O João Soares perdeu as eleições para Pedro Santana Lopes e o CAL foi esquecido.
Maria Calado, Ana Tostões, os Aires Mateus estavam no projecto. A doação do espólio de Keil do Amaral à CML foi então formalizadao
O João Soares perdeu as eleições para Pedro Santana Lopes e o CAL foi esquecido.
Maria Calado, Ana Tostões, os Aires Mateus estavam no projecto. A doação do espólio de Keil do Amaral à CML foi então formalizadao
"Um universo maior"
Expresso Cartaz de 1/12/2001, pág 24
António Quadros não cabe de corpo inteiro na exposição que lhe foi dedicada pela Árvore
ANTÓNIO QUADROS, «O Sinaleiro das Pombas» (Árvore, Porto, até 12 de Dezembro)
O ritmo dos eventos da capital cultural não é propício a projectos retrospectivos, que desde a mostra inicial «Porto 60/90» se fizeram com atropelos de investigação e produção. É o que acontece com António Quadros (1933-1994), intrigante personagem que foi pintor e poeta - João Pedro Grabato Dias, entre vários heterónimos - e se dispersou enciclopedicamente por outros interesses, muitos deles levados à prática em Moçambique entre 1964 e 1984.
O programa da exposição foi assumido pela Árvore, que não tinha estruturas nem espaço para tal desafio; adiada até um fim de ano abreviado para outras iniciativas, ficou reduzida a uma convencional exibição da obra plástica e breve catálogo, comissariados por Laura Soutinho e Bernardo Pinto de Almeida, remetendo-se outra parte, presumivelmente mais alargada, para um livro de formato bancário (BPI) e intenção natalícia que só mais tarde terá, se tiver, circulação pública.
Justificava-se uma aproximação que cruzasse as várias vertentes de uma obra e actividade de ambição renascentista, servindo de exemplo a exposição que Serralves dedicou aos múltiplos rostos de Fernando Lanhas, reeditando a sua retrospectiva de 1988.
Quadros foi um homem de temperamento difícil, sarcástico e talvez irascível, para quem o desafio feito aos «filósofos das brasileiras», logo no seu Manifesto da Pintura de 1958, não era só um arreganho juvenil. Animador de muitos projectos, provocador face aos pequenos poderes locais, foi muitas vezes esquecido, também como poeta, e não é fácil de classificar e conter em esquemas regras pré-definidas.
Expõem-se na sala maior da Árvore pinturas do percurso escolar e algumas outras mais, mas que não bastam para situar uma produção que teve na viragem dos anos 50/60 uma grande visibilidade, mesmo oficial. Não está lá por inteiro o pintor que expôs na última das Exposições Gerais, em 56; na 1ª da Gulbenkian, em 57 (um famoso nu frontal e impúdico, com um dos seus belos rostos amendoados); nos salões dos Artistas do Norte e depois nos Novíssimos, passando da SNBA ao SNI, na 1ª Bienal de Paris, em São Paulo e outros lugares, várias vezes premiado e logo adquirido pelo Museu Soares dos Reis dirigido por Salvador Barata Feyo.
A sua figuração visionária e em contacto com expressões populares (deve-se-lhe a «descoberta» de Rosa Ramalho, que levou a dar aulas na ESBAP, nos tempos de abertura da direcção de Carlos Ramos) podia ser praticada, no Porto, como uma afirmação inovadora já subsequente, como a de Eduardo Luiz, ao abstraccionismo da geração anterior dos Independentes (Lanhas, Nadir, Arlindo Rocha e até Resende), mesmo que não se adivinhasse a «nova-figuração» que se seguiria. Em Lisboa, as lides críticas regiam-se por categorizações e formalismos mais rígidos, opondo a abstracção ao fantasma do neo-realismo, face uma nova geração nascente - Bertholo, Lourdes Castro, Escada, Costa Pinheiro - com quem Quadros expôs na Galeria Pórtico e fora do país, antes e depois de todos estes emigrarem.
Recuperado como surrealista por Cesariny, em 73, o universo imaginário de Quadros participou de alguns climas poéticos de Chagall, com elegância gráfica e decorativa, também em gravura, ilustração e cerâmica, procurando o «potencial mágico» dos fabulários e da arte popular (ao tempo da Antologia da Música Regional e do Inquérito à Arquitectura) para «Pintar Pintura» em oposição «à forma lógica da escola francesa», como dizia no notável Manifesto já citado.
Semelhantes recursos às mitologias locais e aos bestiários fantásticos surgiam na América Latina, por exemplo, com Francisco Toledo e Jorge de la Vega, já depois de terem interessado os artistas Cobra.
Da estada africana o pintor trouxe uma linguagem menos estilizada e de mancha diluída pelo uso do aerógrafo, onde a efabulação é por vezes mais gravemente monstruosa ou ameaçadora. Se o humor não deixava de estar presente, desde logo em títulos como Senhora e Cabra em Ascensão, Dois Saltões, um Articulado, um Zambezelho e um Luso-mimético, aí sereconhece também uma diferente dimensão mais convulsiva e trágica.
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António Quadros
Casa da Cerca, Almada
Expresso de 9/2/2002 (nota)
Remontada num novo espaço, a exposição que o Porto 2001 dedicou a António Quadros ganhou uma dimensão totalmente diferente. Não se recuperaram as pinturas dispersas que deveriam testemunhar a grande visibilidade irreverente que o pintor teve em exposições e em representações internacionais na viragem dos anos 50/60, mas as mesmas peças disponíveis, diversamente organizadas em sucessivos núcleos, dão plenamente conta da originalidade do seu imaginário pessoal e de um caminho inquieto por múltiplas pesquisas, humores e referências.
Jogando ora na diversidade das técnicas e das direcções de trabalho — a cerâmica, a gravura, o desenho elegantemente estilizado, a pintura de experiência escolar, de inspiração popular ou submersa em lamas informes, os palimpsestos de fantasia e pesadelo (des)realizados pelo uso do aerógrafo —, ora na organização por interesses temáticos, juntando homens silvestres, lobos e lobisomens, cabras e outras «bichezas» imaginárias ou míticas, o itinerário segmentado da exposição, conduzido por uma criteriosa disposição que destaca as peças emblemáticas, tornou-se uma aventura ao encontro de um mundo poético irredutivelmente desalinhado das convenções formais predominantes.
Entretanto, foi publicado pela Árvore um álbum - «O Sinaleiro das Pombas» -com textos de Amélia Muge, Bernardo Pinto de Almeida, António Cabrita e José Forjaz, onde à produção plástica se acrescentam abordagens dedicadas à produção do poeta Grabato Dias e às múltiplas actividades em Moçambique entre 1964 e 1984. (Até 10 Mar.)
1. Expresso Cartaz de 24/11/2001, pp. 32-33
Da retrospectiva em Matosinhos à Fundação do pintor em Valongo (à margem da capital cultural)
JÚLIO RESENDE, Paços do Concelho de Matosinhos (até 20 Dez.)
FRANCISCO BRENNAND, «No Acerto com o Mundo» (Fundação Júlio Resende, Valbom, Gondomar, até 2 Dez.)
O panorama do Porto, como qualquer panorama, é feito de diferentes e desencontrados círculos, meios ou nichos do pequeno mundo da arte, mas é alargando os itinerários até à periferia que a cidade de Manuel de Oliveira, de Eugénio de Andrade, de Agustina e de Siza Vieira se reencontra com outro dos seus nomes, Júlio Resende. Esta área alimenta-se mais facilmente (mais oficialmente) de esquecimentos ou exclusões do que outras.
É em Matosinhos, por iniciativa da sua Câmara, que se pode ver, neste ano de particular significado para o Porto, a obra do principal dos seus pintores. A homenagem necessária tomou a forma de uma ampla retrospectiva da pintura de Resende, embora na sua muito extensa produção, material e cronologicamente, tenham também relevância o desenho e a aguarela e, em especial, a grande decoração instalada em lugares públicos, com largo recurso à cerâmica (objecto de uma mostra do Museu do Azulejo em 1998).
Comissariada por Armando Alves, que colaborara na retrospectiva apresentada em 1989 na Fundação Gulbenkian, contando então com a retaguarda da Galeria Nasoni, a mostra apresenta o maior número de obras de Resende desde sempre reunido, incluindo, no seu início, muitos trabalhos datados dos anos de formação do pintor, em Portugal e em Paris, e nunca mais expostos ou mesmo reproduzidos.
No amplo piso subterrâneo dos Paços do Concelho projectados por Alcino Soutinho – um espaço de garagem que será substituído pelo edifício da biblioteca e galeria já em construção ao seu lado -, a montagem ocupa uma área folgadamente labiríntica, onde a sequenciação cronológica adopta, com êxito, o critério de fazer algumas aproximações e cruzamentos entre obras de períodos diversos, tornando visíveis ao mesmo tempo núcleos coerentes e, sem compartimentos estanques, a diversidade de orientações seguidas ao longo do tempo, sob a essencial continuidade de uma dedicação à figura humana que foi sendo abordada com diferentes humores expressivos e uma mesma ambição humanista. Da grave monumentalidade das obras da primeira maturidade dos anos 50, marcada pelo rigor construtivo das formas e pelas tonalidades sombrias ou frias de uma paleta concisa, até à explosão ora trágica ora lírica das décadas mais recentes, onde a instabilidade das manchas de cor se alia à livre espontaneidade do desenho descritivo.
É o espectáculo visual, intenso e ágil apesar da sua extensão, e sempre fortemente impressivo, que predomina nas presentes condições de montagem, adequadas à intenção da homenagem, mesmo se se poderia ambicionar uma produção mais norteada pela abordagem historiográfica, que possivelmente não houve tempo de fazer. A ausência de numerosas obras pertencentes à Faculdade de Belas-Artes (dos Fantoches, de 45, tese de licenciatura, ao Douro, Faina Fluvial, de 62, concurso de agregação) e à Gulbenkian (quadros marcantes, como Figuras à Mesa, Pescadores, Pintura nº 2, de 56, 57 e 59), bem como de outras telas antologiadas em publicações anteriores (citem-se Ribeira, de 52, Cabeças de Mendigos, de 54, Grupo da Beira Mar, de 56), não deixa de revelar alguma precaridade organizativa, mesmo se se teve acesso a um enorme número de telas, além de não projectar com toda a sua importância a representação da década decisiva da obra de Resende, os anos 50, que, no seu todo, não têm paralelo na produção nacional e ombreiam à época com a melhor pintura europeia.
No catálogo publica-se um extenso texto de Laura Castro onde se retoma o essencial da monografia que já dedicara ao pintor (Imprensa Nacional, 1999) e que constitui o mais atento estudo sobre a formação e evolução da obra de Resende, acompanhada por observações sobre a respectiva circulação pública e fortuna crítica. Produzido no contexto universitário como dissertação de mestrado, esse é um contributo importante para uma historiografia a que tem faltado a investigação objectiva em contacto com as obras e as fontes directas. Haveria agora que desenvolver, em especial para as obras dos anos 50, todo um trabalho de restituição de títulos esquecidos (abundam os «sem título», que não corresponderão às nomeações originais), confirmação de datas e recuperação de informações sobre locais de exposição, tanto mais que as obras de Resende tiveram uma visibilidade central nessa década, das Exposições de Arte Moderna do SNI (Prémio Amadeo Sousa Cardoso em 49 e 52) à retrospectiva, então sem precedentes para um artista de 44 anos, no Palácio Foz e na ESBAP, em 61, passando pelos repetidos envios à Bienal de São Paulo (premiados em 51 e 59), pelo Salão dos Artistas de Hoje, em 56, na SNBA (premiado), e pelas exposições da Gulbenkian (2º prémio de pintura em 57).
Só restituindo a Resende o lugar central que ocupou ao longo dos anos 50, sem que tal implique dar credibilidade à habitual periodização por décadas, é que será possível rever a história desse tempo, corrigindo a sobrevivência das dicotomias fáceis de que se alimentou a crítica entre neo-realismo e abstracção, figuração e não-figuração, ou mesmo, por extensão política, entre Situação e Oposição, outra zona de equívocos que já não pode ter caução militante – também o surrealismo inicial se vulgarizou nos Salões do SNI.
Pintura academicamente aprendida, bem informada pelas estadas no estrangeiro como bolseiro, a obra de Resende escapava então às categorizações preguiçosas, mesmo à de expressionista, e desenvolveu-se como uma amadurecida pesquisa própria sobre valores da construção plástica, onde a recusa da abstracção não referencial já não deve ver-se como posição indecisa ou dúbia. Às arquitecturas hieráticas solidamente definidas das suas figuras sucederam, na passagem da década, densidades matéricas, dissoluções de formas e intenções retóricas com fortuna variável e, posteriormente, novos rumos, em que se incluem o ciclo temático das «Ribeiras Negras», as impressões de viagem e alguns luminosos interiores, passando da sombra à cor, da investigação formal à mancha despreocupada, do drama ao humor. É um longo percurso ainda em aberto.
FRANCISCO BRENNAND
Entretanto, circunde-se o Porto ribeirinho para ir de Matosinhos a Valongo, onde a Fundação criada por Resende se eleva frente ao Douro. É todo um caminho de renovação da paisagem urbana, no qual se adivinha a futura entrada do mar no Parque da Cidade e se percorre a via marginal já redesenhada, sob os arcos das antigas e novas pontes, com passagem pelo painel cerâmico Ribeira Negra (1984-87). No seu Lugar do Desenho, o pintor apresenta o escultor e ceramista Francisco Brennand, que é certamente, com os seus 74 anos, o mais surpreendente artista brasileiro vivo, ao mesmo tempo desconhecido e consagrado, conforme os círculos de informação frequentados
A sua obra maior está encerrada e em constante crescimento no museu-templo-oficina em Várzea, próximo do Recife, onde desde 1971 acumula milhares de peças monumentais que erguem um mundo fantasmagórico com reinventadas figuras da mitologia e da história, um bestiário pessoal e totens carregados de dor e erotismo, obras simultaneamente populares e eruditas (sem nenhum exotismo brasileiro), ao mesmo tempo de todos os tempos e de hoje, mais do que muitas actualidades circulantes. Mas a exposição de umas duas dezenas de peças cerâmicas – as «Graças Cretenses», as pequenas «Homenagens a Morandi», as figuras de Inês de Castro («La Victime») ou Joana d'Arc, entre outras – e uma larga antologia do seu desenho a cores, onírico e solidamente observado (as séries «Grotesco» e «A Casa das Pernas», já deste ano), com algumas grandes fotografias da Várzea, não deixa de ser uma aproximação bastante ao trabalho original e inclassificável de Brennand, ficando como um dos grandes acontecimentos do Porto 2001, fora do seu programa.
Desta dádiva do pintor à sua cidade ainda podia, há uma semana, passar-se a esse nicho sobrevivente do Porto romântico que é a Casa Tait, onde se apresentou um pouco da história desconhecida do cartoonista e autor de banda desenhada que também foi Resende. Enquanto se aguarda para o próximo Salão Lisboa a recuperação das histórias que nos anos 30 e 40 publicou em «O Papagaio», em «O Sr. Doutor» e no «Jornal de Notícias», aí se recordaram as figuras de Matulinho e Matulão que desenhou para «O Primeiro de Janeiro». São testemunhos de uma carreira oculta com lugar na história da BD nacional, também quase ocultada pelo próprio artista, enquanto deverão ficar perdidas para sempre as suas «instalações» publicitárias e anónimas que ocupavam semanalmente, nos anos 50-60 (?), a montra do segundo desses diários do Porto, de que parece não restarem sequer testemunhos fotográficos.
2.
Júlio Resende
Gal. Valbom
08-05-2004
Uma vasta selecção de pinturas sobre papel de Júlio Resende essencialmente centrada em anotações de motivos encontrados em deslocações ao Brasil e a Cabo Verde, Goa e Moçambique, ao longo de numerosas viagens realizadas desde os anos 70 – precedidas de algumas mais antigas aguarelas, reveladoras da particular mestria há muito alcançada no uso desta técnica já rara. São essas viagens oportunidades decisivas para o estímulo de um olhar desperto para o mundo exterior, as paisagens, mas principalmente os grupos humanos, o colorido vibrante dos mercados tropicais, o diálogo dos corpos com o espaço da natureza. Usando pastel, aguarela e marcador, ou processos mistos, J.R. funde o desenho rápido diante do motivo com a intensidade da cor, num exercício de observação que se distancia sempre do exotismo superficial por uma calorosa curiosidade face ao mundo e às suas diferenças. Estes apontamentos e estudos do natural reencontram-se depois na pintura de Resende dos últimos anos, tendo aqui a frescura e a graça do ensaio despreocupado de uma mão sábia e de um olhar atento. A mostra é acompanhada por um catálogo-álbum antológico, para o qual escreveram Júlio Pomar e Rocha de Sousa, além do artista.
(Até 15)
Júlio Resende
SNBA
14-04-2006
Não é nem pretende ser uma antologia da carreira de J.R., apenas (?) a apresentação de peças da colecção do Millennium bcp. O conjunto é, porém, representativo de uma obra importante, individualizada face à preferência dominante pela arrumação da criação em movimentos ou fórmulas colectivas. Mostram-se 27 trabalhos, que vão de uma melancólica aguarela de 1946 a uma festiva Luz de Atelier com vista aberta para o jardim (1997-2000), incluindo sucessivos passos do percurso, como as notáveis quase-abstracções de 57-62, onde a figura humana se desrealiza sem deixar de ser o centro do quadro e do mundo, os diferentes expressionismos dos anos 70-80 e ainda as últimas libertações do gesto, da cor e do humor de um Adeus Tristeza (91). Com passagem pelo grande painel decorativo A Evolução do Dinheiro (62), a sinalizar a extensa e excelente obra pública do pintor, num curioso diálogo de intenções significantes com A Ribeira Negra (84), gigantesco painel a p/b oferecido ao Porto, que ocupa um lado da SNBA, como uma síntese das ambições humanistas do artista em homenagem ao trabalho e ao povo portuense e da vocação mural da sua pintura.(Até 29)
o surrealismo minhoto em 2001
DOCUMENTOS
2
Soares dos Reis, “Museu ao fundo” em 2001
EXPRESSO 29/9/2001
Museu ao fundo
O IPM pretendia apresentar recurso no caso do Museu Soares dos Reis (o Ministério preferiu pagar uma fortuna à outra srª: dava um romance da Agustina)
Dois meses depois de reaberto, o Museu Nacional Soares dos Reis, no Porto, mergulha numa nova crise devido ao afastamento da sua directora, Lúcia Almeida Matos, que conduziu durante dois anos (feitos no dia 24) o relançamento de uma instituição há muito arredada de um papel central na vida cultural da cidade, e não só pelo seu longo período de encerramento para renovação das instalações. A realização das importantes exposições ainda previstas no programa da capital cultural não deverá, entretanto, ser posta em risco. Mas, num mar encapelado pelas limitações orçamentais do Ministério da Cultura, particularmente gravosas para o funcionamento corrente dos museus oficiais, a dinâmica global de renovação vivida nos anos recentes sofre um inesperado abalo.
A nova situação resulta de o Ministério não ter recorrido do acórdão do Tribunal Central Administrativo (TCA) que, por ocasião da reinauguração do Museu – intrigante coincidência -, se pronunciou pela não aceitação da candidatura de Lúcia A. Matos ao concurso realizado para a respectiva direcção, em 1999. Em consequência, a anterior directora, Mónica Baldaque, que ficara em segundo lugar nas provas e accionara o recurso para o tribunal, pode vir a ocupar o cargo, embora um novo concurso venha a ter lugar já no próximo ano.
O MC recusou-se a prestar quaisquer esclarecimentos sobre as razões jurídicas, técnicas ou políticas que o levaram a prescindir do recurso, limitando-se a informar que foi acatada a decisão do tribunal. Esse silêncio é tanto mais estranho quanto o incidente é considerado em meios ligados aos museus e às artes como uma grave quebra de solidariedade em relação a anteriores decisões do Ministério e dos responsáveis pela política de museus.
Sem desmentir essa interpretação, Raquel Henriques da Silva, directora do Instituto Português de Museus (IPM), em declarações ao Expresso, optou por frisar que «esta decisão não foi do IPM, nem seria a do IPM; foi do secretário de Estado (que tem a tutela sobre esta área) e do ministro». Para o IPM, acrescenta, «havia substância e conteúdo para accionar o recurso». Na sua opinião, «a própria sentença do TCA abre um espectro de admissibilidade ao concurso por parte dos docentes universitários, independentemente do seu tipo de contrato, que o anterior parecer não vinculativo da Direcção-Geral da Administração Pública (DGAP) não contemplava», pelo que um tal recurso «tinha fundamento jurídico e era formalmente admissível, mesmo se não era certo que ganhasse».
Num esclarecimento da directora do IPM, já publicado no «Público» (dia 17), foi transcrito um passo do acórdão que parece justificar essa alegação: «para efeito de recrutamento para o cargo de director de serviços (…) haverá de reputar-se como 'funcionário' todo o pessoal docente integrado nesta carreira de regime especial que, independentemente da categoria e forma de provimento, assegura funções correspondentes a necessidades permanentes de serviço».
Por outro lado, Raquel Henriques da Silva lamenta que o processo não tenha sido «conduzido até ao fim, o que permitiria que outros aspectos contestados por Mónica Baldaque fossem apreciados». Recorde-se que esta invocara igualmente a existência de parcialidade no concurso e favorecimento na análise do «curriculum» de Lúcia A. Matos – matéria sobre a qual o acórdão não se pronunciou -, pretendendo dar sequência ao caso nos tribunais com base nesse tipo de considerações, que a directora do IPM liminarmente rejeita.
Segundo uma fonte próxima de Mónica Baldaque, ouvida também pelo Expresso, esta «vai recorrer a outras instâncias judiciais para apurar as responsabilidades dos diversos intervenientes no concurso, isto é, se agiram ou não de maneira culposa». Entretanto, «vai esperar que lhe comuniquem se toma ou não posse, e quando». O incidente está assim longe de poder considerar-se encerrado, mas a posição dos agentes do Estado terá sido enfraquecida.
Na base da questão encontra-se o facto de Lúcia Almeida Matos ser, à data do concurso, assistente contratada, em consequência de atraso na prestação de provas de doutoramento. Esse é um estatuto controverso, tal como o dos professores convidados, cuja equiparação ao funcionalismo público ficou por dirimir, sabendo-se no entanto que, por exemplo, a passagem ao escalão seguinte da carreira determina a contagem desse tempo de serviço. A actual directora do Soares dos Reis cumprira já 12 anos de serviço continuado como assistente com horário completo, plenamente integrada na carreira docente.
Entretanto, uma análise de todo o conflito deverá incidir sobre diversos aspectos. A substituição da direcção do Soares dos Reis insere-se numa dinâmica que envolve os 29 museus do IPM por via da aplicação da lei geral sobre directores de serviços, a qual conduziu a uma profunda renovação dos seus dirigentes, apesar de limitada pelas restrições legais que reduzem o recrutamento a funcionários públicos e equiparados. Outros episódios ocorridos, com contestações ou com implicações humanas e profissionais, não tiveram a projecção deste.
É possível
que o ministro tenha desejado encerrar um conflito herdado da gestão de
Manuel Maria Carrilho, e outras interpretações recordam também que
Mónica Baldaque é filha de Agustina Bessa Luís, a qual, durante o mesmo
mandato, fora afastada de um cargo quase só honorífico no Teatro D.
Maria II, o que a levaria a supor-se vítima de uma dupla perseguição. É
também provável que um propósito de pacificação de conflitos nas
vésperas de eleições tenha orientado a decisão política, embora criando
outros contenciosos internos. Na ausência de respostas do Ministério da
Cultura, o caso fica com contornos nebulosos ou mesmo inquietantes.
(com a colaboração de Valdemar Cruz)
Etnologia 2001 – “Isumavut” Inuit
a propósito das Pinturas Cantadas das mulheres de Naya, Bengala, Índia, a arte das mulheres esquimós Inuit do Canadá.
Expresso de 22/9/2001
"Construir a tradição"
Gravuras e esculturas de nove mulheres artistas do Canadá
Expresso de 22/9/2001
ISUMAVUT: A Expressão Artística de Nove Mulheres de Cape Dorset
(Museu de Etnologia, Até 16 de Dezembro)
ver: Isumavut: The Artistic Expression of Nine Cape Dorset Women – Isumavut
As paredes brancas lembram as superfícies geladas do círculo polar ao
mesmo tempo que conferem ao espaço do museu a aparência habitual de uma
galeria de arte. Uma exposição vinda do Canadá dá a conhecer exemplos
do que hoje por vezes se designa como arte autóctone contemporânea,
numa das suas numerosas variedades regionais. É para o Museu de
Etnologia uma orientação algo diferente da sua actividade regular, na
qual a dimensão estética dos objectos não é geralmente valorizada por
si mesmo enquanto arte, já que aquela não se separa das funções
utilitárias, rituais e simbólicas das peças expostas, tomadas como
representação de uma cultura tradicional.
A exposição vem do Museu Canadiano das Civilizações – link , de Otava, e apresenta 92 obras de mulheres artistas inuit, ou esquimós, segundo a designação usada até há pouco. Organizada em 1992-94 e colocada depois em itinerância, foi trazida a Lisboa pela Comissão dos Descobrimentos no quadro das celebrações dos 500 anos da chegada dos irmãos Corte Real à Terra Nova e é constituída por gravuras, desenhos e esculturas, sempre acompanhadas por breves textos nos quais as artistas inuit comentam ou elucidam aspectos das suas obras e da sua vida. O título «Isumavut», seguido por «A Expressão Artística de Nove mulheres de Cape Dorset», traduz-se por «o que nós pensamos» ou «a nossa opinião», e é através desses testemunhos que se pode conhecer o contexto cultural de que as obras emergem.
Não são formas de arte tradicional que se expõem, mesmo que os temas das obras quase sempre se refiram a antigos modos de vida da população esquimó do Canadá. A utilização predominante da gravura em pedra e da litografia a cores, em provas impressas de grande qualidade, alerta-nos desde logo para técnicas e condições de produção que não são habituais na arte popular. Por outro lado, a criação artística na antiga sociedade inuit, conhecida através da produção de pequenas esculturas em marfim, osso e pedra, era exclusivamente uma actividade masculina.
O que é especialmente significativo nesta mostra, para além da beleza das obras, é o facto de ela documentar a criação de uma arte autóctone (e também do artesanato que lhe está associado) que tem como destinatário a população branca do sul, surgida numa situação de transformação radical das condições de vida da respectiva população e constituindo-se rapidamente como uma actividade económica significativa, em parte alternativa ao colapso do comércio tradicional das peles. Para uma população activa que ronda as dez mil pessoas, num total de 25 mil habitantes, o número dos artistas e artesãos oficialmente reportoriados ascende a quatro mil. Fortemente estimulada pela administração do Canadá, que lhe assegurou um mercado museológico, galerístico e «turístico» de grande dimensão, adoptada, simultaneamente, como arte oficial e como verdadeira indústria de exportação, a produção dos artistas inuit está também intimamente associada ao processo de afirmação da identidade cultural do seu povo e de conquista da autonomia política, que conduziu, já em 1999, à criação da nova região administrativa do Canadá, Nunavut.
Na década da 50 tinha-se completado a sedentarização da população inuit e também a destruição da sua economia de subsistência. Na década seguinte, Cape Dorset, uma povoação que tem hoje 1500 habitantes, no sul da ilha de Baffin, tornava-se a capital artística da região sub-ártica por influência directa de James Houston, um artista de Toronto que aí se instala e introduz a prática da gravura, segundo métodos aprendidos no Japão, promovendo a fundação de uma cooperativa pioneira a que estão associadas várias das artistas apresentadas. Os seus testemunhos na exposição e no catálogo dão conta do estímulo económico directo que esteve na origem desta produção artística, orientada intencionalmente para a fixação de testemunhos sobre as formas tradicionais de vida.
Usando temas da fauna do ártico e cenas da vida quotidiana ou da caça tradicional, a par de representações de espíritos e imagens mitológicas e chamânicas, numa direcção mais livremente imaginária, estas obras constroem a memória colectiva e local de uma sociedade em mudança.
1.
Picasso, «Suite 347»
(Centro Cultural de Cascais, Setembro – até 4 de Novembro)
Expresso Cartaz de 8/9/2001 (nota)
Exposta pela primeira vez na Galerie Louise Leiris a 19 de Dezembro de 1968, em Paris, é uma gigantesca série de gravuras que Picasso realizou no seu
atelier de Notre-Dame-de-Vie (Mougins) entre 16 de Março e 5 de Outubro
desse mesmo ano, em mais um ciclo de extraordinária energia ou
compulsão criadora, já cinco anos antes da sua morte mas com plena
posse dos seus meios.
Através de uma grande diversidade de formatos e continuando a explorar
todos os recursos técnicos da gravura, o velho artista regressa ao tema
espanhol da Celestina, parodia os pícaros e os mosqueteiros do Siglo de
Oro, dedica-se às cenas do circo e aos temas da mitologia
mediterrânica, para concluir com Rafael e a Fornarina, uma sequência de
21 gravuras que tomou lugar destacado na recente mostra parisiense
«Picasso Erótico» (a partir de 15 de Outubro, em Barcelona), mas que em
1968-69 só podia ver-se numa sala privada da galeria.
Nessa série, Picasso inspira-se em dois quadros de Ingres para evocar
mais uma vez, mas com uma veemência ou ousadia inédita, através do
famoso episódio amoroso da vida de Rafael, o tema do pintor e o
modelo-amante, na presença de um «voyeur», que é em geral o próprio
papa, mas pode ser também Miguel Ângelo ou o gravador Piero
Crommelynck. Pertencente à Fundação Bancaixa, de Valência, a
apresentação desta série de gravuras segue-se, em Cascais, às da "Suite
Vollard", datada dos anos 30, e «156», de 1970-72. (Até 4 Nov.)
2.
Expresso Cartaz de 15/9/2001
"Picasso inesgotável"
As gravuras completas da «Suite 347» expostas em Cascais. Uma explosão criativa de 1968
Ao longo das salas do Centro da Gandarinha, as gravuras de Picasso cobrem as paredes em filas compactas de duas ou três estampas sobrepostas. Alinhadas por ordem cronológica, muito diversas nas suas dimensões, técnicas e temas, são um espectáculo inesperado que não se poderá esgotar numa única visita. Aproveitando o facto de a entrada ser gratuita, há que dividir o percurso em etapas e voltar à exposição uma vez e outra.
São as páginas de um longo diário pessoal que se expõem, uma imensa
banda desenhada sem fio narrativo reconhecível, uma torrente de imagens
fantasistas feitas numa só explosão de humor (de bom humor) durante a
qual Picasso revisita muitos dos temas da sua obra, percorre as suas
memórias imaginárias de Espanha e dialoga com todos os maiores pintores
que o precederam, num exercício de criação que se diria totalmente
despreocupado, de tal forma é rápido e livre o traço inscrito nas
pranchas de cobre.
O nome da «Suite 347» refere o número das gravuras realizadas num
jacto de sete meses, entre 16 de Março e 5 de Outubro, e a data não é
indiferente. Não existe uma sintonização directa com os acontecimentos
desse ano, que se anunciaram em Fevereiro em Espanha e a partir de
Março se agravaram em Paris, até à paralisação geral da França, mas as
circunstâncias foram propícias à febre criativa em o velho pintor de 86
anos mergulhou.
Instalado no que foi o seu último atelier, com o nome profético de
Notre-Dame-de-Vie, em Mougin, Picasso estava recuperado da operação que
fizera no final de 1965 e o retiro em que vivia, controlado por
Jacqueline, torna-se com a crise política uma clausura total, apenas
furada pelo uso constante da televisão e do telefone. A gasolina falta
e interrompem-se as visitas dos amigos e galeristas. A única presença é
a de Aldo Crommelynck, o gravador inteiramente disponível ao seu
serviço, com um oficina montada nas imediações, que todos os dias lhe
traz as chapas preparadas e volta com as provas impressas.
De Gaulle aparece numa das gravuras (21-22 de Abril), caricaturado
de calças em baixo e armadura do tempo dos Filipes, com ar de não
compreender o que lhe estava a acontecer. Picasso também não entenderia
o curso dos acontecimentos e não é de política que se ocupa, ainda que
se possa associar aos ventos da contestação da época o carácter
irreverente e paródico das gravuras. No excelente catálogo que também
vem da Fundação Bancaja, de Valência, um texto de Brigitte Baer, autora
do catálogo «raisonné» da sua obra gráfica, busca algumas referências
factuais (filmes exibidos na televisão, o assassínio de Robert Kennedy,
por exemplo), mas as pistas são escassas para decifrar as charadas que
o pintor nos oferece.
É o universo autobiográfico da sua obra (não da sua vida) que
Picasso desenha, inteiramente entregue às fantasias sexuais e à revisão
livre de uma memória muito pessoal da história da Arte. «Picasso, a sua
obra e o seu público» é o título da primeira estampa, onde se
auto-retrata de perfil, e a sua imagem mais ou menos reconhecível surge
noutros desenhos, na figura de um velho que, de lado, no lugar do
«voyeur», contempla uma cena erótica. Há, por vezes, algo de pungente
nessa distância, mas mais do que a melancolia é a expressão do desejo e
um humor libertário que orienta toda a «suite», até à sequência quase
final dedicada aos amores de Rafael e Fornarina, nova variação,
raramente exposta, sobre o tema predilecto do pintor e o modelo.
O circo, com saltimbancos e palhaços, a mitologia clássica, com
raptos de sabinas, carros de combate gregos, bacantes e faunos, os
espadachins e mosqueteiros do «Siglo de Oro», a figura da Celestina (a
alcoviteira do século XV que retratara já durante o período azul)
servem de temas a uma produção que tem a figura da mulher, o corpo
feminino, como pólo inesgotável. Citando, de Velázquez a Monet, todos
os grandes antepassados directos, Picasso procede a uma esfusiante
dessacralização da arte.