plano ou abstracto, em 
Indiana Jones; e ainda a composição inédita de Oh Céu de Agosto ou a 
aparente simulação da colagem em O Diabo, a Paraquedista, etc. O novo 
instrumento de trabalho assegura-lhe maior liberdade inventiva.
3.
 Uma retrospectiva que venha a reconstituir todo o trajecto de René 
Bertholo, iniciado na VII Exposição Geral de Artes Plásticas, em 1953, 
terá de explorar o seu primeiro período de trabalho, precocemente 
assinalado pela participação no 1º Salão de Arte Abstracta, organizado 
em 1954 por José-Augusto França na Galeria de Março, e prolongado até à 
presença na 2ª Exposição Gulbenkian, em Dezembro de 1961, com uma tela 
de vigorosa gestualidade informalista. Alguns desenhos serviriam talvez 
para localizar em germe tópicos e processos que serão diferentemente 
retomados pelas obras dos anos 60, a par de uma prática da ilustração 
ou, melhor, de actividade gráfica figurativa (em especial, na revista de
 cinema «Imagem», em 1955-58), ao mesmo tempo que se averiguaria o que 
significa a atribuição de títulos explicitamente narrativos à produção 
«abstracta» apresentada em 1960 na exposição do Grupo KWI, na SNBA, onde
 também mostrou «relevos» que se desconhecem. Esse é um período de 
intensa participação de Bertholo nas iniciativas de uma nova geração de 
artistas e de agitação do panorama artístico português, desde a fundação
 da revista escolar «Ver», em 1954, e da galeria Pórtico no ano 
seguinte, à co-organização do 1º Salão dos Artistas de Hoje, em 1956, 
nas vésperas de deixar o país em direcção a Munique. A revista «KWY», 
que começa em 1958 com Lourdes Castro, e toma depois o carácter de órgão
 de grupo ou de confluência de trajectos pessoais, até 1963, insere-se 
nessa mesma capacidade de criação e condução de projectos colectivos.
Decisiva
 é a mutação que o trabalho de René Bertholo conhece a partir de 1961, 
com os primeiros desenhos-acumulações que conduzem directamente às 
pinturas expostas em 63 na Galerie du Dragon, numa situação parisiense 
então marcada por grande dinamismo vanguardista, em que os encontros e 
cruzamentos de experiências são mais decisivos que as demarcações 
programáticas. O tempo e a actuação propagandística de Pierre Restany 
parecem isolar os «Nouveaux Réalistes», na viragem da década de 50 para a
 de 60, como movimento coerentemente programático e fechado sobre os 
seus nomes de referência, mas a realidade era então mais fluida e 
aberta. São ténues as fronteiras entre movimentações e direcções, e os 
artistas que Restany agregou com os seus manifestos incluem a linha dos 
«affichistes» que antes se associava aos «informais», convive com o 
experimentalismo cinético e com o grupo Zero, estará presente também na 
afirmação da figuração narrativa, com Raysse e Niki de Saint-Phalle. A 
participação na revista «KWY» de Christo e do pintor alemão Jan Voss, 
desde 1960, é indicativa desses cruzamentos. O nº 11, da Primavera de 
63, é organizado por Christo e em grande parte dedicado a Yves Klein.
A
 «nova figuração» que se procurava recobria genericamente uma 
distanciação crítica face à estabilizada abstracção lírica e informal 
parisiense, reafirmando a validade de figurações expressionistas 
anteriores. Em 1961, a Galerie Mathias Fels festeja os 10 anos dos Cobra
 e no ano seguinte apresenta a colectiva «Une nouvelle figuration», com a
 participação de Appel, Bacon, Corneille, Dubuffet, Giacometti, Jorn, 
Matta, Saura e De Stael, entre outros. Essa movimentação é exactamente 
contemporânea da afirmação do «Nouveau Réalisme» que Restany promove em 
«À 40º au-dessus de dada» (Galerie J, 1961) e ao primeiro confronto 
entre «neo-dadas» franceses e norte-americanos (Galerie Rive Droite, 
1961), que só no ano seguinte, na sua edição americana da Sidney Jannis 
Gallery, incluirá, ao lado de Rauschenberg e Johns, os futuros artistas 
Pop (5).
Bertholo participa em 1962 numa influente exposição 
colectiva comissariada por jovens críticos, «Donner à Voir 2», 
seleccionado por José Pierre, de filiação surrealizante. No ano 
seguinte, em que entra na representação portuguesa da Bienal de Paris 
(da qual é comissário César Moreira Baptista), está presente noutro 
ponto da situação promovido anualmente pela Galerie Charpentier sob o 
nome de «École de Paris», designação que continuava a traduzir a 
afluência de estrangeiros a Paris e tinha uma marca cosmopolita. É então
 Corneille quem o selecciona, ao lado de Baj, Chaissac, Jorn, Saura, 
Hundertwasser e outros; aí participam também Télémaque, Fahlström, 
Arikha, etc. No mesmo ano de 1963, é o mesmo José Pierre que o apresenta
 em «Image à Cinq Branches» na Galerie Mathias Fels, ao lado de 
Télémaque, Rancillac, Klasen, Voss e Reuterswäld. Logo depois, Bertholo 
intervém activamente, com Télémaque e Rancillac, na organização de 
«Mythologies Quotidiennes», 1964, que tem lugar no Museu de Arte Moderna
 de Paris, e a propósito da qual Gassiot-Talabot forja a designação 
«figuração narrativa» num contexto em que a Pop britânica e americana já
 é conhecida. Vimos que René Bertholo não acompanhou o sentido que viria
 a ter essa fórmula.
É numa orientação que assume alguma proximidade 
com um surrealismo liberto da sua iconografia estereotipada e com a 
linhagem Cobra que vencera a polaridade abstracção-figuração que René 
Bertholo iria passar das suas primeiras acumulações desenhadas para os 
quadros de acumulação de imagens. «Essa coisa de ir amontoando, 
amontoando, não sei de onde viria, tem provavelmente várias origens» - 
refere o artista na entrevista de 1984 já citada (6). Interrogando-se, 
recorda o seu primeiro choque perante as reproduções de Pollock e Tobey 
vistas em Lisboa na Biblioteca Americana, ainda antes do seu grande 
interesse por Klee; aponta depois, já em Paris, o encontro com os 
«cachets» e «allures d’objects» de Arman e a impressão causada pelos 
esquissos de Leonardo da Vinci em «páginas inteiras cobertas de 
bonequinhos». Essencial, entretanto, é a cumplicidade estabelecida com 
Jan Voss, numa constante troca de experiências ao longo de quase uma 
década, que seria curioso observar em pormenor. «De nós dois acho que 
foi ele que começou (não quero ser pretensioso) essa evolução. Ele fazia
 uns novelos, uma riscalhada que tinha muito a ver com a pintura de 
Twombly, que já usava uma espécie de grafitis... Era uma coisa que 
andava no ar.» Depois é Bertholo que começa «a misturar coisas 
figurativas e outras abstractas dentro de um mesmo espaço», seguido por 
Voss.
São objectos miniaturais em queda ou em voo sobre um espaço 
«abstracto» que pode ser, com ironia, atmosférico e ambíguo, mas é 
essencialmente gráfico e objectual, entendido o quadro como página e 
usado como suporte ou depósito de signos e representações, às vezes 
limitado por frisos ou dividido por configurações geométricas repetidas 
que têm algo a ver com os quadrados da banda desenhada, mesmo se os 
sinais desobedecem à compartimentação e brincam com a sequenciação 
narrativa. Heraldique, Formations Blanches, Table Verte, Babel Encore, 
La Voie Lactée, títulos de 1963, indicam que é o jogo da associação 
livre e paradoxal de elementos identificáveis ou não reconhecíveis que 
preside a essas obras, num momento prévio ao projecto de algum modo 
ficcional que existirá, logo no mesmo ano, em Le Désarroi de M. Thomas, e
 se reconhece em Mme Julia entre la Nuit et le Jour.
Em 1965, com Une
 Vie de Secrétaire e Casa de Paris (título a confirmar) a tela 
segmenta-se em áreas bem demarcadas, que funcionam por vezes como quadro
 dentro do quadro ou que se podem ver como «trompe l’oeil» de uma 
colagem de fragmentos com diferentes regras de composição, ou melhor, de
 preenchimento. As zonas de acumulação esvoaçante de objectos coexistem 
com alinhamentos de sinais repetidos (ou de representações, por exemplo,
 de uma fotografia que é uma natureza morta) e ainda com sequências de 
imagens que sugerem o movimento ou são aparentes inventários. A palavra 
escrita surge como objecto também, como comentário e legenda, como pista
 de leitura ou  acréscimo de irrisão. Em 1966, L’Idéal já inclui um 
projecto de «modelo reduzido».
Entretanto, pode situar-se nestas 
telas o aparecimento de motivos e personagens que voltarão a surgir em 
pinturas muito posteriores: em Une Vie de Sécretaire está a mulher que 
segura um vidro, com uma espécie de adesivo sobre os braços, a qual 
aparece de novo em Malabarismos, de 1998, e igualmente em O Diabo, a 
Paraquedista, Etc, de 1997, nesta última tela também ao lado da mulher 
paraquedista que está desenhada em A Casa de Paris.
Voltemos ao 
diálogo com Pierre Restany em 1965, intitulado «Le réel au delà du 
récit», um prefácio assinado em comum que está intimamente associado às 
tensões que ocorrem na cena artística parisiense – a radicalização 
política no seio do Salon de la Jeune Peinture e a afirmação da 
figuração narrativa por Gassiot-Talabot –, manifestando a demarcação 
nítida de René Bertholo face a ambas. O «pai espiritual do novo 
realismo, papa do pop parisiense e vulgarizador prosélito do animismo do
 ready-made», como o próprio Restany se identifica, distancia a «escrita
 das coisas» de Bertholo da neofiguração narrativa que então ambiciona a
 intervenção política, situando-o «fora da corrente». De facto, ele já 
não participará em «La Figuration Narrative dans l’Art Contemporain», de
 Gassiot-Talabot na Galerie Creuze, em Outubro de 1965, onde a 
indiferença de Duchamp seria militantemente «assassinada», nem em «Bande
 Dessinée et Figuration Narrative», organizada em 1967 pelo mesmo 
crítico (7), tal como não estará associado à escalada de activismo 
político em que se implicam diversos artistas parisienses. Bertholo 
dizia a Resteny: «Abstenho-me de qualquer pretensão à moralidade 
pública, de qualquer crítica político-social do género Arroyo. Como 
homem e como português acredito pouco, em 1965, na eficácia dessa 
crítica». No entanto, está presente em mostras italianas orientadas para
 a interrogação da situação contemporânea, como «Il Presente 
Contestato», em Bolonha, e «Alternative Attuali», Aquila, ambas em 65, 
tal como participa numa sequência ininterrupta de exposições 
significativas desse período: o Prémio «Marzotto» em 1966, com larga 
circulação internacional; o Salão de Maio de Paris, em 1967, reeditado 
em Havana; «Superlund», na Suécia, 67;  «L’Art Vivant», Fundação Maeght,
 68; «Distances», MAM, Paris, 69, etc. 
Àquela distância da 
politização dos discursos artísticos da época, soma-se a recusa dos 
processos mecânicos de apropriação das imagens (transposições 
fotográficas, impressões serigráficas, decalcomania industrial), que 
defende Restany. A atitude de Bertholo é tanto mais significativa quanto
 a sua pintura nunca foi nem pretendeu ser a exibição de qualquer 
virtuosismo do fazer e, por outro lado, o gosto pela exploração das 
técnicas de reprodução serigráfica fora evidenciado desde o tempo da sua
 formação em Lisboa e esteve na base da publicação do «KWY» e de outras 
edições. Porque não recorres aos processos fotomecânicos? a técnica da 
colagem nunca te tentou? – pergunta Restany. «O meu realismo consiste em
 reconstituir na minha memória a integralidade da forma. As imagens 
“ready made” bloqueiam-me a visão. Já estão  demasiado presentes. A 
decalcomania ou os processos mecânicos de reprodução da forma são tão 
académicos como a pintura» – responde Bertholo. 
Entretanto, seria 
curioso avaliar a incompreensão com que em Portugal se acolhem então as 
informações sobre as mutações que ocorriam no exterior, através de 
abordagens associadas a uma retardada tradição formalista e aplicadas em
 defesas programáticas que se colavam com um ritmo sempre excessivamente
 atrasado a ortodoxias já em vias de esgotamento, como ocorrera em torno
 do surrealismo no final da década de 40 e aconteceu com os 
abstracionismos na segunda metade da década de 50. Depois do culto pela 
polaridade figuração-abstracção, o gosto pelas classificações redutoras 
dá lugar a uma amálgama que se designa como «neofigurativismo», onde a 
ideia absurda de «figura pura» se vem somar à «cor pura» e ao «espaço 
puro», numa defesa dos «factores puramente plásticos» contra as ameaças 
de persistência naturalista, da qual se era cúmplice, afinal, no que 
esta teve de pior, a fatalidade de um lirismo nacional...
Curiosamente,
 rejeitados os processos mecânicos de apropriação das imagens 
mediáticas, a restrição às imagens de imagens, são as máquinas que vão 
então surgir na obra de René Bertholo, através da construção dos 
autómatos designados como «modelos reduzidos», os quais, apesar do seu 
nome, assinalam uma primeira possibilidade de passagem das 
representações miniaturais e acumuladas a imagens unificadas de grande 
formato. «A ideia que me veio foi fazer paisagens com movimento» (1984).
 «Procuro sempre ilustrar um só tema (...) tenho vontade de me limitar, 
de sugerir de maneira muito legível este ou aquele fenómeno da natureza»
 (8). O que seria então impossível representar em pintura ganha uma 
dimensão lúdica e irónica quando a figura se reduz ao arquétipo e é 
dotada de movimento.
A via aberta, por mais sugestiva que se 
reconheça, era de desenvolvimento necessariamente limitado, para além de
 vir a confrontar-se com complexas condições materiais de produção. 
Adquirido o movimento que a sua pintura anterior tinha ensaiado, 
Bertholo perdia no mesmo passo o recurso à memória, como processo 
essencial de activação do seu imaginário. Ao regressar depois à pintura,
 o seu projecto será «passar através da memória para descrever a 
realidade» (1984).
«Mirages», 1975: «uma longa série de acrílicos 
sobre papel onde jogava com a ideia de que alguém, tendo visto uma 
paisagem, tenta lembrar-se de como ela era e faz tentativas desesperadas
 para a encontrar na sua memória». «Mirages suite et fin», 1977, óleos: 
«A série seguinte mostrava retratos de mulheres, praticamente sempre 
imaginários e, aliás, pintados sobre a tela sem a ajuda de qualquer 
documento. Imaginação e memória. Em seguida pintei quartos de dormir 
onde montes de objectos heteróclitos juncavam o chão, as paredes e por 
vezes a cama, tornando-a muitas vezes inutilizável». «O prazer de 
misturar tudo num espaço imaginário, sonhos acordados». «Légendes», 
1981: «Imaginei que cada interior representava uma lenda», mas «estas 
lendas não têm um sentido definido à partida» (9). Todo esse trajecto 
não se acompanhou em Portugal (com excepção de uma mostra no Funchal, em
 1980, que não poderia ter eco continental), até que em 1984, na Galeria
 Ana Isabel, se iniciasse a série de espaçadas individuais de galeria 
(Nasoni, Fernando Santos) prosseguida ao longo da década de 90. A 
antologia não permitirá ainda sumariar os passos de todo este 
itinerário, onde a obra de René Bertholo constantemente se recicla, 
reorienta e amplia, numa situação de plena maturidade que nunca perdeu a
 frescura do seu humor. Os seus «puzzles», inventários e histórias, sem 
abandonarem o vector do jogo e da irrisão mas juntando-lhe a perturbação
 perante «os mistérios da existência e das estrelas» (1984), cruzam a 
dimensão autobiográfica com a reinterpretação do mundo afirmando os 
poderes do sonho e da imaginação. Propõem-nos espaços lúdicos de 
fingimento partilhado (J-M.Schaeffer). Reconciliam a pintura com a 
ficção.
 (1) Pierre Restany, «La réalité dépasse la fiction», 
prefácio para a exposição «Le Nouveau Réalisme à Paris et à New York», 
Galerie Rive Droite, Paris, Junho de 1961, in 1960, Les Nouveaux 
Réalistes, Musée d’Art Moderne de la Ville de Paris, 1986, pág. 267.
(2) Simón Marchán Fiz, Del Arte Objectual al Arte de Concepto, ed. Akal, Madrid, 1986, pág. 21.
(3)
 Ver Germain Viatte, «Au service de la création artistique», in Bernard 
Anthonioz ou la Liberté de L’Art, ed. Adam Biro, Paris, Paris, 1999, 
pág. 97.
(4) Para uma «compreensão positiva» da mimesis e mais 
especificamente da ficção, ver Jean-Marie Schaeffer, Pourquoi la 
Fiction?, Seuil, Paris, 1999.
(5) Ver Manifeste. Une Histoire 
Parallèle. 1960-1990, Centre Georges Pompidou, 1993, e Catherine Millet,
 L’Art Contemporain en France, Flammarion, Paris, 1987.
(6) Alexandre Pomar, «René Bertholo: Num quadro há milhões de histórias», «Expresso-Revista», 14 de Abril de 1984.
(7)
 No prefácio desta exposição, Gassiot-Talabot precisa a sua definição de
 figuração narrativa: «É narrativa toda a obra plástica que se refere a 
uma representação figurada “dans la durée”, pela sua escrita e a sua 
composição, sem que aí exista propriamente uma estória (récit)». Ver 
Gérald Gassiot-Talabot, «De la Figuration narrative à la Figuration 
critique», in Face à l’Histoire, Flammarion/Centre Georges Pompidou, 
1996, pág. 358.
(8) Conversa de René Bertholo com Jean-Luc Verley, catálogo da Galeria 111, 1972.
(9) René Bertholo, catálogos da Galerie Lucien Durand, 1981, e da Galeria Ana Isabel, 1984.