sábado, 12 de abril de 1997

Mónica Machado, 1997, Forum Maia

 Expresso Cartaz 12-04-97, pp 14-15

"Memória e imaginário do objecto quotidiano"  <Uff!!> 
"Uma jovem escultora portuguesa de Paris, Mónica Machado, inventa a escultura-mosaico: o objecto comum e o lixo encontram uma nova vida"

Bienal Arte Jovem, Fórum Maia

 

MÓNICA Machado foi, até há pouco tempo, apenas o nome de uma artista portuguesa de formação parisiense que se sabia ter sido premiada no Salon de Montrouge (um «salão» anual de jovens artistas na periferia de Paris) e feito uma primeira exposição com apresentação de Yves Michaud (filósofo e crítico, director da Escola Superior de Belas Artes de Paris, onde M.M. se diplomou em 92 e de onde ele se demitiu em 95).
Depois, a uma pouco vista 2ª Bienal da AIP, em Outubro, em Santa Maria da Feira, Mónica Machado trouxe duas obras, um grande e inquietante carrinho de bebé — Le Landau (Salomé Dolores) — e um corpo feminino que se abria no desvendar do seu interior — O Ovo (Petite Anatomie du Désir). Nos seus barrocos revestimentos de cerâmica e na montagem obsessiva de objectos e fragmentos, animados com movimentos mecânicos, som e luz própria, eram sedutoras e repulsivas «máquinas delirantes», insólitas esculturas de invenção original e carregadas de memórias artísticas.
A emoção dessa descoberta, proporcionada pela selecção do crítico Carlos França, levou a apontá-la aqui como a mais forte revelação de 1996.


Agora, numa outra bienal descentralizada que o Forum Maia dedica à «Arte Jovem», Mónica Machado faz reencontrar a sensação de perturbada estranheza que provoca o confrontro raro com uma obra independente da ilustração disciplinada de qualquer gosto tido por actual ou das «reflexões» que sazonalmente se substituem sobre despudoradas faltas de memória e de ambição — uma obra que é ao mesmo tempo divertida e inquietante, íntima e directamente comunicativa.

Três novas peças a juntar às duas já expostas (e às ilustrações de catálogo de uma individual de 1994, entretanto conhecidas) atribuem a esta presença, outra vez proposta por Carlos França - num diálogo muito estimulante com Sílvia Hestnes Ferreira, Fátima Mendonça e Rui Serra -, o lugar das obras que subvertem as hierarquias estabelecidas.

Mónica Machado tem, graças ao uso do mosaico e em especial do azulejo, partido e usado como revestimento de objectos ou como imagem e escrita, uma surpreendente ligação a tradições portuguesas (mas também a Gaudí e a outros visionários mais marginais). Por outro lado, revisita de modo original situações poéticas de utilização de objectos vulgares, imaginários quotidianos e surreais, práticas da acumulação e da «assemblage», com a energia de quem as comenta  através de um inventário sentimental mas irónico da vida própria.

O objecto de consumo corrente impera na escultura actual. É em geral sujeito a exercícios de disposição (instalação) que lhe confere ora a existência glacial dos alinhamentos nos espaços comerciais, ora a montagem arbitrária do quotidiano. O objecto tal e qual, pós-dadaista por definição, autoriza sempre a atribuição da vontade de ironia ou de crítica, ou é, noutros casos, seguindo as estratégias do incomunicável ou indizível, um «objecto ansioso» (Harold Rosemberg) que reclama do espectador o reconhecimento como obra de arte, se o lugar de exposição desde logo o não garante como tal.

Mónica Machado não circula por aí, vai mais atrás e mais fundo na memória e no imaginário do espectador. Colecciona objectos dentro de objectos, remonta-os e subverte-os por uma prática subtil de "bricollage", «utiliza os recursos do fragmento para produzir uma poesia da miniatura e da associação de ideias» (Y. Michaud), num jogo «ao mesmo tempo erudito e ingénuo» (idem) de «mise en abîme» que usa a forma adquirida da caixa-relicário para a perturbar com um sentido das metamorfoses.

Em L'Imbrication de valises (en carton), de 1994-97, sobre uma estrutura metálica móvel, uma das malas de cartão recobertas de mosaico contém a maquete exacta da sua morada parisiense, retomando o exemplo das casas de bonecas, enquanto outros recantos, janelas e gavetas (dotadas de iluminação local) podem recolher, escritos em fragmentos de azulejo, anúncios de casas recortados de jornal, incluir uma colagem-mosaico de medicamentos ou esconder um livro de fotografias pessoais. Uma longa «legenda» que deveria ter sido exposta orienta o espectador num desvendar das pregas desta escultura em episódios, que, com a chaminé e o espelho retrovisor, é o veículo-memória de um nómada.

Outra peça, A mala da tia Titi, é uma caixa de chapéu transformada em relicário, semelhante àquelas que se podem ver nos cemitérios portugueses, como diz a autora: uma vitrine mortuária referida a um parente preciso, que inclui fotografia, relíquias, louça, iluminação, e onde, como diz Y.M., o mosaico «imobiliza e petrifica o sentimento — ou cristaliza-o».

Em Ordures-Ménagère (morceaux choisis), 1996, em parceria com Gil Bensmana, o uso do lixo como material torna mais evidentes as possíveis relações com  as «Poubelle Menagère» de Arman ou os «tableaux-piège» de Spoerri, mas a regra formal do acaso, a ironia neo-dadaista e a composição pictural dão aqui lugar a uma calculada alteração da leitura dos dados imediatos. Os quadros-relevos de Niki de Saint-Phalle e as máquinas de Tinguely são, noutras obras, referências aproximáveis, mas, numa imprevista associação a tais poéticas, Michaud recorda também as caixas «à» Joseph Cornell e os objectos «à» Meret Oppenheim que se podem encontrar escondidas e miniaturizadas no interior das suas construções.
A enumeração dos materiais usados é extensa: «Caixote do lixo, pá, hélice, metal, resina, iluminação, louça, lixo: latas de conserva, ossos, ostras, cascas, espinhas de peixe, papéis, garrafas, etc...» O caixote eleva-se no ar como um foguetão, dotado de pequenas janelas circulares (lugares para outras surpresas), e o lixo jorra como um vómito, mas também como uma cornucópia, a partir de uma pequeníssima máscara oriental de boca escancarada, colocada num fundo a que a luz local confere uma aparência de braseiro-inferno — onde se verá ainda o resto de uma notícia sobre o terror do Ruanda...

"O meu trabalho consiste sempre em encenar objectos... recuperados através do quebrar e da justaposição, etc... para lhe conferir uma nova vida. onde todas as associações se tornam possíveis e o anacronismo se torna a regra do jogo.» Um jogo admirável.
(Nota: Aguarda-se ainda a publicação do catálogo para o comentário ao conjunto da bienal.)

sábado, 7 de dezembro de 1996

Fernando Calhau, 1996, ENTREVISTA (na criação do Instituto de Arte Contemporânea)

 


sábado, 4 de novembro de 1995

1995, Paris, Edward Weston / William Klein / Martin Parr

 WESTON/KLEIN/PARR : 

"Viagem fotográfica" 

EXPRESSO Revista de 4-Nov-95 (pp. 120-125)

A América de Edward Weston, redescoberta através das suas provas originais; Nova Iorque segundo William Klein, em edição revista e aumentada; o mundo visto por Martin Parr. Exposições e livros

Paris1

AS «vintages» de Edward Weston atravessaram o Atlântico. Vieram do Museu de Belas-Artes de Boston e estão em Paris, no Hotel de Sully, apresentadas pela Mission du Patrimoine Photographique, até 7 de Janeiro. Em 170 provas de época, é toda uma retrospectiva do grande fotógrafo americano, de 1903 até 1948, que se apresenta nas suas tiragens de eleição. Um acontecimento menos mediatizado que a exposição de Cézanne, mas que por si só justifica a viagem.
São «os Weston de Weston» da Colecção Lane, escolhidos de entre as mais de duas mil provas que constituiam a colecção pessoal do fotógrafo (1886-1958) e que, no final dos anos 60, inícios de 70, foram adquiridas aos seus herdeiros directos. A exposição coincide com o lançamento de Edward Weston — Formes de la Passion, na edição francesa da Seuil, que, com as suas 349 reproduções, cerca de um terço de imagens raramente vistas, passa a ser a mais completa das monografias que lhe foram dedicadas.
Não é fetichismo o interesse pelas provas originais de Weston. A perfeição das suas impressões por contacto, a partir dos negativos de 20 x 25 cm, a excelência do produto final, muito pouco manipulado, com os seus vivos contrastes de luz e bordos cortantes, fazia parte da sua própria concepção da criação fotográfica — «eram a sua maneira de falar da vida e do seu trabalho», como reconhecia William Klein, que nunca foi um perfeccionista: «Para Weston, que fotografa uma coisa tão simples e complicada como um pimento, é importante que a fotografia revele uma gama infinita de valores.» «O negativo é a partitura, a impressão das provas é a execução», dissera o próprio fotógrafo servindo-se de uma imagem músical.

William H. Lane, rico industrial de plásticos, foi um dos mais activos defensores da pintura modernista americana. Nos anos 50 começou a reunir uma colecção centrada nas obras de Georgia O'Keeffe, Arthur Dove, Charles Scheeler, Stuart Davis, John Marin e também Franz Kline, a qual veio a tornar-se célebre pelas suas digressões e mais tarde foi parcialmente doada ao Museu de Boston.
Em meados dos anos 60, com assinalável pioneirismo, W. Lane e a mulher, Saundra Baker Lane, passaram a dedicar-se também à fotografia, adquirindo todo o espólio de Charles Scheeler, pintor e fotógrafo «precisionista», e depois, orientados por Ansel Adams, a colecção deixada por Weston aos filhos Chandler, Neil, Brett e Cole, e ao neto Edward (Ted). Com outros acervos, de Imogen Cunningham e Brett Weston, por exemplo, os Lane reuniram uma das maiores colecções privadas de fotografia americana. 

Actualmente, a obra de Weston está partilhada entre a Colecção Lane, depositada no Museum of Fine Arts de Boston, e os Arquivos Edward Weston, do Center for Creative Photography, da Universidade do Arizona, Tucson, onde se conservam os seus negativos e documentos, outras provas de época e as «projects prints», impressas por Brett nos anos 50 sob a supervisão do pai, já então imobilizado pela doença de Parkinson. Ambas as instituições têm produzido as mais importantes iniciativas recentes em torno do fotógrafo de Point Lobos.

A AMÉRICA DE WESTON

A MOSTRA parisiense e o livro vêm na sequência das exposições do Museu de Boston, «Weston's Weston: Portraits and Nudes» e «Weston's Weston: California and the West», de 1990 e 94, respectivamente, e também da retrospectiva «Supreme Instants» que em 1986, por iniciativa do Centro de Tucson e com larga itinerância americana, assinalou o centenário do fotógrafo — recorde-se o artigo de Jorge Calado, «Nova Iorque: as mostras dos mestres», de 31 de Outubro de 1987.
Quanto à monografia, ela reproduz fotografias da Colecção Lane, a partir das provas de época, e dos Arquivos Weston, dos negativos originais, num volume monumental de 368 páginas de textos e imagens, que custa 595 Francos até 31 de Dezembro e 650 a seguir, sendo mais acessível na edição americana de Harry N. Abrahams, Nova Iorque. Tem a ambição da exaustividade e óptima impressão, mas não fará esquecer, certamente, o clássico Edward Weston — His Life and Photographs, «An Aperture Book» com publicação revista e definitiva de 1979, que inclui a biografia crítica estabelecida por Ben Maddow e a reprodução das fotografias no seu formato original, com uma excelência de edição dificilmente igualável.

Com introdução de Gilles Mora, o novo livro inclui ensaios breves mas eruditos de Terence Pitts e Truddy Wilner Stack (director e conservador de Tucson), Theodore E. Stebbins Jr. (Museu de Boston) e Alan Trachrenberg (U. Yale), sobre as diferentes fases da vida e obra de Weston: sucessivamente, as fotografias picturialistas e o primeiro realismo (1911-23); a aventura mexicana (1923-6), também a cargo de Mora; o período do mais clássico formalismo (1927-37), com o significativo título «O apetite de E.W. pelo objectos — os legumes e os nus femininos»; os anos Guggenheim (1937-9), e o último período (1939-48). O projecto editorial é de John e Dorothy Hill e sucede-se ao que G. Mora e John T. Hill dedicaram, em 93, a outro grande fotógrafo americano, Walker Evans. La Soif du Regard ou E.W. The Hungry Eye, distinguido com os Prémios Nadar e Krazna-Krausz Book. 

Quanto à retrospectiva, da responsabilidade de Mora e Pierre Bonhomme, segue a ordenação do livro e, como este, atribui uma importância não secundária à obra tardia de Weston, quando a atribuição das bolsas Guggenheim, em 1937, aos 51 anos, lhe permitiu finalmente encerrar o estúdio de retratista comercial e voltar à estrada para prosseguir a «série épica de fotografias do Oeste».
Com a «pureza» abstracta e sensual das imagens em grande plano de legumes e conchas, isolados como formas esculturais, tal como com os nus e as dunas dados a ver no exacto realismo mecânico do medium com o refinamento máximo das nuances tonais, Weston levou a objectividade do modernismo americano ao seu ponto mais radical. Personificou a «fotografia pura», que logo na década depressiva de 30 se poderia entender como uma direcção formalista, alheada das urgências documentais do tempo.

Mas Edward Weston, que desde o México era um excelente fotógrafo de paisagens e também de espaços urbanos, iria ainda abrir, com as suas explorações do Oeste americano, novas direcções de trabalho que mesmo os seus mais fervorosos admiradores, presos a um estilo codificado, tiveram dificuldade em reconhecer na sua complexidade.

Sem abandonar a perfeição soberbamente controlada das suas «pré-visualizações», as fotografias de viagem, em especial as que realizou para acompanhar a edição de Leaves of Grass, de Walt Whitman, tornaram-se mais receptivas ao efémero e ao acaso dos encontros, procurando menos a forma pura («a substância e a quinta-essência da 'coisa em si'», de 1924) que a descoberta das «mensagens codificadas… que exprimiam a ambiguidade da natureza das coisas», como disse a sua última mulher, Charis Wilson. A obra da maturidade tardia, libertada das exigências comerciais, ganha uma profundidade significativa, de tonalidades mais sombrias, que é também o «retrato» da vida americana, dos anos da guerra e das suas contradições. 

A erosão do tempo e os sinais da morte invadem uma natureza agora cada vez mais desordenada, em paisagens de terra árida e de rochas sem indicações de escala, visíveis como expressão metafórica de si próprio e do mundo, muito diferentes do idealismo romântico de Ansel Adams. «A morte não é um tema, é apenas uma parte da vida, simplesmente», dizia Weston, mas ela está cada vez mais presente, até às últimas e enigmáticas fotos encenadas.
Entretanto, em França, a vaga Weston, apimentada pela relação com Tina Modotti, prolonga-se com a publicação das traduções do Journal Mexicain, 1923-26 (col. Fiction et Co, ed. Seuil) e também das Lettres à Edward Weston, 1922-1931 (Anatolia Editions) da companheira da libertação mexicana, modelo, amante, discípula, e também grande fotógrafa. Mas o centenário da bela italiana celebra-se actualmente com uma exposição no Museu de Filadélfia, com o patrocínio de Madonna — e espera-se que chegue à Europa depois da sua digressão pelos Estados Unidos.

KLEIN, O LIVRO

SE com Edward Weston são as fotografias que importam, isoladas, autónomas e originais, com William Klein o objecto é o livro. O fotógrafo diz mesmo que ao captar uma imagem já «sabia que seria uma página dupla, uma cabeça de capítulo…».
New York 54-55 foi, em 1956, um escândalo fotográfico e tornara-se entretanto um clássico inalcançável, um mito. Finalmente reeditado, em versão revista e aumentada, mantém todo o impacto fotográfico e gráfico (aliás, já cinematográfico) que o tornou um dos livros mais importantes da história da fotografia. Klein acrescentou-lhe agora um prefácio e mais cerca de cem páginas suplementares com dezenas de imagens recuperadas das folhas de contacto iniciais. A publicação fica a dever-se a uma «poole» de seis editores europeus com associados no Japão e nos Estados Unidos. A versão francesa foi lançada por Marval (370 FF), a espanhola por Lunwerg, a inglesa por Dewi Lewis, de Manchester, etc.

Entretanto, a nova edição foi precedida pela primeira exposição americana dedicada às fotografias de New York, com a qual se inaugurou o novo edifício do San Francisco Museum of Modern Art, e elas virão também a Paris, em Setembro de 96, para a inauguração da Casa Europeia da Fotografia. Por enquanto, vê-se na FNAC-Étoile (até 11 Dez.) um

a instalação de documentos, maquetes e fotografias do livro, preechendo todo o espaço disponível da galeria com o mesmo domínio magistral da cacofonia.
Recusado na América e editado em Paris, por Chris Marker, New York foi um soco nas convenções da objectividade fotográfica e no realismo optimista e lírico do pós-guerra. As imagens eram demasiado escuras, desfocadas ou tremidas e o retrato da cidade demasiado caótico, irreverente, negro. Explorando o acaso, o grão, o erro, trabalhando os negativos no laboratório, Klein transgredia os limites e tabus da fotografia e abria novos caminhos. Realizado por um pintor que nascera em Nova Iorque, em 1928, mas que acabava de passar seis anos na Europa, o livro foi visto como uma revolução trazida das artes plásticas à fotografia e disse-se, mais tarde, que antecipou a Pop Arte.

Hoje, o novo prefácio recorda, numa escrita tão ágil como as imagens, cabotina quanto baste, uma história muitas vezes já contada: o «estado de sobre-excitação e a facilidade incrível de fazer fotografias», como se se tratasse de um diário do regresso à sua cidade e um ajuste de contas com a infância de judeu remediado.

 «Percorria as ruas como o Predador 1 armado com a imparável arma secreta: a câmara verdade. O que me siderava, minuto a minuto, é que tudo está lá ao alcance da mão. Tabuleta, chapéu, casaco, rosto, olhar, grupo. Estava tudo no visor. Cá está uma página dupla. Os jornais alinhados num escaparate gritam Gun, Gun, Gun — cabeça de capítulo. Tudo era de uma tal evidência, toda a gente tão disponível. Não me interessavam a ética em voga, a pretensa objectividade, a câmara invisível. Decidi ser visível, intervir e mostrar. Marcas de Brecht, mas também o paparazzi distanciado.»

INVENTAR NÃO-REGRAS

KLEIN não esqueceu as reacções dos editores americanos e queixa-se ainda de ostracismo: «Berk, cuspiam eles, que merda, isto não é Nova Iorque, é demasiado escuro, é só um lado das coisas, a 'zona'.» Mas adiante, numa legenda, recorda que à época já trabalhava para a «Vogue», com um contrato que iria prolongar-se por dez anos, e revela pormenores inéditos. O livro não poderia fazer-se sem financiamento, e foi o director artístico da revista, Alexander Liberman, depois de ter visto alguns trabalhos experimentais, que aceitou o projecto e pagou os materiais e o laboratório, embora depois não tenha publicado a reportagem prevista. A Condé Nast, acrescenta, tinha então uma tradição de mecenato cultural, mas Liberman, por prudência, recusou a ideia de uma dedicatória que deveria ter expresso o agradecimento do fotógrafo.

Com as legendas concentradas na abertura do livro, este vê-se, a seguir, como um filme, sem outras interrupções além da numeração dos capítulos, em algarismos brancos sobre o fundo negro: 1 — Álbum, 2 — Ruas, 3 — 5 & 10 (cêntimos ou «pennies»: «as pessoas no seu universo tipográfico»), 4 — Gun, 5 — I need (inscrições, graffitti), 6 — Funk, 8 — City. Ao mesmo tempo identificação e comentário, já com o recuo permitido pelas décadas que passaram, as legendas têm a tensão explosiva das fotografias. Desde a primeira: «Espectadores do desfile Macy's de Acção de Graças. Cartaz vigarice do sonho americano: polícia italiano, Latino integrado, mãe Yiddische, Afro-Americana de boina… o Melting Pot!»
Noutros casos, Klein vai dando indicações sobre processos e intenções:

«Eu tinha acabado de comprar uma objectiva grande angular e, ao olhar pelo visor, compreendi imediatamente que seria a minha ferramenta de trabalho. Regulada à partida, com ela podia dispensar-me até de levar a máquina ao olho. Atravessava a confusão dos passeios disparando à sorte. Só descobria no dia seguinte o resultado, enquadrado por acaso, ou por instinto. Não interessa, em qualquer caso eu gostava do que a máquina fazia quase sozinha, indiferente às regras da composição, às leis estabelecidas da perspectiva, ao número de ouro e todo esse paleio. Além disso, temos sempre os olhos à mesma altura, reflexos demasiado condicionados, intenções demasiado complicadas. Início do movimento de libertação da câmara.»

De facto, o autor sempre foi o seu crítico mais eloquente e soube sublinhar os riscos e méritos das inovações, em sucessivas entrevistas.

«Ignorando as regras, inventava não-regras para cada ocasião.» «A minha preocupação era pôr alguma coisa na película e ver o que podia fazer com ela no dia seguinte. Reenquadrando, ampliando pequenos pormenores, eliminando tonalidades intermédias, utilizando papel de mais forte contraste». «Photomathon, paparazzi, tablóide, pastiche, arte bruta, anti-foto, para começar. Não estava limitado por uma formação fotográfica ou por tabus e experimentava tudo. Grão, 'flou', desenquadramentos, deformações, acidentes.» «Queria fazer um jornal só para mim. Queria usar a mesma tipografia do 'New York Daily News', esse monstruoso tablóide com os seus scops, escândalos, a visão cromagnonesca da política.»

O modelo europeu de então era o Cartier-Bresson do pós-guerra, que trocara o acaso dos encontros surrealistas pela intencionalidade do testemunho militante. Mas a fotografia americana não era tão disciplinada como Klein a pinta. Walker Evans já fotografara o caos das ruas de Nova Iorque e os passageiros no metro sem olhar pelo visor. Weegee editara Naked City, Lisette Model explorara a indistinção das sombras e a máquina a rasar o chão.
Entretanto, Cage já começara nos 40 a cruzada contra «a vontade de ser artista» e a favor da arte efémera, valorizando o ambiente quotidiano e o jogo gratuito sem outro objectivo senão a «afirmação da vida». Rauschenberg, pintor e fotógrafo, inventara em 1953 as «combine paintings». Só faltava a indisciplina de Klein, o seu falso não-saber e a decisão de fazer um livro cinematográfico — ao mesmo tempo que Robert Frank, vindo da Suíça, fotografava também a sua América e fazia uma revolução paralela.
Depois, Klein fotografou Roma, em 1956, com publicação em 58, a a seguir Moscovo e Tóquio. O seu cinema arrancou em 1958, com Broadway by Light, sobre os anúncios luminosos, tido pelo primeiro filme Pop. E, entre a pintura e a fotografia, «a arte» e a moda ou a publicidade, os filmes e os vídeos, nunca mais parou.

PARR, O BANAL INVISÍVEL

Paris2

Martin Parr, sem título, 1995 (Magnum Photos 1995 / Galerie du Jour Agnès b) foto do convite

MARTIN Parr é um homem da era da televisão, o fotógrafo do consumismo e o seu crítico mais ácido, com uma obra torrencial que explora todos os meios e lugares de circulação. Três novos livros ou catálogos e outras tantas exposições foram, em Outubro, outra forte presença parisiense.

O Centre National de la Photographie, instalado no Hotel Salomon de Rothschield, rue du Berryer, mostrou «Small World», exposição organizada pela Photographer's Gallery, de Londres, com edição francesa prefaciada por Roland Topor: Quel Monde!, «a global photographic project» sobre o mundo dos turistas, realizado entre 1987-1994 (Marval, 1995, 96 págs., 280 FF; ed. inglesa, Dewi Lewis Publishing).
O desenhador e escritor «pânico» apresenta: «O turismo de massas resulta de uma ideologia do consumo, como as cruzadas e as peregrinações eram o fruto da fé religiosa. O destino dos novos cruzados já não é conquista dos Lugares Santos, mas a apropriação dos Lugares Comuns.»

Em salas paralelas expunha-se um inquérito sobre os ingleses e os seus automóveis, levado a cabo, em 1992-3, em conjunto com a rodagem de uma série homónima de cinco filmes com texto e direcção de Nicholas Barker. From A to B — Tales of Modern Motoring, de Martin Parr, é um livro BBC Books, de 1994, e uma exposição que andou em itinerância por 52 áreas de serviço das estradas britânicas.
O projecto é já uma sequela de Signs of the Times — a Portrait of the nation's taste, livro e série de TV que explorou as atitudes inglesas a respeito da decoração doméstica, do bom e mau gosto no lar. Para esta nova produção, 70 automobilistas foram interrogados e filmados pela BBC 2: as mulheres e os carros, carros de serviço, carros familiares, os carros dos filhos e as discussões conjugais. Parr fotografou sempre depois da rodagem dos filmes — a reportagem é encenada, os modelos são actores dos seus próprios papéis — e as imagens são expostas com frases produzidas pelos retratados, por vezes em provas de grande formato.

Paris3

Na inauguração do CNP, segundo relatou o «Le Monde», Cartier-Bresson, colega da Magnum, não conteve o comentário azedo: «Nós pertencemos a dois sistemas solares diferentes. E porque não?»
Autor de um imenso inquérito sobre os modos de vida e os gostos das classes médias, Martin Parr, com a sua câmara 6×7 e o flash usado com luz diurna, que faz explodir as cores e condensar o espaço, nunca é um repórter invisível nem distanciado. O seu olhar é assassino mas também muito próximo das pessoas. Parr está entre os seus, «fascinado pelo quotidiano vulgar».

Ao mesmo tempo, a Galerie du Jour agnès b exibia e publicava os seus últimos trabalhos, sem título. Aqui proliferavam os pequenos formatos com molduras douradas e havia algumas impressões em pratos de porcelana. O Untitled Catalogue surge como uma sequência de fotos de página inteira sem comentário.

É uma nova direcção de trabalho de Parr, com recurso sistemático ao grande plano, enquadramento directo e registo cru das cores, até ao vómito. O tema é a alimentação e em especial a «fast-food»: bolos de cores ácidas, restos de comida, uma colher no feijão, embalagens, o ovo com ketchup, e também um cachimbo pendente de um lábio, um crucifixo sobre um decote masculino, o peru meio trinchado junto ao candeeiro, duas mãos dadas, o pão de plástico, o lixo envernizado, o creme com a cereja. A presença monstruosa dos objectos, o banal invisível.

Martin Parr nasceu em 1952 em Epson, Londres, e vive em Bristol. Os Encontros de Braga mostraram «The Cost of Living», de 1989 (em 91), e «The Last Resort», os ingleses em férias, de 1986 (em 95).
Um crítico entusiasta, Michel Guerrin no «Le Monde», aponta-lhe o pessimismo de Diane Arbus, a atracção de Walker Evans pela cultura vernacular, a faculdade de fazer entrechocar os planos como Lee Friedlander, a facilidade de Garry Winogrand para apanhar as pessoas no turbilhão das ruas, a mesma vontade de Robert Frank de confrontar-se com os temas das fotografias. As melhores referências. Com mais comedimento, pode dizer-se que é o chefe de fila da actual fotografia britânica de reportagem, herdeiro de Bill Brandt e Tony Ray-Jones, contemporâneo de Chris Killip e Nick Waplington.
Diz que «o mundo dos grandes repórteres, das guerras e dos refugiados, não tem nada a ver com aquele em que vivemos»: «Mostro coisas pelas quais os fotógrafos não se interessam, porque lhes parecem evidentes. Mas não são.»
O heroísmo fotográfico não lhe interessa, porque «o mundo é ridículo». «A fotografia é um formidável medium para estabelecer a diferença entre o mito e a realidade.» Mas acrescenta: «A fotografia não é a realidade, mas sim um confronto entre o fotógrafo e os seus assuntos.»

 

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sábado, 15 de julho de 1995

1984, 1995, René Bertholo, índice

 René Bertholo 1984 -

1984 Abril
08 - «O jogo das memórias de René Bertholo», DN
14 - «René Bertholo: num quadro há milhões de histórias», entrevista, «Expresso Revista», 14-IV-84.
14 - «O regresso» (R. Bertholo e os outros), «Esta semana», crónica , DN

«René Bertholo», «Expresso Revista», 7-IV-84  e 21-IV-84.
«René Bertholo», «Expresso Revista», 23-IV-88 e 14-V-88.
«René Bertholo», «Expresso Revista», 23-V-92.

«Anos 60/Anos 90», «Expresso Cartaz», 13-VIII-94.

«Contramundos», «Expresso Cartaz», 15-VII-95. - #
«René Bertholo», «Expresso Cartaz», 17-II-96 e 9-III-96. - #
«A máquina de pintar», «Expresso – Cartaz», 14-XI-98. - #
«René Bertholo», «Expresso Cartaz», 17-X-98. - #

RENÉ BERTHOLO
Palácio Galveias - 17-02- 1996
Depois das últimas exposições no Porto, a pintura de R.B. volta a poder ver-se em Lisboa, por iniciativa da galeria Fernando Santos, numa situação em que a sua obra atravessa algumas renovadas direcções temáticas e construtivas, na sequência da passagem de Paris para o Algarve. Entretanto, é uma abordagem retrospectiva que continuará a aguardar-se, conhecida a originalidade com que a sua obra se inscreveu na corrente da figuração narrativa dos anos 60 e o sólido percurso posterior pelos objectos mecânicos e pelo «retorno» à pintura. Ainda que a sua produção se encontre disseminada por colecções de vários países, o que torna o projecto particularmente complexo para a preguiçosa rotina das instituições, há que pôr à prova a respectiva competência... e também o seu sentido das responsabilidades. 

09-03-1996
Em cada quadro há milhares de histórias, disse R.B. numa velha entrevista. O pintor não as «conta»: oferece-nos, pintura a pintura, a possibilidade de fazer de cada personagem, revisitado ou inédito (os «mal-educados», os marcianos, o coelho de Alice revisto por Dacosta,  a Abelha Maia a filha de Costa Pinheiro, os pássaros-aviões), de cada objecto ou lugar, «reais» ou inventados, o suporte de um jogo infindável de efabulações e reencontros. É um outro universo, de R.B. e nosso, que vamos ganhando, devorador de outros universos de fábula e de história, onde, por exemplo, o feijoeiro mágico é árvore da vida, coluna sem fim e pintura de motivos vegetais — natureza morta ou viva? — como há muito não se via. É de inventividade da pintura que se trata, e R.B., que fragmenta as composições com uma nova eficácia, que experimenta inéditas aplicações da cor (as «quadricomias») e a ampliação da escala das figuras, que retoma com outro fôlego alguns temas já experimentados («o quarto da Torre») e alarga a dimensão imaginária, surreal, da sua obra, está num momento particularmente feliz da sua pintura. A exposição, em últimos dias, reapresenta telas já expostas recentemente no Porto («Cartaz», 15-07-95) e acrescenta novas obras.

René Bertholo
Centro Cultural da Gandarinha, Cascais
17-10-1998
Pinturas recentes, de 1996-98 (e não «mais ou menos recentes», que tem outro sentido no texto de apresentação de Carlos França para o livro editado). A uma primeiro olhar poderia estar-se perante uma simples continuidade de trabalho, reconhecendo-se a retoma de soluções de composição experimentadas (a construção do quadro com dois, três, quatro ou mais espaços repetidos, com referência à estrutura da BD e também a Magritte) ou a presença de personagens e elementos figurativos «já vistos». De facto, a pintura de R.B. atravessa uma «fase» em que o aparente reciclar de materiais explode com uma imprevisível liberdade imaginativa, convocando todas as suas memórias para as reinvestir com mais energia e sentido do risco, no ensaiar de novas situações enigmaticamente narrativas (Malabarismos, O Diabo, a Pára-Quedista, Etc., Plantas Locais). O espaço cenográfico desaparece por completo, ao mesmo tempo que a escala dos personagens aumenta (por exemplo, A Heroína, herdada de O Capuchinho Vermelho?, de 94; Sem Sombra de Dúvida e Oh Céu de Agosto, afastando-se aqui da estratégia da acumulação e do horror ao vazio), ou que as construções em fragmentos sucessivos se interpenetram com uma crescente complexidade. Entretanto, é também a fórmula da «quadricomia» que é radicalizada, usando, no limite, apenas as cores azul e vermelho, numa prática da pintura que se diverte com a redução dos seus meios sem se autolimitar no poder de questionar o quotidiano com a irrupção do sonho. (Até 25)  

sábado, 3 de junho de 1995

1995, MÊS DA FOTOGRAFIA LISBOA (um mês em 1993): Lx 95

 "Lx 95" 

Em 1995, assinalou-se assim a inconstância dos (i)responsáveis

 

Quando se anuncia a edição (anual) do PhotoEspaña que em 2007 é comemorativa do 10º aniversário e quando o LisboaPhoto (bienal) se interrompeu ao cabo de duas edições, é oportuno recordar que o Mês da Fotografia de 1993 (onde é que isso já vai...), que aconteceu em Lisboa e sob a direcção de Sergio Tréfaut, também ficara sem a anunciada continuidade (em 1995). Estamos sempre a começar... mal (à atenção de António Costa!).


Tribuna - EXPRESSO/Cartaz de 03 Junho 1995

EM 1993 as Festas de Lisboa foram também o Mês da Fotografia.
No respectivo catálogo, que foi impresso na Suíça, o vereador Vítor Costa, do Pelouro do Turismo, afirmava então que «numa perspectiva de diversificação e inovação, as Festas procuram lançar um acontecimento que se pretende venha a realizar-se no futuro com uma periodicidade bienal». Palavra de vereador.
Em 1995 não há Mês da Fotografia, tal como já se deixara cair em 1994 o programa de «Arte Pública». Era uma iniciativa polémica com grande visibilidade que tornava patente a dificuldade camarária de estabelecer com a arte — a intervenção dos artistas no espaço público, a escultura urbana e a decoração — uma relação que não fosse apenas efémera e instrumental.

A perspectiva da continuidade, que poderia consolidar este período das celebrações tradicionais dos Santos Populares numa dimensão inovadora de festival urbano de base social alargada, articulando diferentes modos de viver a cidade e a cultura (não apenas como estratégia de «animação»), foi sendo sacrificada à falta de memória que convém a cada circunstância. Afinal, 1993 era ano de eleições; em 1995 está-se apenas a meio do mandato. E foi por acaso — a vida cultural portuguesa vive de acasos e de boas vontades — que surgiu o programa da Associação Saldanha, «Mistérios de Lisboa, Monumental 95», a assegurar a necessária marca cosmopolita das Festas e a possibilidade de se enunciar outra nova «perspectiva de diversificação e inovação». Com a retórica sempre fácil dos políticos, Vítor Costa pode dizer dos festejos de 95 que «este programa procura compatibilizar o carácter efémero que caracteriza a Festa, momento de excepção por excelência, e a indispensável continuidade cultural»...

Sabe-se que na sua primeira e única edição o Mês da Fotografia surgiu marcado por um gigantismo de programação que veio a resultar em diversos incumprimentos de calendário e também em custos globais que excederam muito as previsões iniciais.
No entanto, o programa idealizado por Sérgio Tréfaut confirmou a eficácia da fotografia como terreno de cruzamento de inúmeros interesses, movimentou um público muito significativo e articulou à volta de um mesmo projecto uma rede de agentes que iam dos equipamentos estatais às galerias de arte privadas. Foi capaz de inaugurar o CCB com uma grande exposição de Sebastião Salgado e apresentou retrospectivas com uma qualidade pouco habitual entre nós, como as de Robert Doisneau e Tony Ray-Jones no Convento do Beato.
No final de 1994, o mesmo comissário apresentou à CML um novo projecto de programação, possivelmente com níveis de ambição e custos também excessivos para o orçamento municipal. Mas, em vez de negociar esse programa ou de impor outro modelo de organização, Vítor Costa optou por esquecer o que tinha escrito em 1993: «Estou certo de que o sucesso deste primeiro Mês da Fotografia criará as condições necessárias para a sua consagração.»

A questão da fotografia, porém, é apenas um sintoma muito particular numa gestão camarária em que o preço da balcanização é demasiado gritante. As «novas Festas» pretendem revestir-se de uma componente cultural, mas a sua organização depende exclusivamente do Pelouro do Turismo; com o Pelouro da Cultura a jogar noutro campeonato (qual?), o S. Luiz e o Maria Matos acolhem espectáculos diversos e abrem-se as portas do Teatro Taborda restaurado, mas as galerias da Câmara (o Palácio Galveias, a Mitra, a Sala do Risco...) e a Videoteca, a Casa Fernando Pessoa, etc, estão alheadas da programação, mesmo quando se encontrem em actividade.
Se é absurdo que as Festas de Lisboa não possam voltar, depois da experiência feliz da «capital cultural», a envolver em projectos comuns as instituições do poder central sediadas na cidade, ultrapassando-se a guerrilha entre Governo e oposição que a política partidária impõe, numa lógica primária de instrumentalização do aparelho de Estado, muito mais grave é a transferência para o interior de um mesmo executivo municipal dos mesmos jogos de pequena política.

Veneza 1995: Pedro Cabrita Reis, José Pedro Croft e Rui Chafes / Jean Clair (I)

 Portugal regressou à Bienal de Veneza em 1995 (depois de uma pausa desde 1988), com Pedro Cabrita Reis, José Pedro Croft e Rui Chafes, apresentados pelo comissário José Monterroso Teixeira, então director do Centro de Exposições do CCB - ao tempo da SEC de Santana Lopes.

Por essa altura, já Álvaro Siza fora indigitado para projectar um falado pavilhão de Portugal nos Giardini, mas nunca chegou a ser disponibilizado espaço para a construção. Álvaro Siza voltaria a ser "anunciado" em 1997 e em anos seguintes.
Nesse mesmo ano de 1995 chegou a ser convidada Paula Rego, que terá preferido aguardar por uma situação mais sólida e pelo pavilhão de Siza.

Também em 1995 João Fernandes foi o comissário nacional na 1ª Bienal de Joanesburgo.


"Três em Veneza"

Expresso/Cartaz de 03-06-95 - II

Pedro Cabrita Reis, José Pedro Croft e Rui Chafes

Portugal volta a estar presente na Bienal de Veneza — que se inaugura no próximo dia 11 —, depois de uma ausência que se arrastava desde 1988. A falta de um pavilhão próprio, que numa primeira fase pareceu comprometer ainda a possibilidade da participação nacional, acabou por ser resolvida com o aluguer de uma galeria de exposições situada na Praça de São Marcos, que se manterá aberta durante os dois primeiros meses da Bienal (a decorrer até 10 de Outubro).
Os escultores Pedro Cabrita Reis, José Pedro Croft e Rui Chafes foram os artistas escolhidos para integrarem a representação portuguesa, de que é comissário José de Monterroso Teixeira, também director do Centro de Exposições do Centro Cultural de Belém. Trata-se de uma selecção que merecerá certamente um alargado consenso, uma vez que as obras dos três artistas têm assegurado um notório dinamismo recente da escultura portuguesa e já conquistaram significativos níveis de circulação e reconhecimento internacional. Sabe-se, porém, que numa primeira fase foi ensaiada a hipótese de um convite a Paula Rego — que, aliás, já representou a Grã-Bretanha na Bienal de São Paulo —, acabando os artistas depois escolhidos por terem um papel activo no encontro da referida galeria.

A comparência de Portugal na Bienal de Veneza, que partilha com a Documenta de Kassel (de quatro em quatro anos) a máxima notoriedade entre as grandes manifestações artísticas mundiais, é entendida como uma condição indispensável para assegurar uma plena visibilidade internacional dos artistas portugueses. No entanto, essa participação não ficará condignamente assegurada sem a construção de um pavilhão próprio na área dos Giardini di Castello.

Já em 1994, a SEC convidou Siza Vieira para vir a ser o autor do projecto desse pavilhão, para o qual, no entanto, não está ainda atribuida uma localização precisa, condição prévia para o seu estudo arquitectónico. Será um investimento de grande vulto, cuja hipótese de concretização, ainda algo nebulosa, terá de ser equacionada nos próximos orçamentos do Estado...

Note-se que foi sempre precária a presença portuguesa na Bienal de Veneza, que este ano comemora um século de existência. Depois de participações esporádicas em 1950 e 1960, que colocaram sempre em confronto o regime político anterior com a generalidade dos artistas plásticos, Portugal esteve presente em 1976, 1978, 1980, 1982, 1984 e 1986, podendo dispor nas primeiras edições do Pavilhão Alvar Aalto, libertado pela Finlândia, que decidira juntar-se aos outros países nórdicos.
Para a edição do centenário, a Bienal foi confiada pela primeira vez a um director não italiano, o francês Jean Clair, crítico e director do Museu Picasso. A grande atracção deste ano será a gigantesca exposição, realizada em colaboração com o Palácio Grassi, da Fundação Fiat,  em que Jean Clair que se propõe reexaminar a arte do século XX sob o ângulo da representação do corpo humano.

"Veneza e Joanesburgo: bienais"

Expresso/Cartaz de 18-02-95 - I

Portugal não deverá estar presente na próxima edição da Bienal de Veneza, que se inaugura a 11 de Junho festejando o seu centenário. Depois de uma interrupção de quatro anos da participação nacional, Santana Lopes nomeara no início de 1994 José Monterroso Teixeira, director do Módulo de Exposições do Centro Cultural de Belém, para comissariar a representação deste ano e para desenvolver o projecto de construção de um pavilhão nacional permanente em Veneza.
No entanto, a Bienal acabaria por comunicar «a impossibilidade de conceder espaços expositivos adequados às necessidades de todos os países que não dispõem de pavilhão permanente», segundo os termos da resposta oficial à candidatura portuguesa.
As participações <nos Giardini> ficariam assim reduzidas a 29 países.

Entretanto, terá surgido nos últimos dias uma tentativa de solução de compromisso com os países não admitidos, através da procura de espaços alternativos em colaboração com a Comuna de Veneza, eventualmente nos antigos armazéns de sal, as Zattere, que a Bienal costuma também ocupar. Segundo José Teixeira, «estão a ser desenvolvidos esforços diplomáticos e outros 'lobbings' para acolher as obras de artistas de países sem pavilhão».

Por outro lado, Siza Vieira foi já escolhido para realizar o projecto do pavilhão português na área da Bienal, os Giardini. Aceite o convite, o arquitecto aguarda «a afectação do espaço pelas autoridades venezianas» para iniciar o seu estudo.

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Enquanto se aguarda uma informação final sobre a ida a Veneza, foi ontem apresentado no Museu do Chiado o projecto da representação nacional na 1ª Bienal Internacional de Joanesburgo, que se inaugura já no dia 28. Por iniciativa do Instituto Português de Museus, a quem compete agora a responsabilidade da divulgação da arte portuguesa, foi nomeado comissário para esta exposição o director das Jornadas de Arte Contemporânea do Porto, João Fernandes, que seleccionou obras de Ana Jotta, Ângela Ferreira, Luís Campos e Roger Meintjes, um sul-africano radicado em Portugal. A representação terá o apoio do Ministério dos Negócios Estrangeiros, Instituto Camões, Fundação Gulbenkian, Banif e Fundação Horácio Roque.

Na África do Sul deverão estar presentes artistas de cerca de 60 países, numa bienal que definiu a sua orientação segundo dois temas: «Alianças voláteis», sobre «as diferenças culturais e a marginalização por motivos de sexo, raça, nacionalismo, religião, etc»; e «Descolonizando as ideias», sobre «a identidade e os efeitos da colonização nas comunidades culturais através do mundo».

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Em Veneza, por seu turno, o tema «Identidade e Alteridade» presidirá a uma grande exposição retrospectiva sobre a representação do corpo e em especial sobre o retrato ao longo do século XX — desde Degas, Rodin e Thomas Eakins (1895/1905: «a era do positivismo»), até Lucian Freud, Auerbach, Bill Viola, Bruce Nauman, Louise Bourgeois, Helmut Newton, Mapplethorpe, Andres Serrano e outros (1980/1995). O projecto é da autoria do comissário geral da Bienal, que pela primeira vez não é um italiano: Gérard Régnier, director do Museu Picasso e crítico de arte sob o nome de Jean Clair.

Trata-se, certamente, de uma das figuras mais polémicas do universo da arte contemporânea, e a mais odiada desde que publicou em 1983 o livro-manifesto "Considérations sur l'état des beaux-arts. Critique de la modernité" («Les Éssais», Gallimard). Especialista em Duchamp (foi o responsável pela sua retrospectiva que inaugurou o Centro Compidou), comissário de «Viena 1900» e da recente «L'Âme au corps», Jean Clair conseguiu fazer aceitar pela Bienal, por ocasião do seu centenário, o projecto de uma exposição gigantesca de mais de 400 obras, dividida pelo Palazzo Grassi, cedido pela Fiat, e pelo pavilhão central dos Giardini, a qual se substituiu às diversas actividades paralelas incluidas no programa habitual, nomeadamento à secção «Aperto», dedicada a jovens artistas.
A exposição apresenta-se como uma «história da arte do nosso século em oito capítulos», equacionada em relação com os progressos da ciência e com a evolução da noção de identidade pessoal (comemorando os cem anos da introdução do bilhete de identidade) e também social, de classe, de nação e de origem étnica. «A história do rosto humano» e «a fatalidade da anatomia na era da modernidade» são dois subtítulos do projecto, em que colaboraram Hans Belting, Gabriella Belli, Maurizio Calvesi, Gillo Dorfles e Giulio Macchi.
Nas representações nacionais, a Espanha far-se-á representar por Eduardo Arroyo e pelo escultor Andreu Alfaro (Valência, 1927), enquanto Jean Clair também seleccionou López Garcia e Saura. A França (através de Catherine Millet) designou César, que realizará uma obra projectada em 1960; a Grã-Bretanha, o pintor Leon Kossoff; os Estados Unidos, o video-artista Bill Viola; a Grécia, Lucas Samaras, de carreira americana; a Alemanha, Katharina Fritch, Martin Honnert e Thomas Ruff; a Suiça, a dupla Peter Fieschli e David Weiss.
A Bienal, que decorrerá até 15 de Outubro, inclui também uma grande mostra de arquitectura, dirigida por Hans Holein.

sábado, 28 de janeiro de 1995

Brasil, 1995, CCB, "O Brasil dos Viajantes"

Mosaico brasileiro 

Expresso 28-01-95 


# O BRASIL DOS VIAJANTES

# LÚCIO COSTA

# RUY OHTAKE

# MÁRIO CRAVO NETO

# COLECÇÃO PIRELLI-MASP

Centro Cultural de Belém


Se se queria provar que depois da Capital Cultural o CCB não ficaria de paredes nuas, a abertura simultânea de cinco exposições vindas do Brasil, ontem, e a inauguração, na próxima terça-feira, de «A Pintura Maneirista em Portugal», organizada pela Comissão dos Descobrimentos e antes prevista para o Palácio da Ajuda, constitui uma aposta ganhadora.  

Mas, na sua diversidade temática e na variável ambição dos respectivos projectos, o presente «pacote brasileiro», talvez mais do uma solução de programação, parece também significar o estabelecimento de uma ponte entre o centro lisboeta e os grandes Museus de Arte Moderna de São Paulo (MASP) e do Rio de Janeiro (MAM), que importaria ver continuada nos dois sentidos.

À frente deste progama múltiplo, a exposição «O Brasil dos Viajantes» é o resultado de um ambicioso projecto de revisão e de síntese do que foi, desde a «descoberta» até ao século XIX, a visão europeia sobre o continente sul-americano. Numa montagem cenográfica de grande efeito, do arquitecto Haron Cohen, contando com recursos mecenáticos invulgares, Ana Maria Belluzzo, da Faculdade de Arquitectura e Urbanismo da Universidade de S. Paulo, apresenta um exaustivo levantamento histórico das representações iconográficas produzidas por observadores que se sucederam no tempo com diferentes abordagens ideológicas, científicas e artísticas . 

O olhar sobre o outro (o selvagem e a natureza virgem) é aqui devolvido como num espelho, fazendo regressar da observação do que é descoberto para a identidade de descobridor, enquanto sistema de leitura e código de representação. Dos iniciais testemunhos escritos portugueses (Caminha), e da imediata caracterização da alternativa entre o mau e o bom selvagem (O Inferno, do MNAA, e Adoração dos Magos, do Museu Grão Vasco), passar-se-á em seguida a uma galeria internacional de descrições edílicas ou antropofágicas que antecedem as posteriores atitudes «philosophicas» e naturalistas dos séculos XVIII e XIX, até ao romantismo paisagístico da pintura do século XIX. Reunindo livros e ilustrações, tapeçarias e pinturas, encenando um «Gabinete de Curiosidades» ou abrindo espaços à cartografia e aos tratados de História Natural, esta é uma viagem erudita e empolgante que vem complementar utilmente outras redescobertas do Brasil que têm privilegiado o olhar antropológico sobre o passado colonial.

As outras exposições mantêm a fidelidade do CCB à arquitectura e à fotografia, direcções onde as opções podem ter sido por vezes discutíveis mas que procuram preencher espaços vazíos da programação institucional.   

«A presença de Lúcio Costa» é uma exposição documental sobre «a vida e a obra» do urbanista de Brasília, vinda do Paço Imperial do Rio de Janeiro. À breve apresentação da sua figura maior no quadro  do modernismo arquitectónico do Brasil, lugar que partilhou com Niemeyer, segue-se «A  Arquitectura de Ruy Ohtake», um nome afirmado nos anos 60 e hoje proposto como exemplo do que poderá ser, talvez, um genuíno pós-modernismo brasileiro. 

Quanto à fotografia, o CCB acolhe uma antologia da obra de Mário Cravo Neto e a colecção Pirelli-MASP. O primeiro é um grande fotógrafo brasileiro com circulação internacional (a galeria Módulo já lhe dedicara em 1993 uma exposição individual), cuja obra recente encena enquanto criação escultórica (a pose figurativa modelada pela luz num espaço vazio e negro, em permanentes formatos quadrados de grande qualidade superficial) a visão antropológica de um universo cultural marcado pelos rituais da afirmação do corpo e do domínio das forças do desconhecido.

A exposição colectiva faz uma abordagem parcial ao acervo fotográfico do MASP, iniciado há cinco anos com o apoio da empresa Pirelli. Centrada sobre a criação contemporânea, com algumas contribuições dos anos 50, como as de Geraldo Barros ou Pierre Verger, a mostra é a apresentação de um desígnio em curso; não um levantamento estruturado e exaustivo, mas o panorama aleatório de um recente coleccionismo, onde Sebastião Salgado e, outra vez, Mário Cravo Neto ombreiam com numerosos nomes até agora desconhecidos.