sábado, 26 de junho de 1999

1999, Madrid, PHotoEspaña 99, «Sangre Caliente»

 Sangue quente em Madrid 

26-06-1999



Peter Beard, «Khadija com o meu jornal» (polaroid a cores de grande formato)


 

 LISBOA já teve o seu Mês da Fotografia, em 1993, mas a experiência, em geral bem sucedida, ficou sem continuidade. Madrid começou em 1998 e já vai na segunda edição. Por cá, a iniciativa pertenceu à Câmara. Em Espanha, trata-se de um projecto particular, dinamizado por uma empresa cultural, La Fabrica, que conseguiu associar aos patrocínios do Ministério de Educação e Cultura e do Ayuntamento de Madrid a colaboração de museus, fundações, centros de arte e de mais 46 galerias e dez outros espaços. No total, «PHotoEspaña 99», com cem milhões de pesetas de orçamento, apresenta 93 exposições que se distribuem pela secção oficial, nas instituições estatais ou mecenáticas distribuídas ao longo do Eixo da Castellana, do Centro Rainha Sofia à torre Caja Madrid; por «salas convidadas», mais afastadas dessa via central; e pelo «festival off», incluindo as galerias. É um longo itinerário a atravessar a cidade e a diversidade da fotografia que se prolonga até 18 de Julho. Na Internet conta com um site muito eficaz: www.photoes.com.


 «Sangre Caliente» foi o título escolhido para o segundo festival, que aposta abertamente na pluralidade da fotografia, na abolição das fronteiras convencionais entre arte e fotografia bem como na conquista de um público alargado (terão sido cerca de 500 mil os visitantes das 71 exposições da primeira edição). A denominação não significa a adopção de um condicionamento temático, mas antes uma aposta na «emoção como um instrumento essencial da criação»«pela paixão contra o aborrecimento», como diz um dos títulos do primeiro número do «PHotoPeriódico», o suplemento semanal de «El Periódico del Arte» que é dedicado ao festival.


 Alejandro Castellote, o director artístico, dá um tom polémico ao programa quando afirma que «os canais de difusão da arte estão maioritariamente habitados por uma oferta endogâmica: arte para artistas e para os profissionais que circundam o mundo da cultura. Os resultados costumam ser propostas ilegíveis para os não iniciados». A alternativa procurada ao que se diz ser «o esgotamento estético da cultura gerada no Ocidente» ou a «frieza e hermetismo das novas correntes», não é o populismo e a banalização, mas «a reivindicação da emoção na arte», «o uso da fotografia como instrumento de compromisso social» e a atenção às propostas diferentes vindas de outros continentes.


 


Weegee, «Billie Dausha e Mabel Sidney», Nova Iorque 1944


 

 Entre outros encontros programados, com Martin Parr e Andrés Serrano, por exemplo, o debate continua num seminário da Universidade Complutense, dirigido por Santiago B. Olmo, que tratará o tema «Quente e frio. Estratégias da emoção e da razão: Atitudes na fotografia actual». Apresentada no Museu Rainha Sofia, em últimos dias (só até 29), «Fotografia Pública / Photography in Print. 1919-1939», é uma notável exposição sem provas fotográficas originais. Organizada pelo historiador Horacio Fernández, debruça-se sobre a publicação e reprodução da fotografia por meios mecânicos, em foto-livros, revistas e jornais, cartazes, folhetos publicitários ou propagandísticos, explorando as transformações que conheceu a fotografia entre as duas guerras, quando nasce a «Nova Visão» e explodem os grandes meios da comunicação de massas que associaram a renovação da tipografia à imagem impressa. Atenção à posterior itinerância por Bilbao e La Rioja, Logroño, a partir de Setembro, e, em especial ao livro homónimo, com cerca de 650 reproduções de fotografias impressas e um dicionário de autores, tantas vezes simultaneamente fotógrafos, fotomontadores, designers e também artistas plásticos.


 A rectaguarda histórica (ou vanguarda, se se quiser) continua no programa com um conjunto de excelentes mostras retrospectivas, dedicadas a André Kertész, com «Ma France», a exposição da Mission du Patrimoine Photographique que os Encontros de Braga mostraram em 1993 (até 30 Jul.), e também a Weegee, numa produção do International Center of Photography (ICP), de Nova Iorque (até 1 Agosto), para além de um panorama do neo-realismo fotográfico italiano (até 29 de Agosto) e outro dedicado à Photo League, a associação de fotógrafos de Nova Iorque de intenção social, activa desde 1936 até 1951, extinta pelas perseguições do maccartismo. Comissariada por Naomi Rosenblum, com provas em muitos casos «vintage» da Howard Greenberg Gallery, reúne 41 autores que alargam em muito o leque dos nomes mais conhecidos de Berenice Abbott, Lewis Hine, Eugene Smith ou Lou Stettner.


 


André Kertész, «Hotel des Terrasses», Paris 1926


 

 Outras projectos em que o compromisso social e a tradição documental se prolongam na actualidade encontram-se na colectiva «Imagens para a Dignidade», na estação da Renfe Nuevos Ministerios (e também nos comboios), com imagens de Sebastião Salgado, Cristina Garcia Rodero, Zwelethu Mitheta (África do Sul), Christine Spengler (Kabul) e outros, e também na edição de 99 do World Photo Press, mostrada na Fundação La Caixa (até dia 29). Entretanto, outros projectos temáticos, como «Elogio de la Pasion» ou «Afinidades Dispersas», apresentam jovens autores, estabelecendo cruzamentos com as estratégias da arte mais recente ou com os novos media, enquanto propõem pontes entre o social e a intimidade.


 Outros nomes em destaque no programa são os de Peter Beard (NI, 1938), com as suas imagens de África mostradas no Museu Nacional de Ciências Naturais – é um inclassificável autor de fotografias de animais e de empenhamento ecológico, bem como de moda e de charme, indissociáveis como exercício de vida dos seus impressionantes «diários» feitos de colagens, desenhos e objectos –; de Seydou Keïta (c. 1921) e Malick Sidibé (1936), fotógrafos do Mali que se dedicaram ao retrato e, o segundo, também ao testemunho da modernização da vida urbana africana, fotografando o quotidiano e as festas nocturnas (Real Jardim Botânico até 31 Jul.); ou da brasileira Claudia Andujar, com a antologia do seu trabalho com os Yanomami recentemente mostrada em Braga.


 Quanto à produção espanhola, o destaque histórico irá para José Ortiz Echagüe (1886-1980), estranha figura de um pioneiro da aviação e da modernização industrial espanhola que praticou toda a vida uma fotografia arcaizante, usando processos dos picturialistas (Carbono-Fresson) para registar os «tipos y trajes», «pueblos y paysajes» de uma «España Mística». Será mostrado no Rainha Sofia de 13 de Julho a 13 de Setembro. Outro histórico, mais recente, é Ramón Masats, fotógrafo catalão nascido em 1931, renovador da reportagem nos anos 50-60. Mas a actualidade da fotografia espanhola está presente por toda a parte, desde a colectiva oficial «Propuesta 99» às inúmeras mostras individuais: Javier Vallhonrat e Miguel Trillo (em La Fabrica), Isabel Muñoz (em três mostras), Tony Catany, Xurxo Lobato, Manuel Sonseca, José Ramón Bas (presente em Braga, em 99), Antoni Abad, Chema Alvargonzález e Alicia Martín (na galeria Oliva Aruna), etc, etc. A vitalidade do panorama (que parece, no entanto, mais prolixo que exaltante), prolonga-se em termos editoriais com a «Colecção PHotoBolsillo», a publicar um livro por mês e já com Humberto Rivas, Koldo Chamorro, Francesc Catalá-Roca, Gabriel Cualladó, Vallhonrat, Trillo e outros.


 Diversificando ainda mais a oferta, assinale-se a presença dos arquitectos-artistas Diller+Scofidio, de Nova Iorque; de Francis Giacobetti, retratando Francis Bacon seis semanas antes de morrer em Madrid; do guatemalteco Luis González Palma, que trabalha um repertório mitológico local com os meios da colagem e da montagem. Dez fotógrafos peruanos e os argentinos Marcelo Brodsky e Matías Costa alargam o trânsito ibero-americano.


 Nas galerias, a diversidade é absoluta, quanto a géneros, temas e também fronteiras nacionais (embora a ausência de quaisquer nomes portugueses no programa não deva deixar de ser notada, tanto mais que a «invasão» contrária se tornou uma constante). Citem-se entre os mais conhecidos, Robert Mapplethorpe (as flores), os pintores Davis Salle e Juan Uslé (na Solelad Lorenzo e, o segundo, também em Estiarte), ou Allen Jones, artista inglês associado à Pop; a jovem francesa Rebecca Bournigaul; as colectivas com Gursky, Ruff, Ruscha e Serrano ou Thomas Joshua Cooper, Gunther Förg, Axel Hütte e Olafur Eliasson.


 Entretanto, é fora do programa PHotoEspaña que se encontra uma das mais importantes exposições madrilenas: os «Cantos do Deserto» de Richard Misrach no Canal Isabel II (até 29 de Agosto). Aí se expõe uma síntese de vinte anos de trabalho e de muitos milhares de imagens dedicadas às paisagens desérticas norte-americanas.


 Herdeiro da grande tradição paisagística americana e também da sua renovação pelos «novos topógrafos» de 1975 (Robert Adams, Lewis Baltz, Frank Gohlke, Stephen Shore, etc), Misrach utiliza a cor e o grande formato num trabalho que é uma aventura pessoal, uma celebração dos grandes espaços e também uma denúncia da degradação da natureza.


 A mostra de Mishari veio já de Granada e segue com destino à sala Rekalde de Bilbao: é mais uma oportunidade para reflectir sobre a estranha distância que nos separa das circulações peninsulares. (Em tempo: a pintura de Morandi passa o Verão no Museu Thyssen.)

sábado, 5 de junho de 1999

1999, Serralves: Circa 1968

 Expresso 5 Jun. 99

"Expor um paradigma"

A arte contemporânea começa em 68 ? O Museu de Serralves oferece obras e argumentos para o debate

«COM 'Circa 1968', a exposição inaugural do museu, apresenta-se um projecto museológico, uma filosofia de colecção e um conjunto de experiências artísticas que se definem pela superação dos limites de qualquer programa que as pretenda caracterizar e condicionar».
É assim que Vicente Todolí e João Fernandes definem sem definir, caracterizam sem caracterizar, a abertura das actividades do Museu de Serralves, num texto de introdução ao catálogo tão breve como conceptualmente fugidio.
O que seria uma biblioteca limitada a experiências literárias, uma temporada de concertos que só apresentasse experiências musicais? Felizmente, se os «experimentalismos» abundam no percurso da exposição inaugural – tantas vezes como vestígios de interrogações datadas, de contestações já descontextualizadas ou de tentativas de «superações de limites» –, há também algumas obras oferecidas ao olhar do visitante, algumas descobertas que se propõem à sua experiência sensível e intelectual, essa sim decisiva.

Ao fetichismo do experimental, que parece transferir para a criação artística o método das ciências, Picasso respondeu em 1923: «Tenho dificuldade em compreender a importância atribuída à palavra pesquisa (recherche) quando se trata de pintura moderna. Parece-me que procurar (chercher) não tem nenhum sentido em pintura. O essencial é encontrar (...) Quando pinto, o meu objectivo é mostrar o que encontrei e não aquilo de que estou à procura.» Não era só de pintura, obviamente, que Picasso falava.

Ter-se-á passado, entretanto, da arte moderna à arte contemporânea, como sucedeu ao nome do museu do Porto? Essa questão de mudança de eras tem-se posto com frequência, em torno de sucessivas datas, mas, sem o recuo do tempo, fazer história de arte a quente tem mais a ver com a vontade de administrar o presente do que com o rigor historiográfico ou crítico. Lembre-se que já se chamou Museu de Arte Contemporânea ao acervo quase só oitocentista que deu lugar ao Museu do Chiado.

O projecto actual de Serralves assenta na intenção de fazer vingar no campo das artes plásticas a teses de uma linha divisória «circa 1968», que não decorreria das turbulências políticas dos anos 60 – a contestação à guerra do Vietname, a Grande Revolução Cultural Proletária, as crises estudantis, etc – mas que de algum modo as acompanhou e simbolicamente reflectiu num processo de retorno ao activismo das vanguardas históricas dos anos 10 e de busca de diferentes modalidades de criação que não fossem recuperáveis pelo mercado e o museu (burgueses).
Foram anos de rápida sucessão de movimentos programáticos – arte minimal e pós-minimal, conceptual, «process art», «arte povera», «land art», «body art», etc –, em que a reactivação da ideia de vanguarda se identificou com estratégias ditas de anti-arte e não-arte: «o 'quase nada' do ascetismo abstracto, último reduto da essência da pintura, e o 'não importa o quê', herdeiro de Dada, última paródia da arte» (Raymonde Moulin, L'Artiste, L'Institution et le Marché, 1992).
Algumas grandes exposições, especialmente «Quando as Atitudes se Tornam Formas», dirigida por Harald Szeemann, em 1969 (em Berna, Krefeld e Londres), serviriam para marcar a ruptura contemporânea – e também uma das suas características decisivas, o predomínio do nome do comissário sobre os dos artistas e até mesmo dos estilos ou movimentos.

Dizem os directores de Serralves: «A partir da segunda metade da década de 60 questiona-se a autonomia e a 'essência' da obra de arte» (mas essas nunca foram noções fixas e sempre os artistas, ou alguns artistas, as questionaram nas suas obras); «assiste-se então à redefinição da condição da obra de arte, a um cruzamento de géneros formais, ao uso do filme, da fotografia e do texto como suportes de projectos conceptuais, a uma pesquisa das relações entre arte e vida que acompanham a agitação de novas ideias políticas e sociais, assim como a uma ruptura do conceito de moldura (...)» (só recobrindo a história anterior com o manto de uma mítica imobilidade da «tradição» é que alguma destas atitudes pode ser apresentada como alteração decisória); «o conceito de vanguarda torna-se globalizador, fazendo emergir na experiência artística aspectos globais da vida» (mas a vanguarda, que não é o mesmo que inovação, foi sempre globalizadora e em geral até totalitária).

Os comissários procuram tornar credível uma «mudança de paradigma», mas este termo tem de ser observado com radical desconfiança. É possível situar outras rupturas ou mudanças de paradigma nos anos 45-50, com a generalização da ideia de modernidade como encadeamento de inovações técnicas e estilísticas, e outra vez nos inícios de 60, com a internacionalização plena do campo artístico e o início da institucionalização da «tradição do novo» a cargo do Estado providência cultural.
A seguir a 68, logo outro paradigma surgiu nos finais dos anos 70, com a rejeição pósmoderna da visão teleológica das vanguardas e, depois dos «experimentalismos», a revalorização das disciplinas tradicionais.
No final do século revê-se a sua história sabendo que os grandes artistas participaram (ou não) nos movimentos de vanguarda mas conseguiram sempre escapar-lhes, construindo obras próprias que lhes são irredutíveis; revalorizam-se os períodos tardios e as carreiras solitárias, contrárias ao historicismo vanguardista e exteriores à actual academização das «linguagens experimentais», que é simétrica ao conservadorismo dos Salões do século anterior. A arte mais viva do presente segue outros caminhos e os museus centrais já não o ignoram.

O que importa nesse limiar proposto «circa 68» é o ritmo actual da rotação dos revivalismos, que recuperam e fetichizam como tradição o que a quis contestar. É também o peso das limitações dos meios financeiros postos à disposição da colecção, demasiado exíguos para disputar no mercado peças de períodos anteriores, mesmo do início dos anos 60 (todos os outros «paradigmas» são mais caros). E é, em especial, espelhando em 1968 os gostos institucionais de 1999, o propósito de usar o museu como pólo administrativo da criação.
Cite-se outra vez Raymonde Moulin, que é uma socióloga incontestada e não um crítico panfletário da «arte contemporânea»: «A arte orientada para o museu é uma arte que possui as características sociológicas da arte de vanguarda: define-se por uma dupla contestação, a da arte e a do mercado. Intelectual e hermética, é sustentada à partida pela comunidade artística e pelo círculo restrito dos profissionais da arte. Sobretudo, é uma arte assistida, cujos preços directores são os preços-museus, um termo de grande ambiguidade» (op. cit., pág 68).

Seria oportuno, entretanto, analisar detidamente o afirmado programa de «diálogo entre os contextos artísticos nacional e internacional», para notar como se utilisa a abstracção «arte internacional» (existe uma literatura ou um cinema internacionais?). A mitificação do internacional, tomando um regime de circulação como fórmula de valoração de artistas, certificada por uma rede de «especialistas» também internacionais, sustenta a antiga lógica do evolucionismo vanguardista mas nos moldes de uma degenerescência burocrática e faz ignorar quer a complexidade das relações entre centros e periferias quer o carácter local que marca a generalidade das dinâmicas criativas (os internacionais alemães são localizáveis em Dusseldorf ou em Berlim, entre os americanos distinguem-se os de Nova Iorque e os da costa Oeste, por exemplo).

Mas há aspectos positivos que devem ser realçados: uma ideia de colecção que não se interessa (exclusivamente) por «obras que sejam meras ilustrações de teorias», a escolha de algumas obras «mais íntimas» que divergem dos estereótipos e imagens de marca dos estilos, uma montagem que se distancia de «uma exposição de movimentos», através de salas que procuram uma lógica própria – segundo Todolí, a relação com a fotografia, o interesse pela paisagem, o espírito abstracto dos materiais, o paisagismo como auto-retrato, a redefinição da pintura, etc. Por outro lado, deverá notar-se a inclusão de obras que não se integram na lógica dominante do período de 1965-75, como são, no final, as notáveis pinturas de Georg Baselitz, Susan Rothemberg, A. R. Penck e Neil Jenney, artistas que já então subvertiam a tese da «mudança de paradigma», trabalhando sobre mais decisivas linhas de continuidade que atravessam todo o século.

II


Expresso 19-06-1999
Na inauguração do Museu de Serralves


"Despojos da luta e da festa"
As contestações dos anos 60 (e as modas dos 70) não resistem no espaço do museu. Os outros rebeldes menos efémeros foram excluídos

CIRCA 1968
Museu de Arte Contemporânea de Serralves, Porto (Até 29 de Agosto)

«NÃO TENHO nada contra os objectos de arte, simplesmente não tenho vontade de os fazer», dizia Lawrence Weiner, em 1969. Essa atitude de desqualificação da arte pode ter sido um exemplo particular, vivido em Nova Iorque, da ética cultural libertária do final dos anos 60, mas, três décadas depois, encontrar escrita na parede do museu a frase "Ao dobrar da esquina" / "Around the blend" é uma situação muito pouco estimulante.
Desacompanhada de informações sobre o contexto histórico e programático da arte conceptual, a «obra» é ilegível; integrada nesse contexto é uma mera informação sobre uma atitude, é um episódio anedótico e datado de um momento crítico da arte e da sociedade ocidental. Os slogans e cartazes de Maio de 68, ou de outras lutas da época, não se vêem nos museus de arte contemporânea, que são fiéis zeladores da autonomia e ensimesmamento da arte, ao contrário do que apregoam. Mas as «proposições» de Weiner encontram-se sempre em qualquer museu periférico e servem para os situar, aos olhos dos entendidos, numa rede de estabelecimentos elegantes que coleccionam «obras reveladoras de elementos de niilismo».


Lê-se no «Roteiro» oferecido aos visitantes de «Circa 1968»: «A montagem da exposição e os circuitos que nela são possíveis permitem ao visitante o confronto entre perspectivas, práticas e entendimentos diferenciados que sublinham o carácter disruptivo das obras que nela se apresentam».
Carácter disruptivo? Diz a 8ª edição do Dicionário da Porto Editora que o termo, em electrotecnia, refere o «salto de uma faísca entre dois corpos carregados de electricidade»; do latim «diruptio», «fractura, ruptura». O comissário Vicente Todolí parece usar a metáfora da faísca quando pretende que «as obras falam directamente ao espectador», o que justificará quer a exiguidade da informação disponível sobre a sua exposição – apenas uma lista de artistas por sala e um breve enunciado programático, pouco mais desenvolvido no catálogo – , quer a aparente arbitrariedade das escolhas e soluções de montagem. Se o visitante não notar a faísca (a aura dos objectos fetichizados), se não «ouvir» as obras expostos, sempre ficará a saber pelo folheto que «a exposição resulta das interrogações que cada obra suscita».

Quanto a rupturas, não há museu mais avançado que o do Porto. Procure-se em qualquer capital, Londres, Paris, Madrid, Nova Iorque, etc, e não se encontra uma tal dinâmica de «superação de ideias pré-estabelecidas e de preconceitos». Os grandes museus centrais ainda não dividiram o século XX em moderno e contemporâneo (pós-moderno?), nem deram conta da «mudança de paradigma» que ocorreu «circa 68», o que, pelo menos, lhes permitiria resolver o grave problemas das reservas superlotadas. Parece que ainda «pensam o museu como uma realidade estática», mas em Serralves já se sabe que «a arte é a busca ou o ultrapassar dos limites» e que o museu é «um novo fórum, um lugar de discussão e de superação dos limites dos indivíduos que nele coincidem» (cat.). Nunca se usaram as palavras de modo mais displicentemente terrorista para justificar os limites de uma visão restritiva da arte contemporânea.

O Centro Pompidou expõe Hockney e Robert Delaunay?, o Rainha Sofia mostra Roberto Matta e a arte cicládica?, a Tate Gallery revê Pollock e o círculo de Bloomsbury? Não se trata de um permanente reexame de fronteiras e valores, mas de meras concessões ao gosto do público e de sobrevivências das convenções estéticas e técnicas da tradição da arte (moderna). Em Serralves, a palavra-chave é «superação dos limites» e as obras que interessam são as que se caracterizam como «linguagens experimentais», revelam «elementos de niilismo», traduzem «uma subjectividade radicalmente livre» (a que se chamarão «obras idiossincráticas»), ou as que representam uma «traição estética» («até nos artistas mais conceptuais»).

O resultado global é um panorama onde, afinal, não há lugar para «o confronto entre perspectivas, práticas e entendimentos diferenciados», preenchido por uma produção em grande parte academizada no seu vanguardismo escolar e exangue, fechada sobre problemáticas que não são de modo algum contextualizadas, concentrada sobre os mesmos nomes de sempre (com três ou quatro desconhecidos que são irrelevantes), tantas vezes visível como a sacralização do quase nada, da banalidade e da insignificância, em oposição aos espaços criados por Álvaro Siza – sem faísca possível.
Um acervo árido, desvitalizado, autista e triste (o humor e a ironia, tal como o prazer, quase sempre foram banidos) em que quase nada faz reviver a agitação frenética, as lutas e as festas, dos anos 60. Uma selecção estereotipada e censória (as grandes alternativas do tempo estão ausentes), onde a arte se aplica em representar a sua desaparição, antecipando «a banalidade, o desperdício, a mediocridade como valor e como ideologia», para citar Baudrillard («Le Complot de l'Art», 1998).

No interior do terreno institucional da arte contemporânea, o museu, tudo é igualmente consagrado como arte e não resta ao espectador qualquer espaço livre «para questionar os limites do que poderá ou não ser considerado como arte», ao contrário do que se diz ser a proposta de «Circa 1968». A questão, aliás, é um logro, como Duchamp demonstrou de uma vez por todas. O que importa não é distinguir os objectos entre arte e não-arte, mas sim, num panorama em que tudo se equivale desde que cooptado pela área profissional da arte, experimentar e ajuizar a diferença de intensidades formais e significantes, de densidades estéticas e qualidades objectuais. Se tal distinção não pode ser universalmente provada, ela deve ser argumentável, ainda que o programa desta exposição vise destituir as condições possíveis de debate. Mas num dos textos do catálogo, Robert Pincus-Witten, o desencantado autor da etiqueta «pós-minimalismo», nota que, «ironicamente, quando a arte pós-moderna alcança alguma importância, a linguagem usada para a louvar é decalcada no discurso da pintura e da escultura – qualidade, beleza, originalidade, significado, termos de um género de facto proscrito à partida pelo debate pós-moderno».

Por vezes, consultando os escassos elementos disponíveis, parece sugerir-se uma sustentação teórica das escolhas na tese de uma mudança de paradigma que teria ocorrido em torno de 68, demonstrando as obras históricas da década de 65-75 uma ruptura substancial com que começaria o período da arte contemporânea. Mas Todolí corrige: não se trata de «a» história da arte que começa em torno de 68, mas de «uma história», a sua, «uma visão subjectiva e pessoal», estabelecida pelo comissário-artista: «nem a colecção nem a exposição inaugural têm a intenção de contar o que se passou – isso seria repetir a história ortodoxa ou fazer uma arqueologia» («El País»).

De facto, em «Circa 1968», proposta como «exposição-manifesto», «o ponto de partida é mais ou menos 1968, mas aquela época considerada do ponto de vista de agora»; «a base da selecção é a época de 60 vista a partir de hoje»; «as obras desta colecção, embora tenham sido feitas nesse período parecem feitas hoje». Para além da banalidade (uma história actual do impressionismo é feita a partir de hoje, necessariamente, revendo as histórias feitas antes) e do equívoco (são algumas obras de hoje que retomam as estratégias anteriores), trata-se de gerir uma rede ora idiossincrática ora institucionalmente consensual de exclusões e cooptações, através de uma selecção de objectos feita numa banda muito estreita da criação da época. A etiqueta «arte contemporânea» não é usada como uma marca cronológica em aberto, mas como um critério programático para recortar da pluralidade das práticas e das concepções artísticas de uma década anterior um segmento específico, quase sempre a sua área mais pobre e menos significante. Um segmento que é, no momento presente, tacticamente reciclado pelos gostos dominantes e oferecido à escassez de recursos do mercado institucional periférico, em oposição a outras e mais fortes realidades.

Quando Todolí diz da exposição e do museu que «não é uma colecção sobre movimentos» («a mim não me interessam os movimentos», etc), inviabiliza o entendimento das obras de um tempo que se caracterizou, de facto, pela emergência continuada e concorrencial de movimentos, e em que as obras, associadas a uma derradeira reactivação de lógicas vanguardistas, estiveram sempre intrinsecamente ligadas a tendências e teorias, quase sempre capitaneadas por críticos-ideólogos e apresentadas sob novas etiquetas estilísticas, com o seu cortejo de interditos e de formulários impositivos.

No contexto do decénio 65-75, grande parte da produção artística que se pretendeu de vanguarda sustentou-se numa intenção de prevalência da teoria sobre o objecto (opondo-se ao que seria, na «arte tradicional», a predominância do objecto sobre a teoria). Ao pretender, hoje, que as obras que escolheu «não são ilustrações de teorias», «não representam tendências», Todolí procede a uma operação radical de descontextualização que as transforma em objectos arbitrários e põe em prática uma concepção instrumental de fetichização de vestígios que é apenas uma lógica de administração do poder.

Sucede, porém, que a afirmação não é verdadeira e que «Circa 1968», no seu sector «internacional», é quase totalmente uma exposição de movimentos – de alguns movimentos –, estando ausentes os artistas exteriores a essa lógica da sucessão das tendências.

São «imagens de marca» ilustrativas da «arte povera» italiana as obras de Kounellis, Merz, Anselmo e Zorio, colocadas na sala central. Tal como são obras exemplares, quanto ao conglomerado «eccentric abstraction», «anti-form» ou «process art» que reage ao formalismo minimalista, as peças de Eva Hesse, Robert Morris, Bruce Nauman, Richard Serra e Barry Le Va. Mas, nas proximidades desta área norte-americana teriam uma densidade mais do que experimental obras de Louise Bourgeois, Kienholz ou Robert Ryman, e a oposição ao reducionismo ascético ou a implicação nas contestações políticas do tempo («circa 68») deveriam passar por Mark di Suvero, Kitaj, Peter Saul, Leon Golub e Nancy Spero, se não se preferisse o ensimesmamento à conflitualidade estética que mais radicalmente «questionou a autonomia e a 'essência' da obra de arte».

São ilustrações da arte conceptual mais anti-objectualista as presenças de Weiner e Mel Bochner, excluindo todavia a componente mais política do movimento (Victor Burgin e Art & Language, por exemplo) ou mais «linguística» (Kosuth). O mesmo sucede com as obras da «land art» e «arte ecológica», de Oppenheim e Smithson, Long e Fulton e suas variações regionais, com que se continua a percorrer um quadro arqueológico da época.

A alegada fuga às «imagens de marca» e a distância face aos movimentos é, de facto, tacticamente distribuída. Encontra-se no apagamento da arte Pop (e das suas sequelas «funk», «psicadelic», hiper-realismo), então dominante embora invisível na exposição, apesar da presença de Warhol e de Rosenquist (com um «ambiente» que é uma experiência exaltante, mas distanciada da matriz Pop). De Oldenburg, as peças compradas para a colecção são irrelevantes; de Rauschenberg, também anterior à Pop e um dos grandes artistas das rupturas pioneiras da década de 50 (com Cage e Merce Cunningham, Kaprow e Jim Dine, etc) mostram-se duas das mais fortes obras da exposição, na antiga Casa, onde a presença literal dos detritos se estrutura com a energia de uma disposição formal que não os anula enquanto objectos recuperados (é uma «traição estética»). Estão ausentes os realismos que se pretendiam críticos, a arte Op (MoMA, «The Responsive Eye», em 65), o cinetismo e em especial a arte minimal («Primary Structures», Jewis Museum, e «Systemic Painting», Guggenheim, N.I., 66), embora muitas das obras mostradas sejam apenas o seu negativo. Se a contestação radical do accionismo vienense não é evocada, o carácter extremo do «happening», «performance» e «body art» dilui-se em vestígios autistas ou é remetido para ciclos de vídeo; Fluxus, sem Nam June Paik e Wolff Vostell, com um Beuys funerário, perde o seu sentido interventivo. Muito do que os anos 60 tiveram de marcante assumiu com coerência o seu carácter efémero e só sobreviveu como informação; essa energia questionadora da arte e do mundo declinou com o final da década e fechou-se depois sobre a interrogação conceptual da natureza da arte ou a afirmação da subjectividade narcísica. Desapareceu a inquietação e a alegria desse tempo nos objectos congelados pelo museu.

Igualmente decisivo é observar como a atenção prestada ao uso da fotografia, numa sala própria, está presa a uma visão essencialista do uso dos «media», enquanto desqualificação e sucedâneo da pintura, nunca como abertura sobre os recursos da imagem e a presença do real, persistindo assim a fronteira aristocrática que sempre exclui a fotografia que não se reivindica da condição artística e do espaço da arte. É também por isso que a sala dedicada à «redefinição da pintura» não é muito mais que uma reconstituição do formalismo reducionista (embora se sigam Susan Rothenberg e Georg Baselitz).

Outro ponto marcante é a recuperação normalizadora do que foi a originalidade radical das duas exposições comissariadas por Harald Szeemann («Quando as Atitudes se Tornam Forma», em 69, e Documenta VII, em 72), que já então tinham carácter retrospectivo. Na segunda, aberta a obras «representantes de todas as imagens do mundo», compareciam «a arte conceptual e o hiper-realismo enquanto direcções apresentadas segundo pontos de vista formais», a par da linha das «mitologias individuais enquanto campos da criação subjectiva dos mitos», onde cabiam, justamente, mas com escândalo, as obras de doentes mentais e a arte religiosa popular.

Sobre o decénio em causa, dizia Szeemann, em 1991: «Hoje é possível ver a história dessa arte com recuo: a rebelião silenciosa e as primeiras manifestações, de 1966 a 1969, o estilo em 1971, a moda em 1973» (L'Art de L'Exposition, Ed. du Regard, 1998).

Uma diferente história de rebeldes, com Picasso (até 72), Balthus, Freud e Hockney e tantos outros fica por contar, e poderia ter em Philip Guston uma figura paradigmática, porque o seu regresso à figuração em 1966 foi um dos maiores choques do decénio, enfrentando com duradouras consequências o consenso vanguardista.

No início da década de 80, constatava-se que «a sobreacentuação da ideia de autonomia em arte que provocou o minimalismo e a sua consequência extrema, a arte conceptual, estava votada à esterilidade. Rapidamente, a vanguarda dos anos 70, com a sua concepção puritana, rígida, desprovida de qualquer alegria sensual, perdeu o seu impulso criativo e começou a estagnar», escrevia Christos M. Joachimides, ao apresentar a exposição «Um Novo Espírito da Pintura», em 1981.

A ocultação de obras e de memórias permite duvidosas operações. Mas talvez haja, de facto, uma perspectiva teórica subjacente à exposição, que pode ter a sua chave numa breve referência a um «conceito de vanguarda»: a selecção das obras realizadas em torno de 68 que parecem feitas hoje seriam as que «reapropriam interpretações particulares dos momentos euforizantes das experiências de vanguarda sucedidas entre meados dos anos 10 e meados dos anos 20». Que calendário é este que, além de tudo o resto, exclui o vanguardismo cubista, futurista, órfico, etc? Exactamente o que teria tido início com o dadaismo (Zurique, 1916), integra o construtivismo soviético, com ou sem o seu destino produtivista, e exclui o surrealismo (Paris, 1924). Desligado do seu contexto histórico, é um exercício de diletantismo pessoal e de arbitrariedade institucional. Soa terrivelmente datada outra frase de Todolí: «O modelo anterior – metafísico, do artista que está no estúdio – foi rejeitado. Os muros do estúdio tornaram-se falsos e a pergunta em questão é: se há limites e onde é que eles estão?» (entrevista ao «DN»).

Há, no entanto, outras situações onde a tese do paradigma e a exposição-manifesto aparecem justificadas por uma razão excessivamente prosaica: a falta de dinheiro para adquirir outras obras, para iniciar a colecção sobre outro «paradigma». «Tomando em conta as possibilidades, hoje, de começar uma colecção neste país, com um orçamento modesto em termos internacionais, percebemos à partida que ainda se podiam comprar coisas desta época – dos anos 60 – bastante em conta», diz Todolí («City»). De facto, uma tela de Lucian Freud (o retrato da mãe do pintor, de 1982) custou perto de 600 mil contos num leilão de 18 de Maio, o que equivale à verba total de três dos cinco anos de aquisições previstos para o museu do Porto.

O orçamento disponível e o programa do museu mantêm o círculo vicioso que desde sempre domina Serralves: sem meios financeiros e vontade política não há um programa museológico credível, e sem este (sem um projecto pluralista, não sectário, comunicativo e socialmente implantado, sustentado na possibilidade de fundamentar juízos de valor estético) nunca existirão os meios necessários, nem se justifica, aliás, que eles surjam.

EM PORTUGUÊS

A PRESENÇA portuguesa em «Circa 1968» deveria ter uma análise cuidada se não fosse por demais evidente que ela resulta em grande medida de uma mera gestão de compromissos e conveniências: por um lado excessiva – 37 para 70 estrangeiros –; por outro, em grande parte exterior ao tópico orientador da exposição, a tese da mudança de paradigma. Que fazem Fernando Lanhas, Paula Rego, Júlio Pomar, Jorge Martins, António Sena e outros em «Circa 1968», senão prosseguirem o que Todolí chama «a 'pintura de cavalete' não problematizada», quando «as obras começam a a sair para fora da tela» e tem lugar «a ruptura do conceito de moldura, o qual dá lugar à invasão do espaço interior e, por vezes, exterior...» (roteiro)?

Porque não estão representados Menez (que terá colaborado com João Vieira no quadro O Gato, de 67), João Cutileiro, Costa Pinheiro («Os Reis», em 1966; os projectos ambientais lúdicos de «Citymobil – arte-projecto», em 67-75) ou Eduardo Luís? Não importa. É bem melhor estarem ausentes, denunciando-se a arbitrariedade das escolhas, do que depositados numa cave mal iluminada e de acesso tortuoso, a sala nacional da exposição, porque não foi possível, disse-se, estabelecer pontos de diálogo com outros artistas – o que só significa que os grandes contemporâneos estrangeiros foram eliminados.

Entretanto, oferece-se a feliz oportunidade de observar como em tantos casos os artistas portugueses colocados em situação de «diálogo» internacional ficam tragicamente remetidos à situação de intérpretes menores do ar do tempo, de epígonos amaneirados de problemáticas alheias ou de «introdutores» em Portugal de qualquer estilo ou moda (desde os anos 50 que a crítica nacional foi assegurando esse método de avaliação e promoção de artistas, sempre de efeitos devastadores).

Não é esse o caso de Lourdes Castro, René Bertholo e Eduardo Batarda, a quem cabe, com o admirável e inclassificável Oyvind Fahlstrom (1928-1976), a representação exclusiva de um largo campo de trabalho em torno dos poderes e ilusões da imagem (chamou-se-lhe na altura neo-figuração, figuração narrativa, mitologias quotidianas, etc) que atravessou a década de 60.

Note-se ainda, por último, a aberrante representação da crítica portuguesa no catálogo, fazendo emparceirar os dois textos de protagonistas da época, Germano Celant e Robert Pincus-Witten, ou o estudo de Antje von Gravenitz sobre «O mito de '1968' na Alemanha», muito útil para entender o contexto regional dos alunos de Beuys, com uma prosa esforçadamente escolar de alguém que só podia ter um contacto indirecto com a época em causa e que a comenta com os piores vícios do academismo vanguardista.

sábado, 8 de maio de 1999

1999 Encontros de Braga: Louis Faurer, Claudia Andujar, John Max, Virxilio Vieitez. Martin Parr. "Retrato do Século"

 "Encontros e descobertas" 

Expresso 08-05-99

ENCONTROS DA IMAGEM

13ºs Encontros da Imagem, Vários locais, Braga, Guimarães e Famalicão (Até dia 30)


 TEM havido, em Braga, anos melhores e anos piores, mas esta 13ª edição dos Encontros da Imagem será seguramente a mais forte de sempre. Quatro nomes bastam – os de Louis Faurer, Claudia Andujar, John Max, Virxilio Vieitez – para assegurar a importância do programa: os dois primeiros são grandes fotógrafos pouco conhecidos ou pouco vistos, John Max é um canadiano que esteve esquecido, Vieitez é um galego recentemente descoberto.


 Várias outras exposições incluídas numa programação extensa e diversificada (descentralizada por Guimarães e Famalicão) merecem igualmente ser destacadas: a participação de Martin Parr entre quatro fotógrafos convidados a trabalhar em Braga; a exposição «O Estado do Tempo», original revisão do séc. XX português até ao 25 de Abril, através de uma pesquisa por vários arquivos fotojornalísticos; a apresentação do madrileno Alberto García-Alix no recém-inaugurado Museu da Imagem; a retrospectiva de Gabor Szilasi, outro canadiano. Entretanto, sem que com estes nomes se esgotem os motivos de interesse, fica claro por esta selecção que os Encontros não conseguiram ainda ser uma plataforma de divulgação e de afirmação da fotografia portuguesa: a Braga acorrem os responsáveis por numerosos festivais internacionais (de onde vêm, em geral, as mostras apresentadas), mas não há um esforço sério para propor fotógrafos nacionais para a troca.


 


Claudia Andujar, Índio Yanomami, 1977 (no Mosteiro de Tibães)


 

 Louis Faurer (mostrado na Casa dos Crivos) é um norte-americano nascido em 1916, de pais polacos, que os Encontros de Coimbra já tinham incluído brevemente, em 95, numa mostra colectiva sobre os «fotógrafos de rua» dos anos 40 e 50 em Nova Iorque. Algumas dezenas de reimpressões recentes, vindas da Galeria Howard Greenberg, mostram-no como um dos maiores desses fotógrafos, à altura de Robert Frank, com quem se encontrou logo em 1947, nos estúdios do «Harper's Bazar» dirigidos por Alexei Bogdanovitch, e de quem se tornou amigo e foi colega de laboratório.


 A sua obra iniciara-se em 1937, nas ruas de Filadélfia, desde logo sensível às figuras anónimas e desencantados que povoam as franjas da sociedade de consumo que então despontava, mas tornou-se mais rara a partir de 52, talvez por dificuldade de a conciliar com o trabalho profissional na área da moda, ou porque o clima político se tornara hostil aos olhares mais cépticos sobre os caminhos da «american way of life» (recorde-se que The Americans foi primeiro editado na Europa). Presente em «In and Out of Focus», organizada por Steichen no MoMA, em 48, e ainda em «The Family of Man», em 55, foi pouco publicado nesses anos; só a partir de 1977, graças a sucessivas bolsas, é que Louis Faurer passou a dedicar-se à reimpressão dos antigos trabalhos, que se foram descobrindo em várias exposições.


 Interessavam-lhe os vultos singulares dos transeuntes e as sombras da noite recortadas pelos reflexos das montras e dos automóveis, enquanto as solidões que se perdiam no ritmo frenético da cidade encontravam no seu olhar uma atenção cúmplice. Louis Faurer fotografava «à luz hipnótica do crepúsculo» (são palavras suas) a aceleração e a energia que se apossava do espaço urbano, em imagens duras e fraternas que reflectem a crescente inquietação da vida citadina.


 



Louis Faurer, «Rua 42, Nova Iorque, 1948» (Casa dos Crivos, Braga)


 

 Os fotógrafos de Nova Iorque descobriam então a nova estética da grande cidade com o poder revelador dos seus olhares fugitivos, trocando o rigor estático dos anteriores documentos pela velocidade da imagem insegura de um pequeno aparelho furtivamente levado na mão. Nas suas fotografias abundam os letreiros e painéis da publicidade luminosa (Faurer começara por ser pintor de tabuletas), os cromados dos automóveis, as «colagens» construídas pela sobreposição dos reflexos nas montras, imprimindo a alguns rostos estranhas metamorfoses. Robert Frank iria então definir um projecto mais político e depois voltou-se para a autobiografia; Faurer testemunhava os tempos de mudança com um olhar magoado que recusava a sátira sem nunca se tornar complacente.


 Da selva urbana pode passar-se ao coração da última das florestas, mas não se encontrará nas fotografias de Claudia Andujar a mitificação de qualquer paraíso perdido. Na única exposição albergada no Mosteiro de Tibães (devido às obras de recuperação em curso), exibe-se uma vasta síntese recente de um trabalho que se desenvolveu desde os anos 70 entre os índios Yanomami, prolongando sempre a fotografia com o activismo em defesa de um povo ameaçado de genocídio, cujo território só foi demarcado em 1992.


 A dimensão documental, que foi a base de anteriores exposições e livros, adquire aqui o carácter intimista de quem revê o que foi a implicação de uma vida, como se se tratasse de uma viagem iniciática: «Foi através da imagem do Outro que cheguei a conhecer-me», diz a fotógrafa. A informação etnográfica sobre a cultura indígena, embora não deixe de estar presente num trabalho que partiu do registo exaustivo do seu quotidiano, parece dar lugar à memória pessoal e à experiência da comunhão com uma outra realidade e concepção do mundo, preservada na sua diferença radical como algo que não é possível decifrar inteiramente, enquanto mero objecto antropológico, e que também não deve ser subjugado por uma abordagem esteticista ou pela atracção do exotismo.


 



John Max, sem título (Paço dos Duques, Guimarães)


 

 Nascida na Suíça em 1931, educada na Hungria e nos Estados Unidos, radicada no Brasil desde 1957 e naturalizada brasileira, oriunda de uma família judia desaparecida nos campos de concentração, Claudia Andujar anula a distância de um observador neutral para mergulhar no mundo dos Yanomami, partilhando em imagens de um preto e branco muito contrastado, misteriosamente iluminado (e em muitos casos manipulado a partir dos diapositivos de cor), as sombras da floresta, os fantasmas dos seus rituais mais secretos e também as ameaças que cercam este povo.


 Regresso à cidade. Periferia da grande metrópole. John Max (exposto nos Paços dos Duques, em Guimarães, a par de Gabor Szilasi) é um fotógrafo de Montreal, nascido em 1936 de pais ucranianos, que caíra quase no esquecimento depois de ter exposto e publicado Open Passport em 1972-73. Tinha começado a fotografar nos anos 50 nos meios «underground» e era marginal aos projectos documentais que então interrogavam a identidade do Canadá. Em 1997 voltaram a expor-se algumas dessas imagens e o Museu de Charleroi (Bélgica) ampliou a selecção para as trazer à Europa. Radicalmente subjectiva e autobiográfica, centrada na presença dos amigos e familiares, a obra de John Max expõe-se sem quaisquer datas ou referências, embora se reconheçam os retratos de Robert Frank, Frank Zappa e Leonard Cohen.


 Paralelo à deriva intimista de Frank, menos narcísico e sem montagens nem inscrições escritas, este trabalho poderá ver-se como antecessor da vaga recente das narrativas confidenciais, mas fica a grande distância do que nestas é banalização e irrelevância da exibição da privacidade. As suas fotografias são secretas deambulações pelos rostos das pessoas e os corpos das mulheres, fragmentos de paisagens habitadas ou de espaços domésticos, possíveis momentos de viagem, como um inventário de encontros fulgurantes e precários, sempre de composição instável e recortadas por negros profundos, mas sem nunca se fixarem numa regra ou num estilo. São imagens que tanto podem associar-se numa sequência de retratos, como exibir-se num painel heteróclito ou mostrar-se isoladamente, que se reconhecerão como totalmente privadas e indecifráveis, sem que a falta de um código as torne por isso inacessíveis ou indiferentes, oferecendo-se com uma constante intensidade explosiva.


 


Virxilio Vieitez, retrato (Fundação Cupertino de Miranda, Famalicão)


 

 Virxilio Vieitez (Fundação Cupertino de Miranda, Famalicão) é um fotógrafo popular galego descoberto na Fotobienal de Vigo em 98 e logo levado à galeria da agência Vu, em Paris, por Christian Caujolle, e aí acolhido com páginas inteiras dos jornais. Nasceu em 1930 em Soutelo de Montes, entre Pontevedra e Ourense, começou a fotografar num estúdio da Catalunha e estabeleceu-se na sua terra em meados dos anos 50, trabalhando como profissional de retratos durante três décadas. Em 97, Keta Vieitez, fotógrafa e filha, fez-lhe a primeira exposição, na sua aldeia, e é agora a sua impressora.


 Pouco interessado na imobilidade do estúdio, preferia trabalhar em exteriores e percorreu de Lambretta e depois de carro as aldeias da região (com incursões em Portugal, lembra-se o fotógrafo). Para além dos retratos «tipo passe» que agora se mostram ampliados, para os quais usava o sol e um fundo de pano branco (são os primeiros tempos da obrigatoriedade dos bilhetes de identidade), as fotografias destinadas aos parentes emigrados são parte essencial da sua actividade, incluindo casamentos, comunhões e funerais, estes para efeitos de partilhas. Trabalhava com composições frontais, dispondo com autoridade os modelos entre a vegetação ou junto dos grandes automóveis dos emigrantes, e outras vezes ainda no cemitério; a solenidade da ocasião impunha os melhores fatos e uma imensa gravidade nos olhos das crianças.


 O espólio poderia ser apenas um grande inventário de fisionomias e grupos populares, mas Vieitez é um grande fotógrafo, aplicado e original, com um extraordinário sentido da pose, dos olhares e da construção do espaço, cuja obra se encontra espontaneamente com August Sander ou Diane Arbus, e também com a serena estranheza de Meatyard, para lá da proximidade com os retratistas africanos revelados em anos recentes. Caujolle cita ainda Paul Strand, W. Evans, Dorothea Lange, Penn e Avedon.



 

Martin Parr, Braga («Memórias da Cidade», Museu dos Biscainhos)


 

 «Memória da Cidade» reúne no Museu dos Biscainhos quatro encomendas sobre Braga passadas a Martin Parr, José Manuel Rodrigues, Olívia Silva e Frédéric Bellay. Este, conhecido dos Encontros de Coimbra, refaz um levantamento topográfico e arquitectónico da cidade em transformação, com imagens geometrizadas e despojadas pela luz da noite. Olívia Silva prolonga o seu projecto de trabalho sobre o retrato de vendedores de mercados, usando a cor num estúdio improvisado e também a divertida cumplicidade dos seus modelos, com novas modalidades de instalação. Em José M. Rodrigues, a descoberta sensível da cidade é também o encontro consigo mesmo e com os temas que circulam noutras imagens de diferentes lugares – vejam-se a estufa arruinada (a construção humana que o tempo vai devorando) ou o auto-retrato diante da fonte (onde a água sai dos olhos de um rosto de pedra que a sombra da sua mão acaricia). Notem-se também as curiosas coincidências com Martin Parr, na imagem do talho com o borrego pendurado e no encontro com o fotógrafo ambulante.


 Quanto ao fotógrafo inglês que revolucionou <... confrontou> a tradição da Magnum, de quem os Encontros já tinham mostrado selecções de fotografias de The Last Resort (de 1986) e The Cost of Living (89), as suas imagens de Braga estão entre as mais fortes que se apresentam nesta edição, arruinando as «linguagens contemporâneas» que se mostram no Museu D. Diogo de Sousa. Como nas suas fotografias recentes (West Bay, de 97, exposto na Gal. Palmira Suso, ou Common Sense, já de 99), Parr volta a fazer um uso prodigioso das cores saturadas, do flash e da desfocagem selectiva, com a qual isola pormenores e os faz dialogar com os planos gerais deixados imprecisos. Neste caso, o teor crítico que é usual nas suas imagens, particularmente interessadas em denunciar a globalização massificadora do consumismo, dá lugar a uma observação mais serena e muito menos cáustica, marcada por uma evidente atenção ao lugar – é um trabalho muito diferente do exercício de um estilo adquirido, como é habitual neste tipo de encomendas. Ninguém viu assim os puxos entrançados das mulheres – ou as carecas dos homens – nas ruas de Braga, nem surpreendeu aqueles sábios diálogos entre humanos e animais (nas imagens do galo e do borrego esfolado).


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Retrato do século 

Expresso 15-05-99

O ESTADO DO TEMPO

Encontros da Imagem — Fábrica Confiança, Braga (Até dia 30)

 ESTA exposição não se extinguirá com o termo da 13ª edição dos Encontros da Imagem e deveria partir de Braga para uma demorada circulação pelo país. É um retrato caleidoscópico de Portugal ao longo do século XX (o primeiro integralmente coberto pela fotografia), ainda que a mostra se encerre em 1974, com uma imagem única do 25 de Abril.

 É uma gritante chamada de atenção para a enorme riqueza desconhecida que se deposita nos arquivos fotográficos nacionais e um alerta para o trabalho de investigação e divulgação que está quase inteiramente por fazer. E é também um manifesto acerca da fotografia (da arte da fotografia), mostrando como o respectivo universo é igualmente o das imagens funcionais, anónimas e vernaculares, realizadas com fins práticos (no caso, a Imprensa) por artesãos dedicados que não tiveram por primeiro objectivo fazer arte ou declararem-se artistas.


 


Encerramento do Parlamento em 31 de Maio de 1926 (Arquivo do «Diário de Notícias»)


 

Durante cerca de dez meses, Rui Prata (um dos dois directores dos Encontros de Braga) e Manuel Miranda (que foi um dos fundadores dos Encontros de Coimbra) seleccionaram em alguns arquivos fotográficos - em geral, a partir dos ficheiros de provas de contacto - as imagens que pudessem sumariar o curso da história portuguesa ao longo de três quartos do século, período a que corresponde o início e a generalização da imagem fotográfica publicada na imprensa de massas (até que se libertasse a concorrência da televisão). Fugiram «à pura ilustração dos grandes eventos, à imagem institucionalizada dos regimes políticos e da sua entronização cerimonial», trocando a cronologia dos acontecimentos e das figuras oficiais por imagens que concedessem «a máxima visibilidade aos modelos comportamentais, aos sentimentos e emoções, aos valores e estados de ânimo colectivos, captados pela fotografia», como avisa Manuel Miranda na introdução ao catálogo.


 É, naturalmente, uma escolha guiada pela história, mas também, com proveito suplementar, pela procura das «fotografias com alguma expressão», ou seja, conduzida por um critério informado pela cultura fotográfica e, por isso mesmo, atento à originalidade do olhar ou à sensibilidade do fotógrafo (um autor, mesmo que seja em geral anónimo e não se reconheça como artista), alguém que soube acrescentar à banalização dos testemunhos mecanicamente registados a eventual curiosidade por um tema invulgar ou a diferença da densidade significante que é assegurada por um ponto de vista e uma composição particulares. O que não significa o mesmo que procurar sobrepor uma intenção - ou atribuir um sentido - esteticizante à actividade documental, mas antes partir do conhecimento de que não existem diferenças, essenciais ou «a priori», entre fotografia de arte e fotografia vernacular.


 «From the Picture Press», uma exposição organizada em 1973 no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque, por John Szarkowski, que foi uma pioneira aproximação crítica à fotografia de imprensa, já mostrara que o seu «tema essencial não era o momentâneo e o excepcional, mas o típico e o ritualístico», como escreveu Peter Galassi na apresentação de outra mostra, «Picture of the Times», que o mesmo museu dedicou em 1987 ao fotojornalismo do «The New York Times». «O Estado do Tempo» segue a lição dessas duas exposições do MoMA.


 São cinco os arquivos que se encontram representados nesta antologia, com destaque natural para os do «Diário de Notícias» e de «O Século» - este até há pouco integrado na Fototeca do Palácio Foz e agora depositado na Torre do Tombo, no recém-criado Arquivo de Fotografia de Lisboa, dependente do Centro Português de Fotografia. Cada um deles inclui também os espólios dos respectivos magazines fotográficos, o «Notícias Ilustrado» (fundado em 1928 por Leitão de Barros) e o «Século Ilustrado» (a partir de 1938), que acompanharam a seu modo a renovação do fotojornalismo internacional nas décadas entre as duas grandes guerras.


 


Peregrinos na Cova da Iria, Fátima, 13.10.1951 (Arquivo de «O Século»)


 

 Até aos anos 70 e 80, os arquivos dos jornais não referenciavam os nomes dos seus foto-repórteres, e a identificação da autoria de Joshua Benoliel (com 13 fotografias expostas) é praticamente um caso único, só acompanhado por duas imagens, de 1921, atribuídas a C. Garcês, aliás magníficas. Mas estão certamente representados outros nomes da mal conhecida história da fotografia portuguesa, como os de Deniz Salgado, Salazar Dinis, Marques da Costa (Júlio e Firmino - qual será o autor do notável álbum anónimo Alguns Aspectos da Viagem Presidencial às Colónias, em 1938-39, revelado há anos pela Ether?), António Novaes, José Lobo e até Augusto Cabrita e Eduardo Gageiro, já nos anos 60.


 Os outros acervos investigados permitiram descentralizar convenientemente as imagens do país, com base no Arquivo Abel Resende (1901-1994), de um profissional instalado em Aveiro, onde ainda cobriu o Congresso da Oposição Democrática, e no Arquivo «Formidável», alcunha de Fernando Marques (1911-1996), cauteleiro e fotógrafo, cujo espólio está preservado na Imagoteca Municipal de Coimbra. O último e mais recente arquivo utilizado foi o do fotojornalista Alfredo Cunha.


Com um total de 248 imagens, todas elas cuidadosamente reimpressas para a ocasião (grande parte em Paris), a mostra constitui um longo itinerário que nunca se torna rotineiro ou enfadonho, fraccionado em três grandes capítulos históricos, interrompido por algumas ampliações em grande formato que introduzem rupturas temáticas ou cronológicas (por exemplo, o achado dos pintores das tabuletas de trânsito dizendo «PELA DIREITA desde 1 de Junho», com o patrocínio do «Diário de Notícias» e da Vaccum Oil Company, fotografados dois anos depois do 28 de Maio de 1926) e, em geral, ordenado por grupos em que alternam os casos da actualidade política com os temas sociais e o quotidiano. Entretanto, o percurso é também balizado por numerosas imagens que se destacam da sequência expositiva para tomarem lugar no «corpus» ideal da fotografia portuguesa, em igualdade de condições com as melhores fotografias de qualquer autor mais reverenciado.


 No catálogo, onde se reproduzem todas as fotos expostas, um prefácio de Jorge Calado («As Imagens da Nossa Vida») é um instrumento precioso que servirá de guia à leitura mais atenta das fotografias e do seu itinerário, lançando as pontes necessárias para outros mundos e outros fotógrafos (desde os grandes pioneiros como John Thompson, Jacob Riis e Lewis Hine, que não foram artistas mas activistas e reformadores, ou os editores como Stefan Lorent). Sobre os autores desconhecidos que a exposição apresenta, Jorge Calado observa que «à semelhança do que aconteceu com os artistas medievais e outros mestres de Igrejas, vamos ter de identificar alguns dos fotógrafos anónimos como o senhor da escola de 'O Século', o fotojornalista à maneira de fulano, o mestre da fotografia da 'Chegada do Duque de Edimburgo ao Aeroporto do Montijo onde se encontrou com a Rainha Isabel II de Inglaterra'».


 Tudo começa com as «Décadas Vorazes» (1900-1933, embora as mais antigas fotografias sejam datadas de 1907); segue-se «O Poder das Sombras» (1933-1961) e depois o «Compasso de Espera» (1961-1974), até ao «Abril em Portugal», numa solitária fotografia do arquivo de «O Século», de Alberto Gouveia, Militares postados na montra do jornal «Época» no 25 de Abril: dois soldados de armas na mão postados no ressalto da montra enquanto três transeuntes se detêm a observar as fotografias aí expostas, de propaganda colonial. Aos emigrantes e bombistas da primeira etapa, sucederam os desfiles dos legionários, os caminhos de Fátima, as diversões da Feira Popular e os dramas dos cais de Belém. Uma pesada ordem reinou também sobre a fotografia.