terça-feira, 23 de junho de 1998

1998: O CPF na Torre do Tombo?, o fim da Fototeca do Palácio Foz

O CPF na TT, a Fototeca do Palácio Foz para o AFL? (1998)

No processo longo e polémico de criação do Centro Português de Fotografia, enquanto instituto autónomo, que se sedeou no Porto e na Cadeia da Relação, inclui-se a transferência da Fototeca do Palácio Foz, mantida por Avelino Soares em diferentes quadros institucionais. Falava-se então, com a megalomania do personagem Carrilho, na construção (prevista para 2001!) de um edifício anexo à Torre do Tombo que iria acolher o chamado Arquivo Fotográfico de Lisboa (AFL) – não confundir com o Arquivo Municipal de Fotografia.

A transferência das colecções da Fototeca para a TT terá começado em Janeiro de 1999, indica-se nas notícias abaixo, e parte dos "quase quatro milhões de fotografias no Palácio da Ajuda (ex-Arquivo Nacional de Fotografia)" ter-se-iam (em grande parte?) mantido no âmbito do então Instituto Português de Museus, como Divisão de Fotografia. E aqui se fala também de "documentação dos serviços de propaganda e informação de Salazar, depositada, em parte, num armazém em Queluz", que teriam integrado a TT.

A ideia (que acho peregrina) de criar no Palácio Foz, em pleno Rossio, uma entidade dedicada a estudar regimes autoritários foi o pretexto para o António Henriques continuar a investigar os casos da Fototeca e do CPF. Por mim, estava praticamente impedido de escrever sobre política cultural, ameaçado pelas manobras persecutórias do personagem MMC.

1 – "Fotografia na Torre do Tombo"
Expresso Actual de 06-11-98, por António Henriques
O património do Palácio Foz vai ser dividido por três instituições
O ARQUIVO Fotográfico de Lisboa, serviço regional do Centro Português de Fotografia (CPF), vai ser construído de raiz em terrenos anexos ao edifício da Torre do Tombo, prevendo-se que esteja finalizado em 2001. O novo edifício, para o qual será lançado um concurso de ideias no próximo ano, vai receber os espólios fotográficos depositados na Fototeca do Palácio Foz, bem como a fotografia histórica que se encontra no Palácio da Ajuda, ocupando o antigo laboratório de Física do Rei D.Carlos.

 As decisões sobre o património fotográfico da capital, anunciadas esta semana em conferência de Imprensa pelo ministro da Cultura, são vistas como «o termo de uma situação caótica e constituem uma visão integradora» tendo em vista a unidade de espólios num só espaço, segundo afirmou o governante. O director da Instituto dos Arquivos Nacionais/ Torre do Tombo, Bernardo Vasconcelos, disse na mesma ocasião que a solução encontrada permite reaproximar todo o espólio do jornal «O Século», cuja parte de arquivo e biblioteca já se encontra na Torre do Tombo, mas cuja iconografia está no Palácio Foz. «Tomámos uma decisão inatacável do ponto de vista técnico», referiu. Recorde-se que o espólio de «O Século» é dos mais significativos em termos de documentação do século XX português, tendo sido resgatado do esquecimento por técnicos da Fototeca, entre 1988 e 1989 – juntamente com imagens de «O Século Ilustrado» e outras do foto-repórter Joshua Benoliel, tendo estas ilustrado as revistas nacionais de referência no começo do século. Prevê-se que a transferência de espólios da Fototeca para a Torre do Tombo (que disponibiliza instalações provisórias para a documentação) se faça nos primeiros dois meses de 1999, altura em que o serviço público de consulta que vinha sendo assegurado no Palácio Foz será interrompido.

 O destino a dar ao restante espólio não fotográfico depositado no Palácio Foz – uma hemeroteca com jornais impressos no país durante grande parte deste século, revistas especializadas em Comunicação Social e o «Diário da República» e ainda uma biblioteca com vários núcleos valiosos – pode passar pela incorporação na Torre do Tombo ou na Biblioteca Nacional, depois de uma avaliação. Este espólio, de inegável importância, foi desvalorizado na conferência de Imprensa, ao ser considerado «residual», tal como a documentação do Secretariado de Propaganda Nacional/ Secretariado Nacional de Informação, que esteve 30 anos abandonada num depósito do Estado em Queluz.

 O novo figurino desenhado para o Arquivo Fotográfico de Lisboa prevê a incorporação inicial de quase quatro milhões de espécies fotográficas. Destas, três milhões e meio têm origem no chamado Arquivo Nacional de Fotografia, sedeado no Palácio da Ajuda – trata-se de uma estimativa, uma vez que nunca foi feito um inventário do património existente, como confirmou Teresa Siza, directora do CPF, em entrevista recente ao EXPRESSO. As restantes espécies (306 mil) provêm da Fototeca, sendo que quase dois terços são imagens de «O Século». A opção pela construção de um novo edifício (orçado em 800 mil contos, vindos do Ministério da Cultura), coloca de lado a única proposta que, desde 1992, foi formalmente apresentada como solução para tornar acessível ao público todo o espólio depositado no Palácio Foz. Da responsabilidade do técnico Avelino Soares, que liderou, até agora a Fototeca, a proposta defendia a manutenção conjunta de todo o espólio no Palácio, uma vez que aquele constitui uma memória colectiva extraordinária do século XX português – o objectivo era criar ali um polo de atracção cultural capaz de dinamizar a actividade no Palácio lisboeta. Esta solução, formalizada com o nome de «Centro de Imagem», chegou a ser inscrita como departamento no projecto de Decreto-Lei do Instituto de Comunicação Social – quando a tutela do espólio não era, ainda, do MC – mas não passou de intenção. O técnico Avelino Soares produziu, desde 1981, nove documentos diferentes sobre a situação da Fototeca, alguns a pedido das tutelas, mas só três tiveram despacho e sempre sobre questões laterais.

O EXPRESSO questionou o ministro da Cultura sobre o futuro dos trabalhadores da Fototeca, mas Manuel Carrilho, mostrando-se surpreendido por tal questão interessar ao jornal, afirmou que a mesma não tinha «relevância» para ser analisada no contexto da conferência de Imprensa." ANTÓNIO HENRIQUES

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Sobre o mesmo tema, AH publicou a 21 Nov. de 98 uma "Tribuna" intitulada:

"O palácio adiado"

O ANÚNCIO da construção de um edifício para o Arquivo Fotográfico de Lisboa pode ser visto como uma indiscutível boa notícia para a Fotografia. A nova sede, a ser criada mesmo ao lado da Torre do Tombo, deve reunir o património fotográfico depositado na Fototeca do Palácio Foz e o imenso e ainda desconhecido acervo guardado em minúsculas instalações do Palácio da Ajuda (calculado em três milhões e meio de imagens).
Pela primeira vez, prevê-se que a Fotografia da capital possa ser preservada nas melhores condições técnicas, inventariada e consultada por investigadores e público em geral, ao mesmo tempo que se põe termo à insustentável situação de um serviço que existia sem estatuto legal e cujas obrigações nunca foram definidas – o Arquivo Nacional de Fotografia.
O Ministério da Cultura justifica a decisão pela necessidade de «'unificar' imagens dispersas e de reaproximar o espólio do jornal 'O Século'» – a reportagem fotográfica, actualmente na Fototeca, e o arquivo e biblioteca do jornal, na Torre do Tombo, passam a estar muito próximos fisicamente.
Neste segundo caso, prevalece um princípio arquivístico que diz que os fundos não devem ser desmembrados, antes se deve procurar a sua unificação e, por isso, Bernardo Vasconcelos, director do Instituto dos Arquivos Nacionais/Torre do Tombo, classificou como «inatacável» a solução anunciada para a Fotografia.
Esqueceu-se, no entanto, de dizer que o mesmo princípio pode ser aplicado ao conjunto do património cultural do Palácio Foz, do qual a Fototeca é o sector mais significativo, mas está longe de ser o único: há uma biblioteca que inclui um dos núcleos mais valiosos do país (a Livraria Duarte de Sousa, com 2500 obras do século XV ao século XX), que tem 18 mil volumes de História Política, Literatura e Comunicação Social, mais de 1200 livros e 700 cartazes do Secretariado Nacional de Informação (SNI – criado em 1933, ainda com outro nome, e que António Ferro diligentemente dirigiu como centro da «política do espírito» de Salazar), um núcleo com 26 mil obras reunidas ao abrigo do depósito legal e, ainda, uma hemeroteca com grande parte dos jornais portugueses.
Olhando este património como um todo, a transferência da Fototeca constitui um desmembramento de espólios, deslocada do contexto onde parte significativa foi produzida – o Palácio Foz, como centro de propaganda e informação do Estado Novo. Desse ponto de vista, a manutenção do património do Palácio Foz é tão inatacável quanto a decisão tomada." (…)

2 – "Uma fundação para o Palácio Foz"
Expresso Actual de 19 12 1998, por António Henriques (extracto)

"UMA PROPOSTA de criação de um núcleo de investigação e de divulgação sobre as estratégias de poder de regimes autoritários, com futura sede no Palácio Foz, em Lisboa, deverá ser entregue, em breve, ao ministro da Cultura. A iniciativa, que reuniu, esta semana, um grupo de cidadãos no Clube de Jornalistas – e à qual se associaram testemunhos escritos de personalidades que não puderam estar presentes – surge na sequência do anúncio governamental de constituição do Arquivo Fotográfico de Lisboa (AFL), em edifício a ser construído junto à Torre do Tombo. Com data prevista de conclusão para 2001, o novo imóvel vai receber vários espólios, incluindo as mais de 300 mil espécies fotográficas da Fototeca do Palácio Foz, um património fundamental para fazer a História do século XX português.

Sem pôr em causa a decisão de criar o AFL, os elementos deste movimento pretendem criar uma Fundação em que se reúnam todos os espólios que tenham a ver com as estratégias propagandísticas de regimes autoritários, com óbvio destaque para a documentação do Estado Novo. «Trata-se de constituir um património integrado independentemente do suporte (fotografia, livros, ou outra documentação) e de o fazer reanimando o Palácio Foz. A criação do AFL é importante, pelo que a nossa proposta é paralela à decisão do Ministério da Cultura», disse ao EXPRESSO o investigador e professor do ISCTE, José Rebelo, presente no encontro.
(…)
A ser aceite, a proposta obrigaria à reavaliação da documentação a transferir do Palácio Foz para o AFL, nomeadamente a que diz respeito ao estabelecimento e manutenção no poder do regime de Salazar e à possível transferência de espólios dispersos por várias entidades, sobre aquele tema, para o palácio dos Restauradores.
Segundo José Rebelo, a Fundação tem três grandes objectivos: encorajar a investigação e troca de informação sobre regimes autoritários, em geral, e sobre o salazarismo em particular (uma das prioridades é a ligação a instituições especializadas da Europa que se dedicam, precisamente, ao estudo dos regimes totalitários), divulgar essa investigação junto da população mais jovem (o historiador Vítor Viçoso, outro dos presentes no encontro, disse que «há uma amnésia entre os jovens relativamente ao Estado Novo») e abrir o Palácio Foz, onde estão sediados múltiplos organismos da administração estatal, ao público e aos investigadores – designadamente estudar o aproveitamento de uma sala de cinema desactivada, de uma biblioteca totalmente restaurada, mas fechada ao público desde 1991, e da chamada Sala dos Espelhos, um espaço ricamente decorado que, segundo José Rebelo, devia ser aproveitado para sessões de divulgação e exposições.
Outro dos pontos referidos no encontro prende-se com o espírito da Fundação a ser criada. «Prolongar o exemplo dado pela Fototeca», disse aquele investigador; «uma perspectiva não mercantilista de utilização dos arquivos», segundo o jornalista e escritor Fernando Dacosta, que se referia, igualmente, ao trabalho desenvolvido pela Fototeca do Palácio Foz. Andrade Moniz, professor da Universidade Nova de Lisboa, que não esteve no encontro, foi mais duro num depoimento escrito para a ocasião: «Tal medida centralizadora (transferência da Fototeca), prescindindo de um rico espaço próprio, identificado com a sede governamental da maioria da documentação recolhida e exposta (…) cria condições para uma eventual e lógica subalternização de tão rico património cultural.» Este investigador adianta ainda que o actual responsável da Fototeca, Avelino Soares, deveria continuar a gerir o espaço que criou e dinamizou. «Como já é costume ancestral entre os nossos governantes, a medida ignora e estrangula o aproveitamento de recursos humanos», diz, referindo-se ao afastamento daquele técnico do processo de transferência e da futura configuração do AFL.
O especialista de Fotografia António Sena, enviou um depoimento no mesmo sentido, ao falar da Fototeca: «Ao contrário de todos os outros Arquivos Fotográficos, fechados a sete chaves, com a sua organização disfarçada de burocracia, no Arquivo do Palácio Foz sempre se deu prioridade absoluta à divulgação de imagens e à sua organização, aberto a qualquer investigador e, apesar dos poucos meios disponíveis, com a generosidade de um responsável que nunca se cansou de proporcionar as melhores condições de trabalho.»
Estes depoimentos serão parte substancial de um texto a ser enviado ao ministro Manuel Maria Carrilho, antes do início da transferência da Fototeca para instalações provisórias na Torre do Tombo, prevista para Janeiro próximo. O futuro AFL vai receber, assim, o único serviço organizado e aberto ao público, não tendo ainda sido anunciado quando se fará o mesmo com os quase quatro milhões de fotografias no Palácio da Ajuda (ex-Arquivo Nacional de Fotografia) e quando irá começar a anunciada incorporação, na Torre do Tombo ou na Biblioteca Nacional, da documentação dos serviços de propaganda e informação de Salazar, depositada, em parte, num armazém em Queluz. ANTÓNIO HENRIQUES

Sobre o mm tema da Fundação e do Palácio Foz, o Rui Rocha respondeu com outra "Tribuna" a 24 12 98, intitulada  "A última morada"

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Ainda tenho o "Relatório sobre a Situação da Fototeca do Gabinete de Apoio à Imprensa – pelo responsável da Fototeca Avelino do Coração de Jesus Soares, técnico de 1ª classe – Lisboa, 22 de Fevereiro de 1994". Então Direcção-Geral da Comunicação Social.

Com o Espólio Iconográfico da Secção de Fotografia do Ex-SNI da DGD (1910-1983): 53.750 negativos; 24.010 zincogravuras; 12.399 diapositivos. O Espólio Iconográfico de "O Século" (1900-1976)… , o do "Diário Popular" (6 mil zincogravuras)… Em geral as provas em papel (albuns?, bolsas temáticas e onomásticas) não são referidas (desapareceram? ou não existiam antes de? )…

Quando queria e tinha confiança nos interessados, o Avelino Soares era muito eficaz. Julgo que foi ele o salvador do Arquivo e que foi maltratado no processo de transferência, anunciado em 1996 e concretizado depois de 1998, certamente em 1999. Falava-se à época em construir um edifício atrás da TT para sede do Centro Português de Fotografia… Também conservo umas folhas de "Mensagens" que ele ia afixando nas paredes e nos móveis. Uma folha da Susan Sontag e duas dele, por exemplo: "MENSAGEM: – As imagens são nacos de vida, pedaços da natureza seleccionados pela 'veduta' do fotógrafo ou pela 'visione' do artista; – Reproduzem fracções do 'χρονοσ' e, por vezes, a fruição de um "καιροσ" (…)" Era um personagem.

 

sábado, 9 de maio de 1998

EDUARDO BATARDA, 1998, Retrospectiva no CAM

 Falar de pintura pintando

09 Maio 98, Expresso Cartaz, pág. 25


No fim da retrospectiva de Eduardo Batarda


«Se o tema de um quadro se pudesse expressar por palavras, não teria havido necessidade de o pintar», escrevia Walter Sickert em 1910. O mesmo foi dito vezes sem conta, antes e depois (variando o que se entende por «subject»), e Batarda parece voltar a mostrá-lo nos seus quadros, renovando a diferença entre o olhar e o comentário («o completar de uma obra de arte inicia um desentendimento que' é eterno», escreveu em 1992). O comentário sobre o comentário poderá ser um caminho contra esse desentendimento?

Ao chegar ao fim a retrospectiva, é certamente curioso rever o texto de introdução ao respectivo catálogo, onde a obra de Batarda é apontada como uma das «mais marcantes e menos bem conhecidas da segunda metade do século em Portugal». Por um lado, é cada vez mais oportuno pôr a hipótese de que as obras maiores não são hoje as mais conhecidas, numa situação em que a circulação da informação parece ser total, globalizada e sem entraves, censórios ou outros. Esta semana, pôde constatar-se que um dos maiores artistas das últimas duas-três décadas, Avigdor Arikha, é um pintor desconhecido e cujo nome não faz parte da chamada cultura geral - e o próprio Arikha me indicou um pintor norte-americano, Rockstraw Downs, que ele situa entre os maiores (ou melhores, já que veio à Gulbenkian defender a possibilidade do critério da qualidade em pintura), mas não o encontro referido em qualquer livro ou dicionário, sem deixar por isso de atribuir a máxima credibilidade ao juízo do pintor e erudito israelita-parisiense.

Por outro lado, é significativo que se considere pouco conhecido um artista de quem se apresentam 200 números de catálogo que são propriedade de coleccionadores quase sempre particulares (a regra mais frequente das «antologias» é a atribuição à colecção do autor ou da galeria) e cuja exposição foi recebida com uma cobertura de imprensa (entrevistas, criticas, etc.) e uma atenção do público que se devem considerar muito pouco habituais. Esta passagem do catálogo parece assim interrogar o facto de Batarda ter estado ausente de todas as grandes representações institucionais que pontuaram a década («Tríptico», Europália'91; «10 Contemporâneos», Serralves 1992; «Depois de Amanhã», Capital Cultural 94; representações em bienais e outras). Ou seja, parece pôr em causa o mecanismo dominante das escolhas públicas, uma vez que a estas se associa uma certa ideia de visibilidade ou «conhecimento».


Carlinga , 3 (Small egg-shaped tartan ptg - verde, 1991, 90x60cm.
 
Outro ponto interessante da mesma introdução assinada pelos directores do CAM, que é um texto penetrante e uma boa síntese das interpretações da obra de Batarda, é a ideia - formulada com referências a Jasper Johns e a Beckett, por sinal, nomes de primeira importância - de que «a pintura-pintura» de Batarda «nos fala da impossibilidade de falar seja do que for». Na realidade, há um «excesso» de palavra na obra de Batarda (as inscrições explícitas nas aguarelas, as palavras muitas vezes cifradas dos acrílicos, os títulos dos quadros) e também à sua volta (os seus textos expostos, os prefácios às exposições, as entrevistas, críticas, etc.), que não nos permite admitir «a impossibilidade de falar seja do que for», o que é manifestamente possível, mas, muito precisamente, apontam a dificuldade (ou impossibilidade, no limite) de falar sobre a pintura.

Existia no primeiro período da obra de Batarda a possibilidade de um equívoco: o de se crer que a pintura «fala», de se entender «o discurso pictórico como realidade linguística» (na mesma introdução) ou de se ver uma pintura como uma imagem para «ler», no caso presente, como um comentário crítico (que também era) sobre a actualidade política, cultural e artística. O próprio autor, com o seu gosto pela autodenegação, autorizou essa «leitura» que reduz a linguagem pictural ao assunto, esvaziando o «como» na enunciação de «o quê». 

\Na segunda parte da carreira de Batarda acentuar-se-á «um trabalho ainda mais hermético e codificado sobre a pintura e os seus mecanismos»? Redondamente, não. Por isso, nas exposições de 1982-3, os acrílicos apareceram genericamente intitulados «Candeeiros, Cubismos, Cães e Colunas», o que devia servir de explicação bastante. Por isso, o prefácio de 1985 se intitulava «Decorações» e nele se afirma: «Falava de pintura pintando. Nunca eu quis fazer outra coisa»; «Os quadros são (...) o seu próprio manifesto, são afinal parábolas morais...»; são aquilo que «estão a ver», etc. Já contra a ideia da descodificação - ou seja, de uma leitura «mais preocupada com os aspectos analógicos, psicológicos ou sociais do que com os aspectos visuais» (citando agora Avigdor Arikha) -, Batarda acrescentava em 1986: «Valha-me Deus, as coisas que as coisas que as coisas lhes (nos?) parecem!»

Entretanto, também não é de «abstracção» que se trata, no sentido da procura de uma transcendência para além da representação do real visível ou de uma interrogação formal sobre os meios da linguagem pictural (a paródica inscrição «École de Paris» alertava repetidamente contra esses erros de leitura). «Destituídos de reconhecibilidade, sem sentido, os quadros "têm que ser" indiferentes, indeterminados, e, ao mesmo tempo, manifestam que existem, eles próprios, como dúvidas» (1992 - com data de 1892 e, por isso, antes do modemismo ... ). Indiferença é a palavra-chave (mas não a chave de qualquer saber hermético e codificado) que acompanhava então um diálogo pictural evidente com o Duchamp de 1913-17 (não com a sua revisão nos anos 60) - «pelo menos um objecto reconhecível da tradição modernista»: Fontaine, Séchoir à Bouteilles, 3 Stopages-Étalon (?).
Indiferença em vez de indizível, ou, por outras palavras, «ironia, distância, saber» (92). Depois disso, tornou-se-lhe possível abrir o seu trabalho em diversificadas direcções, como aconteceu.

Ao falar de pintura pintando, possibilidade sempre reafirmada em pintura - a que não convém chamar «pintura-pintura» -, Batarda dá-nos a ver que a relação com a pintura é uma experiência do olhar (retiniana, depois de Duchamp). Martin Avillez, no catálogo, diz a mesma coisa ao escrever que «a sua pintura foi e é uma pintura sobre as possibilidades de apreciar e julgar». Mas não é possível falar de «pintura sobre», no caso de tratar-se, como é o caso, de grande pintura.

Interior, 1992, 130 x 95 cm


Duas notas

7 Março 98, Expresso Cartaz Exposições, pág. 19
A relação com o museu marca a pintura de Batarda e a primeira  retrospectiva, 25 anos de trabalho, comprova-o plenamente, desde logo pela extensão do trabalho mostrado. Valeu a pena tirar partido das  circunstâncias da produção (comissariada por Alexandre Melo) e contrariar as regras de bom gosto do «design» expositivo para submergir o CAM com uma obra que inclui o excesso, a diferença e a provocação entre as suas marcas próprias. A última individual foi em 1992 e com o intervalo ganhou-se um efeito ainda mais «esmagador».

01 Maio 98 pp. 28-29
Batarda «coloca-se no centro do seu próprio sistema de crítica». A frase constitui um dos mais penetrantes comentários que a retrospectiva motivou, assinada por João Pinharanda («Público», 27/3/98). Poderia pensar-se que essa era a condição obrigatória para o reconhecimento de uma autoria, mas, afirmada como diferença chocante, perante a habitual dependência da informação e do gosto dominantes ou a gestão de traduções estilísticas correntes para português, ela vale como demarcação do projecto excepcional de uma obra.
É num sentido próximo que se pode entender Martim Avillez, num dos ensaios do catálogo, quando considera que a pintura de Batarda «é uma pintura sobre as possibilidades de apreciar e julgar». Trata-se, por um lado, de um importante deslocamento desde anteriores interpretações, favorecidas pelo próprio pintor, segundo a qual a sua pintura constituía um «comentário permanente ao estado actual das artes visuais» (1975), «fazendo coisas contra» («foi esse o meu programa desde sempre», dizia Batarda, ainda em 1992).
À hipótese de uma produção reactiva, que se oferecia como pista de compreensão (o comentário sardónico da actualidade política e artística inscrito no imaginismo narrativo da pintura sobre papel; a resposta ao jogo das conjunturas, com o ocultar da figuração nos acrílicos dos anos 80, etc), foi-se substituindo a distância e a indiferença, numa pintura que sabe, cada vez mais, que «a oposição à estupidez não tem que ter sucesso» (92) e que diz admitir «a incapacidade, a inoperância e o não-valor da pintura e da arte» (entrevista de E. Batarda no «Cartaz» de 14/3/98), continuando a praticá-las e, mais ainda, constituindo-se como centro de um «sistema de crítica» e repensando «as possibilidades de apreciar e julgar».
Contrariando a hipótese de niilismo levantada também por J. Pinharanda, esta pintura, que, de facto, se foi tornando mais erudita do que crítica, está do lado de uma vontade de reconstrução dos saberes, dos recursos e dos poderes da pintura. O enfrentamento com Duchamp que marcou a sua exposição de 1992, dominada pelo tomar dos dois «ready made» essenciais como assuntos da pintura, sujeitando-os à exploração de sucessivos desvios interpretativos, não tinha outro sentido.