sábado, 12 de outubro de 2002

Fátima Mendonça, 1996 (Arte Periférica), 1998, 1999 (Fernando Santos), 2001 (Prémio Maluda), 2002 (111)

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2009: Exposição na Galeria 111, de 10 de Setembro a 7 de Novembro

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Escritos desde 1994

FÁTIMA MENDONÇA, Arte Periférica, Massamá
Expresso Cartaz de 17-09-1994

Um desenho que é aparentemente infantil para falar de experiências e violências físicas suporta a narração de histórias em que entram uma noiva, um bolo e um cão mau. São as grandes telas, onde um corpo flutua, exposto e pensado do interior, num espaço vago de manchas e rasuras, que melhor traduzem, depois de Dubuffet e Paula Rego, mas sem epigonismo, a energia de um discurso que aqui começa. Uma primeira individual que nos faz aguardar novos trabalhos. (Até 5 Out.)
 
FÁTIMA MENDONÇA, Arte Periférica/Belém
Cartaz Expresso 18-11-1995
Três telas de grande formato dão sequência a uma pintura que joga abertamente na criação de uma narrativa centrada numa personagem feminina e num quotidiano de aspirações comuns, convenções, desejos e alegrias, medos e protestos — «estórias da menina mal-amada», no título da apresentação de Rocha de Sousa. O uso da cor vem agora dar uma outra intensidade a um grafismo aparentemente ingénuo, próximo do graffiti, enquanto as anotações escritas («ela explicava ao cão que era uma rapariga sincera», «descobrira-lhe mais de dez namoradas iguais a ela», «ela esforçava-se muito por lhe agradar») recriam episódios de uma intimidade ficcionada de menina ou noiva «saloia», entre formas de bolos e «suspiros», que também pode surgir travestida de toureira. As histórias são mais sangrentas do que parecem.
 
1997
"A sedução e a culpa"

Cartaz Expresso 11 Jan. 1997

Arte Periférica, Dez. 1996 / Jan. 97

Pela terceira vez consecutiva (em 1994, na galeria de Massamá), Fátima Mendonça mostra no final do ano como cresce regularmente a sua pintura. Não quanto aos formatos, sempre largos como paredes, mas na consolidação de um discurso, dos seus recursos, dos seus personagens e da marca distintiva de uma autoria, talvez ficcional, talvez confessional — questão adiada ou sem sentido.
A ideia de parede confirma-se na dispersão das notações, desenho e escrita, deixadas sobre a tela, repetidas, recomeçadas, distribuídas como se de um quarto fechado se tratasse, obsessivamente preenchido pelos «graffitti» de um preso, e como se esse fosse o diálogo possível com os outros, sempre através do espelho de si mesmo. As quatro telas-paredes expostas fecham-se, de facto, como um quarto, mas uma delas é ocupada por um corpo nu de criança, imperfeitamente feminino, oferecido, exposto e inseguro, a crescer nos seus sapatos altos de mulher. Ou é de um desenho infantil que se trata, retrato incerto (menina ou mãe, boneca), memória reaprendida de uma idade de terrores e fantasias?
Os sapatos altos estão também, isolados, noutro quadro e vinham já de trás, da série exposta em 95, como acontece com as formas dos bolos e o rabo de touro, que agora se alinham a preencher outras duas paredes. Nas «estórias da menina mal-amada», como então as apresentava Rocha de Sousa, a criança-mulher surgira travestida de toureira, a ocupar o centro da arena, enfrentando o medo, fazendo-se temer.
«Ela esforçava-se muito por lhe agradar», «ele enchia-a de mimos», «A saloia», «A toureira a agradecer», «O baile», «manso, sem casta», «Ela explicava ao cão que era uma rapariga sincera», ía-se escrevendo, repetidas vezes, de quadro em quadro. Mas não há um fio narrativo a decifrar como chave de uma história-enigma contada por imagens; é a intimidade de um universo que se propõe ou enfrenta ora como memória, ora como sonho, ora como interpretação dos seus nós significantes, ou como a dramaturgia de um exercício de pintura, calculadamente elaborado no seu jogo de verdade ou fingimento. E os desenhos que se expõem numa parede exterior da galeria, aberta à rua, isolam os diferentes motivos-sentidos recorrentes num inventário de sinais, marcando, por exemplo, a passagem de um suspiro (bolo) à forma de um sexo feminino, ou acrescentando outras referências gráficas ainda imprecisas no seu curso.
O quarto é casa, «A casa do desarranjo» (título geral), e é cozinha, «a cozinha da minha mãe», com as formas dos bolos e os camarões, recheio culinário com uma presença invasora e grafismo obsessivo, com as receitas escritas e a contabilidade das vendas («ela fazia bolos sem parar»). Exercício de servidão ou castigo, modo de sedução, enquanto os rabos de boi se terão de ver como selvagem acção castradora («manso, sem casta, sem investida»), é sempre de um mundo de terrores e desejos que se trata («o medo, «malpropreté», «la douleur», «a doidita»), de um corpo que se observa, entre convenções e protestos, entre alimentos e fluidos, num espaço da ordem doméstica que é também o lugar da identificação sexual.
Sobre cada tela, o desenho e a escrita visíveis são como um véu último sobre uma sedimentação de ensaios apagados ou recobertos por sucessivas velaturas, como camadas sucessivas vindas à consciência, rasuradas ou expostas.

1998

Fátima Mendonça
Casa Fernando Pessoa - 14-02-98

O programa de ocupações do Quarto do poeta prossegue e, neste caso, a «instalação» volta a prolongar-se de modo invasor por outros espaços da Casa. Em vez de uma situação ilustrativa, F.M. construiu um quarto de criança/casa de bonecas que é um espaço de paredes integralmente desenhadas: cenário onde se instalam motivos conhecidos de obras da artista, referidos a um imaginário infantil e feminino cujo obsessivo devaneio se apresenta (ou se ficciona) como íntima viagem de aprofundamento das dependências parentais e da descoberta do corpo próprio. É a partir do Quarto que ganham sentido outras peças expostas, pinturas sobre tela e uma «instalação» onde cinco gaiolas encerram os corpos giratórios de uma menina-boneca que se expõe e esconde, nua, sob o voo de uma bruxa (imagem de condenação ou de desafio?). Sob o título «Camara Lenta», Fátima Mendonça procede a uma teatralização do mundo ambiguamente privado da sua pintura, oferecendo-o com humor ao mesmo tempo que refere numa citação do catálogo o Desassossego de Bernardo Soares. (Até 15 Mar.)

"Fátima, Joana, Sofia"
Três exposições de mulheres artistas põem em questão a ideia de pintura feminina

Expresso Cartaz de 23-10-98
NÃO existe certamente a pintura feminina, nem as três exposições estabelecem entre si naturais relações de afinidade. Se duas delas se prestam à leitura de uma auto-representação mais ou menos ficcionada ou fantasmática e de uma atitude confessional como exibição mais ou menos teatralizada, a terceira, onde a pintura se dirá abstracta, segue outro caminho das imagens, sem se poder ler como expressividade intimista. Nesta conjunção guiada pelos acasos da programação não comparece nenhuma atitude mais friamente analítica, mas esta também existe em obras femininas, e as generalizações serão sempre improcedentes. As individualidades, em casos de género ou geração, importam mais que a lógica do grupo. Mas pode notar-se que é a urgência mais imediata e livre do desenho que preside às três mostras.

Fátima Mendonça volta a convocar a pista de circo como lugar de exposição aos olhares alheios, como fizera há pouco tempo na Casa Fernando Pessoa, então com peças tridimensionais em que o «chapiteau» era também gaiola e a personagem dos seus quadros uma boneca giratória. Antes colocara-a numa outra arena como menina-toureira. Agora ela agradece desajeitada a ovação, atravessa o espaço em equilíbrio no arame, segura um cão certamente morto, vindo também de outros quadros, ou mostra-se de coração nas mãos, num outro «estudo para um grande amor», e como patinho feio em mais uma tela.
Existe uma absoluta continuidade narrativa no trabalho de F. M., construída pela intimidade de um universo povoado por referências recorrentes, e o uso da escrita sublinha mais ainda essa dimensão literária, que já não é objecto de desconfiança para a crítica «pura». Reconhece-se em algumas obras femininas uma radical capacidade de auto-exposição e intimidade, mas o exercício da projecção também se confunde com o gosto da teatralização, e entre exorcismo e fingimento não há aqui lugar para a ideia de verdade (ou de retrato e biografia), mas sim para a de construção de uma obra.
No trabalho de Joana Rosa surge uma nítida vertente confessional, sobre a persistência de um desenho espontâneo e compulsivo, o «doodle», mantendo-se esta denominação para novos trabalhos («Secrets») habitados por dois personagens de um teatro privado, a bailarina e a fada, enquanto a escrita passa a ter uma intervenção importante. A exposição, aliás, estabelece com nitidez, mas algum excesso de peças (o desenho é compulsivo...), a passagem das grandes composições de fragmentos cobertos pela grafite para essa produção mais recente.
«Yes Y want to look like this forever» é um comentário que, com variantes, acompanha os exercícios de uma bailarina-ginasta, desenhada com a elegância de um corpo de modelo, por vezes vulnerável à deformação, à queda (alguns corpos que se levantam lembram curiosamente os de Maria Beatriz) e também ao ridículo de um estereótipo – «No no she is ridiculous, but I like her hand...». A escrita que acompanha a imagem identifica a relação com o corpo próprio, ameaçado pelo tempo, enquanto a inclusão de desenhos infantis é justificada por uma muito concreta relação entre mãe e filha: «My daughter Madalena did this to help me...». Noutros trabalhos, J.R. usa a figura da fada importada do mesmo diálogo com a filha, assumindo-a como projecção de sonhos e terrores que não são apenas infantis. Uma última série de trabalhos radicaliza ainda a presença do texto (...a carta ou o diário), jogando com a colagem, a ocultação e a transparência, com a leitura fragmentária e a ilegibilidade.
No trabalho de Sofia Areal não está presente a figura e a escrita, mas não será inútil precisar que a actual exposição parte da colaboração num espectáculo teatral de Jorge Silva Melo, sem sujeição a um texto prévio mas como comentário de um tema, a alegria de viver. Mais concretamente, informa o encenador, «sobre a mão» e a «feitura da alegria» («a mão que faz a alegria» segundo o belo título da nota de catálogo). Dos cinco painéis verticais que então desciam da teia, mostram-se apenas dois, acompanhados por uma série de desenhos de varias dimensões que os quiseram continuar.
Não se tratou, é obvio, de ilustrar a alegria, mas, de algum modo, de tomá-la por programa ou disciplina, referindo-a num exercício de aparentemente despreocupada liberdade da mão, com uma expontânea expressividade que é também acaso calculado e secreta sabedoria, para entregar ao espectador a impossível e inútil tarefa de localizar um sol, uma flor, uma asa, talvez um riso. Poderá ser mesmo na impossibilidade da palavra perante uma explosão vermelha, uma onda azul, uma fresta negra, uma diferença entre brancos, que reside essa alegria.
A pintura de S. A. exercita-se sem rede e sem norma, correndo sempre o risco de desafiar a necessidade de uma razão justificativa, mas «no fundo, a questão é saber qual o significado do significado – há perguntas que não se fazem; há coisas que não se dizem», como se lia, a propósito de um espectáculo de Bob Wilson num texto da anterior «Revista».

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1999

Fatima 99
«Gosto da Minha Casinha 9», 1999

"Três artistas no Porto"
Expresso Cartrtaz de 27 de Novembro de 1999

CARLOS CARREIRO, Árvore (até 7 de Dezembro)
FÁTIMA MENDONÇA, Gal. Fernando Santos (até 31 Dez.)
PEDRO CABRITA REIS, Museu de Serralves (até 23 Jan.)

NENHUM comum ar do tempo percorre as muitas exposições inauguradas no Porto, nem se detectam sinais que sustentem identificações geracionais ou análises conjuntas. Às desigualdades entre programações somam-se as opções individualizadas dos artistas mais as variações de ritmo e risco das respectivas carreiras. Destacar as mostras de Carreiro, Fátima Mendonça e Cabrita Reis decorre de critérios que serão pessoais mas assumem a responsabilidade de justificar as qualidades reconhecidas a cada um, sem pretender atenuar as diferenças de direcção dos seus trabalhos.
E é uma mera coincidência, mas uma curiosa coincidência, que o primeiro seja um nome que se destaca entre os artistas surgidos em anos tão pouco favoráveis a consagrações como os 70; que a segunda chegue numa posição de amplo reconhecimento ao final desta década, contrariando os estereótipos com que se pretenderam identificar os jovens dos anos 90; que o terceiro seja uma figura central entre os artistas dos 80 que hoje lutam por sustentar a notoriedade alcançada, esquecendo-se tantas vezes que as obras se constroem em itinerários em geral longos e atravessados por altos e baixos, convulsões e viragens.

Carlos Carreiro dá às suas pinturas um título geral, «Dos Truques do Adamastor à Vingança dos Perus», que as situa de imediato no seu terreno habitual da celebração do imaginário, onde impera a fantasia, o humor e também algum comentário corrosivo. Com as novas obras, que, entre outras motivações pessoais, terão tido algum ponto de partida concertado com o calendário comemorativo dos Descobrimentos – lá estão, na tela maior que é referida na primeira metade do título geral, as caravelas e bandeiras pátrias, uma torre de Belém de barbatanas a tentar andar em direcções opostas, um Adamastor marionetista (seria imperdoável que este exemplo excepcional de «pintura de historia» no presente não tivesse destino institucional,... mas não podemos ter ilusões sobre os museus que temos) –, assiste-se a mais uma inflexão fortemente afirmativa do trajecto de pintor, prosseguido como um percurso original e solitário, marginal, se se usar o termo com sentido positivo face a valores correntes e dominantes.

A sua figuração luxuriante e minuciosa constroi-se como uma agregação interminável de personagens (históricos ou actuais, humanos ou animais) e de objectos (de consumo, máquinas e plantas, reais ou de fantasia – sem esquecer as metamorfoses entre personagens e objectos), em situações e lugares imbrincados num contexto narrativo absurdo e sem leituras unívocas. Em vários quadros, a acumulação de figuras e histórias organiza-se seguindo uma pista de flipper que pode transformar-se em estrada, filme ou intestino, numa sequência vertiginosa de invenções e citações (de estilos e de imagens, populares e eruditas), distribuída num espaço indefinível e labiríntico, ao mesmo tempo exterior e interior, de paisagem sonhada ou cartografia alucinada. Com barcos-vagens, carros-lulas, químicos e alquimistas, personagens de animação e BD, tigres gulosos, células invasoras, universos subterrâneos, flores e borboletas.

Reciclando com uma nova inventividade toda a obra anterior, a renovação de Carreiro passa agora pelo abandono da coloração fria da sua fase anterior, quase uniformemente azul com incrustações de objectos de cores «pop», na explosão de uma policromia com intensidades mais quentes, percorrida por estranhas constelações de pontos de luz. Talvez não seja impossível comparar a sua pintura à de Clovis Trouille, pintor maldito que os surrealistas anexaram em 1930 e é agora objecto de retrospectiva em Paris. Também inclassificável, Trouille associou a veia libertária a uma pintura de aparência académica, falsamente «naïf», em cenas eróticas de sentido anticlerical e antimilitarista; Carreiro serve-se livremente de todas as convenções antigas e modernas, passa do «kitsch» à ficção científica, e pratica o humor e a poesia com uma soberana ironia.

Fátima Mendonça estabelece com a série de telas «Gosto da Minha Casinha» um momento forte de continuidade e abertura no curso da sua pintura, identificada como a exploração mais ou menos ficcionada de um coerente imaginário pessoal de infância ou adolescência feminina, mas onde agora será talvez possível reconhecer a abordagem de outros tópicos ou tempos menos referenciáveis, sempre associados a um discurso narrativo supostamente autobiográfico que continua a surgir caligrafado sobre a tela.
É a paisagem – «simultaneamente, o mundo exterior e o mapa interior» (Ruth Rosengarten no catálogo) – que predomina na nova série, em obras em geral de grande e muito grande formato. Por duas vezes vista em panorâmicas sem linha de horizonte, focadas sobre campos estriados que marcam uma volumetria imaginária de colinas muito verdes (quatro linhas atravessam o quadro repetindo «errei»), ou de onde emergem plantas rapidamente esboçadas («minha flor») – noutro quadro um idêntico espalhamento distribui sapatos altos de mulher pelo espaço-campo quase liso da tela (mas a intervenção escrita refere couves e «o teu jardim»). Em mais duas telas a casinha do título é vista à distância, centrada entre árvores e montes, em imagens de um grafismo falsamente escolar imerso em manchas de cores doces e «ingénuas». Mas o mundo pode ser também cruel e incendiado (os coelhos embrulhados, a floresta em chamas).
Usando o óleo em barra para desenhar e colorir, ou o óleo muito diluído em manchas de ténues transparências, Fátima Mendonça oferece com ironia, desde o título, as pistas da leitura psicanalítica de que pode precisar-se para «explicar» a sua pintura. Mas os quadros sustentam com notório êxito uma visibilidade menos literária e redutora: eles inventam novas paisagens, contam histórias visuais, deslumbram e inquietam.

Pedro Cabrita Reis é objecto de uma antologia que estabelece a exacta sucessão desde a mostra do CAM, em 94, retomando três obras então expostas (colecção de Serralves ou aí em depósito) e acrescentando informação sobre um itinerário posterior que foi pouco visto em Portugal e contou com participações nas Bienais de Veneza e São Paulo, fora das representações oficiais portuguesas.
Quatro lugares decisivos marcam a montagem: uma construção no pátio de acesso ao Museu, cuja longa parede articulada e encimada por guaritas, recoberta por tela metalizada de alcatrão – Cidades Cegas # 5 / o Eco –, é associável a memórias de campos de concentração (Auschwitz, muro de Berlim, talvez os condomínios privados do presente); já na sala central, Sem Título, uma outra guarita com um mastro de bandeira derrubado e um feixe de lâmpadas de néon; depois, o corredor interior do Museu percorre-se entre construções de alumínio e cartão, elevadas e adossadas às paredes, lembrando habitações precárias ou também postos de vigilância (Cidades Cegas # 2); por fim, Catedral # 3, intervenção na grande galeria final do percurso que rasga as paredes brancas de Siza com o início de quatro outras paredes de tijolo só precariamente aparelhadas.
Concebidas ou readaptadas em função do espaço físico onde se mostram, são também peças arquitectónicas em si mesmo, como quase desde o início sucedeu com a escultura de Cabrita Reis. Porém, enquanto as peças anteriores faziam referência a modelos arquetípicos (poço, fonte, canal, mesa, casa) ou se viam como construções enigmáticas (lugares de concentração de energias, de observação cósmica, etc), as novas arquitecturas podem ver-se como comentários sobre a cidade actual, evocando lugares concentracionários ou de vigilância, ao mesmo tempo que se referem, especialmente através dos materiais empregues e das soluções construtivas (tijolo, cartão usado e tábuas, caixilharia, etc), às arquitecturas improvisadas das marquises e dos bairros de lata. São obras que ocupam com grande força cenográfica os lugares de exposição, respondendo de modo afirmativo (enfático, por vezes) às solicitações das grandes mostras internacionais onde imperam as montagens «in situ», as estratégias instaladoras e a grande escala dos objectos, até como condição de visibilidade, ao mesmo tempo que parecem assumir uma dimensão crítica sobre o estado do mundo, com referências à pobreza, exclusão e repressão.
Entretanto, a antologia dá também largo espaço ao que pode continuar a chamar-se pintura, embora se deva notar que a pintura actual de Cabrita Reis transporta igualmente poderosos vínculos com a arquitectura, desde logo pelo uso pictural de materiais ou equipamentos de construção. Dobles Pinturas Negras #2 e #4 (Madrid), de 98, serão mais uma contribuição para a linhagem do monócromo, em dípticos de placas de vidro, rectângulos ou círculos, onde a aplicação de pintura negra se faz, em cada elemento, sobre ou sob a superfície do suporte – elas decorrem da apropriação de caixilhos de portas encontrados e da montagem de vidros com aplicação de esmalte dos Lisbon Gates mostrados no CCB em 97 («For Heinner Muller»). Cabinet d'amateur #1 (Serralves) é uma disposição de inúmeros dípticos formados por campos de cor lisa, onde é a cenografia que volta a sustentar a eficácia das partes. Sempre com uma energia reconhecidamente intensa, com uma elegância certa, as últimas obras (vejam-se a grande porta de Table Dance e a pintura Flor Negra, em confronto com a menoridade de «Os Últimos», pequenos auto-retratos desenhados) estão às vezes à beira da facilidade retórica e de um uso defensivo das grandes escalas.

Nota: Chegam este fim de semana ao seu termo as exposições de António Júlio Duarte e Augusto Alves da Silva, de fotografia e vídeo, apresentadas pelo Centro Português de Fotografia na Cadeia da Relação; referidas em artigo anterior, são outros dois grandes momento do programa expositivo do Porto, que parece impor-se já como capital cultural. Assine-se, entretanto, a saída do livro Peepshow, de A. J. Duarte, que se impõe como uma das melhores edições do CPF.

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24 Novembro 2001

Prémio Maluda para Fátima Mendonça
Na terceira edição do prémio anual de pintura atribuído a uma jovem artista

Fátima Mendonça venceu a terceira edição do Prémio Maluda, instituído por um legado testamentário desta pintora e destinado a galardoar anualmente um artista com menos de 40 anos por uma exposição individual de pintura realizada em Lisboa na anterior temporada. Depois de Ana Vidigal e Cristina Valadas, o prémio voltou a distinguir uma mulher, apesar dessa não ser uma condição do regulamento. Com uma dotação de cinco mil contos, trata-se de um dos mais importantes prémios artísticos nacionais, de valor igual ao Prémio EDP de pintura, recentemente atribuído a Pedro Calapez, e muito superior ao prémio oficial AICA-MC, concedido também anualmente pelo Ministério da Cultura por escolha de um júri da Associação Internacional de Críticos de Arte (AICA), com características de consagração de carreira. O júri foi constituído por José Augusto França e Fernando de Azevedo e por mais dois críticos da AICA cooptados por estes, Luísa Soares de Oliveira e Cristina Azevedo Tavares, além de José João Brito em representação da Sociedade Nacional de Belas Artes, que presidiu, conforme as disposições estabelecidas pelo legado. Fátima Mendonça foi premiada, por unanimidade, pela exposição que realizou em Junho na Galeria 111, a que deu o título «Eu Tenho Medo: lá, lá, lá, lá, lá...», sendo o respectivo catálogo prefaciado por Carlos França.
Tendo exposto regularmente, desde 1994, na Galeria Arte Periférica, a pintora fizera também uma exposição individual em 1999, no Porto, na Galeria Fernando Santos, que apresentou os seus trabalhos nas feiras de Madrid, Lisboa e Colónia. Nascida em Lisboa em 1964, Fátima Mendonça licenciou-se em Pintura na Escola de Belas Artes desta cidade, em 1990.  De acordo com a acta divulgada, o júri considerou «uma pintura de agilidade discursiva e provocatória servida por uma expressão pessoal impulsiva em que se confrontam duas realidades, uma imaginária e outra de conteúdo crítico.»
A artista apresentara pinturas e desenhos de grande formato onde dava sequência a uma produção de reconhecível teor narrativo, construída com referências a situações relacionais de infância e de afirmação feminina, onde o enfrentamento conflitual com o mundo é vivido entre a sedução e a culpa, o desafio e o pesadelo, enquanto a inscrição de palavras e frase lhes confere a sugestão de um diário emocional, de cunho confessional ou ficcionado.
Uma frequente evocação do espaço doméstico (a casa, a cozinha, que antes se alargara a um original tratamento da paisagem) surgiu nessa última exposição dramatizada por uma veemência gestual inesperada, enquanto uma iconografia recorrente - bolos, coelhos, corações, sexos - assumia uma intensidade expressiva de apocalíptica, em cenários interiores claustrofóbicos ou incendiados. Em alguns trabalhos, a arena de circo ou de tourada (e a figura de uma mulher toureira ou equilibrista, enquanto personagem auto-referencial) voltavam a estar presentes como metáforas de um mundo de espectáculo e lutas cruéis.
Com um percurso individual e de crescente notoriedade, Fátima Mendonça é um dos artistas que mais se destacaram ao longo dos anos 90, embora à distância do que alguma crítica e as instituições dominantes (onde nunca expôs, aliás) procuraram estabelecer como as tendências características da década, das quais quase sempre se pretendeu excluir a prática da pintura. Mas por vezes, como agora sucedeu, reconhece-se que é à margem dos estilos colectivos que se constroem as obras que mais importam, as criações pessoais, independentes e originais.



 

 
"Com papas e bolos..."
Mais um episódio da história que Fátima Mendonça vem contando em pintura
2002 Expresso Cartaz de 12 Outubro 2002
 
Galeria 111, Porto, até 9 de Novembro

Foto «Para te fazer não tem nada que saber III», 2002, pastel de óleo e lápis de cor sobre papel

«O pai, o João, eu com o meu vestido de couves e a mãe arranjados para a fotografia». Retrato de família, portanto, da fotografia à pintura, protagonizado por um eu-menina onde a pintora se projecta, devassando memórias e fantasias de infância ou tecendo-as como uma ficção continuada, com que nos enleia de exposição em exposição, crescendo como pintora. Em vez de cabeças, quatro grandes sacos de bolos sobre o fundo quase branco, apenas esboçado, todos cheios de doces redondos com uma cereja em cima. Retrato paródico ou cruel que prolonga um grande desenho da exposição anterior, onde uma menina-bailarina dançava entre coelhos, com a sua cabeça de bolos, segurando duas bandarilhas-espetos com mais bolos, a enfrentar a vida - «eu tenho muito medo», lia-se. As bandarilhas vinham de uma menina-toureira deixada sozinha na arena, que noutros quadros passou a ser pista de circo, e então a menina-acrobata equilibrava-se sobre o arame com as suas asas feitas de bolos, «do tamanho de pequenos punhos de criança», numa exibição mais que desajeitada («andar e voar e fazer có, có, cócó», escreveu ela numa das obras desse ciclo, não fossemos não querer reconhecer o que víamos). Os dejectos, envoltos em invólucros ovais, em ovos, aparecem agora a preencher o espaço imenso (mais de dois por três metros) de uma tela que já se vira na Arco, em versão entretanto retrabalhada, toda ela rodeada por um mimoso folho de tecido e lã, onde, entretanto, à referência à «casa cagalhona» se somou o subtítulo «Incubadora».
A forma redonda da arena das touradas, da pista do circo, da gaiola que prendia a menina-pássaro, da rede circular onde, na exposição de há um ano, se acumulavam corações bem vermelhos («eu tenho de chorar mas esqueço-me porquê»), da forma (fôrma) de bolos e da grelha do fogão, é agora incubadora e dela nascem «meninos com creme de chocolate e meninas com doce de morango» («bolos para te agradar»). São as novas personagens das mais recentes obras de Fátima Mendonça, «bolos de pão, como filhos», acompanhados pela respectiva receita e pelo registo laborioso das centenas de unidades diariamente produzidas na fábrica doméstica, a cozinha de tantos outros quadros: «Para te fazer não tem nada que saber», afirma o título da exposição.

Os bolos-filhos surgem bem reais como pães comestíveis numa instalação-montra e também em vários grandes desenhos a pastel de óleo, saindo de uma grande forma de bolos que se prolonga em vestido de menina (a mesma rede circular, prisão, casulo e ventre) visto pendurado num cabide ou, noutro caso, desajeitadamente envergado («o vestido do inferno») - e aí, decifrando as garatujas e percorrendo os escritos, vêem-se sexos femininos, «as minhas vergonhas» de outros quadros, urinando para o ar («como um rapaz»). Não estamos na cozinha, de facto, mas na vida, a enfrentar o mundo com terrores e desejos, escavando a memória entre o exorcismo e a ironia.
«Deixar que este universo mental tenha uma vida visual, que encarne uma turbulência que não se limite a desenvolver um relato literário ou memorial é o desafio permanente desta obra em cada momento que ela se revela», escreve Celso Martins no seu prefácio para o catálogo. Desafio vencido. A narrativa não se substitui ao que está a acontecer sobre a tela ou o papel, fixada antes de surgirem (como sucede na ilustração e na pintura literária) os desenhos pintados com a urgência aqui visível das suas grandes pinceladas negras e das manchas invasoras, de vermelho-sangue: o que importa passa-se à nossa frente, no espaço branco do suporte, como um desafio oferecido à nossa própria capacidade de imaginar. É o impacto visual de cada obra, tantas vezes com a violência do grito, que nos faz precisar de um fio narrativo que «explique» o que vemos, obrigando-nos, para segurança nossa, a decifrar as anotações escritas ou rasuradas, a reconhecer personagens e a inscrevê-las na «estória» já longa da obra de Fátima Mendonça, que não importa se é ou não a sua história pessoal, íntima. Como acontece com Louise Bourgeois (a mãe-aranha, a oficina doméstica de restauro de tapeçarias, o quarto-cela) e com Paula Rego, por exemplo, mas os exemplos seriam quase todos femininos, o teatro do mundo está muito próximo da vida, a arte conduz-nos por abismos e sonhos reais, tão fundos que raramente os podemos ver.

sábado, 15 de junho de 2002

Fernando Calhau (1948-2002)

"Carreiras paralelas"

FC, artista plástico e ex-director do IAC

Expresso Actual de 15/6/2002

Artista plástico e primeiro director do Instituto de Arte Contemporânea (IAC), Fernando Calhau faleceu na quarta-feira, após prolongada doença. Tinha 54 anos, e as suas últimas obras podem ver-se ainda até ao fim do mês no Pavilhão Branco do Museu da Cidade, numa mostra conjunta com Rui Chafes onde a presença da morte se podia reconhecer logo no título escolhido, «Um Passo no Escuro».

Formado em pintura na Escola de Belas-Artes de Lisboa, em 1973, com estudos de pós-graduação na Slade School de Londres, com Bartolomeu dos Santos, Calhau começou por dedicar-se à gravura. Logo no início dos anos 70, a sua obra tomou a direcção das pesquisas minimalistas e conceptuais, que nunca mais abandonou, tendo participado activamente nas movimentações vanguardistas da década, juntamente com Ernesto de Sousa, Julião Sarmento e outros, nomeadamente na exposição «Alternativa Zero», em 1977. A utilização da fotografia, do filme Super 8 e depois do vídeo tiveram então um largo espaço no seu trabalho, a par da realização de séries de pinturas monocromáticas, onde dominam as superfícies negras.

A seguir, o envolvimento com responsabilidades administrativas na Secretaria de Estado da Cultura, pouco depois do 25 de Abril, tornou mais discreta a sua presença como artista plástico, espaçando-se a sequência das exposições individuais - registem-se, entre outras, as que realizou na Galeria Cómicos, em 1987, 89, 91 e 93, passando à utilização de suportes recortados, de chapas de ferro e do néon. Uma perspectiva global do seu trabalho foi apresentada numa antologia organizada pelo Centro de Arte Moderna em Outubro de 2001, a que se seguiu a atribuição do Prémio AICA-Ministério da Cultura desse ano.

Fernando Calhau deixara já a direcção do IAC, por doença. Sucedeu-se então um breve período de maior intensidade criativa, de que resultaram exposições de pintura, na Galeria Cristina Guerra, e de desenho, também no CAM («Passageiro Assediado»), onde as linguagens reducionistas de sempre se orientaram num sentido menos formalista, em que a emotividade e a inquietação estavam notoriamente presentes.

No âmbito da administração cultural, Calhau manteve uma intervenção oficial continuada ao longo de 25 anos, através de variados contextos políticos (interrompida no mandato de Santana Lopes), tendo chefiado a divisão de Artes Plásticas e o serviço de Comunicação Visual da antiga Direcção-Geral de Acção Cultural da SEC, onde trabalhou com João Vieira, Julião Sarmento, Cerveira Pinto, Margarida Veiga e Delfim Sardo <com os dois últimos criou a empresa Modus Operandi, de prestação de serviços>. Foi membro da comissão organizadora do Museu de Arte Moderna do Porto e integrou as comissões de compras de obras de arte para a SEC e para a Fundação de Serralves, passando a assegurar também a orientação da colecção de arte contemporânea da Caixa Geral de Depósitos entre 1992 e 96. Essa experiência culminaria na actividade à frente do IAC, criado em 1997, depois de já ter presidido à respectiva comissão instaladora.

sábado, 13 de abril de 2002

1998, 2002, 2004, Culturgest, Colecção CGD

 1998

sábado, 23 de fevereiro de 2002

2002, Arco, Madrid

 Expresso Revista de 23/2/2002

"Os artistas do momento"

Mais do que uma feira de arte, a Arco é um desígnio político e um acontecimento cultural de massas

A Arco é a feira de arte mais importante, porque fica a poucas centenas de quilómetros de Lisboa e Porto. A peregrinação anual está enraizada e são milhares de portugueses, jovens ou não, que percorrem as exposições de Madrid e enchem as livrarias, a pretexto da feira. Ouve-se falar português em toda a parte e é-se interpelado na rua por gente à procura do Museu Thyssen ou do Palácio de Cristal. Certamente se perguntarão por que é tão diferente o programa dos museus do outro lado da fronteira, confrontando Braque, Kokoschka, De Kooning e Panamarenko, com os cromos obscenos do CCB ou as páginas secas das vanguardas académicas que expõe Serralves. Respira-se outra atmosfera, mesmo se a Arco não é mais que um artifício de política cultural.


Enquanto panorama da arte internacional e das chamadas novas tendências, a feira de Madrid é um duplo logro, porque elas estão escassamente presentes e uma feira não é o lugar adequado para as conhecer. Sustentada pelos poderes públicos para contrariar a debilidade do mercado interno (0,6% do mercado mundial de arte) e promovida como acontecimento cultural de massas, a Arco é um caso sem paralelo entre as feiras internacionais, que vivem das forças do mercado e se dirigem a públicos restritos de coleccionadores e profissionais. Há que entendê-la como um instrumento de coesão numa Espanha ameaçada pelas tensões nacionalistas, reforçando a centralidade de Madrid e a atracção dos seus três museus nacionais, e também como um continuado desígnio de afirmação cultural voltado para a projecção do país no exterior e para a recuperação do atraso existente no domínio da criação actual e das estruturas artísticas.

Convidam-se 240 coleccionadores de todo o mundo, com quatro dias de luxuosas estadas oferecidas, e mais largas dezenas de nomes do «mundo da arte» a pretexto de um programa de conferências ou como comissários das várias secções da Arco organizadas por convites («Cutting Edge» e «Project Rooms»). O resultado, porém, é uma feira esmagadoramente espanhola, onde comparecem algumas galerias «históricas» (Gmurzynska, de Colónia, com Soutine; Lelong, de Paris, com Hockney) mas quase não se vislumbram as galerias e artistas envolvidos nas dinâmicas que ditam as notoriedades actuais em Nova Iorque e Londres (aos Estados Unidos e Grã-Bretanha cabem 57 e 30% do mercado de arte, incluindo leilões). O voluntarismo dos organizadores prolonga-se numa cobertura mediática esmagadora (ao contrário da escassa atenção que merecem as outras grandes feiras de arte) e totalmente esquizofrénica: publicam-se textos de críticos responsáveis apontando as carências da feira ao lado de páginas e páginas que elogiam os seus supostos méritos e os «artistas do momento», admirável designação para uma arte descartável ao ritmo das estações. Os suplementos culturais dos diários distribuem-se já no dia da inauguração, escritos sobre os «press-releases» (é a cultura de massas).

Mas se para o público português o panorama extra-Arco é uma oportunidade para se rasgarem outros horizontes, a feira não deixa de ser um palco essencial à visibilidade dos artistas nacionais e a sua entrada no mercado espanhol, galerístico e institucional, vem sendo uma positiva realidade. Para além de alguns casos excepcionais de circulação extra-peninsular, a Espanha surge como a possibilidade de alargamento do estreito mercado interno.

A comprovar essa circulação notava-se a presença das pinturas brancas de Julião Sarmento nas galerias Joan Prats e Polígrafa (Barcelona) e Pepe Cobo (Sevilha), bem como na Lisson de Londres e na brasileira Fortes Vilaça. Fernanda Fragateiro é representada por Elba Benítez (Madrid), que também expôs Joana Vasconcelos. Pedro Calapez era mostrado na Luis Adelantado (Valência) e Bores & Mallo (Cáceres, a anunciar a abertura de um espaço em Lisboa), na qual também se viam M. João Salema, José Lourenço e Baltazar Torres, este igualmente presente na Artinprogress, de Berlim. Mais Croft na VGO (Vigo), Rui Chafes na Juana de Aizpuru, Pedro Proença na Siboney (Santander), Helena Almeida na Helga de Alvear, João Onofre na Pepe Cobo, numa lista decerto incompleta. A que se somavam Pomar na Trigano, de Paris; Molder na Marília Razuk, São Paulo; Sobral Centeno na Michael Schultz, Berlim; e ainda René Bertholo na parisiense 1900-2000, com obras dos anos 60 e 70.

Importa dizer, porém, que essa plataforma espanhola tem sido menosprezada pelas instituições nacionais, por sobranceria e outras equívocas razões. O acordo tripartido do Estado com a Gulbenkian e a Fundação Luso-Americana deixou de apoiar as galerias na Arco e as tentativas de promoção da arte portuguesa voltaram-se para acções pontuais em destinos mais remotos e quase sempre mais inacessíveis. É incompreensível a ausência de espaços portugueses entre as representações institucionais que se promovem na Arco, também como destinos turísticos, e é significativo que a única mostra de artistas nacionais visível em Madrid fosse da iniciativa do MEIAC de Badajoz. Talvez a visita à Arco da actual direcção do Instituto de Arte Contemporânea permita rever essas (des)orientações.

Quanto à presença das galerias nacionais, anote-se a estreia de Lisboa Vinte, uma empresa sem espaço próprio que produz exposições em variados locais, convidada do programa de «arte pública» com projecções de vídeos de Jorge Molder (Linha no Tempo, protagonizado pelo próprio a percorrer uma velha casa em ambiente de ficção policial ou reencontro com memórias pessoais), e Augusto Alves da Silva (Linha Branca, uma obra radicalmente pictural, quase «abstracta», citando certamente Barnett Newman na filmagem fixa da colagem da mancha vermelha de um cartaz eleitoral). Outra aposta forte no vídeo foi feita por Cristina Guerra, também presente pela primeira vez, destacando-se Lull, de Filipa César (longa cena de sala de espera, com uma rigorosa montagem visual e sonora).

As galerias Filomena Soares e Mário Sequeira tiveram presenças duplas, em stands colectivos e entre os «Project Rooms», e foram ambas premiadas com aquisições da Fundação Coca-Cola, de uma fotografia em caixa de luz de Luís Palma, na primeira, e de trabalhos de Helena Almeida e da jovem pintora Natacha Marques, na segunda. Quanto às montagens individuais, tratou-se, pela mesma ordem, de um vídeo monocordicamente operático de Vasco Araújo e de uma escultura da sempre divertida Joana Vasconcelos: uma «burka» afegã sobre sete saias que era elevada por um guindaste e caía com um estrondo de guilhotina. Ambas faziam suficiente ruído para despertar atenções. Entretanto, Mário Sequeira comparecia com peças internacionais de grande vulto, de Baselitz, Paladino, Alex Katz e Richard Long, além de uma notada nova tela de Sara Maia.

A Porta 33, do Funchal, apresentou uma instalação de Pedro Cabrita Reis (Cabinet d'Amateur #2), com duas paredes de pinturas monocromas disponíveis a retalho - à facilidade do conceito juntava-se a evidência mercantil, mas feira é feira... Entretanto, João Graça foi a única participação no sector «Cutting Edge/Crossroads», com Inês Pais e a nigeriana de Nova Iorque Fatimah Tuggar (comprada pela Fundação Arco).

Presentes com os seus artistas habituais, a Quadrado Azul (com grandes esculturas de Croft, Sanches e Susana Solano em destaque), 111 (a única no pavilhão «histórico» da feira, com Pomar, Batarda, Graça Morais, Fátima Mendonça, etc.), Fernando Santos (mais internacional, com Tàpies, Schnabel, Carmen Calvo e Santiago Ydáñez, um jovem pintor de grandes cabeças «expressionistas» pinceladas a preto e branco, muito premiado e vendido), Pedro Oliveira, Canvas e ainda a Ara, apostando em jovens artistas (Ricardo Angélico, José Lourenço, Rui Macedo). A que se somam a Arte Periférica (o «ABC» cotou-a entre as dez melhores galerias, apesar de, ou graças a, um excessivo gosto «kitsch») e a Minimal. Outras galerias com importância não se candidataram e algumas não foram aceites, como é natural acontecer; nas que compareceram, a oferta terá sido, em geral, menos saliente que em 2001 e os resultados também acusaram algum recuo, mas ninguém quer ouvir falar de recessão... O facto de haver 14 presenças nacionais e só três da Grã-Bretanha (foi o país convidado em 2001) estabelece um retrato objectivo da Arco, no seu ano mais internacional de sempre, diz a promoção.

A Austrália, em destaque nesta edição, mostrou-se em 14 galerias com artistas aborígenes promovidos a contemporâneos e outros de origens ou contactos orientais, entre uma produção mais ou menos indiferenciada (presentes os fotógrafos Tracey Moffatt e Bill Henson, enquanto Max Pam se podia ver numa galeria de Paris). Fora da feira, o Palácio Velazquez mostrou artesanato aborígene e arte de aeroporto, enquanto uma colectiva fotográfica (Canal Isabel II) contou com quatro trabalhos interessantes - velhas minas abandonadas de Martin Walch, os ócios contemporâneos de Anne Zahalka, os subúrbios perdidos de Glenn Sloggett, os sonhos melancólicos de Pat Brassington - entre 16 expostos, o que não deixa de ser uma boa marca. Para o ano é convidada a Suiça, que nesta edição teve duas galerias - a arte da Arco é um desígnio político.

sábado, 8 de dezembro de 2001

2001, CAL, Centro de Arquitectura de LIsboa, uma promessa eleitoral e o espólio de Keil do Amaral

 O João Soares perdeu as eleições para Pedro Santana Lopes e o CAL foi esquecido.

Maria Calado, Ana Tostões, os Aires Mateus estavam no projecto. A doação do espólio de Keil do Amaral  à CML foi então formalizadao


sábado, 1 de dezembro de 2001

2001, Antonio Quadros

"Um universo maior"

Expresso Cartaz de 1/12/2001, pág 24

António Quadros não cabe de corpo inteiro na exposição que lhe foi dedicada pela Árvore

ANTÓNIO QUADROS, «O Sinaleiro das Pombas» (Árvore, Porto, até 12 de Dezembro)

O ritmo dos eventos da capital cultural não é propício a projectos retrospectivos, que desde a mostra inicial «Porto 60/90» se fizeram com atropelos de investigação e produção. É o que acontece com António Quadros (1933-1994), intrigante personagem que foi pintor e poeta - João Pedro Grabato Dias, entre vários heterónimos - e se dispersou enciclopedicamente por outros interesses, muitos deles levados à prática em Moçambique entre 1964 e 1984.

O programa da exposição foi assumido pela Árvore, que não tinha estruturas nem espaço para tal desafio; adiada até um fim de ano abreviado para outras iniciativas, ficou reduzida a uma convencional exibição da obra plástica e breve catálogo, comissariados por Laura Soutinho e Bernardo Pinto de Almeida, remetendo-se outra parte, presumivelmente mais alargada, para um livro de formato bancário (BPI) e intenção natalícia que só mais tarde terá, se tiver, circulação pública.

Justificava-se uma aproximação que cruzasse as várias vertentes de uma obra e actividade de ambição renascentista, servindo de exemplo a exposição que Serralves dedicou aos múltiplos rostos de Fernando Lanhas, reeditando a sua retrospectiva de 1988. 

Quadros foi um homem de temperamento difícil, sarcástico e talvez irascível, para quem o desafio feito aos «filósofos das brasileiras», logo no seu Manifesto da Pintura de 1958, não era só um arreganho juvenil. Animador de muitos projectos, provocador face aos pequenos poderes locais, foi muitas vezes esquecido, também como poeta, e não é fácil de classificar e conter em esquemas regras pré-definidas.

Expõem-se na sala maior da Árvore pinturas do percurso escolar e algumas outras mais, mas que não bastam para situar uma produção que teve na viragem dos anos 50/60 uma grande visibilidade, mesmo oficial. Não está lá por inteiro o pintor que expôs na última das Exposições Gerais, em 56; na 1ª da Gulbenkian, em 57 (um famoso nu frontal e impúdico, com um dos seus belos rostos amendoados); nos salões dos Artistas do Norte e depois nos Novíssimos, passando da SNBA ao SNI, na 1ª Bienal de Paris, em São Paulo e outros lugares, várias vezes premiado e logo adquirido pelo Museu Soares dos Reis dirigido por Salvador Barata Feyo.

A sua figuração visionária e em contacto com expressões populares (deve-se-lhe a «descoberta» de Rosa Ramalho, que levou a dar aulas na ESBAP, nos tempos de abertura da direcção de Carlos Ramos) podia ser praticada, no Porto, como uma afirmação inovadora já subsequente, como a de Eduardo Luiz, ao abstraccionismo da geração anterior dos Independentes (Lanhas, Nadir, Arlindo Rocha e até Resende), mesmo que não se adivinhasse a «nova-figuração» que se seguiria. Em Lisboa, as lides críticas regiam-se por categorizações e formalismos mais rígidos, opondo a abstracção ao fantasma do neo-realismo, face uma nova geração nascente - Bertholo, Lourdes Castro, Escada, Costa Pinheiro - com quem Quadros expôs na Galeria Pórtico e fora do país, antes e depois de todos estes emigrarem.

Recuperado como surrealista por Cesariny, em 73, o universo imaginário de Quadros participou de alguns climas poéticos de Chagall, com elegância gráfica e decorativa, também em gravura, ilustração e cerâmica, procurando o «potencial mágico» dos fabulários e da arte popular (ao tempo da Antologia da Música Regional e do Inquérito à Arquitectura) para «Pintar Pintura» em oposição «à forma lógica da escola francesa», como dizia no notável Manifesto já citado.

Semelhantes recursos às mitologias locais e aos bestiários fantásticos surgiam na América Latina, por exemplo, com Francisco Toledo e Jorge de la Vega, já depois de terem interessado os artistas Cobra.

Da estada africana o pintor trouxe uma linguagem menos estilizada e de mancha diluída pelo uso do aerógrafo, onde a efabulação é por vezes mais gravemente monstruosa ou ameaçadora. Se o humor não deixava de estar presente, desde logo em títulos como Senhora e Cabra em Ascensão, Dois Saltões, um Articulado, um Zambezelho e um Luso-mimético, aí sereconhece também uma diferente dimensão mais convulsiva e trágica.

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António Quadros

Casa da Cerca, Almada 

Expresso de 9/2/2002 (nota)

Remontada num novo espaço, a exposição que o Porto 2001 dedicou a António Quadros ganhou uma dimensão totalmente diferente. Não se recuperaram as pinturas dispersas que deveriam testemunhar a grande visibilidade irreverente que o pintor teve em exposições e em representações internacionais na viragem dos anos 50/60, mas as mesmas peças disponíveis, diversamente organizadas em sucessivos núcleos, dão plenamente conta da originalidade do seu imaginário pessoal e de um caminho inquieto por múltiplas pesquisas, humores e referências.

Jogando ora na diversidade das técnicas e das direcções de trabalho — a cerâmica, a gravura, o desenho elegantemente estilizado, a pintura de experiência escolar, de inspiração popular ou submersa em lamas informes, os palimpsestos de fantasia e pesadelo (des)realizados pelo uso do aerógrafo —, ora na organização por interesses temáticos, juntando homens silvestres, lobos e lobisomens, cabras e outras «bichezas» imaginárias ou míticas, o itinerário segmentado da exposição, conduzido por uma criteriosa disposição que destaca as peças emblemáticas, tornou-se uma aventura ao encontro de um mundo poético irredutivelmente desalinhado das convenções formais predominantes.

Entretanto, foi publicado pela Árvore um álbum -  «O Sinaleiro das Pombas» -com textos de Amélia Muge, Bernardo Pinto de Almeida, António Cabrita e José Forjaz, onde à produção plástica se acrescentam abordagens dedicadas à produção do poeta Grabato Dias e às múltiplas actividades em Moçambique entre 1964 e 1984. (Até 10 Mar.)

sábado, 24 de novembro de 2001

Júlio Resende Porto’2001, Francisco Brennand no Lugar do Desenho


1. Expresso Cartaz de 24/11/2001, pp. 32-33

Da retrospectiva em Matosinhos à Fundação do pintor em Valongo (à margem da capital cultural)

JÚLIO RESENDE, Paços do Concelho de Matosinhos (até 20 Dez.)
FRANCISCO BRENNAND, «No Acerto com o Mundo» (Fundação Júlio Resende, Valbom, Gondomar, até 2 Dez.)

O panorama do Porto, como qualquer panorama, é feito de diferentes e desencontrados círculos, meios ou nichos do pequeno mundo da arte, mas é alargando os itinerários até à periferia que a cidade de Manuel de Oliveira, de Eugénio de Andrade, de Agustina e de Siza Vieira se reencontra com outro dos seus nomes, Júlio Resende. Esta área alimenta-se mais facilmente (mais oficialmente) de esquecimentos ou exclusões do que outras.

É em Matosinhos, por iniciativa da sua Câmara, que se pode ver, neste ano de particular significado para o Porto, a obra do principal dos seus pintores. A homenagem necessária tomou a forma de uma ampla retrospectiva da pintura de Resende, embora na sua muito extensa produção, material e cronologicamente, tenham também relevância o desenho e a aguarela e, em especial, a grande decoração instalada em lugares públicos, com largo recurso à cerâmica (objecto de uma mostra do Museu do Azulejo em 1998).

Comissariada por Armando Alves, que colaborara na retrospectiva apresentada em 1989 na Fundação Gulbenkian, contando então com a retaguarda da Galeria Nasoni, a mostra apresenta o maior número de obras de Resende desde sempre reunido, incluindo, no seu início, muitos trabalhos datados dos anos de formação do pintor, em Portugal e em Paris, e nunca mais expostos ou mesmo reproduzidos.

No amplo piso subterrâneo dos Paços do Concelho projectados por Alcino Soutinho – um espaço de garagem que será substituído pelo edifício da biblioteca e galeria já em construção ao seu lado -, a montagem ocupa uma área folgadamente labiríntica, onde a sequenciação cronológica adopta, com êxito, o critério de fazer algumas aproximações e cruzamentos entre obras de períodos diversos, tornando visíveis ao mesmo tempo núcleos coerentes e, sem compartimentos estanques, a diversidade de orientações seguidas ao longo do tempo, sob a essencial continuidade de uma dedicação à figura humana que foi sendo abordada com diferentes humores expressivos e uma mesma ambição humanista. Da grave monumentalidade das obras da primeira maturidade dos anos 50, marcada pelo rigor construtivo das formas e pelas tonalidades sombrias ou frias de uma paleta concisa, até à explosão ora trágica ora lírica das décadas mais recentes, onde a instabilidade das manchas de cor se alia à livre espontaneidade do desenho descritivo.

É o espectáculo visual, intenso e ágil apesar da sua extensão, e sempre fortemente impressivo, que predomina nas presentes condições de montagem, adequadas à intenção da homenagem, mesmo se se poderia ambicionar uma produção mais norteada pela abordagem historiográfica, que possivelmente não houve tempo de fazer. A ausência de numerosas obras pertencentes à Faculdade de Belas-Artes (dos Fantoches, de 45, tese de licenciatura, ao Douro, Faina Fluvial, de 62, concurso de agregação) e à Gulbenkian (quadros marcantes, como Figuras à Mesa, Pescadores, Pintura nº 2, de 56, 57 e 59), bem como de outras telas antologiadas em publicações anteriores (citem-se Ribeira, de 52, Cabeças de Mendigos, de 54, Grupo da Beira Mar, de 56), não deixa de revelar alguma precaridade organizativa, mesmo se se teve acesso a um enorme número de telas, além de não projectar com toda a sua importância a representação da década decisiva da obra de Resende, os anos 50, que, no seu todo, não têm paralelo na produção nacional e ombreiam à época com a melhor pintura europeia.

No catálogo publica-se um extenso texto de Laura Castro onde se retoma o essencial da monografia que já dedicara ao pintor (Imprensa Nacional, 1999) e que constitui o mais atento estudo sobre a formação e evolução da obra de Resende, acompanhada por observações sobre a respectiva circulação pública e fortuna crítica. Produzido no contexto universitário como dissertação de mestrado, esse é um contributo importante para uma historiografia a que tem faltado a investigação objectiva em contacto com as obras e as fontes directas. Haveria agora que desenvolver, em especial para as obras dos anos 50, todo um trabalho de restituição de títulos esquecidos (abundam os «sem título», que não corresponderão às nomeações originais), confirmação de datas e recuperação de informações sobre locais de exposição, tanto mais que as obras de Resende tiveram uma visibilidade central nessa década, das Exposições de Arte Moderna do SNI (Prémio Amadeo Sousa Cardoso em 49 e 52) à retrospectiva, então sem precedentes para um artista de 44 anos, no Palácio Foz e na ESBAP, em 61, passando pelos repetidos envios à Bienal de São Paulo (premiados em 51 e 59), pelo Salão dos Artistas de Hoje, em 56, na SNBA (premiado), e pelas exposições da Gulbenkian (2º prémio de pintura em 57).

Só restituindo a Resende o lugar central que ocupou ao longo dos anos 50, sem que tal implique dar credibilidade à habitual periodização por décadas, é que será possível rever a história desse tempo, corrigindo a sobrevivência das dicotomias fáceis de que se alimentou a crítica entre neo-realismo e abstracção, figuração e não-figuração, ou mesmo, por extensão política, entre Situação e Oposição, outra zona de equívocos que já não pode ter caução militante – também o surrealismo inicial se vulgarizou nos Salões do SNI.

Pintura academicamente aprendida, bem informada pelas estadas no estrangeiro como bolseiro, a obra de Resende escapava então às categorizações preguiçosas, mesmo à de expressionista, e desenvolveu-se como uma amadurecida pesquisa própria sobre valores da construção plástica, onde a recusa da abstracção não referencial já não deve ver-se como posição indecisa ou dúbia. Às arquitecturas hieráticas solidamente definidas das suas figuras sucederam, na passagem da década, densidades matéricas, dissoluções de formas e intenções retóricas com fortuna variável e, posteriormente, novos rumos, em que se incluem o ciclo temático das «Ribeiras Negras», as impressões de viagem e alguns luminosos interiores, passando da sombra à cor, da investigação formal à mancha despreocupada, do drama ao humor. É um longo percurso ainda em aberto.




FRANCISCO BRENNAND

Entretanto, circunde-se o Porto ribeirinho para ir de Matosinhos a Valongo, onde a Fundação criada por Resende se eleva frente ao Douro. É todo um caminho de renovação da paisagem urbana, no qual se adivinha a futura entrada do mar no Parque da Cidade e se percorre a via marginal já redesenhada, sob os arcos das antigas e novas pontes, com passagem pelo painel cerâmico Ribeira Negra (1984-87). No seu Lugar do Desenho, o pintor apresenta o escultor e ceramista Francisco Brennand, que é certamente, com os seus 74 anos, o mais surpreendente artista brasileiro vivo, ao mesmo tempo desconhecido e consagrado, conforme os círculos de informação frequentados

A sua obra maior está encerrada e em constante crescimento no museu-templo-oficina em Várzea, próximo do Recife, onde desde 1971 acumula milhares de peças monumentais que erguem um mundo fantasmagórico com reinventadas figuras da mitologia e da história, um bestiário pessoal e totens carregados de dor e erotismo, obras simultaneamente populares e eruditas (sem nenhum exotismo brasileiro), ao mesmo tempo de todos os tempos e de hoje, mais do que muitas actualidades circulantes. Mas a exposição de umas duas dezenas de peças cerâmicas – as «Graças Cretenses», as pequenas «Homenagens a Morandi», as figuras de Inês de Castro («La Victime») ou Joana d'Arc, entre outras – e uma larga antologia do seu desenho a cores, onírico e solidamente observado (as séries «Grotesco» e «A Casa das Pernas», já deste ano), com algumas grandes fotografias da Várzea, não deixa de ser uma aproximação bastante ao trabalho original e inclassificável de Brennand, ficando como um dos grandes acontecimentos do Porto 2001, fora do seu programa.

Desta dádiva do pintor à sua cidade ainda podia, há uma semana, passar-se a esse nicho sobrevivente do Porto romântico que é a Casa Tait, onde se apresentou um pouco da história desconhecida do cartoonista e autor de banda desenhada que também foi Resende. Enquanto se aguarda para o próximo Salão Lisboa a recuperação das histórias que nos anos 30 e 40 publicou em «O Papagaio», em «O Sr. Doutor» e no «Jornal de Notícias», aí se recordaram as figuras de Matulinho e Matulão que desenhou para «O Primeiro de Janeiro». São testemunhos de uma carreira oculta com lugar na história da BD nacional, também quase ocultada pelo próprio artista, enquanto deverão ficar perdidas para sempre as suas «instalações» publicitárias e anónimas que ocupavam semanalmente, nos anos 50-60 (?), a montra do segundo desses diários do Porto, de que parece não restarem sequer testemunhos fotográficos.

2.

Júlio Resende
Gal. Valbom
08-05-2004
Uma vasta selecção de pinturas sobre papel de Júlio Resende essencialmente centrada em anotações de motivos encontrados em deslocações ao Brasil e a Cabo Verde, Goa e Moçambique, ao longo de numerosas viagens realizadas desde os anos 70 – precedidas de algumas mais antigas aguarelas, reveladoras da particular mestria há muito alcançada no uso desta técnica já rara. São essas viagens oportunidades decisivas para o estímulo de um olhar desperto para o mundo exterior, as paisagens, mas principalmente os grupos humanos, o colorido vibrante dos mercados tropicais, o diálogo dos corpos com o espaço da natureza. Usando pastel, aguarela e marcador, ou processos mistos, J.R. funde o desenho rápido diante do motivo com a intensidade da cor, num exercício de observação que se distancia sempre do exotismo superficial por uma calorosa curiosidade face ao mundo e às suas diferenças. Estes apontamentos e estudos do natural reencontram-se depois na pintura de Resende dos últimos anos, tendo aqui a frescura e a graça do ensaio despreocupado de uma mão sábia e de um olhar atento. A mostra é acompanhada por um catálogo-álbum antológico, para o qual escreveram Júlio Pomar e Rocha de Sousa, além do artista.
(Até 15)

Júlio Resende
SNBA
14-04-2006
Não é nem pretende ser uma antologia da carreira de J.R., apenas (?) a apresentação de peças da colecção do Millennium bcp. O conjunto é, porém, representativo de uma obra importante, individualizada face à preferência dominante pela arrumação da criação em movimentos ou fórmulas colectivas. Mostram-se 27 trabalhos, que vão de uma melancólica aguarela de 1946 a uma festiva Luz de Atelier com vista aberta para o jardim (1997-2000), incluindo sucessivos passos do percurso, como as notáveis quase-abstracções de 57-62, onde a figura humana se desrealiza sem deixar de ser o centro do quadro e do mundo, os diferentes expressionismos dos anos 70-80 e ainda as últimas libertações do gesto, da cor e do humor de um Adeus Tristeza (91). Com passagem pelo grande painel decorativo A Evolução do Dinheiro (62), a sinalizar a extensa e excelente obra pública do pintor, num curioso diálogo de intenções significantes com A Ribeira Negra (84), gigantesco painel a p/b oferecido ao Porto, que ocupa um lado da SNBA, como uma síntese das ambições humanistas do artista em homenagem ao trabalho e ao povo portuense e da vocação mural da sua pintura.(Até 29)