sábado, 1 de abril de 2006

2006, 1956-2006, Gulbenkian

 Gulbenkian 1956-2006

Fundação Gulbenkian, na comemoração dos 50 anos

"Os primeiros anos"

Expresso/Actual de 01-04-2006

O tempo da inauguração da Sede é já o do marcelismo. Os inícios da Fundação datam de meados da pesada década de 50. Salazar aprovou-a num decreto onde frisa que Calouste Sarkis Gulbenkian escolheu Portugal porque apreciava «a tranquilidade que entre nós se desfruta e estimava o que há de estável nas instituições e no equilíbrio social». O recado era claro. Na administração, o liberal Azeredo Perdigão tinha à sua volta vários dignitários do regime (Pedro Teotónio Pereira, Francisco Leite Pinto, etc.). Mas é entre 1956 e 69 que se constrói a imagem mítica da FG como um estado dentro do Estado.

Logo em 1957 abre a 1ª Exposição de Artes Plásticas da FG, na SNBA, com polémicas públicas entre tradicionalistas e modernos. A 2ª fez-se em 61, na FIL, mais pacificamente, e ficou sem continuidade. Também em 57 inauguravam-se os Festivais Gulbenkian de Música, descentralizados e repetidos anualmente até 1970. Mais discretamente, a atribuição de bolsas para graduações no estrangeiro começara logo em 56, e abrem-se os primeiros concursos anuais em 58, abrangendo as ciências, as letras e as artes. O país não era exactamente um deserto (as dinâmicas associativas tinham então grande importância, sem paralelo num presente em que quase tudo depende do Estado e do mercado), mas abria-se um outro espaço público, semi-oficial, à margem do regime e do seu Secretariado Nacional de Informação (o SNI). Improvisava-se uma espécie de Ministério da Cultura alternativo ao que ainda não existia.

Também em 57 tem início o projecto do «Corpus da Azulejaria em Portugal», de Santos Simões, a que se seguiriam os inventários da Talha, da Pintura Maneirista, dos Solares. Lança-se no mesmo ano a construção do Instituto Calouste Gulbenkian do Laboratório Nacional de Engenharia Civil e também o projecto do Planetário em Belém. Muitos outros laboratórios, centros de investigação, serviços hospitalares vão depois receber subsídios para equipamentos e edifícios. Apoiam-se restauros de igrejas, museus regionais, cine-teatros, asilos, residências para estudantes, etc.

Distribuída por Paris, Washington e Londres, a colecção do Fundador é trazida para Lisboa entre 58 e 60, ao cabo de difíceis trâmites jurídicos. Apresenta-se em Paris, Lisboa e Porto, entre 60 e 64, até se instalar no Palácio Pombal em Oeiras, em 65, onde as inundações de 67 farão estragos. Em 58 arranca o Serviço de Bibliotecas Itinerantes, com as primeiras 15. E também o Centro de Estudos de Economia Agrária, seguido em 61 pelo Instituto Gulbenkian de Ciência.

A revista «Colóquio» começa em 59, sob a direcção de Reynaldo dos Santos e Hernâni Cidade. Em 60 abre a Casa de Portugal na Cidade Universitária de Paris (o Centro Cultural de Paris em 65). Em 61 apresenta-se a «Arte Britânica do Século XX», na SNBA, e inicia-se a itinerância pelos Açores e Madeira, depois pelo continente, de mostras de Arte Portuguesa Contemporânea, o que dá lugar a algumas aquisições de obras. Em 65, «Um Século de Pintura Francesa», na FIL, acolheu 100 mil visitantes.

Em 62 tinha arrancado a Orquestra, à partida apenas uma formação de câmara de 13 elementos; o Coro surge em 64; o Grupo Gulbenkian de Bailado em 65, a partir de um anterior Grupo Experimental de Ballet. Entre 62 e 65 atribuem-se Prémios de Crítica de Arte. Em 64 decorre o 1º Ciclo Gulbenkian de Teatro, em 33 localidades; o 2º é só em 71, o 3º e último em 72, mas lembram-se as digressões do Piraikon Theatron em 63 e 68, do Piccolo Teatro de Milão e do Nô japonês em 67. Pelo caminho, tinha-se subsidiado o Teatro Experimental do Porto e o Teatro Moderno de Lisboa (o apoio ao cinema e as grandes retrospectivas são já dos anos 70).

Viriam a conhecer-se em 1975 balanços muito críticos do passado da Fundação, quando, por momentos, pairou a ameaça da estatização. Houve compromissos com o regime e contornaram-se algumas das suas proibições. Entre a prudência e o risco, sob o comando pessoal, por vezes autocrático, de Azeredo Perdigão, a FG ajudara o país a mudar.

sábado, 4 de junho de 2005

2005, Joshua Benoliel - LisboaPhoto

Joshua Benoliel - LisboaPhoto

textos do arquivo . história da fotografia, Portugal (2005)

LisboaPhoto
Benoliel, Joshua

Benoliel - Génio ou mito?

Joshua Benoliel continua a ser um fotógrafo desconhecido

Expresso Actual de 04-06-2005   

É chocante notar que vêm dos arquivos de «L’Illustration», de Paris, e
«ABC», de Madrid, quase todas as provas de época expostas na mostra
dedicada a Benoliel, para além de dois álbuns do Arquivo Histórico
Militar, com milhares de provas de contacto sobre os preparativos da
intervenção na I Guerra. Se fica documentada a actividade do
correspondente internacional, com originais cheios de anotações,
retoques e marcas editoriais («L’Illustration»), também se ilustra o
desprezo nacional pelo património fotográfico.

Benoliel é uma das vítimas dessa fatalidade, apesar de ter gozado em
vida, e depois dela, dum imenso prestígio. É provável que não se tenha
esgotado a hipótese de descobrir outras provas de particulares e
instituições (o Paço de Vila Viçosa tem mais de duas centenas que não
foram cedidos para a exposição da Cordoaria). Mas no caso dum
foto-repórter com tão grande obra impressa, principal intérprete da
aparição da imprensa ilustrada com os progressos fotomecânicos no
início do século XX, não há que fetichizar as edições «vintage». As
imagens publicadas devem ser vistas neste caso como originais (com as
soluções gráficas que nesse tempo se inventavam - expondo-se edições e
não fac-similes colados nas paredes). E os negativos sobreviventes são
sempre um manancial para reimpressões.

Joshua Benoliel (1873- 1932) reuniu um espólio de mais de 60 mil negativos em cerca de 30 anos de trabalho, mais intenso de 1906 a 1918 como colaborador principal do magazine semanal de «O Século», a «Ilustração Portuguesa». Era o «filme da vida duma nação», «o documentário da nossa vida política, social, mundana, desportiva, teatral, etc.», dizia a promoção do Arquivo Gráfico da Vida Portuguesa 1903-1918, História da Vida Nacional em Todos os seus Aspectos, que Rocha Martins prefaciou em 1933 com um texto que continua a ser a quase única fonte de informação sobre o homem e o fotógrafo («Os grandes objectivos duma objectiva célebre», ver História da Imagem Fotográfica em Portugal, de António Sena).

Quando a edição se interrompeu ao cabo de seis fascículos, não saíra da 1ª Parte, «Os últimos anos de um reinado» (D. Carlos). Começa com «As viagens dos chefes de Estado a Portugal», desde Eduardo VII e Afonso XIII, em 1903, e junta no 2º capítulo «A viagem de D. Carlos a Espanha» (1906) e «O Movimento Operário em Portugal», sobre o comício socialista do 1º de Maio de 1907. Aí figuram as notáveis fotografias das mesas dos oradores, com Azedo Gneco, e da Imprensa, improvisadas sobre carroças. Depois passa às «Procissões», desde 1903, com observações atentas de grupos de mulheres nos passeios, e o capítulo 4º intitula-se «Cascais, Corte da Saudade»: «grupos de elegantes» na praia, tiro aos pombos e ténis, «As Gincanas de Automóveis». O exótico alinhamento prossegue com destaque para a rebelião do Cruzador D. Carlos (1906) e «Os Intransigentes de 1907» (a revolta académica, com «Os que furam a greve», «O julgamento dos díscolos», a solidariedade dos liceus lisboetas, até à bela imagem final da despedida de Paulo Quartim expulso de Coimbra, já dentro do comboio.

As circunstâncias políticas de 33 ou as dificuldades económicas da edição ditaram o seu fim. Depois, o arquivo foi-se dispersando, vendido a diversas entidades pelo seu filho Judah Benoliel (também destacado foto-repórter), em tempos de crise, e mais tarde por outros herdeiros. «O Século» veio a receber uns milhares de chapas de vidro que passaram para o Centro Português de Fotografia e estarão na Torre do Tombo (9334 negativos, ou cerca de 12 mil, segundo diferentes fontes), e o Arquivo Municipal conserva entre 4500 e 3500, entre outras colecções de menor vulto.

Por ocasião da Europália‘91, Benoliel foi apresentado por uma selecção de 34 fotografias, quase todas reimpressões modernas. A escolha de A. Sena afastou-se da abordagem cronológica e descritiva para ensaiar uma aproximação à singularidade do fotógrafo e de um olhar capaz de ser muitas vezes original, irreverente e poético. Foi a primeira e até agora única ocasião para se ver que, para além da quantidade e da importância documental do acervo do antigo «Século», o melhor trabalho fotográfico e gráfico de Benoliel escapa às rotinas e rituais do fotojornalismo, inventando outros momentos e pontos de vista, nos quais se desenham interesses e sentidos que só viriam a ter expressão significativa após as mutações da década de 20 (com a «nova visão», a Leica e a seguinte vaga de magazines ilustrados). Ao contrário das outras mostras que se repetiram em Portugal, esta ficou por Charleroi, acompanhada por um catálogo truncado.

De nacionalidade britânica (nascido em Lisboa de pais vindos de Gibraltar), judeu praticante, monárquico (Stuart caricatura-o em 1916 com uma coroa no alfinete da gravata azul e branca), viajado e culto (o padre Miguel A. de Oliveira, no Arquivo Gráfico, recorda-o em Sevilha e na Bélgica «explicando os segredos artísticos de Murillo e Van Dyck»), despachante de alfândega e bibliófilo, Benoliel é decididamente um personagem singular.

Não é conhecido o que pensava da fotografia, senão através da obra que iniciou quando as práticas amadoras e profissionais se tinham já banalizado e alguns aficionados cosmopolitas se interessavam pela «arte fotográfica» picturialista. Terá publicado a primeira reportagem em 1898 na revista «Tiro Civil», sobre as «Regatas do Centenário», e continuava a dedicar-se a temas desportivos e a frequentar a Corte («El Rei», em «Tiro e Sport», 1904) quando entrou como «free-lancer» para a «Ilustração Portuguesa» e se tornou o cronista dos últimos anos conturbados da Monarquia e dos primeiros da República. Terá apenas participado numa exposição beneficente de amadores em Cascais, com D. Carlos e a «alta sociedade», em 1903, e manteve-se depois à margem dos salões da fotografia artística (mesmo do que a «Ilustração» promoveu em 1910), mas as suas reportagens estiveram presentes na 1ª Exposição de Artes Gráficas, em 1913, e no ano seguinte numa mostra idêntica em Leipzig.

Gérard Castello-Lopes chamou-lhe «o único génio da fotografia portuguesa». Ian Jeffrey considerou-o «sem igual entre os pioneiros do fotojornalismo» (Time Frames: The Story of Photography, 1998, citado por Nuno Avelar Pinheiro em Pelos Séculos d’O Século, Torre do Tombo, 2002).

A actual exposição adopta uma lógica de arquivo, em resistência à consideração museológica e estética da fotografia utilitária ou vernacular (reservada à que enuncia a intencionalidade artística, seguindo cânones das artes plásticas). O que significa, em primeiro lugar, desvalorizar a possibilidade de reconhecer uma marca autoral, um estilo, um olhar próprio, uma qualidade fotográfica, no que se quer ver só como resposta técnica e ideológica às novas necessidades da imprensa ilustrada. O tema vem de Rosalind Krauss e liga-se à cegueira «ontológica» fixada na cesura ou corte, fingindo ignorar que as escolhas do enquadramento e do ponto de vista são fundamentos da originalidade da fotografia. A reflexão crítica de Szarkowski e os catálogos do MoMA são mais produtivos para a prática e a cultura fotográficas do que o marxismo académico da revista «October»: a questão também é política.

O que importa à comissária Emília Tavares é «desconstruir o mito» Benoliel, segundo disse à «Visão». Daí a quase ausência de escolha das fotografias «mais eloquentes», mais belas e significativas, e a insistência na quantidade, uniformizada por impressões demasiado escuras, de bordos negros como radiografias, sem interpretação de valores lumínicos, mesmo quando se conhecem as suas versões impressas. Daí a quase total ausência da visão inovadora com que Benoliel construiu as imagens da nova urbanidade do seu tempo (os aviões e automóveis, os desportos, os e as «elegantes» das avenidas, os ofícios urbanos, os ambulantes e os ociosos, a confluência das várias classes no espaço público - algumas dessas imagens essenciais são projectadas à entrada da mostra). Daí a concentração sobre temas da história política enquadrados por fórmulas ideológicas de suposto alcance universal.

Os capítulos sobre o regicídio (e a falsa questão do «instante perdido»), a implantação da República (e «a política das imagens»), que se prolonga nas variações obsessivas sobre «Imagem e Poder» e «Caos e Ordem», propõem a ideia que o fotógrafo é um mero instrumento da propaganda (burguesa), uma peça do discurso segregado pela imprensa ilustrada ao serviço dos vários poderes. Depois, «Geometria da Cidade» é um exercício de esteticismo anacrónico.

As multidões, os grupos (de grevistas ou de citadinos) e as figuras solitárias têm nas fotografias de Benoliel, com o seu sentido da profundidade de campo e do pormenor, uma presença que é, nas imagens mais conseguidas, e algumas podem descobrir-se na Cordoaria, a mais exaltante visão (encontrada e construída) do dinamismo urbano, nos trânsitos de um olhar atento à expressão das massas e à intimidade dos indivíduos, e à possível tensão entre elas. Com a liberdade e a verdade de que as melhores imagens podiam então ser testemunho, Benoliel deixou-nos um breve estado de graça da fotografia portuguesa. A herança continua a ser delapidada.

Joshua Benoliel - Repórter Fotográfico
Cordoaria, até 21 de Agosto

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Uma carta a propósito, da Comissária Emília Tavares, e a breve resposta

JOSHUA BENOLIEL
EXPRESSO, Actual de 18-06-2005
É sempre gratificante que um crítico de arte, com uma conhecida reputação, como é o caso de Alexandre Pomar, faça eco público das dificuldades dos investigadores (na verdade, os únicos que diariamente se confrontam com o património fotográfico nacional e o conhecem) sobre a falta de uma política de conservação e preservação desse mesmo património.

Quanto aos comentários acerca da exposição, torna-se necessário tecer algumas rectificações e esclarecimentos. Génio ou Mito? Parece-me uma questão estafada, secundária e muito antiga, que em nada abona para o conhecimento do trabalho de Joshua Benoliel, que Pomar parece não rever na exposição apresentada. É natural, já que algumas noções fundamentais sobre o que é o espólio fotográfico de um autor e a metodologia que deve ser empregue no seu estudo não estão, nem têm que estar, na base da sua formação, o que já é mais lamentável é que discorra acerca delas sem esse conhecimento, ou pelo menos não procure informação credível.

Comecemos precisamente pela questão de «lógica de arquivo, em resistência à consideração museológica e estética». Perante qualquer espólio fotográfico, a metodologia universal a adoptar é antes de mais a sua inventariação, separação por suportes e formatos, técnicas, estados de conservação e indexação dos seus conteúdos. Este trabalho arquivístico, que Pomar parece desprezar, é fundamental para discernir no conjunto global de imagens a construção da tal marca autoral, que não se prende a códigos lineares e obtusos sobre quem é génio e quem não é.

Estamos perante o trabalho de um foto-repórter, qualquer consideração estética não pode deixar de se colocar em confronto com este facto intrínseco e rearticulação ontológica do seu trabalho. «Cegueira ontológica» é querer instalar o trabalho de Benoliel num registo de genialidade estética novecentista, não atendendo à projecção que a sua obra teve no desenvolvimento de algo mais abrangente do que uma autoria, isto é, uma nova cultura visual.

A «concentração sobre temas da história política» apenas é demonstrativa e equitativa em relação ao conjunto geral do espólio e à sua qualidade. «Imagem e Poder» e «Caos e Ordem» são a análise latente de um período em que toda a construção política das imagens tem o seu início. Benoliel não é apenas, mas é também, um instrumento de construção de significados políticos e ideológicos, uma vez que a manipulação editorial das suas imagens foi sempre um exercício que extravasa o significado original das mesmas.

A questão só pode mesmo ser também política, quando falamos de imagem fotográfica e cultura de massas, mas Pomar terá de ampliar muito a sua bibliografia para a compreender, uma vez que essa questão surge muito antes do «marxismo académico da revista ‘October’» ou de Rosalind Krauss. Daí que o crítico considere que houve «fetichização das edições vintage», não compreendendo que essas mesmas edições são documentos absolutamente inéditos, que permitem entender todo o trabalho editorial sobre o «enquadramento e ponto de vista» do fotógrafo, obrigando-nos, no mínimo, a redimensionar o significado dos «fundamentos da originalidade da fotografia». Quanto às imagens publicadas existem nesta exposição, e em número muito superior aos fac-similes, que se resumem a 6, enquanto que são apresentadas 19 edições originais.

Pomar considera que a minha escolha de imagens deixou de fora as «mais eloquentes, mais belas e significativas», adjectivos e apreciação que só poderei discutir com o crítico quando souber quantas imagens, das 13 mil que constituem o espólio do fotógrafo, já viu, sem serem as publicadas e para além da selecção de 34 que António Sena realizou para a Europália 91. Custa-me a crer que o historiador, com o rigor que lhe é conhecido, tenha considerado que em 34 imagens estava resumida e totalmente abordada a originalidade do trabalho de Benoliel, conforme o faz Pomar.

Quanto às críticas à impressão das provas actuais, devia o crítico ter-se informado sobre o estado de conservação dos negativos originais, uma vez que esse aspecto técnico tem toda a relevância na produção das referidas impressões. Os negativos apresentam problemas diversos de deterioração, impossibilitando tecnicamente qualquer aproximação a impressões originais, e obrigando a um apurado trabalho para retirar o máximo de informação dos mesmos, que Paula Campos executou de forma irrepreensível e correcta. Além do mais, alimenta a inocente ilusão de que as edições originais ou as «vintage» constituem documentos fiáveis para comparação, ignorando que qualquer delas apresenta estados de deterioração da imagem, que falseiam os tão apreciados «valores lumínicos originais». O que Pomar confunde com uma radiografia é a impressão integral do negativo, conferindo-lhe uma identificação matérica, tantas vezes subvalorizada na abordagem fotográfica, e garantindo uma reprodução integral do enquadramento executado pelo autor.

A história da fotografia portuguesa é parca e inconsistente, precisamente porque se têm perdido demasiados anos a perseguir génios fotográficos, em detrimento do estudo articulado das suas obras, assim como permanecerá um beco sem saída, enquanto um certo caciquismo emplumado imperar, delapidando os empreendimentos que não possuem uma suposta autoridade intelectual histórica a apadrinhá-los. Deste modo, continua a ignorar-se o trabalho anónimo e desvalorizado desenvolvido em muitas instituições de ensino, museus e, de modo particular, por investigadores competentes.

A exposição de Benoliel, na Cordoaria, não pretendeu nunca ser um projecto arrogante e fechado sobre si mesmo, deseja-se que outros investigadores tenham a oportunidade de contribuírem com abordagens diferentes e complementares. Muitas outras questões ficam por discutir sobre a presente exposição, mas espero que o catálogo da mesma, a editar em final de Junho, possa desenvolver novas matérias para um debate construtivo e mais informado.
EMÍLIA TAVARES, comissária da exposição «Joshua Benoliel - Repórter Fotográfico»

N.R.

Alguns pormenores, entre muitas tergiversações: Não considerei que na exposição houvesse qualquer «fetichização das edições vintage»; a comissária é que agora sobrevaloriza o ineditismo das provas com retoques e marcas editoriais. A referência à «lógica de arquivo» e a Rosalind Krauss alude ao artigo sobre a fotografia do séc. XIX e de Atget incluído em «Le Photographique», como será óbvio para qualquer leitor informado (deixemos em paz a aura de Benjamin). Não pus em causa a qualidade do trabalho de impressão de Paula Campos, mas as opções que teve de seguir; com os «problemas diversos de deterioração» dos negativos, mais difícil terá sido cumprir a exigência de uniformizar as provas modernas.
A.P.

sábado, 14 de maio de 2005

2005, LisboaPhoto, Helmar Lerski

 

LisboaPhoto 2005


Helmar Lerski

"As verdades do retrato"

 Expresso/Actual de 11 Junho 2005


Helmar Lerski, do cinema expressionista para a fotografia

Ao longo das seis salas de exposição renovadas na segunda área de galerias da Culturgest (na zona principal continua a mostra de Xana), multiplicam-se os retratos de Helmar Lerski, apresentados pelo Museu Folkwang de Essen, no âmbito do LisboaPhoto. Num primeiro olhar não se reconhece que todos eles, em mais de 120 magníficas provas «vintage», mostram um mesmo rosto (o do engenheiro-desenhador Leo Uschatz).

Vão mudando alguns escassos adereços, um capuz, os óculos; assiste-se a algum teatro fisionómico, a testa enrugada, a pressão dos maxilares, mas é a constante variação dos enquadramentos, em «close-ups» muito fechados e num tamanho maior que o natural, conjugados com os efeitos da luz, que asseguram a diferença entre os retratos do mesmo homem, onde já se julgaram reconhecer as figuras de um herói, um profeta, um monge, um soldado agonizante, uma velha mulher.... Lerski (1871-1956) usou uma arcaica câmara de muito grande formato (30x24cm) e imprimiu por contacto, transformando a face numa imensa paisagem compacta, esculpida pela textura, o brilho e os relevos da pele. Fotografou ao sol, num terraço, usando diferentes filtros e 16 pequenos espelhos para fazer variar interminavelmente a luz e o recorte das formas.

Em vez do retrato objectivo, neutro ou científico, e à distância, também, do retrato subjectivo, que visaria interpretar a psicologia, o carácter, a individualidade mais profunda de alguém, Lerski constrói com a face única de um mesmo homem, que não é um actor, toda uma galeria de expressões e (pseudo)identidades. É uma das mais radicais experiências fotográficas sobre o retrato, realizada em 1935/6, na Palestina, por um artista e profissional dedicado a essa área especializada da fotografia, que já tinha sido director de câmara e de efeitos especiais do cinema mudo expressionista alemão (Metropolis, de Fritz Lang, 1927).

Em 1931 publicara um livro que se inclui sempre nas escolhas dos melhores «photobooks». Köpfe des Alltags: Unbekannte Menschen (Cabeças de todos os dias: gente desconhecida) reúne 80 retratos de estúdio onde os rostos, sempre em grande plano, surgem dramaticamente estilizados por luzes expressionistas. Recrutou modelos em agências de emprego e refere-os através de identidades sociais (varredor de ruas, mendigo, pintor, guarda-livros, etc.), o que concede ao volume o carácter de um documentário sócio-psicológico.

Depois, «Metamorfoses pela Luz» demonstraria que a presença física e objectiva de um rosto ou que o carácter de um retratado são por inteiro, ou podem ser, uma construção do fotógrafo, ou que a imagem exterior da identidade social ou a presença psicológica supostamente mais íntima (que um bom retrato subjectivo devia ser capaz de captar com «verdade»), podem ser elaboradas e infinitamente manipuladas a partir do exterior pelos meios próprios da fotografia. Para além deste exercício conceptual e prático levado à exaustão, o projecto de Lerski entronca num contexto muito particular da história da República de Weimar e da história da fotografia.

Nascido em Zurique de ascendência polaca, Helmar Lerski (aliás, Israel Schmuklerski) foi actor nos Estados Unidos antes de se dedicar à fotografia e passou a interessar-se pelo cinema documental depois de trocar Berlim pela Palestina, em 1931, antecipando-se às perseguições nazis; aí realizou um dos emblemas do cinema sionista, Avodah (Trabalho), em 1935, sobre os colonos judeus.

Para além das «Metamorfoses», onde aparentemente se dilui sob os efeitos da encenação a crença numa objectividade fotográfica, Lerski dedicou-se, na Palestina, a projectos de natureza documental marcados pela apologética sionista, «Cabeças Judias» e «Soldados Judeus», fez retratos de árabes e fotografias de paisagem e arquitectura; por outro lado, radicalizou as suas experiências numa série de «Paisagens do Rosto», com a ampliação de fragmentos de retratos, realizou estudos de «Mãos Humanas» e fotografou cabeças de marionetas, num último projecto que passou também ao cinema. Essa dupla orientação do trabalho de Lerski também deve ser considerada para que não se valorizem as «Metamorfoses» como uma definitiva demonstração - a prova e a teoria têm, aliás, diferentes eficácias em ciência e em arte.

As questões da identidade racial judaica agudizadas pelas perseguições nazis, bem como as da representação figurativa dos agentes da luta de classes, atravessam de modo dramático as décadas de 20/30. Na fotografia, esses anos são também marcados pelas grandes transformações sumariadas pela exposição «Film und Foto», organizada em Stuttgart em 1929 pelo Deutcher Werkbund (onde Lerski esteve representado com 15 imagens).

Com Karl Blossfeldt e Albert Renger-Patzsch (livros de 1928), a exploração sistemática do «close-up» tornara-se uma das marcas da «Nova Visão». Umbo (Otto Umbehr) terá sido o primeiro a aplicá-la ao retrato, inaugurando um novo estilo adaptado do grande plano do cinema e da redução às formas plásticas elementares cultivada pela Bauhaus, de que foi aluno. August Sander, identificado com a lógica mais ampla da «Nova Objectividade», publica em 1929 Antlitz der Zeit (Rosto do Tempo), no quadro do seu imenso projecto de traçar o retrato colectivo da Alemanha ao tempo da República de Weimar, fotografando em imagens de corpo inteiro tipos sociais referenciados por profissões e posições sociais. Lerski é um dos protagonistas dessa fase decisiva da fotografia alemã.

Helmar Lerski
«Metamorfoses pela Luz»   
Culturgest, até 3 de Julho

I e II

O que importa <em 2007> é a próxima edição do PhotoEspaña, porque o LisboaPhoto já foi (há dois anos). O mês de Madrid não terá a importância das três edições dirigidas por Horacio Fernández, mas vai celebrar os dez anos - a programação segue dentro de dias...

O que segue vem a propósito da 2ª, e para já última, edição do LisboaPhoto. Mudou a vereação, mudaram os compromissos (apesar de se tratar do mesmo partido), mas a concepção do programa de 2005 agravara mais ainda as insuficiências da edição anterior. O confronto com o PhotoEspaña mostra que ficamos sempre a perder - nos horizontes abertos ou fechados pela programação, na persistência ou na inconstância dos projectos.


DUAS NOTAS SOBRE O LISBOAPHOTO DE SÉRGIO MAH, 2005 

I - «A Imagem Cesura» - in Expresso/Actual 14-05-2005
II - "Imagens ou índices" - in Expresso/Actual de 21-05-2005

I - «A Imagem Cesura»

Nas vésperas do LisboaPhoto 2005

O título-tema é aberrante: «A Imagem Cesura». O 2º LisboaPhoto «constrói-se em torno do efeito de cesura da fotografia, mais especificamente sobre as conotações que esse efeito suscita relativamente à ontologia da fotografia. A cesura refere-se ao acto de golpear, à incisura». A ingénua prosa escolar da «Apresentação» encerra em estafadas questões essencialistas sobre «a natureza específica do dispositivo fotográfico», a partir do conceito de índice (de Charles Pierce), o que deveria ser o desafio de uma relação produtiva e mobilizadora entre as práticas da fotografia, a cidade e os seus públicos (os cidadãos).

Com um roteiro de 15 exposições oficiais que ignora todos os nomes de primeiro plano da fotografia portuguesa de hoje (mas Augusto Alves da Silva e António Júlio Duarte aparecem em Madrid numa parceria com o PhotoEspaña) e com um cartaz que faz da idiotia o emblema do LisboaPhoto, o acontecimento fotográfico bienal organizado pela Câmara sob a direcção de Sérgio Mah faz tudo para não despertar grandes expectativas.

E, no entanto, o programa inaugura-se no dia 18, na Cordoaria Nacional, com a mais aguardada das exposições: a primeira retrospectiva de Joshua Benoliel (1878-1932). Apesar da fama que gozou em vida, apesar de respeitado como patrono do fotojornalismo, Benoliel nunca teve a mostra ou o livro que o afirmassem como um autor de excepção no seu tempo internacional - o que foi possível entrever numa breve antologia mostrada na Europália’91, em Charleroi. Emília Tavares, a comissária, pesquisou os arquivos, encontrou originais e provas de imprensa, reuniu imagens impressas, investigou o contexto histórico e o uso social e institucional da fotografia. Espera-se que a obra não seja mostrada apenas como documentação histórica da sociedade portuguesa, e que se saiba valorizar o intimismo inovador e por vezes irreverente que distingue o olhar do fotógrafo.

Aaron Siskind, um dos grandes da fotografia norte-americana (Museu de Arte Antiga, dia 18), e o expressionista Helmar Lerski (Culturgest, dia 31) são outros pontos altos, tal como o serão com certeza as fotografias desconhecidas do Instituto de Medicina Legal (Arquivo Municipal, dia 8 de Junho), enquanto a arte contemporânea estará presente com as esculturas efémeras fotografadas por Erwin Wurm (Museu do Chiado, dia 2) e a mostra colectiva «Estados da Imagem. Instantes e Intervalos» (CCB, dia 25) - «entre a imagem-suspensa e a imagem-movimento, esta exposição reúne um conjunto diverso de modelos de produção e exibição de imagens de natureza técnica, procurando sugerir sinais de convergência, de inovação e de retroacção, a partir de graus de paragem e de concentração do e no movimento pela acção da fotografia, do cinema e do vídeo». Ao vazio das palavras pretensiosas corresponderá o deserto maneirista das imagens?

LisboaPhoto prolonga-se até Agosto e conta com um programa paralelo de exposições da iniciativa de galerias e escolas.


II - "Imagens ou índices"

A teoria e as exposições do LisboaPhoto

Expresso/Actual de 21-05-2005

«Há 20 anos dava-se prioridade a um debate ontológico em torno da natureza do fotográfico e da sua intersecção com as distintas versões da criação artística. (...) A fotografia é certamente um depósito químico produzido num certo momento daí a categoria de índice, ou indício, que se atribui à imagem fotográfica, mas não é isso o que realmente nos interessa. O que queremos saber é como essa combinação de luz, espaço e tempo adquire um sentido para nós, que contexto ideológico a envolve, que efeitos políticos desencadeia.» Joan Fontcuberta, Estética Fotográfica (Ed. Gustavo Gili, Barcelona, 2003, págs. 7-9).

«A teoria do índice é demasiado abstracta, demasiado indiferente às imagens, demasiado essencialista, demasiado redutora para ser operatória, em especial nestes tempos de profundas transformações e de redefinições das relações entre as imagens. A vulgata do índice encerra-se nos limites imutáveis da essência no momento em que é preciso compreender as evoluções.» André Rouillé, La Photographie (Folio Essais, 2005, pág. 257).

Na introdução deste livro (estimulante mesmo quando é injusto ou inaceitável), Rouillé escreve:

«Para lá da sua fecundidade teórica, as noções de rasto, de marca ou índice tiveram o imenso inconveniente de alimentar um pensamento global, abstracto, essencialista; de propor uma abordagem totalmente idealista, ontológica, da fotografia; de reportar as imagens à existência prévia de coisas de que elas seriam só o registo passivo. Segundo essa teoria, ‘a’ fotografia é, antes de tudo, uma categoria de que se devem fazer decorrer as leis gerais; não é nem um conjunto de práticas variáveis segundo as suas determinações particulares nem um corpus de obras singulares. Esta recusa das singularidades e dos contextos, esta atenção exclusiva à essência, leva a reduzir ‘a’ fotografia ao funcionamento elementar do seu dispositivo, à sua mais simples expressão de marca luminosa, de índice, de mecanismo de registo. O paradigma ‘da’ fotografia é, assim, construído a partir do seu grau zero, do seu princípio técnico, muitas vezes assimilado a um simples automatismo.»

O envelope teórico do programa «A Imagem Cesura» não é «arriscado» - como já se pretendeu -, mas sim conceptualmente limitado e desactualizado.

- Ver também "Imagens Privadas", colectiva na Plataforma Revólver - 28 de Maio de 2005

sábado, 28 de agosto de 2004

2004, Serralves, "Circa 1968" 3, Arte e Política (Interfunktionen)

 Expresso 28-08-2004

"Arte e política"


Os anos conturbados de 1968 a 1975 revistos numa perspectiva que dissocia a vanguarda artística e o envolvimento político

Cinco anos depois da exposição que inaugurou o Museu de Serralves, regressa-se a «Circa 68», ou seja, a algumas das manifestações artísticas de um tempo de todas as contestações, quando terminava a era de optimismo e desenvolvimento acelerado que, nos países do Ocidente, se seguiu ao fim da II Guerra Mundial. Após a exacerbação da Guerra Fria, com a edificação do Muro de Berlim, em 1961, a crise dos mísseis em Cuba, no ano seguinte, e o envolvimento militar no Vietname, em 1964, tem início um década de radicalização política e social que extravasa os quadros partidários e parlamentares, prolongando-se nos movimentos antiautoritários e num contexto de «mal-estar cultural» antiburguês de profundas consequências. Os ecos da Revolução Cultural na China e o terceiro-mundismo da «tricontinental» de Havana, a partir de 1966, as revoltas estudantis e Maio de 68, os diversos esquerdismos e a passagem à guerrilha urbana e ao terrorismo (a fracção Exército Vermelho, na Alemanha, e as Brigadas Vermelhas, em Itália, a partir de 1970), a invasão da Checoslováquia (68) e o golpe de Estado que derruba Allende (73) são alguns marcos essenciais.

Nada ou quase nada desse muito conturbado mundo político está explicitamente presente na actual mostra (a excepção, sem a pretensão de ter assistido a todas as projecções, será um filme de Wolf Vostell, de 1969, onde se vêem apenas as palavras «estado de emergência» projectadas sobre as paredes de Munique ao longo de sete soporíferos minutos). Poderá dizer-se que, nesta recuperação museológica dos objectos e documentos das acções artísticas destes anos de revolta, a arqueologia oculta a história.

«Por Trás dos Factos», título que no Porto não se traduziu (ao contrário do que aconteceu em Barcelona), sugere uma ligação subterrânea ou oculta da arte com os acontecimentos sociais e políticos. Mas é, de facto, a um fechamento da arte sobre si mesma que quase sempre se assiste, enquanto experiência dos seus limites (a inovação, ainda) e fronteiras (incluindo tudo o que poderia ainda ser não-arte), «reflexão» sobre a identidade essencial do fazer artístico, os seus códigos linguísticos e o contexto da circulação dos objectos (por exemplo, Hans Haacke apresenta os sucessivos proprietários de um quadro de Seurat), ou como a sua própria autocontestação («a arte corrompe», dizia Jochen Gerz; é «objectivamente reaccionária», insistia Buren).

Observa-se em paralelo uma ensimesmada e narcísica exposição do artista em si mesmo, do seu rosto e corpo, muitas vezes nu e em vários casos em acções autosacrificiais (Gunther Brus e Valerie Export), que podem ter a interacção com o espectador como pretexto ou privilegiar o exame conceptual do «eu» físico e psíquico no espaço fechado do estúdio (nas impressivas obras de Bruce Nauman). Preferindo os comportamentos artísticos às obras, numa lógica de recusa da autonomia do objecto de arte e do seu destino mercantil, «há um deslocamento da obra dita aurática para o artista aurático... a dessacralização da arte culmina na fetichização/histerização do artista», como escreve Birgit Pelzer num importante texto do catálogo que foi traduzido em A Obra de Arte sob Fogo. Inovações Artísticas 1965-1975 (co-edição de Serralves com o jornal «Público»).

No entanto, ao contrário do que leva a supor a escolha das obras e documentos expostos (sempre de artistas que colaboraram na revista alemã «Interfunktionen», mas sem coincidirem com as aí reproduzidas), os anos em causa são marcados por uma tendência generalizada da arte para a sua politização, o que, entre muitas intervenções de circunstância (e de instrumentalização da arte), inclui o uso militante das imagens e várias formas críticas de realismo.

A alegada neutralidade da pop é interrompida em 1965 pelo F-111 de Rosenquist, Rauschenberg utiliza imagens da actualidade serigrafadas, Kienholz é um crítico violento da sociedade americana, Golub e Nancy Spero são artistas políticos, Mark Di Suvero desenha a monumental Tower for Peace em Los Angeles onde se acumularam pequenos quadros de 400 artistas (1966) e exila-se depois em Itália, as «Angry Arts Week’s» sucedem-se em 1967, a Art Workers Coalition é criada em 1969, etc. Muitas obras de Öyvind Falström têm um explícito conteúdo militante, a Figuração Crítica francesa organiza em 69 a Sala Vermelha pelo Vietname, e o Salon de la Jeune Peinture declara-se ao lado da classe operária; na Alemanha, em 1970, grandes colectivas intitulam-se «Funções da Arte na Nossa Sociedade» e «Arte e Política»; o Equipo Crónica intervém na Espanha franquista; Baselitz e Schonebeck, Lupertz e Penk enfrentam o passado alemão, Polke propõe com ironia o Realismo Capitalista. A cronologia publicada em Face à l’Histoire (Centre Pompidou/Flammarion, 1996) é eloquente.

Dedicando-se às neovanguardas dos anos 60/70, circunscrevendo um universo de experimentação interdisciplinar com diferentes «media» e formas artísticas em que o vídeo toma um papel cada vez maior entre as linguagens artísticas, a abordagem da exposição toma a condição de vanguarda como um valor intrínseco, desfazendo-se das formas intervenientes do compromisso político. O ponto de vista «artistically correct», que dissocia a vanguarda artística e a política, pretende ser também uma forma de localizar nessa década os inícios da arte actual: «Foi em 1968 que se inventou um fenómeno ao qual se deu o nome de ‘arte contemporânea’», diz o agressivo marketing de Serralves.

Behind the Facts. Interfunktionen 1968-75
Museu de Arte Contemporânea de Serralves, Porto, até 3 de Outubro

Keith Arnatt, «I’m a Real Artist», 1969-72
«Salsicha de Literatura», de Dieter Roth, 1969   

II

Expresso 04-09-2004

"Comércio de ruínas"
Segunda visita aos vestígios das rupturas artísticas de 1968

Esta exposição não se percorre numa circulação mais ou menos contemplativa por entre objectos. Em princípio não há, não deveria haver, objectos, mas sim acções e comportamentos, embora estes, recuperados como história, se assemelhem perigosamente a obras de museu. À contemplação, alegadamente passiva, de objectos de arte autónomos, desligados das circunstâncias do seu tempo e lugar, deveria substituir-se a interacção, o envolvimento cúmplice ou reactivo com os propósitos críticos que os motivaram, enquanto arte ou não-arte, contra as convenções artísticas e sociais suas contemporâneas. Estamos, é preciso notar, não no terreno da criação artística especializada, onde a especulação formal levaria sempre mais longe a crítica da tradição, mas no campo da revolução artística, da utopia social e do radicalismo político.
Quando, como escrevia o crítico francês Jean Clay na revista «Studio International» em 1970, se assistia «à agonia do regime cultural mantido pela burguesia nas suas galerias e museus». Mais do que uma ou várias visitas, aliás, seria necessário viver no museu e transferir a realidade colectiva do quotidiano para o seu interior, porque a coincidência romântica entre a arte e a vida foi uma ambição das neovanguardas das décadas de 60/70. Ou, mais prosaicamente, porque assim o exigiria a extensão dos numerosos filmes e vídeos que se exibem - a experiência seria de um aborrecimento mortal.

Entre as projecções eternizadas em «loop» ou em exibição rotativa, não se percam os 96 minutos do filme de Mauricio Kagel, La Baignoire de «Ludwig van», de 1969, uma das mais importantes obras «expostas», discretamente situada no fim da ala direita do museu. Vale a pena acompanhar a câmara que visita a casa onde Beethoven supostamente nasceu, através dos quartos imaginados por Ursula Burghardt, Joseph Beuys, Robert Filliu, Diether Roth, Stephan Wewerka e o próprio Kagel (uma sala de música integralmente revestida por pautas), enquanto se ouve a peça que compôs a partir das sinfonias do seu antecessor.

Neste caso trata-se de um filme e não propriamente da exploração de novos «media», a qual constituía uma das orientações essenciais da revista alemã «Interfunktionen», de 1968-75, cuja evocação serve de argumento à exposição, mas o seu carácter interdisciplinar, em conformidade com o interesse de Kagel pelo teatro musical, satisfaz a defesa da abolição de fronteiras entre disciplinas artísticas. Esta ambição, que já não era inovadora, tinha então como referência mais directa o movimento Fluxus, criado em 1962 nos Estados Unidos, com origem no ensino de John Cage, mas que na Alemanha teve um desenvolvimento menos dadaísta e zen e mais retoricamente político, com Beuys e Wolf Vostell. Os dois tiveram uma influência preponderante nos primeiros tempos da revista de Colónia, e a exposição inclui igualmente obras de Maciunas (as suas latas de alimentos não são arte pop, mas a sua caricatura), George Brecht e D. Roth.

A música, entretanto, está especificamente presente através de obras de Philip Glass, Steve Reich, Kagel e Jon Gibson, que se podem ouvir em auscultadores. Mas são as imagens projectadas que predominam na exposição, continuada, aliás, pela apresentação simultânea da «galeria televisiva» de Gerry Schum. É através do filme e também da fotografia que podem entrar no museu as acções que pretenderam sair dos espaços fechados do atelier e da galeria, com o propósito de intervir na natureza, de a tomar directamente como material, de reviver a ideia de sublime nas imensas paisagens americanas e/ou recusar a recuperação mercantil dos objectos. Seria este último aspecto que mais aproximou a revista dos artistas que se identificam com a Earth Art ou Land Art, como Robert Smithson (a sua Spiral Jetty é tema de um filme), Walter de Maria ou Richard Long.

Outra corrente que está presente através da mediação do filme e da fotografia é a da arte corporal, onde o corpo é usado como objecto ou matéria, nas «missas negras» dos accionistas vienenses (Günther Brus e Valerie Export) ou em acções de Bruce Nauman, Vito Acconci e outros, identificados com a Body Art, enquanto em Rebecca Horn é essencial a criação de próteses ou adereços. Com o aparecimento do vídeo portátil, em 1965, passava-se do registo documental de «happenings» e rituais a outro tipo de «performances» que exploravam a interacção com a imagem espelhada no ecrã (Body Press, de Dan Graham). Entretanto, as correntes do cinema experimental dos anos 50 e o «underground» dos 60 (Robert Frank e a contracultura beat, os Fluxfilms, Warhol) prolongavam-se no cinema dito estruturalista ou conceptual com a desconstrução ou destruição das qualidades materiais do filme (Paul Sharits, George Landow e Wilhelm & Birgit Hein).

O diversificado panorama que a exposição propõe recorta a realidade dos anos 68-75 a partir do activismo da revista «Interfunktionen», surgida da contestação à IV Documenta de Kassel e da agitação da Academia de Dusseldorf, protagonizadas pelo movimento Lidl de Immendorff (as suas pinturas de 1974 pretendiam-se maoístas) e por Beuys, então afastado do ensino. Ao contrário da informação de Serralves, é errado atribuir uma «reaccionária concepção de arte» a uma Documenta inteiramente voltada para a actualidade, que expunha a pop, a arte cinética, instalações ou «environments» e incluía Edward Kienholz, Öyvind Fahlström e também D. Roth e Beuys. No entanto, é oportuno acompanhar algumas questões de fundo que se levantam no catálogo e no livro co-editado por Serralves e o «Público».

Ulrich Loock, director-adjunto do museu, refere que, «dado o fracasso do projecto político da ‘geração de 1968’, não surpreende que hoje se suspeite que a revolução aparentemente bem sucedida verificada na arte cerca de 1968 tenha, na verdade, sido uma revolução conservadora», remetendo para a análise crítica de Birgit Pelzer sobre «estes anos extremamente politizados, amargos, apaixonados, rebeldes, utópicos».

Perdidas as ruas, as neovanguardas ganhavam, a troco da sua neutralização política, a entrada nos museus e no mercado, passando das margens para os centros do poder. É o que sugere Birgit Pelzer: «Ao ratificarem o arbitrário e o absurdo de toda a problemática sobre o valor em arte, estas práticas interpretaram-na, em última análise, estritamente segundo os próprios termos do mercado, ao ponto de hoje anteciparem e explorarem a sua própria recuperação através desses mesmos mecanismos.»
«Instalações cada vez mais gadgetizadas, legitimando-se muitas vezes através de pseudoquestões sociopolíticas, introduzem o espectador numa cacofonia ensurdecedora e na sua própria obsolescência programada. Assistimos agora a eventos de marketing promocional para produtos de consumo em lugar de práticas de pesquisa, de experimentação, de laboratórios de preocupações e dúvidas.»

«Behind the Facts»
Museu de Serralves, até 3 Outubro

legendas
Joseph Beuys, cerimónia messiânica de um escultor social, xamã e activista político
Psicodrama sacrificial de Günther Brus   

sábado, 24 de maio de 2003

2003 LisboaPhoto - Expresso/Cartaz, Sternfeld

 

LisboaPhoto 2003 - I, II, III, Expresso/Cartaz

Em 2003, e de novo em 2005, Lisboa teve o seu mês da fotografia, o LisboaPhoto. Em 2007, a bienal desapareceu ou interrompeu-se (?), sem explicações públicas que se tenham ouvido, ou que se aceitem. Em 1993 já tinha havido um primeiro Mês da Fotografia dirigido por Sérfio Tréfaut, que ficou sem continuidade (mas o Arquivo Fotográfico de Lisboa abriu no ano seguinte, 1994).

A história repete-se: 1993. 2003-2005. E depois?

Entretanto o PhotoEspaña continua

I "Fotografias pela cidade" . 24-05-2003

II "Retratos da América".  07-06-2003

III "Visões da cidade". 14-06-2003

          


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I "Fotografias pela cidade", Expresso/Cartaz pp. 46-47

LisboaPhoto, primeira edição da bienal de fotografia promovida pela CML, vai apresentar 22 exposições em torno de questões urbanas

Como Madrid, Barcelona, Paris e outras cidades, Lisboa vai ter o seu mês da fotografia. Ou vai voltar a ter, depois da falsa partida de 1993, que, como diz o comissário do 1º LisboaPhoto, Sérgio Mah, deixou uma marca indiscutível «no imaginário da oferta cultural da cidade». Entretanto, Coimbra e Braga perderam ou interromperam os seus Encontros, que tiveram um papel central na divulgação da fotografia…

O projecto esta semana apresentado por José Monterroso Teixeira, director municipal de Cultura, terá um formato de Bienal e potencia a actividade regular do Arquivo Fotográfico de Lisboa, articulando-a com outros espaços institucionais da cidade num programa diversificado. A inclusão do Pavilhão de Portugal tem um declarado papel de alerta e de pressão no sentido da definição de uma vocação de índole cultural para o edifício (aí ficará o Museu Berardo?).

Com a adopção de uma linha temática em torno da cidade e questões urbanas, coroada por um título – «Passagens» - que alude ao filósofo marxista alemão Walter Benjamin (1892-1940), o programa, sustentado por uma verba da CML de 400 mil euros, compreende um núcleo central de 14 exposições e mais oito apresentadas por entidades convidadas a aderir ao projecto. A abertura ao vídeo e ao cinema, a confluência com o que se designa como arte contemporânea (o que refere mais questões de estilo e circulação institucional que de cronologia) e a acentuação da dimensão teórica na relação com as imagens são outras das regras seguidas por Sérgio Mah, professor na Universidade Nova e no Ar.Co.

É o que vai verificar-se na mostra colectiva «Arquivo e Simulação», com que o programa se inícia no CCB (dia 29), «visando a reflexão sobre a natureza e cultura da fotografia – nas suas dimensões estéticas, perceptivas e especulativas – no actual panorama de combinação e contaminação com outros dispositivos de imagem». Entre 15 autores encontram-se Francis Alÿs, Sophie Calle, Thomas Demand, Lorca diCorcia, Pierre Huyghe, Beat Streuli, Frank Thiel e os portugueses Daniel Blaufuks, Alexandre Estrela, Augusto Alves da Silva e João Tabarra. Também no CCB será apresentado Chris Marker, com o filme La Jettée (1962) e o CD-ROM Immemory.
Na Cordoaria (dia 29) ver-se-á uma selecção das grandes paisagens norte-americanas de Joel Sternfeld, «American Prospects», realizadas a cores desde os anos 70, e também retratos recentes da série «Stranger Passing». Outra mostra é dedicada a fotografias e vídeos do teórico e artista conceptual inglês Victor Burgin. A componente histórica do programa inicia-se (dia 31) na Galeria D. Luis do Palácio da Ajuda com «O Mundo de Weegee», antologia do famoso fotógrafo das ruas de Nova Iorque, nos anos 30 e 40, vinda do Internacional Center of Phtography.
Já em Junho, o Pavilhão de Portugal abre dia 4 com outras tantas esposições: de Hiroshi Sugimoto, que já foi visto no CCB, chegam as imagens desfocadas de ícones da arquitectura do séc. XX, e o brasileiro Arthur Omar mostra «Antropologia da Face Gloriosa», dezenas de  rostos fotografados durante o Carnaval do Rio ao longo dos anos, a que se juntam um vídeo de Gilberto Reis e trabalhos recentes de Daniel Malhão e Nuno Ribeiro.
A Galeria da Mitra apresentará fotografias de Lagos (Nigéria) realizadas pelo holandês Edgar Cleijne, na sequência de um projecto dirigido por Rem Koolhaas, e o Oceanário 25 imagens de Luís Pavão de "Lisboa em Vésperas do Terceiro Milénio" (ed. Assírio e Alvim). O Arquivo mostrará em estreia parte da Colecção de Ferreira da Cunha, incluindo alguns pioneiros da reportagem fotográfica em Portugal, e, no Convento das Bernardas, a primeira retrospectiva de Eduardo Portugal, que fotografou Lisboa nas décadas de 30 a 50. Por último, o Museu do Chiado vai expor uma antologia vinda do Centro Pompidou do fotógrafo e cineasta Eli Lotar (1905-1969), francês de origem romena que colaborou com as revistas «Documents» e «Minotaure».
O programa (a consultar em www.lisboaphoto.pt) prolonga-se com participações das escolas Ar.Co e Maumaus, do Instituto Franco-Português e das galerias Cristina Guerra, Luís Serpa, Lisboa 20, Baginski e Promontório Arquitectos.

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LisboaPhoto 2003 - II

"Retratos da América" (Weegee e Sternfeld)

in Expresso/Cartaz 07-06-2003

Dois fotógrafos dominam o programa do LisboaPhoto, o histórico Weegee e o contemporâneo Joel Sternfeld

As paisagens americanas de Joel Sternfeld expunham-se em grandes provas de 40,7 por 50,8 centímetros e eram fascinantes no seu registo distanciado de infinitos pormenores, e na tranquila suavidade das cores em que se distinguiam as diferenças de luminosidade dos lugares e das estações. Agora surgem em enormes ampliações de 122 por 152,4 cm (em edições de dez exemplares) e ganharam ainda melhores condições de visibilidade no novo formato permitido pelas tecnologias digitais de impressão.
O olhar, e também o corpo, deambula por estas imagens de inexcedível clareza, percorrendo a paisagem, os seus objectos e habitantes, num lento exercício de descoberta onde o realismo mais banal se encontra com o humor e a estranheza. Não podia ser mais cruel o contraste com os quadros fotográficos da exposição no CCB, onde a grande dimensão (e a unicidade ou escassez das provas) é quase sempre e só uma imposição do mercado e uma cedência à cegueira dos espectadores e às convenções estéticas da pintura (académica).

Com a mostra de Sternfeld no espaço amplo da Cordoaria, desiquilibra-se a colectiva central da LisboaPhoto como uma monótona acumulação de retóricas estereotipadas ou vulgarmente pretenciosas. É ele quem leva mais longe a ambiguidade da fotografia como uma arte da percepção em que se conjugam e enfrentam o registo e a construção da imagem, o documento e a visão subjectiva, a informação e o indizível, explorando ao mesmo tempo o mundo real e as condições ou contradições da reflexão sobre a apreensão fotográfica. Os artistas reunidos no CCB, encenadores ou cultores do instantâneo em forma de quadro, parecem, nos melhores casos, executar exercícios escolares inspirados pela sua obra. É o que sucede com os episódios cinematográficos de Gregory Crewdson, cujo sentido se esgota na compreensão da estratégia de produção, ou os transeuntes fotografados por Philip-Lorca diCorcia, que nada acrescentam às suas séries anteriores. Com ressalva do trabalho de Frank Thiel sobre a renovação arquitectónica de Berlim, onde a interpretação documental e a construção plástica são também uma radical reflexão empírica sobre a monumentalidade objectual permitida pelos recentes meios técnicos da fotografia (a sua maior prova, de quase cinco metros de comprimento, não é uma proeza vã).

Joel Sternfeld é um artista contemporâneo e os 65 retratos da série «Stranger Passing», de que se expõem 14 peças, foram pela primeira vez reunidos em 2001 no Museu de Arte Moderna de São Francisco. Realizados ao longo dos últimos 15 anos, em grande parte muito recentes, respondem a numerosas obras que desde os anos 70 pretenderam ilustrar a desvalorização ou a impossibilidade do retrato realista através das estatégias da encenação, da apropriação ou da hiper-objectividade de rostos anonimamente vulgares, com que se justificaram projectos neo-conceptuais, neo-picturialistas, simulacionistas, etc, que abastecem o mercado institucional e ocupam a reflexão teórica académica (o «adeus à fotografia» de Victor Burgin, «a batalha contra a fotografia» de Jeff Wall, de que este se autocriticou depois de se confessar derrotado).
São os retratos de Sternfeld que situam a mais extrema actualidade e que estabelecem os padrões de avaliação crítica mais exigente da produção fotográfica contemporânea, actualizando com personagens de hoje e meios técnicos actuais uma tradição viva, que nunca se congelou numa lógica modernista fechada à mudança. August Sander é uma referência citada a propósito destes retratos integrados na paisagem urbana ou rural, que de certo modo também se podem ver como um inventário de tipos. No entanto, estes personagens desafiam, de facto, a possibilidade da sua categorização como representantes de classes, raças e profissões, mantendo sempre uma ambiguidade essencial àcerca da sua identidade individual e da natureza da representação fotográfica.

Os ténis vermelhos do velho homeless negro de Nova Iorque, cujo olhar nos interpela frontalmente, distinguem-no individualmente, tal como as marcas de uma inacessível vida pessoal que esculpem a dureza do rosto da mulher a vender os jornais de domingo numa estrada do Colorado. Uma outra ambiguidade essencial reside nas expressões de surpresa ou súbita rejeição face à câmara que são visíveis nos rostos do bancário que almoça na esplanada ou do advogado surpreendido a comprar o jornal, segurando a roupa para a lavandaria. Não se tratando de instantâneos furtivos nem de actores encenados, e não existem informações sobre os métodos de trabalho, têm de supor-se a disponibilidade do fotógrafo para o acaso da fotografia de rua e excepcionais aptidões de empatia, que se adivinha na frontalidade e reciprocidade dos olhares. Retratos como os da mulher que brinca com a filha (Tres Orejas, Novo México) ou o casal de finalistas vestidos para a festa no Hilton (San Antonio, Texas) transbordam de uma energia  exaltante, que se constitui como uma visão do mundo, uma poética e uma crítica.
Sternfeld, nascido em 1944, fotógrafo «freelance» desde 1966, professor desde 1971, reunira a série das suas paisagens em 1987, exercendo uma grande influência no uso da cor documental por fotógrafos mais jovens. Americans Prospects era o trabalho de nove anos de viagens de carro através da América, com que retomava a ambição dos grandes itinerários de Walker Evans e Robert Frank, renovando uma tradição que entretanto se alargara com os fotógrafos da paisagem social (Diane Arbus, Bruce Davidson, Lee Freedlader e Garry Wininogrand) e com a «New Color» de Stephen Shore, Joel Meyrowitz e William Egglston. Tudo isso foi muito pouco visto em Portugal.
Outro dos marcos da tradição documental é Weegee, de quem se apresenta uma retrospectiva itinerante do International Center of Photography de Nova Iorque. Usher Fellig, depois Arthur Fellig, nasceu em 1899 na Áustria (hoje, Ucrânia), numa família judia, e chegou aos dez anos a Nova Iorque; aos 14 arranjou o primeiro emprego na fotografia comercial, tornando-se depois impressor e foto-repórter. A sua obra é um dos exemplos de como a fotografia americana se construiu num diálogo permanente entre o realismo vernacular e a intenção artística.
Entre 1935 e 1947, Weegee construiu como «freelance» um vasto panorama da vida urbana e popular de Nova Iorque, especializando-se em imagens de crimes violentos e desastres, da suas vítimas e espectadores, notáveis pela expontaneidade e a crueza do seu voyeurismo. Trabalhando quase sempre de noite, com a clássica Speed Graphic dotada de um potente flash, tornou-se famoso também pela rapidez com que acorria aos lugares dos acidentes e seguia com os seus «scoops» para as primeiras edições dos jornais. Dormia ao lado de um rádio sintonizado na frequência da polícia e circulava com outro no carro, levando no porta-bagagens todo o equipamento de revelação e impressão, a máquina de escrever e a caixa dos charutos.
Notável era igualmente o sentido de auto-promoção com que carimbava as fotografias com o crédito «Weegee o Famoso». A partir de 1940 começou a publicar foto-histórias no vespertino progressista «PM» e em 41 a Photo League dedicou-lhe a exposição «Weegee: Murder is My Business», a que se seguiu em 43 a compra de fotografias pelo MoMA (exposição «Action Photography»). Depois do enorme êxito do livro Naked City, em 1945, transferiu-se para Hollywood, onde trabalhou como actor e consultor de filmes, fixando o estereótipo do fotógrafo-detective, mas decaiu como autor. Usem-se com prudência os textos do catálogo, onde escasseiam as informações e sobram especulações deste género: «Endereçar a democracia da fotografia como um médium modernista é uma posição mais típica da Europa que da América… »
Joel Sterfeld / O Mundo de Weegee
Cordoaria e Palácio da Ajuda

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LisboaPhoto 2003 - III

"Visões da cidade" Expresso/Cartaz 14-06-2003

Lisboa em três exposições e um pequeno salto a Paris (com Eli Lotar)

Um dos principais méritos da LisboaPhoto é a abertura da programação, onde a par da arte contemporânea que utiliza a fotografia e o vídeo, vulgarizando novas aquisições técnicas, se incluem práticas funcionais da fotografia como o fotojornalismo e a actividade documental e topográfica.
Com o museu e a galeria, em que se estabelece o reconhecimento histórico (Weegee e Eli Lotar) e se propõe o contemporâneo como género específico ou nova categorização essencialista, concorre o espaço incerto do arquivo, no qual se suspende a atribuição prévia de uma natureza artística dos objectos. Essa contiguidade é positiva para se entender a ambiguidade do medium fotográfico. Quando qualquer coisa pode ser arte, as distinções que importam dizem respeito à atenção que as imagens despertam e aos sentidos e prazeres que asseguram.

Aliás, o próprio projecto da bienal veio afirmar com nitidez a importância do arquivo – e concretamento, do Arquivo Fotográfico Municipal – como parceiro e instituição âncora do programa, potenciando uma das raras situações de continuidade de uma missão que tem sido sacrificada noutros casos.
Com o curto tempo de preparação que teve a LisboaPhoto, o Arquivo optou por apresentar trabalhos que tinha em curso sobre dois espólios entrados nos seus depósitos. Por sinal, o de Eduardo Portugal foi o primeiro que recebeu, em 1991, por ocasião da passagem para as instalações na Rua da Palma, inauguradas em 94, e o espólio de Ferreira da Cunha é o mais recente, doado em Junho de 2000 pela Sojornal, depois de ter sido adquirida pela empresa de «A Capital».

Fotógrafo do «Diario de Notícias» até à sua morte em 1970, depois de ter trabalhado desde meados dos anos 20 em «O Século» e outras publicações, Ferreira da Cunha foi também um coleccionador. O seu acervo de 2270 negativos em chapas de vidro de formato 9x12 cm (de que são expostas 84 provas muito bem impressas no AFM, havendo mais cem incluídas no catálogo e um total de 800 consultáveis na base de dados) é consagrado ao fotojornalismo da primeira metade do séc. XX, contando nomeadamente com trabalhos de Joshua Benoliel, para a «Ilustração Portuguesa» no período de 1906 a 1918. Neles se vinca o papel pioneiro da sua prática do instantâneo de rua e o interesse pela efervescência do quotidiano e os rostos anónimos, que influenciou os foto-repórteres seus contemporâneos e posteriores.

Da agitação dos anos da República à ordem pesada do Estado Novo, a mostra reúne uma importante galeria de retratos informais, de Afonso Costa a Carmona, e a Salazar – vejam-se o encontro de ambos em 1934, a sessão fotográfica de Carmona com Judha Benoliel e Leitão de Barros, e Salazar recebendo informações da revolta militar de 1931. A sequência é cronologicamente disposta com agilidade, em vários formatos, acompanhando as convulsões da política com os «fait-divers» da vida urbana e social, num panorama em que a memória histórica se preenche de acontecimentos e figuras humanas. 
No renovado Convento das Bernardas, um lugar a descobrir, apresenta-se Eduardo Portugal, cujo nome se manteve quase ignorado apesar da vastíssima produção entre as décadas de 30 e 50. É um caso raro dum espólio integralmente conservado, oferecido pela família, com cerca de 30 mil negativos, contactos, provas ampliadas (também de outros autores), postais, 170 álbuns e registos pessoais, que se encontram ainda em grande parte por estudar.
Em vez de uma síntese apressada da respectiva carreira, optou-se por dedicar a exposição às fotografias em que documentou as transformações urbanísticas de Lisboa (entre 1928 e 1954), acompanhando em especial os anos decisivos de Duarte Pacheco (1932-43). Organizada, com as suas provas de contacto (9 x 15 cm), em três itinerários topográficos que no catálogo a publicar são objecto da leitura histórica de Ana Tostões, a mostra apresenta-nos uma prática rigorosa da cartografia fotográfica, que se destinou à edição de postais, roteiros turísticos, publicações de olisipógrafos e outras, para além das encomendas que realizou para a Câmara.
Evitando selecções que poderiam inventar um autor-artista através da concentração em alguns temas ou tipos de imagens (lugares pitorescos dos bairros populares, espaços de amplas perspectivas quase desérticas, séries «conceptuais» de candeeiros de rua, etc), a mostra segue a competente neutralidade com que Eduardo Portugal faz o inventário dos lugares, antecipando-se às alterações da paisagem urbana, regista as demolições de núcleos antigos ou o rasgar das quintas periféricas, e acompanha com minúcia a construção da nova cidade.
Outras mostras virão depois a avaliar a obra realizada com ambição artística, nos primeiros anos de actividade (de 1918 até 1928-30), de que se divulgam no catálogo e em vitrinas alguns exemplos com marcas picturialistas, e também os seus retratos e temas etnográficos. Entretanto são as imagens de Lisboa que ficam disponíveis, ampliando a paisagem urbana e oferecendo-se a várias direcções de investigação.

É sensivelmente na mesma data em que Eduardo Portugal troca a «fotografia de arte» pela objectividade documental que tem início a actividade parisiense de Eli Lotar (1905-1969), sintonizada com o crescimento da grande imprensa ilustrada. Trata-se aqui de uma muito diferente prática do documento, fortemente autoral, distanciada da ilustração e com um novo tipo de intenção artística identificada com a consciência da modernidade tecnológica e social.
Antologia de uma obra breve (1927-37), que foi partilhada com o cinema e não chegou a ganhar uma especial individualidade entre os renovadores da mesma época (em França, Man Ray, Germaine Krull, Maurice Tabard, Kertesz, Brassai, etc), esta é também uma exposição de arquivo, até por contar só com impressões recentes, vindas do Centro Pompidou - teria sido mais produtivo fazê-las acompanhar ou mesmo substituir pelas suas publicações nas edições do tempo, em que também se renovavam a paginação e o lugar da fotografia. (Que o Museu continue esvaziado da sua colecção histórica é apenas a continuação de um conhecido escândalo, talvez mais chocante neste caso.)
Nascido em Paris, de origem romena, Eli Lotar trabalhou a partir de 1927 com Germaine Krull, a influente autora do álbum Métal, desse mesmo ano e verdadeiro manifesto da modernidade associada à era da máquina. Foi um dos primeiros colaboradores do semanário «Vu», criado em 1928, e teve uma breve colaboração de estúdio com o surrealista J.-A. Boiffard. O seu trabalho mais famoso, sobre o Matadouro de La Vilette, que realizou na companhia de André Masson, foi encomendado por Bataille para acompanhar a entrada «Abattoir» no «Diccionário Crítico» que publicava na revista «Documents», e surgiu depois mais extensamente em «Variétés» e «Vu». Abandonou a fotografia em 1937, passando ao cinema com Jean Painlevé, Joris Ivens, Renoir e Buñuel (foi câmara em Las Hurdes, 1933), realizando um importante documentário de cunho social, Aubervilliers, em 1946.
Parte substancial da sua produção segue o modelo da «Nova Visão», que se afasta dos modelos picturais para explorar a objectividade da imagem fotográfica pura, através do pormenor significante e dos pontos de vista inesperados e insólitos, a par de uma procura poética da estranheza do banal quotidiano que interessava ao surrealismo. Uma fotografia de Lisboa (1927-30) substitui-se à modernidade que então não tivemos.

De Paris regressa-se a Lisboa e chega-se à actualidade com Luís Pavão, de quem se expõe no Oceanário uma selecção de 25 fotografias, em provas de grande formato quadrado (um metro de lado), seleccionadas do livro editado em 2002 pela Assírio & Alvim, "Lisboa, em Vésperas do Terceiro Milénio". Poderiam desejar-se, porém, melhores condições de produção para esta mostra que apenas apresenta cerca de dez por cento do projecto editado e a que haveria que atribuir um lugar central num programa dedicado à cidade e às questões urbanas.
Durante dois anos (Janeiro 2000-Dezembro 2001), Pavão calcorreou Lisboa com a disciplina de quem desenha o mapa da cidade em mudança, fixando os seus alvos, procurando os melhores lugares (e horas) de observação – muitas vezes elevados, às vezes com recurso a gruas – e assegurando o acesso a lugares reservados. O retrato resultou, em livro, num imenso «puzzle» organizado com um sentido do ritmo e da surpresa que continuam a ser surpreendentes.  Documento, testemunho, inventário cartográfico, percurso sentimental, esta obra é um monumento erguido a uma cidade concreta, conhecida e revelada, com a sua arquitectura, trânsitos e habitantes. E é também um manifesto por uma urbanidade mais digna. 

Colecção Ferreira da Cunha,  / Eduardo Portugal,
Eli Lotar
e Luís Pavão
Arquivo Municipal, Convento das Bernardas, Museu do Chiado e Oceanário