sábado, 9 de maio de 1998

EDUARDO BATARDA, 1998, Retrospectiva no CAM

 Falar de pintura pintando

09 Maio 98, Expresso Cartaz, pág. 25


No fim da retrospectiva de Eduardo Batarda


«Se o tema de um quadro se pudesse expressar por palavras, não teria havido necessidade de o pintar», escrevia Walter Sickert em 1910. O mesmo foi dito vezes sem conta, antes e depois (variando o que se entende por «subject»), e Batarda parece voltar a mostrá-lo nos seus quadros, renovando a diferença entre o olhar e o comentário («o completar de uma obra de arte inicia um desentendimento que' é eterno», escreveu em 1992). O comentário sobre o comentário poderá ser um caminho contra esse desentendimento?

Ao chegar ao fim a retrospectiva, é certamente curioso rever o texto de introdução ao respectivo catálogo, onde a obra de Batarda é apontada como uma das «mais marcantes e menos bem conhecidas da segunda metade do século em Portugal». Por um lado, é cada vez mais oportuno pôr a hipótese de que as obras maiores não são hoje as mais conhecidas, numa situação em que a circulação da informação parece ser total, globalizada e sem entraves, censórios ou outros. Esta semana, pôde constatar-se que um dos maiores artistas das últimas duas-três décadas, Avigdor Arikha, é um pintor desconhecido e cujo nome não faz parte da chamada cultura geral - e o próprio Arikha me indicou um pintor norte-americano, Rockstraw Downs, que ele situa entre os maiores (ou melhores, já que veio à Gulbenkian defender a possibilidade do critério da qualidade em pintura), mas não o encontro referido em qualquer livro ou dicionário, sem deixar por isso de atribuir a máxima credibilidade ao juízo do pintor e erudito israelita-parisiense.

Por outro lado, é significativo que se considere pouco conhecido um artista de quem se apresentam 200 números de catálogo que são propriedade de coleccionadores quase sempre particulares (a regra mais frequente das «antologias» é a atribuição à colecção do autor ou da galeria) e cuja exposição foi recebida com uma cobertura de imprensa (entrevistas, criticas, etc.) e uma atenção do público que se devem considerar muito pouco habituais. Esta passagem do catálogo parece assim interrogar o facto de Batarda ter estado ausente de todas as grandes representações institucionais que pontuaram a década («Tríptico», Europália'91; «10 Contemporâneos», Serralves 1992; «Depois de Amanhã», Capital Cultural 94; representações em bienais e outras). Ou seja, parece pôr em causa o mecanismo dominante das escolhas públicas, uma vez que a estas se associa uma certa ideia de visibilidade ou «conhecimento».


Carlinga , 3 (Small egg-shaped tartan ptg - verde, 1991, 90x60cm.
 
Outro ponto interessante da mesma introdução assinada pelos directores do CAM, que é um texto penetrante e uma boa síntese das interpretações da obra de Batarda, é a ideia - formulada com referências a Jasper Johns e a Beckett, por sinal, nomes de primeira importância - de que «a pintura-pintura» de Batarda «nos fala da impossibilidade de falar seja do que for». Na realidade, há um «excesso» de palavra na obra de Batarda (as inscrições explícitas nas aguarelas, as palavras muitas vezes cifradas dos acrílicos, os títulos dos quadros) e também à sua volta (os seus textos expostos, os prefácios às exposições, as entrevistas, críticas, etc.), que não nos permite admitir «a impossibilidade de falar seja do que for», o que é manifestamente possível, mas, muito precisamente, apontam a dificuldade (ou impossibilidade, no limite) de falar sobre a pintura.

Existia no primeiro período da obra de Batarda a possibilidade de um equívoco: o de se crer que a pintura «fala», de se entender «o discurso pictórico como realidade linguística» (na mesma introdução) ou de se ver uma pintura como uma imagem para «ler», no caso presente, como um comentário crítico (que também era) sobre a actualidade política, cultural e artística. O próprio autor, com o seu gosto pela autodenegação, autorizou essa «leitura» que reduz a linguagem pictural ao assunto, esvaziando o «como» na enunciação de «o quê». 

\Na segunda parte da carreira de Batarda acentuar-se-á «um trabalho ainda mais hermético e codificado sobre a pintura e os seus mecanismos»? Redondamente, não. Por isso, nas exposições de 1982-3, os acrílicos apareceram genericamente intitulados «Candeeiros, Cubismos, Cães e Colunas», o que devia servir de explicação bastante. Por isso, o prefácio de 1985 se intitulava «Decorações» e nele se afirma: «Falava de pintura pintando. Nunca eu quis fazer outra coisa»; «Os quadros são (...) o seu próprio manifesto, são afinal parábolas morais...»; são aquilo que «estão a ver», etc. Já contra a ideia da descodificação - ou seja, de uma leitura «mais preocupada com os aspectos analógicos, psicológicos ou sociais do que com os aspectos visuais» (citando agora Avigdor Arikha) -, Batarda acrescentava em 1986: «Valha-me Deus, as coisas que as coisas que as coisas lhes (nos?) parecem!»

Entretanto, também não é de «abstracção» que se trata, no sentido da procura de uma transcendência para além da representação do real visível ou de uma interrogação formal sobre os meios da linguagem pictural (a paródica inscrição «École de Paris» alertava repetidamente contra esses erros de leitura). «Destituídos de reconhecibilidade, sem sentido, os quadros "têm que ser" indiferentes, indeterminados, e, ao mesmo tempo, manifestam que existem, eles próprios, como dúvidas» (1992 - com data de 1892 e, por isso, antes do modemismo ... ). Indiferença é a palavra-chave (mas não a chave de qualquer saber hermético e codificado) que acompanhava então um diálogo pictural evidente com o Duchamp de 1913-17 (não com a sua revisão nos anos 60) - «pelo menos um objecto reconhecível da tradição modernista»: Fontaine, Séchoir à Bouteilles, 3 Stopages-Étalon (?).
Indiferença em vez de indizível, ou, por outras palavras, «ironia, distância, saber» (92). Depois disso, tornou-se-lhe possível abrir o seu trabalho em diversificadas direcções, como aconteceu.

Ao falar de pintura pintando, possibilidade sempre reafirmada em pintura - a que não convém chamar «pintura-pintura» -, Batarda dá-nos a ver que a relação com a pintura é uma experiência do olhar (retiniana, depois de Duchamp). Martin Avillez, no catálogo, diz a mesma coisa ao escrever que «a sua pintura foi e é uma pintura sobre as possibilidades de apreciar e julgar». Mas não é possível falar de «pintura sobre», no caso de tratar-se, como é o caso, de grande pintura.

Interior, 1992, 130 x 95 cm


Duas notas

7 Março 98, Expresso Cartaz Exposições, pág. 19
A relação com o museu marca a pintura de Batarda e a primeira  retrospectiva, 25 anos de trabalho, comprova-o plenamente, desde logo pela extensão do trabalho mostrado. Valeu a pena tirar partido das  circunstâncias da produção (comissariada por Alexandre Melo) e contrariar as regras de bom gosto do «design» expositivo para submergir o CAM com uma obra que inclui o excesso, a diferença e a provocação entre as suas marcas próprias. A última individual foi em 1992 e com o intervalo ganhou-se um efeito ainda mais «esmagador».

01 Maio 98 pp. 28-29
Batarda «coloca-se no centro do seu próprio sistema de crítica». A frase constitui um dos mais penetrantes comentários que a retrospectiva motivou, assinada por João Pinharanda («Público», 27/3/98). Poderia pensar-se que essa era a condição obrigatória para o reconhecimento de uma autoria, mas, afirmada como diferença chocante, perante a habitual dependência da informação e do gosto dominantes ou a gestão de traduções estilísticas correntes para português, ela vale como demarcação do projecto excepcional de uma obra.
É num sentido próximo que se pode entender Martim Avillez, num dos ensaios do catálogo, quando considera que a pintura de Batarda «é uma pintura sobre as possibilidades de apreciar e julgar». Trata-se, por um lado, de um importante deslocamento desde anteriores interpretações, favorecidas pelo próprio pintor, segundo a qual a sua pintura constituía um «comentário permanente ao estado actual das artes visuais» (1975), «fazendo coisas contra» («foi esse o meu programa desde sempre», dizia Batarda, ainda em 1992).
À hipótese de uma produção reactiva, que se oferecia como pista de compreensão (o comentário sardónico da actualidade política e artística inscrito no imaginismo narrativo da pintura sobre papel; a resposta ao jogo das conjunturas, com o ocultar da figuração nos acrílicos dos anos 80, etc), foi-se substituindo a distância e a indiferença, numa pintura que sabe, cada vez mais, que «a oposição à estupidez não tem que ter sucesso» (92) e que diz admitir «a incapacidade, a inoperância e o não-valor da pintura e da arte» (entrevista de E. Batarda no «Cartaz» de 14/3/98), continuando a praticá-las e, mais ainda, constituindo-se como centro de um «sistema de crítica» e repensando «as possibilidades de apreciar e julgar».
Contrariando a hipótese de niilismo levantada também por J. Pinharanda, esta pintura, que, de facto, se foi tornando mais erudita do que crítica, está do lado de uma vontade de reconstrução dos saberes, dos recursos e dos poderes da pintura. O enfrentamento com Duchamp que marcou a sua exposição de 1992, dominada pelo tomar dos dois «ready made» essenciais como assuntos da pintura, sujeitando-os à exploração de sucessivos desvios interpretativos, não tinha outro sentido.

sábado, 5 de julho de 1997

1997, Serralves, Alternativa Zero

 EXPRESSO/Cartaz de 05-07-97 

"QUESTÕES ALTERNATIVAS"   

"Contribuição abertamente polémica para a discussão de uma exposição histórico-mitográfica. A «Alternativa Zero» como momento fundador da burocratização das vanguardas"

«Perspectiva: Alternativa Zero» (1)
Fundação de Serralves

«Reapresentar hoje a experiência da "Alternativa Zero" implica a reconsideração de um contexto fundador das raízes da contemporaneidade artística portuguesa, através da reflexão sobre a actividade crítica e curatorial que o combate ideológico de Ernesto de Sousa representa, ao concretizar uma exposição que reunia toda uma geração de ruptura que, desde finais da década de 60, vinha afirmando as suas propostas e ampliando-a no contexto possível que o pós-25 de Abril poderá ter permitido» — João Fermandes (catálogo).
É raro que um discurso que pretende ser história se revele com tal evidência um exercício de mitificação-mistificação. O próprio autor e comissário da exposição o terá sentido, já que inicia assim a frase seguinte: «Não se trata de mitologizar esta experiência...».

Palavras como fundação e raízes sempre serviram para construir ou legitimar mitos, e é uma certa ideia de «arte contemporânea», nascida de uma suposta ruptura com a «arte moderna» que teria ocorrido por volta de 1968, que se propõe como horizonte de actuação da nova direcção de Vicente Todoli e João Fernandes em Serralves.
É de 1969 que data a paradigmática exposição «Quando as atitudes se tornam forma», organizada por Harald Szeemann, em Berna, seguida em 1972 pela Documenta de Cassel que o mesmo comissariou e Ernesto de Sousa visitou; então convertido à «vanguarda», aí teve um encontro decisivo com Joseph Beuys <*>, vindo a organizar a «Alternativa Zero» em 1977.
Tinha sido antes crítico de arte ligado ao neo-realismo, crítico de cinema e cine-clubista, realizou o filme Dom Roberto em 1960-62, foi encenador teatral e animador-agitador em geral, depois artista multimédia e «operador estético», como preferia dizer.

Que significa «mitologizar» no museu os restos (em muitos casos reconstruídos para a ocasião) de uma exposição-acontecimento tão decididamente marcada pelas ideologias do tempo — o «espírito de 68» e a «desmaterialização da arte» —, quando nela se propunham não objectos e obras, mas atitudes, intenções, processos, acções no quotidiano e no «contexto», por definição efémeras?
Que sentido tem, hoje (ainda, ou de novo?), falar da «geração de ruptura» de finais dos anos 60, quando outra se lhe terá seguido nos inícios de 80 (à volta do «Depois do Modernismo») e mais uma se manifestaria nos começos de 90? Sem esquecer que outra já se afirmara no final dos 50, como tentou provar uma recente antologia da década de 60, sob o título «Anos de Ruptura».
Esta sucessão das «rupturas», ao constituir-se numa ziguezagueante continuidade (aceleração última da «tradição do novo», conforme a fórmula de Harold Rosenberg, já de 1960), não exigirá, pelo contrário, a desmistificação do conceito de ruptura e da visão da história como sucessão de gerações?

Repescando como raíz mítica o neovanguardismo de finais de 60, uma actual «vanguarda» plenamente oficializada enquanto poder (no Instituto de Arte Contemporânea, em Serralves e no CCB, nomeadamente através de Isabel Carlos, João Fernandes e Pedro Lapa) sustenta a sua política «geracional» — institucional por definição, burocrática por vocação crítica — gerindo uma alternância de vagas (de rupturas e de modas). Agora, através da fetichização museológica dos vestígios de uma prática artística que pretendia precisamente opor-se a tal destino, em nome do projecto de mudar o mundo.

Transformou-se a natureza do poder, ou completou-se a domesticação de atitudes que tiveram uma dimensão original de contestação globalizante, com sentido político, ético e estético? Ou terá sido o discurso vanguardista, sempre, embora sobre diferentes faces, a afirmação de uma ambição de poder?

Como comissário de exposições, Harald Szeemann defendeu «a transferência do interesse para o processo, deixando de considerar essencial o resultado» (o objecto). Valorizou as «atitudes artísticas» e o «gesto» como «assinatura e estilo» — viriam a seguir as «mitologias individuais», depois de desfeitas as utopias colectivas. Desconsiderou o objecto, as disciplinas e os géneros artísticos, tanto de tradição académica como de anti-tradição moderna. Contrapondo os artistas que descobria aos «fazedores de objectos», Szeemann exprimiu «o desejo de fazer explodir o "triângulo" tradicional da arte: atelier-galeria-museu» e associou a rejeição da realização formal (tradicional ou moderna), o anti-formalismo, a uma ideia de «antiforma social» que reconhecia em alguns comportamentos juvenis emergentes na década de 60.

Foi, em paralelo com a contestação política do tempo (a mobilização contra a guerra do Vietname, o terceiro mundismo, os esquerdismos, as revoltas estudantis), o período dos vários movimentos designados como pós-minimalismo e arte conceptual, processual ou «povera», «land», «body», etc...

Mas, de facto, ao contrário do que sucedera com as vanguardas do início do século, surgidas em oposição à Academia, a nova dinâmica vanguardista já podia contar com o apoio activo das instituições culturais: a tradição da ruptura ía-se tornando a vocação de um sistema burocrático nascido com a inclusão da cultura entre as competências do «Welfare State», sobre a dissolução do sistema académico e a demolição gradual de anteriores concepções de democratização da cultura.
À distância, observa-se que o museu, agora encomendador e promotor directo, e já não só depositário de objectos reconhecidos como património colectivo, passou a deter a primeira posição no mesmo «triângulo» criticado por Szeemann, enquanto a «antiforma social» serviu de legitimação autoritária à oficialização de um poder artístico voltado para a satisfação exclusiva de alguns produtores e do seu «público especializado».

A «Alternativa Zero» deverá ver-se como repercussão nacional dessa dinâmica, com inevitável atraso — embora fosse já mais a síntese de um processo do que um manifesto inaugural. Muito mais alternativo, no entanto, também por volta de 1977, seria o discreto retomar da pintura por António Dacosta...

Em Portugal, o mesmo movimento de institucionalização das neovanguardas decorre acelaradamente após o 25 de Abril, mas, em 1977, as esperanças revolucionárias já tinham ficado para trás. A crise petrolífera de 73 abalara o sistema galerístico antes de se repercutirem no mercado e na prática artística os efeitos de 74: é a um primeiro desinvestimento da produção «tradicional» (pintura e escultura), devido à crise económica, que se seguem as acções de animação revolucionária. (Algo de semelhante, com outra argumentação ideológica, ocorreu nesta década, por efeito da nova crise económica...)

De facto, a «Alternativa Zero» terá associado a algum experimentalismo cuja importância convirá reconhecer (permiti-lo-á a presente exposição?) as desilusões resultantes tanto da paralização do mercado de arte como da diluição de expectativas associadas à revolução. Desaparecidos os «consumidores» e o «povo», os objectos de arte e a agitação político-cultural pareciam deixar de ter destinatários. Recentrar a prática artística sobre si própria, sobre a «essência» e o conceito de arte, as suas convenções e anti-convenções, a atitude e a intenção do artista, seria a resposta «natural» nesse contexto. Uma resposta autista e rapidamente esgotada, como veio comprovar a breve prazo a vaga «pós-moderna».

Entretanto, importa ver que a «Alternativa Zero» já é o resultado de uma confluência da «vanguarda» com o activismo das instituições oficiais — é essencial que a exposição tenha decorrido na Galeria de Arte Moderna de Belém e com o directo empenhamento da Direcção-Geral de Acção Cultural, onde trabalharam artistas como João Vieira, Julião Sarmento, Fernando Calhau, Vitor Belém (também expositores).

Reapresentar hoje a «Alternativa Zero» em Serralves é, acima de tudo, celebrar o «contexto fundador» que tornou o nome do comissário das exposições mais importante que o dos artistas participantes, ou seja, o momento em que o «projecto» se impõe sobre as obras, a intenção sobre o resultado, a atitude sobre o objecto. É assinalar um passo decisivo, para que em Portugal, se viesse a impor, à margem do mercado particular e do sistema museológico, mas também com autonomia relativa face à instrumentalização política por parte dos governos, um aparelho cultural de Estado (sobre o modelo francês) identificado com o «mundo da arte», tido como seu representante e dominador da circulação artística. Um poder de tutela, crítico-administrativo, que, ao sabor das fases de crise ou expansão da conjuntura económica, e sob a aparência das «rupturas geracionais», faz alternar tacticamente não só os padrões críticos como as suas relações com o grande mercado privado, ora associando-se-lhe sem qualquer pudor (nos anos 80) ora condenando-o com vaga argumentação «políticamente correcta» (anos 90).

É um outro sistema académico que assim se reconstrói e, tal como sucedeu antes, é possível adivinhar que a criação artística mais significativa do presente lhe é em grande medida exterior.
Vinte anos é o tempo suficiente para que uma «geração» que não assistiu à «Alternativa Zero» possa transformar a sua memória em restos museológicos, reinjectáveis nesse outro mercado que é hoje a cultura oficial e a indústria estatal do espectáculo artístico.
NOTA:  Devido à data de fecho desta edição, mas cumprindo o primado das intenções sobre os resultados defendido pela «Alternativa Zero», este texto foi escrito antes da visita a exposição onde se recolhem as respectivas relíquias. Outros comentários se lhe seguirão. (2)

(1) Notícia de 05-04-1997 (Actual, pág 3) 

 
Novo programa para Serralves
A programação de Vicente Todolí como director artístico da Fundação de Serralves arranca já no início de Julho com uma exposição que tem o título ainda provisório «Perspectiva 'Alternativa Zero'», depois de antes ter sido designada como «Uma década de ruptura - Os anos 70 em Portugal».
Mais do que de uma abordagem retrospectiva de toda a década, tratar-se-á, de facto, de um projecto em torno da mostra colectiva que Ernesto de Sousa promoveu em 1977 na antiga Galeria de Belém e que teve como subtítulo «Tendências polémicas na arte portuguesa contemporânea». Aí se reuniram praticamente todos os artistas («operadores estéticos», dizia-se então) que trabalhavam em áreas ditas experimentais e conceptuais, num contexto que terá sido, contra as expectativas da época, mais uma oportunidade de balanço terminal do que um momento de ruptura inaugural, mas que tem vindo a ser reconsiderado na presente conjuntura, graças às oscilações cíclicas das «sensibilidades» artísticas e às suas pulsões revivalistas. (...)

sábado, 12 de abril de 1997

Mónica Machado, 1997, Forum Maia

 Expresso Cartaz 12-04-97, pp 14-15

"Memória e imaginário do objecto quotidiano"  <Uff!!> 
"Uma jovem escultora portuguesa de Paris, Mónica Machado, inventa a escultura-mosaico: o objecto comum e o lixo encontram uma nova vida"

Bienal Arte Jovem, Fórum Maia

 

MÓNICA Machado foi, até há pouco tempo, apenas o nome de uma artista portuguesa de formação parisiense que se sabia ter sido premiada no Salon de Montrouge (um «salão» anual de jovens artistas na periferia de Paris) e feito uma primeira exposição com apresentação de Yves Michaud (filósofo e crítico, director da Escola Superior de Belas Artes de Paris, onde M.M. se diplomou em 92 e de onde ele se demitiu em 95).
Depois, a uma pouco vista 2ª Bienal da AIP, em Outubro, em Santa Maria da Feira, Mónica Machado trouxe duas obras, um grande e inquietante carrinho de bebé — Le Landau (Salomé Dolores) — e um corpo feminino que se abria no desvendar do seu interior — O Ovo (Petite Anatomie du Désir). Nos seus barrocos revestimentos de cerâmica e na montagem obsessiva de objectos e fragmentos, animados com movimentos mecânicos, som e luz própria, eram sedutoras e repulsivas «máquinas delirantes», insólitas esculturas de invenção original e carregadas de memórias artísticas.
A emoção dessa descoberta, proporcionada pela selecção do crítico Carlos França, levou a apontá-la aqui como a mais forte revelação de 1996.


Agora, numa outra bienal descentralizada que o Forum Maia dedica à «Arte Jovem», Mónica Machado faz reencontrar a sensação de perturbada estranheza que provoca o confrontro raro com uma obra independente da ilustração disciplinada de qualquer gosto tido por actual ou das «reflexões» que sazonalmente se substituem sobre despudoradas faltas de memória e de ambição — uma obra que é ao mesmo tempo divertida e inquietante, íntima e directamente comunicativa.

Três novas peças a juntar às duas já expostas (e às ilustrações de catálogo de uma individual de 1994, entretanto conhecidas) atribuem a esta presença, outra vez proposta por Carlos França - num diálogo muito estimulante com Sílvia Hestnes Ferreira, Fátima Mendonça e Rui Serra -, o lugar das obras que subvertem as hierarquias estabelecidas.

Mónica Machado tem, graças ao uso do mosaico e em especial do azulejo, partido e usado como revestimento de objectos ou como imagem e escrita, uma surpreendente ligação a tradições portuguesas (mas também a Gaudí e a outros visionários mais marginais). Por outro lado, revisita de modo original situações poéticas de utilização de objectos vulgares, imaginários quotidianos e surreais, práticas da acumulação e da «assemblage», com a energia de quem as comenta  através de um inventário sentimental mas irónico da vida própria.

O objecto de consumo corrente impera na escultura actual. É em geral sujeito a exercícios de disposição (instalação) que lhe confere ora a existência glacial dos alinhamentos nos espaços comerciais, ora a montagem arbitrária do quotidiano. O objecto tal e qual, pós-dadaista por definição, autoriza sempre a atribuição da vontade de ironia ou de crítica, ou é, noutros casos, seguindo as estratégias do incomunicável ou indizível, um «objecto ansioso» (Harold Rosemberg) que reclama do espectador o reconhecimento como obra de arte, se o lugar de exposição desde logo o não garante como tal.

Mónica Machado não circula por aí, vai mais atrás e mais fundo na memória e no imaginário do espectador. Colecciona objectos dentro de objectos, remonta-os e subverte-os por uma prática subtil de "bricollage", «utiliza os recursos do fragmento para produzir uma poesia da miniatura e da associação de ideias» (Y. Michaud), num jogo «ao mesmo tempo erudito e ingénuo» (idem) de «mise en abîme» que usa a forma adquirida da caixa-relicário para a perturbar com um sentido das metamorfoses.

Em L'Imbrication de valises (en carton), de 1994-97, sobre uma estrutura metálica móvel, uma das malas de cartão recobertas de mosaico contém a maquete exacta da sua morada parisiense, retomando o exemplo das casas de bonecas, enquanto outros recantos, janelas e gavetas (dotadas de iluminação local) podem recolher, escritos em fragmentos de azulejo, anúncios de casas recortados de jornal, incluir uma colagem-mosaico de medicamentos ou esconder um livro de fotografias pessoais. Uma longa «legenda» que deveria ter sido exposta orienta o espectador num desvendar das pregas desta escultura em episódios, que, com a chaminé e o espelho retrovisor, é o veículo-memória de um nómada.

Outra peça, A mala da tia Titi, é uma caixa de chapéu transformada em relicário, semelhante àquelas que se podem ver nos cemitérios portugueses, como diz a autora: uma vitrine mortuária referida a um parente preciso, que inclui fotografia, relíquias, louça, iluminação, e onde, como diz Y.M., o mosaico «imobiliza e petrifica o sentimento — ou cristaliza-o».

Em Ordures-Ménagère (morceaux choisis), 1996, em parceria com Gil Bensmana, o uso do lixo como material torna mais evidentes as possíveis relações com  as «Poubelle Menagère» de Arman ou os «tableaux-piège» de Spoerri, mas a regra formal do acaso, a ironia neo-dadaista e a composição pictural dão aqui lugar a uma calculada alteração da leitura dos dados imediatos. Os quadros-relevos de Niki de Saint-Phalle e as máquinas de Tinguely são, noutras obras, referências aproximáveis, mas, numa imprevista associação a tais poéticas, Michaud recorda também as caixas «à» Joseph Cornell e os objectos «à» Meret Oppenheim que se podem encontrar escondidas e miniaturizadas no interior das suas construções.
A enumeração dos materiais usados é extensa: «Caixote do lixo, pá, hélice, metal, resina, iluminação, louça, lixo: latas de conserva, ossos, ostras, cascas, espinhas de peixe, papéis, garrafas, etc...» O caixote eleva-se no ar como um foguetão, dotado de pequenas janelas circulares (lugares para outras surpresas), e o lixo jorra como um vómito, mas também como uma cornucópia, a partir de uma pequeníssima máscara oriental de boca escancarada, colocada num fundo a que a luz local confere uma aparência de braseiro-inferno — onde se verá ainda o resto de uma notícia sobre o terror do Ruanda...

"O meu trabalho consiste sempre em encenar objectos... recuperados através do quebrar e da justaposição, etc... para lhe conferir uma nova vida. onde todas as associações se tornam possíveis e o anacronismo se torna a regra do jogo.» Um jogo admirável.
(Nota: Aguarda-se ainda a publicação do catálogo para o comentário ao conjunto da bienal.)

sábado, 7 de dezembro de 1996

Fernando Calhau, 1996, ENTREVISTA (na criação do Instituto de Arte Contemporânea)

 


sábado, 4 de novembro de 1995

1995, Paris, Edward Weston / William Klein / Martin Parr

 WESTON/KLEIN/PARR : 

"Viagem fotográfica" 

EXPRESSO Revista de 4-Nov-95 (pp. 120-125)

A América de Edward Weston, redescoberta através das suas provas originais; Nova Iorque segundo William Klein, em edição revista e aumentada; o mundo visto por Martin Parr. Exposições e livros

Paris1

AS «vintages» de Edward Weston atravessaram o Atlântico. Vieram do Museu de Belas-Artes de Boston e estão em Paris, no Hotel de Sully, apresentadas pela Mission du Patrimoine Photographique, até 7 de Janeiro. Em 170 provas de época, é toda uma retrospectiva do grande fotógrafo americano, de 1903 até 1948, que se apresenta nas suas tiragens de eleição. Um acontecimento menos mediatizado que a exposição de Cézanne, mas que por si só justifica a viagem.
São «os Weston de Weston» da Colecção Lane, escolhidos de entre as mais de duas mil provas que constituiam a colecção pessoal do fotógrafo (1886-1958) e que, no final dos anos 60, inícios de 70, foram adquiridas aos seus herdeiros directos. A exposição coincide com o lançamento de Edward Weston — Formes de la Passion, na edição francesa da Seuil, que, com as suas 349 reproduções, cerca de um terço de imagens raramente vistas, passa a ser a mais completa das monografias que lhe foram dedicadas.
Não é fetichismo o interesse pelas provas originais de Weston. A perfeição das suas impressões por contacto, a partir dos negativos de 20 x 25 cm, a excelência do produto final, muito pouco manipulado, com os seus vivos contrastes de luz e bordos cortantes, fazia parte da sua própria concepção da criação fotográfica — «eram a sua maneira de falar da vida e do seu trabalho», como reconhecia William Klein, que nunca foi um perfeccionista: «Para Weston, que fotografa uma coisa tão simples e complicada como um pimento, é importante que a fotografia revele uma gama infinita de valores.» «O negativo é a partitura, a impressão das provas é a execução», dissera o próprio fotógrafo servindo-se de uma imagem músical.

William H. Lane, rico industrial de plásticos, foi um dos mais activos defensores da pintura modernista americana. Nos anos 50 começou a reunir uma colecção centrada nas obras de Georgia O'Keeffe, Arthur Dove, Charles Scheeler, Stuart Davis, John Marin e também Franz Kline, a qual veio a tornar-se célebre pelas suas digressões e mais tarde foi parcialmente doada ao Museu de Boston.
Em meados dos anos 60, com assinalável pioneirismo, W. Lane e a mulher, Saundra Baker Lane, passaram a dedicar-se também à fotografia, adquirindo todo o espólio de Charles Scheeler, pintor e fotógrafo «precisionista», e depois, orientados por Ansel Adams, a colecção deixada por Weston aos filhos Chandler, Neil, Brett e Cole, e ao neto Edward (Ted). Com outros acervos, de Imogen Cunningham e Brett Weston, por exemplo, os Lane reuniram uma das maiores colecções privadas de fotografia americana. 

Actualmente, a obra de Weston está partilhada entre a Colecção Lane, depositada no Museum of Fine Arts de Boston, e os Arquivos Edward Weston, do Center for Creative Photography, da Universidade do Arizona, Tucson, onde se conservam os seus negativos e documentos, outras provas de época e as «projects prints», impressas por Brett nos anos 50 sob a supervisão do pai, já então imobilizado pela doença de Parkinson. Ambas as instituições têm produzido as mais importantes iniciativas recentes em torno do fotógrafo de Point Lobos.

A AMÉRICA DE WESTON

A MOSTRA parisiense e o livro vêm na sequência das exposições do Museu de Boston, «Weston's Weston: Portraits and Nudes» e «Weston's Weston: California and the West», de 1990 e 94, respectivamente, e também da retrospectiva «Supreme Instants» que em 1986, por iniciativa do Centro de Tucson e com larga itinerância americana, assinalou o centenário do fotógrafo — recorde-se o artigo de Jorge Calado, «Nova Iorque: as mostras dos mestres», de 31 de Outubro de 1987.
Quanto à monografia, ela reproduz fotografias da Colecção Lane, a partir das provas de época, e dos Arquivos Weston, dos negativos originais, num volume monumental de 368 páginas de textos e imagens, que custa 595 Francos até 31 de Dezembro e 650 a seguir, sendo mais acessível na edição americana de Harry N. Abrahams, Nova Iorque. Tem a ambição da exaustividade e óptima impressão, mas não fará esquecer, certamente, o clássico Edward Weston — His Life and Photographs, «An Aperture Book» com publicação revista e definitiva de 1979, que inclui a biografia crítica estabelecida por Ben Maddow e a reprodução das fotografias no seu formato original, com uma excelência de edição dificilmente igualável.

Com introdução de Gilles Mora, o novo livro inclui ensaios breves mas eruditos de Terence Pitts e Truddy Wilner Stack (director e conservador de Tucson), Theodore E. Stebbins Jr. (Museu de Boston) e Alan Trachrenberg (U. Yale), sobre as diferentes fases da vida e obra de Weston: sucessivamente, as fotografias picturialistas e o primeiro realismo (1911-23); a aventura mexicana (1923-6), também a cargo de Mora; o período do mais clássico formalismo (1927-37), com o significativo título «O apetite de E.W. pelo objectos — os legumes e os nus femininos»; os anos Guggenheim (1937-9), e o último período (1939-48). O projecto editorial é de John e Dorothy Hill e sucede-se ao que G. Mora e John T. Hill dedicaram, em 93, a outro grande fotógrafo americano, Walker Evans. La Soif du Regard ou E.W. The Hungry Eye, distinguido com os Prémios Nadar e Krazna-Krausz Book. 

Quanto à retrospectiva, da responsabilidade de Mora e Pierre Bonhomme, segue a ordenação do livro e, como este, atribui uma importância não secundária à obra tardia de Weston, quando a atribuição das bolsas Guggenheim, em 1937, aos 51 anos, lhe permitiu finalmente encerrar o estúdio de retratista comercial e voltar à estrada para prosseguir a «série épica de fotografias do Oeste».
Com a «pureza» abstracta e sensual das imagens em grande plano de legumes e conchas, isolados como formas esculturais, tal como com os nus e as dunas dados a ver no exacto realismo mecânico do medium com o refinamento máximo das nuances tonais, Weston levou a objectividade do modernismo americano ao seu ponto mais radical. Personificou a «fotografia pura», que logo na década depressiva de 30 se poderia entender como uma direcção formalista, alheada das urgências documentais do tempo.

Mas Edward Weston, que desde o México era um excelente fotógrafo de paisagens e também de espaços urbanos, iria ainda abrir, com as suas explorações do Oeste americano, novas direcções de trabalho que mesmo os seus mais fervorosos admiradores, presos a um estilo codificado, tiveram dificuldade em reconhecer na sua complexidade.

Sem abandonar a perfeição soberbamente controlada das suas «pré-visualizações», as fotografias de viagem, em especial as que realizou para acompanhar a edição de Leaves of Grass, de Walt Whitman, tornaram-se mais receptivas ao efémero e ao acaso dos encontros, procurando menos a forma pura («a substância e a quinta-essência da 'coisa em si'», de 1924) que a descoberta das «mensagens codificadas… que exprimiam a ambiguidade da natureza das coisas», como disse a sua última mulher, Charis Wilson. A obra da maturidade tardia, libertada das exigências comerciais, ganha uma profundidade significativa, de tonalidades mais sombrias, que é também o «retrato» da vida americana, dos anos da guerra e das suas contradições. 

A erosão do tempo e os sinais da morte invadem uma natureza agora cada vez mais desordenada, em paisagens de terra árida e de rochas sem indicações de escala, visíveis como expressão metafórica de si próprio e do mundo, muito diferentes do idealismo romântico de Ansel Adams. «A morte não é um tema, é apenas uma parte da vida, simplesmente», dizia Weston, mas ela está cada vez mais presente, até às últimas e enigmáticas fotos encenadas.
Entretanto, em França, a vaga Weston, apimentada pela relação com Tina Modotti, prolonga-se com a publicação das traduções do Journal Mexicain, 1923-26 (col. Fiction et Co, ed. Seuil) e também das Lettres à Edward Weston, 1922-1931 (Anatolia Editions) da companheira da libertação mexicana, modelo, amante, discípula, e também grande fotógrafa. Mas o centenário da bela italiana celebra-se actualmente com uma exposição no Museu de Filadélfia, com o patrocínio de Madonna — e espera-se que chegue à Europa depois da sua digressão pelos Estados Unidos.

KLEIN, O LIVRO

SE com Edward Weston são as fotografias que importam, isoladas, autónomas e originais, com William Klein o objecto é o livro. O fotógrafo diz mesmo que ao captar uma imagem já «sabia que seria uma página dupla, uma cabeça de capítulo…».
New York 54-55 foi, em 1956, um escândalo fotográfico e tornara-se entretanto um clássico inalcançável, um mito. Finalmente reeditado, em versão revista e aumentada, mantém todo o impacto fotográfico e gráfico (aliás, já cinematográfico) que o tornou um dos livros mais importantes da história da fotografia. Klein acrescentou-lhe agora um prefácio e mais cerca de cem páginas suplementares com dezenas de imagens recuperadas das folhas de contacto iniciais. A publicação fica a dever-se a uma «poole» de seis editores europeus com associados no Japão e nos Estados Unidos. A versão francesa foi lançada por Marval (370 FF), a espanhola por Lunwerg, a inglesa por Dewi Lewis, de Manchester, etc.

Entretanto, a nova edição foi precedida pela primeira exposição americana dedicada às fotografias de New York, com a qual se inaugurou o novo edifício do San Francisco Museum of Modern Art, e elas virão também a Paris, em Setembro de 96, para a inauguração da Casa Europeia da Fotografia. Por enquanto, vê-se na FNAC-Étoile (até 11 Dez.) um

a instalação de documentos, maquetes e fotografias do livro, preechendo todo o espaço disponível da galeria com o mesmo domínio magistral da cacofonia.
Recusado na América e editado em Paris, por Chris Marker, New York foi um soco nas convenções da objectividade fotográfica e no realismo optimista e lírico do pós-guerra. As imagens eram demasiado escuras, desfocadas ou tremidas e o retrato da cidade demasiado caótico, irreverente, negro. Explorando o acaso, o grão, o erro, trabalhando os negativos no laboratório, Klein transgredia os limites e tabus da fotografia e abria novos caminhos. Realizado por um pintor que nascera em Nova Iorque, em 1928, mas que acabava de passar seis anos na Europa, o livro foi visto como uma revolução trazida das artes plásticas à fotografia e disse-se, mais tarde, que antecipou a Pop Arte.

Hoje, o novo prefácio recorda, numa escrita tão ágil como as imagens, cabotina quanto baste, uma história muitas vezes já contada: o «estado de sobre-excitação e a facilidade incrível de fazer fotografias», como se se tratasse de um diário do regresso à sua cidade e um ajuste de contas com a infância de judeu remediado.

 «Percorria as ruas como o Predador 1 armado com a imparável arma secreta: a câmara verdade. O que me siderava, minuto a minuto, é que tudo está lá ao alcance da mão. Tabuleta, chapéu, casaco, rosto, olhar, grupo. Estava tudo no visor. Cá está uma página dupla. Os jornais alinhados num escaparate gritam Gun, Gun, Gun — cabeça de capítulo. Tudo era de uma tal evidência, toda a gente tão disponível. Não me interessavam a ética em voga, a pretensa objectividade, a câmara invisível. Decidi ser visível, intervir e mostrar. Marcas de Brecht, mas também o paparazzi distanciado.»

INVENTAR NÃO-REGRAS

KLEIN não esqueceu as reacções dos editores americanos e queixa-se ainda de ostracismo: «Berk, cuspiam eles, que merda, isto não é Nova Iorque, é demasiado escuro, é só um lado das coisas, a 'zona'.» Mas adiante, numa legenda, recorda que à época já trabalhava para a «Vogue», com um contrato que iria prolongar-se por dez anos, e revela pormenores inéditos. O livro não poderia fazer-se sem financiamento, e foi o director artístico da revista, Alexander Liberman, depois de ter visto alguns trabalhos experimentais, que aceitou o projecto e pagou os materiais e o laboratório, embora depois não tenha publicado a reportagem prevista. A Condé Nast, acrescenta, tinha então uma tradição de mecenato cultural, mas Liberman, por prudência, recusou a ideia de uma dedicatória que deveria ter expresso o agradecimento do fotógrafo.

Com as legendas concentradas na abertura do livro, este vê-se, a seguir, como um filme, sem outras interrupções além da numeração dos capítulos, em algarismos brancos sobre o fundo negro: 1 — Álbum, 2 — Ruas, 3 — 5 & 10 (cêntimos ou «pennies»: «as pessoas no seu universo tipográfico»), 4 — Gun, 5 — I need (inscrições, graffitti), 6 — Funk, 8 — City. Ao mesmo tempo identificação e comentário, já com o recuo permitido pelas décadas que passaram, as legendas têm a tensão explosiva das fotografias. Desde a primeira: «Espectadores do desfile Macy's de Acção de Graças. Cartaz vigarice do sonho americano: polícia italiano, Latino integrado, mãe Yiddische, Afro-Americana de boina… o Melting Pot!»
Noutros casos, Klein vai dando indicações sobre processos e intenções:

«Eu tinha acabado de comprar uma objectiva grande angular e, ao olhar pelo visor, compreendi imediatamente que seria a minha ferramenta de trabalho. Regulada à partida, com ela podia dispensar-me até de levar a máquina ao olho. Atravessava a confusão dos passeios disparando à sorte. Só descobria no dia seguinte o resultado, enquadrado por acaso, ou por instinto. Não interessa, em qualquer caso eu gostava do que a máquina fazia quase sozinha, indiferente às regras da composição, às leis estabelecidas da perspectiva, ao número de ouro e todo esse paleio. Além disso, temos sempre os olhos à mesma altura, reflexos demasiado condicionados, intenções demasiado complicadas. Início do movimento de libertação da câmara.»

De facto, o autor sempre foi o seu crítico mais eloquente e soube sublinhar os riscos e méritos das inovações, em sucessivas entrevistas.

«Ignorando as regras, inventava não-regras para cada ocasião.» «A minha preocupação era pôr alguma coisa na película e ver o que podia fazer com ela no dia seguinte. Reenquadrando, ampliando pequenos pormenores, eliminando tonalidades intermédias, utilizando papel de mais forte contraste». «Photomathon, paparazzi, tablóide, pastiche, arte bruta, anti-foto, para começar. Não estava limitado por uma formação fotográfica ou por tabus e experimentava tudo. Grão, 'flou', desenquadramentos, deformações, acidentes.» «Queria fazer um jornal só para mim. Queria usar a mesma tipografia do 'New York Daily News', esse monstruoso tablóide com os seus scops, escândalos, a visão cromagnonesca da política.»

O modelo europeu de então era o Cartier-Bresson do pós-guerra, que trocara o acaso dos encontros surrealistas pela intencionalidade do testemunho militante. Mas a fotografia americana não era tão disciplinada como Klein a pinta. Walker Evans já fotografara o caos das ruas de Nova Iorque e os passageiros no metro sem olhar pelo visor. Weegee editara Naked City, Lisette Model explorara a indistinção das sombras e a máquina a rasar o chão.
Entretanto, Cage já começara nos 40 a cruzada contra «a vontade de ser artista» e a favor da arte efémera, valorizando o ambiente quotidiano e o jogo gratuito sem outro objectivo senão a «afirmação da vida». Rauschenberg, pintor e fotógrafo, inventara em 1953 as «combine paintings». Só faltava a indisciplina de Klein, o seu falso não-saber e a decisão de fazer um livro cinematográfico — ao mesmo tempo que Robert Frank, vindo da Suíça, fotografava também a sua América e fazia uma revolução paralela.
Depois, Klein fotografou Roma, em 1956, com publicação em 58, a a seguir Moscovo e Tóquio. O seu cinema arrancou em 1958, com Broadway by Light, sobre os anúncios luminosos, tido pelo primeiro filme Pop. E, entre a pintura e a fotografia, «a arte» e a moda ou a publicidade, os filmes e os vídeos, nunca mais parou.

PARR, O BANAL INVISÍVEL

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Martin Parr, sem título, 1995 (Magnum Photos 1995 / Galerie du Jour Agnès b) foto do convite

MARTIN Parr é um homem da era da televisão, o fotógrafo do consumismo e o seu crítico mais ácido, com uma obra torrencial que explora todos os meios e lugares de circulação. Três novos livros ou catálogos e outras tantas exposições foram, em Outubro, outra forte presença parisiense.

O Centre National de la Photographie, instalado no Hotel Salomon de Rothschield, rue du Berryer, mostrou «Small World», exposição organizada pela Photographer's Gallery, de Londres, com edição francesa prefaciada por Roland Topor: Quel Monde!, «a global photographic project» sobre o mundo dos turistas, realizado entre 1987-1994 (Marval, 1995, 96 págs., 280 FF; ed. inglesa, Dewi Lewis Publishing).
O desenhador e escritor «pânico» apresenta: «O turismo de massas resulta de uma ideologia do consumo, como as cruzadas e as peregrinações eram o fruto da fé religiosa. O destino dos novos cruzados já não é conquista dos Lugares Santos, mas a apropriação dos Lugares Comuns.»

Em salas paralelas expunha-se um inquérito sobre os ingleses e os seus automóveis, levado a cabo, em 1992-3, em conjunto com a rodagem de uma série homónima de cinco filmes com texto e direcção de Nicholas Barker. From A to B — Tales of Modern Motoring, de Martin Parr, é um livro BBC Books, de 1994, e uma exposição que andou em itinerância por 52 áreas de serviço das estradas britânicas.
O projecto é já uma sequela de Signs of the Times — a Portrait of the nation's taste, livro e série de TV que explorou as atitudes inglesas a respeito da decoração doméstica, do bom e mau gosto no lar. Para esta nova produção, 70 automobilistas foram interrogados e filmados pela BBC 2: as mulheres e os carros, carros de serviço, carros familiares, os carros dos filhos e as discussões conjugais. Parr fotografou sempre depois da rodagem dos filmes — a reportagem é encenada, os modelos são actores dos seus próprios papéis — e as imagens são expostas com frases produzidas pelos retratados, por vezes em provas de grande formato.

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Na inauguração do CNP, segundo relatou o «Le Monde», Cartier-Bresson, colega da Magnum, não conteve o comentário azedo: «Nós pertencemos a dois sistemas solares diferentes. E porque não?»
Autor de um imenso inquérito sobre os modos de vida e os gostos das classes médias, Martin Parr, com a sua câmara 6×7 e o flash usado com luz diurna, que faz explodir as cores e condensar o espaço, nunca é um repórter invisível nem distanciado. O seu olhar é assassino mas também muito próximo das pessoas. Parr está entre os seus, «fascinado pelo quotidiano vulgar».

Ao mesmo tempo, a Galerie du Jour agnès b exibia e publicava os seus últimos trabalhos, sem título. Aqui proliferavam os pequenos formatos com molduras douradas e havia algumas impressões em pratos de porcelana. O Untitled Catalogue surge como uma sequência de fotos de página inteira sem comentário.

É uma nova direcção de trabalho de Parr, com recurso sistemático ao grande plano, enquadramento directo e registo cru das cores, até ao vómito. O tema é a alimentação e em especial a «fast-food»: bolos de cores ácidas, restos de comida, uma colher no feijão, embalagens, o ovo com ketchup, e também um cachimbo pendente de um lábio, um crucifixo sobre um decote masculino, o peru meio trinchado junto ao candeeiro, duas mãos dadas, o pão de plástico, o lixo envernizado, o creme com a cereja. A presença monstruosa dos objectos, o banal invisível.

Martin Parr nasceu em 1952 em Epson, Londres, e vive em Bristol. Os Encontros de Braga mostraram «The Cost of Living», de 1989 (em 91), e «The Last Resort», os ingleses em férias, de 1986 (em 95).
Um crítico entusiasta, Michel Guerrin no «Le Monde», aponta-lhe o pessimismo de Diane Arbus, a atracção de Walker Evans pela cultura vernacular, a faculdade de fazer entrechocar os planos como Lee Friedlander, a facilidade de Garry Winogrand para apanhar as pessoas no turbilhão das ruas, a mesma vontade de Robert Frank de confrontar-se com os temas das fotografias. As melhores referências. Com mais comedimento, pode dizer-se que é o chefe de fila da actual fotografia britânica de reportagem, herdeiro de Bill Brandt e Tony Ray-Jones, contemporâneo de Chris Killip e Nick Waplington.
Diz que «o mundo dos grandes repórteres, das guerras e dos refugiados, não tem nada a ver com aquele em que vivemos»: «Mostro coisas pelas quais os fotógrafos não se interessam, porque lhes parecem evidentes. Mas não são.»
O heroísmo fotográfico não lhe interessa, porque «o mundo é ridículo». «A fotografia é um formidável medium para estabelecer a diferença entre o mito e a realidade.» Mas acrescenta: «A fotografia não é a realidade, mas sim um confronto entre o fotógrafo e os seus assuntos.»

 

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sábado, 15 de julho de 1995

1984, 1995, René Bertholo, índice

 René Bertholo 1984 -

1984 Abril
08 - «O jogo das memórias de René Bertholo», DN
14 - «René Bertholo: num quadro há milhões de histórias», entrevista, «Expresso Revista», 14-IV-84.
14 - «O regresso» (R. Bertholo e os outros), «Esta semana», crónica , DN

«René Bertholo», «Expresso Revista», 7-IV-84  e 21-IV-84.
«René Bertholo», «Expresso Revista», 23-IV-88 e 14-V-88.
«René Bertholo», «Expresso Revista», 23-V-92.

«Anos 60/Anos 90», «Expresso Cartaz», 13-VIII-94.

«Contramundos», «Expresso Cartaz», 15-VII-95. - #
«René Bertholo», «Expresso Cartaz», 17-II-96 e 9-III-96. - #
«A máquina de pintar», «Expresso – Cartaz», 14-XI-98. - #
«René Bertholo», «Expresso Cartaz», 17-X-98. - #

RENÉ BERTHOLO
Palácio Galveias - 17-02- 1996
Depois das últimas exposições no Porto, a pintura de R.B. volta a poder ver-se em Lisboa, por iniciativa da galeria Fernando Santos, numa situação em que a sua obra atravessa algumas renovadas direcções temáticas e construtivas, na sequência da passagem de Paris para o Algarve. Entretanto, é uma abordagem retrospectiva que continuará a aguardar-se, conhecida a originalidade com que a sua obra se inscreveu na corrente da figuração narrativa dos anos 60 e o sólido percurso posterior pelos objectos mecânicos e pelo «retorno» à pintura. Ainda que a sua produção se encontre disseminada por colecções de vários países, o que torna o projecto particularmente complexo para a preguiçosa rotina das instituições, há que pôr à prova a respectiva competência... e também o seu sentido das responsabilidades. 

09-03-1996
Em cada quadro há milhares de histórias, disse R.B. numa velha entrevista. O pintor não as «conta»: oferece-nos, pintura a pintura, a possibilidade de fazer de cada personagem, revisitado ou inédito (os «mal-educados», os marcianos, o coelho de Alice revisto por Dacosta,  a Abelha Maia a filha de Costa Pinheiro, os pássaros-aviões), de cada objecto ou lugar, «reais» ou inventados, o suporte de um jogo infindável de efabulações e reencontros. É um outro universo, de R.B. e nosso, que vamos ganhando, devorador de outros universos de fábula e de história, onde, por exemplo, o feijoeiro mágico é árvore da vida, coluna sem fim e pintura de motivos vegetais — natureza morta ou viva? — como há muito não se via. É de inventividade da pintura que se trata, e R.B., que fragmenta as composições com uma nova eficácia, que experimenta inéditas aplicações da cor (as «quadricomias») e a ampliação da escala das figuras, que retoma com outro fôlego alguns temas já experimentados («o quarto da Torre») e alarga a dimensão imaginária, surreal, da sua obra, está num momento particularmente feliz da sua pintura. A exposição, em últimos dias, reapresenta telas já expostas recentemente no Porto («Cartaz», 15-07-95) e acrescenta novas obras.

René Bertholo
Centro Cultural da Gandarinha, Cascais
17-10-1998
Pinturas recentes, de 1996-98 (e não «mais ou menos recentes», que tem outro sentido no texto de apresentação de Carlos França para o livro editado). A uma primeiro olhar poderia estar-se perante uma simples continuidade de trabalho, reconhecendo-se a retoma de soluções de composição experimentadas (a construção do quadro com dois, três, quatro ou mais espaços repetidos, com referência à estrutura da BD e também a Magritte) ou a presença de personagens e elementos figurativos «já vistos». De facto, a pintura de R.B. atravessa uma «fase» em que o aparente reciclar de materiais explode com uma imprevisível liberdade imaginativa, convocando todas as suas memórias para as reinvestir com mais energia e sentido do risco, no ensaiar de novas situações enigmaticamente narrativas (Malabarismos, O Diabo, a Pára-Quedista, Etc., Plantas Locais). O espaço cenográfico desaparece por completo, ao mesmo tempo que a escala dos personagens aumenta (por exemplo, A Heroína, herdada de O Capuchinho Vermelho?, de 94; Sem Sombra de Dúvida e Oh Céu de Agosto, afastando-se aqui da estratégia da acumulação e do horror ao vazio), ou que as construções em fragmentos sucessivos se interpenetram com uma crescente complexidade. Entretanto, é também a fórmula da «quadricomia» que é radicalizada, usando, no limite, apenas as cores azul e vermelho, numa prática da pintura que se diverte com a redução dos seus meios sem se autolimitar no poder de questionar o quotidiano com a irrupção do sonho. (Até 25)