sábado, 24 de maio de 2003

2003 LisboaPhoto - Expresso/Cartaz, Sternfeld

 

LisboaPhoto 2003 - I, II, III, Expresso/Cartaz

Em 2003, e de novo em 2005, Lisboa teve o seu mês da fotografia, o LisboaPhoto. Em 2007, a bienal desapareceu ou interrompeu-se (?), sem explicações públicas que se tenham ouvido, ou que se aceitem. Em 1993 já tinha havido um primeiro Mês da Fotografia dirigido por Sérfio Tréfaut, que ficou sem continuidade (mas o Arquivo Fotográfico de Lisboa abriu no ano seguinte, 1994).

A história repete-se: 1993. 2003-2005. E depois?

Entretanto o PhotoEspaña continua

I "Fotografias pela cidade" . 24-05-2003

II "Retratos da América".  07-06-2003

III "Visões da cidade". 14-06-2003

          


#

I "Fotografias pela cidade", Expresso/Cartaz pp. 46-47

LisboaPhoto, primeira edição da bienal de fotografia promovida pela CML, vai apresentar 22 exposições em torno de questões urbanas

Como Madrid, Barcelona, Paris e outras cidades, Lisboa vai ter o seu mês da fotografia. Ou vai voltar a ter, depois da falsa partida de 1993, que, como diz o comissário do 1º LisboaPhoto, Sérgio Mah, deixou uma marca indiscutível «no imaginário da oferta cultural da cidade». Entretanto, Coimbra e Braga perderam ou interromperam os seus Encontros, que tiveram um papel central na divulgação da fotografia…

O projecto esta semana apresentado por José Monterroso Teixeira, director municipal de Cultura, terá um formato de Bienal e potencia a actividade regular do Arquivo Fotográfico de Lisboa, articulando-a com outros espaços institucionais da cidade num programa diversificado. A inclusão do Pavilhão de Portugal tem um declarado papel de alerta e de pressão no sentido da definição de uma vocação de índole cultural para o edifício (aí ficará o Museu Berardo?).

Com a adopção de uma linha temática em torno da cidade e questões urbanas, coroada por um título – «Passagens» - que alude ao filósofo marxista alemão Walter Benjamin (1892-1940), o programa, sustentado por uma verba da CML de 400 mil euros, compreende um núcleo central de 14 exposições e mais oito apresentadas por entidades convidadas a aderir ao projecto. A abertura ao vídeo e ao cinema, a confluência com o que se designa como arte contemporânea (o que refere mais questões de estilo e circulação institucional que de cronologia) e a acentuação da dimensão teórica na relação com as imagens são outras das regras seguidas por Sérgio Mah, professor na Universidade Nova e no Ar.Co.

É o que vai verificar-se na mostra colectiva «Arquivo e Simulação», com que o programa se inícia no CCB (dia 29), «visando a reflexão sobre a natureza e cultura da fotografia – nas suas dimensões estéticas, perceptivas e especulativas – no actual panorama de combinação e contaminação com outros dispositivos de imagem». Entre 15 autores encontram-se Francis Alÿs, Sophie Calle, Thomas Demand, Lorca diCorcia, Pierre Huyghe, Beat Streuli, Frank Thiel e os portugueses Daniel Blaufuks, Alexandre Estrela, Augusto Alves da Silva e João Tabarra. Também no CCB será apresentado Chris Marker, com o filme La Jettée (1962) e o CD-ROM Immemory.
Na Cordoaria (dia 29) ver-se-á uma selecção das grandes paisagens norte-americanas de Joel Sternfeld, «American Prospects», realizadas a cores desde os anos 70, e também retratos recentes da série «Stranger Passing». Outra mostra é dedicada a fotografias e vídeos do teórico e artista conceptual inglês Victor Burgin. A componente histórica do programa inicia-se (dia 31) na Galeria D. Luis do Palácio da Ajuda com «O Mundo de Weegee», antologia do famoso fotógrafo das ruas de Nova Iorque, nos anos 30 e 40, vinda do Internacional Center of Phtography.
Já em Junho, o Pavilhão de Portugal abre dia 4 com outras tantas esposições: de Hiroshi Sugimoto, que já foi visto no CCB, chegam as imagens desfocadas de ícones da arquitectura do séc. XX, e o brasileiro Arthur Omar mostra «Antropologia da Face Gloriosa», dezenas de  rostos fotografados durante o Carnaval do Rio ao longo dos anos, a que se juntam um vídeo de Gilberto Reis e trabalhos recentes de Daniel Malhão e Nuno Ribeiro.
A Galeria da Mitra apresentará fotografias de Lagos (Nigéria) realizadas pelo holandês Edgar Cleijne, na sequência de um projecto dirigido por Rem Koolhaas, e o Oceanário 25 imagens de Luís Pavão de "Lisboa em Vésperas do Terceiro Milénio" (ed. Assírio e Alvim). O Arquivo mostrará em estreia parte da Colecção de Ferreira da Cunha, incluindo alguns pioneiros da reportagem fotográfica em Portugal, e, no Convento das Bernardas, a primeira retrospectiva de Eduardo Portugal, que fotografou Lisboa nas décadas de 30 a 50. Por último, o Museu do Chiado vai expor uma antologia vinda do Centro Pompidou do fotógrafo e cineasta Eli Lotar (1905-1969), francês de origem romena que colaborou com as revistas «Documents» e «Minotaure».
O programa (a consultar em www.lisboaphoto.pt) prolonga-se com participações das escolas Ar.Co e Maumaus, do Instituto Franco-Português e das galerias Cristina Guerra, Luís Serpa, Lisboa 20, Baginski e Promontório Arquitectos.

#

LisboaPhoto 2003 - II

"Retratos da América" (Weegee e Sternfeld)

in Expresso/Cartaz 07-06-2003

Dois fotógrafos dominam o programa do LisboaPhoto, o histórico Weegee e o contemporâneo Joel Sternfeld

As paisagens americanas de Joel Sternfeld expunham-se em grandes provas de 40,7 por 50,8 centímetros e eram fascinantes no seu registo distanciado de infinitos pormenores, e na tranquila suavidade das cores em que se distinguiam as diferenças de luminosidade dos lugares e das estações. Agora surgem em enormes ampliações de 122 por 152,4 cm (em edições de dez exemplares) e ganharam ainda melhores condições de visibilidade no novo formato permitido pelas tecnologias digitais de impressão.
O olhar, e também o corpo, deambula por estas imagens de inexcedível clareza, percorrendo a paisagem, os seus objectos e habitantes, num lento exercício de descoberta onde o realismo mais banal se encontra com o humor e a estranheza. Não podia ser mais cruel o contraste com os quadros fotográficos da exposição no CCB, onde a grande dimensão (e a unicidade ou escassez das provas) é quase sempre e só uma imposição do mercado e uma cedência à cegueira dos espectadores e às convenções estéticas da pintura (académica).

Com a mostra de Sternfeld no espaço amplo da Cordoaria, desiquilibra-se a colectiva central da LisboaPhoto como uma monótona acumulação de retóricas estereotipadas ou vulgarmente pretenciosas. É ele quem leva mais longe a ambiguidade da fotografia como uma arte da percepção em que se conjugam e enfrentam o registo e a construção da imagem, o documento e a visão subjectiva, a informação e o indizível, explorando ao mesmo tempo o mundo real e as condições ou contradições da reflexão sobre a apreensão fotográfica. Os artistas reunidos no CCB, encenadores ou cultores do instantâneo em forma de quadro, parecem, nos melhores casos, executar exercícios escolares inspirados pela sua obra. É o que sucede com os episódios cinematográficos de Gregory Crewdson, cujo sentido se esgota na compreensão da estratégia de produção, ou os transeuntes fotografados por Philip-Lorca diCorcia, que nada acrescentam às suas séries anteriores. Com ressalva do trabalho de Frank Thiel sobre a renovação arquitectónica de Berlim, onde a interpretação documental e a construção plástica são também uma radical reflexão empírica sobre a monumentalidade objectual permitida pelos recentes meios técnicos da fotografia (a sua maior prova, de quase cinco metros de comprimento, não é uma proeza vã).

Joel Sternfeld é um artista contemporâneo e os 65 retratos da série «Stranger Passing», de que se expõem 14 peças, foram pela primeira vez reunidos em 2001 no Museu de Arte Moderna de São Francisco. Realizados ao longo dos últimos 15 anos, em grande parte muito recentes, respondem a numerosas obras que desde os anos 70 pretenderam ilustrar a desvalorização ou a impossibilidade do retrato realista através das estatégias da encenação, da apropriação ou da hiper-objectividade de rostos anonimamente vulgares, com que se justificaram projectos neo-conceptuais, neo-picturialistas, simulacionistas, etc, que abastecem o mercado institucional e ocupam a reflexão teórica académica (o «adeus à fotografia» de Victor Burgin, «a batalha contra a fotografia» de Jeff Wall, de que este se autocriticou depois de se confessar derrotado).
São os retratos de Sternfeld que situam a mais extrema actualidade e que estabelecem os padrões de avaliação crítica mais exigente da produção fotográfica contemporânea, actualizando com personagens de hoje e meios técnicos actuais uma tradição viva, que nunca se congelou numa lógica modernista fechada à mudança. August Sander é uma referência citada a propósito destes retratos integrados na paisagem urbana ou rural, que de certo modo também se podem ver como um inventário de tipos. No entanto, estes personagens desafiam, de facto, a possibilidade da sua categorização como representantes de classes, raças e profissões, mantendo sempre uma ambiguidade essencial àcerca da sua identidade individual e da natureza da representação fotográfica.

Os ténis vermelhos do velho homeless negro de Nova Iorque, cujo olhar nos interpela frontalmente, distinguem-no individualmente, tal como as marcas de uma inacessível vida pessoal que esculpem a dureza do rosto da mulher a vender os jornais de domingo numa estrada do Colorado. Uma outra ambiguidade essencial reside nas expressões de surpresa ou súbita rejeição face à câmara que são visíveis nos rostos do bancário que almoça na esplanada ou do advogado surpreendido a comprar o jornal, segurando a roupa para a lavandaria. Não se tratando de instantâneos furtivos nem de actores encenados, e não existem informações sobre os métodos de trabalho, têm de supor-se a disponibilidade do fotógrafo para o acaso da fotografia de rua e excepcionais aptidões de empatia, que se adivinha na frontalidade e reciprocidade dos olhares. Retratos como os da mulher que brinca com a filha (Tres Orejas, Novo México) ou o casal de finalistas vestidos para a festa no Hilton (San Antonio, Texas) transbordam de uma energia  exaltante, que se constitui como uma visão do mundo, uma poética e uma crítica.
Sternfeld, nascido em 1944, fotógrafo «freelance» desde 1966, professor desde 1971, reunira a série das suas paisagens em 1987, exercendo uma grande influência no uso da cor documental por fotógrafos mais jovens. Americans Prospects era o trabalho de nove anos de viagens de carro através da América, com que retomava a ambição dos grandes itinerários de Walker Evans e Robert Frank, renovando uma tradição que entretanto se alargara com os fotógrafos da paisagem social (Diane Arbus, Bruce Davidson, Lee Freedlader e Garry Wininogrand) e com a «New Color» de Stephen Shore, Joel Meyrowitz e William Egglston. Tudo isso foi muito pouco visto em Portugal.
Outro dos marcos da tradição documental é Weegee, de quem se apresenta uma retrospectiva itinerante do International Center of Photography de Nova Iorque. Usher Fellig, depois Arthur Fellig, nasceu em 1899 na Áustria (hoje, Ucrânia), numa família judia, e chegou aos dez anos a Nova Iorque; aos 14 arranjou o primeiro emprego na fotografia comercial, tornando-se depois impressor e foto-repórter. A sua obra é um dos exemplos de como a fotografia americana se construiu num diálogo permanente entre o realismo vernacular e a intenção artística.
Entre 1935 e 1947, Weegee construiu como «freelance» um vasto panorama da vida urbana e popular de Nova Iorque, especializando-se em imagens de crimes violentos e desastres, da suas vítimas e espectadores, notáveis pela expontaneidade e a crueza do seu voyeurismo. Trabalhando quase sempre de noite, com a clássica Speed Graphic dotada de um potente flash, tornou-se famoso também pela rapidez com que acorria aos lugares dos acidentes e seguia com os seus «scoops» para as primeiras edições dos jornais. Dormia ao lado de um rádio sintonizado na frequência da polícia e circulava com outro no carro, levando no porta-bagagens todo o equipamento de revelação e impressão, a máquina de escrever e a caixa dos charutos.
Notável era igualmente o sentido de auto-promoção com que carimbava as fotografias com o crédito «Weegee o Famoso». A partir de 1940 começou a publicar foto-histórias no vespertino progressista «PM» e em 41 a Photo League dedicou-lhe a exposição «Weegee: Murder is My Business», a que se seguiu em 43 a compra de fotografias pelo MoMA (exposição «Action Photography»). Depois do enorme êxito do livro Naked City, em 1945, transferiu-se para Hollywood, onde trabalhou como actor e consultor de filmes, fixando o estereótipo do fotógrafo-detective, mas decaiu como autor. Usem-se com prudência os textos do catálogo, onde escasseiam as informações e sobram especulações deste género: «Endereçar a democracia da fotografia como um médium modernista é uma posição mais típica da Europa que da América… »
Joel Sterfeld / O Mundo de Weegee
Cordoaria e Palácio da Ajuda

#

LisboaPhoto 2003 - III

"Visões da cidade" Expresso/Cartaz 14-06-2003

Lisboa em três exposições e um pequeno salto a Paris (com Eli Lotar)

Um dos principais méritos da LisboaPhoto é a abertura da programação, onde a par da arte contemporânea que utiliza a fotografia e o vídeo, vulgarizando novas aquisições técnicas, se incluem práticas funcionais da fotografia como o fotojornalismo e a actividade documental e topográfica.
Com o museu e a galeria, em que se estabelece o reconhecimento histórico (Weegee e Eli Lotar) e se propõe o contemporâneo como género específico ou nova categorização essencialista, concorre o espaço incerto do arquivo, no qual se suspende a atribuição prévia de uma natureza artística dos objectos. Essa contiguidade é positiva para se entender a ambiguidade do medium fotográfico. Quando qualquer coisa pode ser arte, as distinções que importam dizem respeito à atenção que as imagens despertam e aos sentidos e prazeres que asseguram.

Aliás, o próprio projecto da bienal veio afirmar com nitidez a importância do arquivo – e concretamento, do Arquivo Fotográfico Municipal – como parceiro e instituição âncora do programa, potenciando uma das raras situações de continuidade de uma missão que tem sido sacrificada noutros casos.
Com o curto tempo de preparação que teve a LisboaPhoto, o Arquivo optou por apresentar trabalhos que tinha em curso sobre dois espólios entrados nos seus depósitos. Por sinal, o de Eduardo Portugal foi o primeiro que recebeu, em 1991, por ocasião da passagem para as instalações na Rua da Palma, inauguradas em 94, e o espólio de Ferreira da Cunha é o mais recente, doado em Junho de 2000 pela Sojornal, depois de ter sido adquirida pela empresa de «A Capital».

Fotógrafo do «Diario de Notícias» até à sua morte em 1970, depois de ter trabalhado desde meados dos anos 20 em «O Século» e outras publicações, Ferreira da Cunha foi também um coleccionador. O seu acervo de 2270 negativos em chapas de vidro de formato 9x12 cm (de que são expostas 84 provas muito bem impressas no AFM, havendo mais cem incluídas no catálogo e um total de 800 consultáveis na base de dados) é consagrado ao fotojornalismo da primeira metade do séc. XX, contando nomeadamente com trabalhos de Joshua Benoliel, para a «Ilustração Portuguesa» no período de 1906 a 1918. Neles se vinca o papel pioneiro da sua prática do instantâneo de rua e o interesse pela efervescência do quotidiano e os rostos anónimos, que influenciou os foto-repórteres seus contemporâneos e posteriores.

Da agitação dos anos da República à ordem pesada do Estado Novo, a mostra reúne uma importante galeria de retratos informais, de Afonso Costa a Carmona, e a Salazar – vejam-se o encontro de ambos em 1934, a sessão fotográfica de Carmona com Judha Benoliel e Leitão de Barros, e Salazar recebendo informações da revolta militar de 1931. A sequência é cronologicamente disposta com agilidade, em vários formatos, acompanhando as convulsões da política com os «fait-divers» da vida urbana e social, num panorama em que a memória histórica se preenche de acontecimentos e figuras humanas. 
No renovado Convento das Bernardas, um lugar a descobrir, apresenta-se Eduardo Portugal, cujo nome se manteve quase ignorado apesar da vastíssima produção entre as décadas de 30 e 50. É um caso raro dum espólio integralmente conservado, oferecido pela família, com cerca de 30 mil negativos, contactos, provas ampliadas (também de outros autores), postais, 170 álbuns e registos pessoais, que se encontram ainda em grande parte por estudar.
Em vez de uma síntese apressada da respectiva carreira, optou-se por dedicar a exposição às fotografias em que documentou as transformações urbanísticas de Lisboa (entre 1928 e 1954), acompanhando em especial os anos decisivos de Duarte Pacheco (1932-43). Organizada, com as suas provas de contacto (9 x 15 cm), em três itinerários topográficos que no catálogo a publicar são objecto da leitura histórica de Ana Tostões, a mostra apresenta-nos uma prática rigorosa da cartografia fotográfica, que se destinou à edição de postais, roteiros turísticos, publicações de olisipógrafos e outras, para além das encomendas que realizou para a Câmara.
Evitando selecções que poderiam inventar um autor-artista através da concentração em alguns temas ou tipos de imagens (lugares pitorescos dos bairros populares, espaços de amplas perspectivas quase desérticas, séries «conceptuais» de candeeiros de rua, etc), a mostra segue a competente neutralidade com que Eduardo Portugal faz o inventário dos lugares, antecipando-se às alterações da paisagem urbana, regista as demolições de núcleos antigos ou o rasgar das quintas periféricas, e acompanha com minúcia a construção da nova cidade.
Outras mostras virão depois a avaliar a obra realizada com ambição artística, nos primeiros anos de actividade (de 1918 até 1928-30), de que se divulgam no catálogo e em vitrinas alguns exemplos com marcas picturialistas, e também os seus retratos e temas etnográficos. Entretanto são as imagens de Lisboa que ficam disponíveis, ampliando a paisagem urbana e oferecendo-se a várias direcções de investigação.

É sensivelmente na mesma data em que Eduardo Portugal troca a «fotografia de arte» pela objectividade documental que tem início a actividade parisiense de Eli Lotar (1905-1969), sintonizada com o crescimento da grande imprensa ilustrada. Trata-se aqui de uma muito diferente prática do documento, fortemente autoral, distanciada da ilustração e com um novo tipo de intenção artística identificada com a consciência da modernidade tecnológica e social.
Antologia de uma obra breve (1927-37), que foi partilhada com o cinema e não chegou a ganhar uma especial individualidade entre os renovadores da mesma época (em França, Man Ray, Germaine Krull, Maurice Tabard, Kertesz, Brassai, etc), esta é também uma exposição de arquivo, até por contar só com impressões recentes, vindas do Centro Pompidou - teria sido mais produtivo fazê-las acompanhar ou mesmo substituir pelas suas publicações nas edições do tempo, em que também se renovavam a paginação e o lugar da fotografia. (Que o Museu continue esvaziado da sua colecção histórica é apenas a continuação de um conhecido escândalo, talvez mais chocante neste caso.)
Nascido em Paris, de origem romena, Eli Lotar trabalhou a partir de 1927 com Germaine Krull, a influente autora do álbum Métal, desse mesmo ano e verdadeiro manifesto da modernidade associada à era da máquina. Foi um dos primeiros colaboradores do semanário «Vu», criado em 1928, e teve uma breve colaboração de estúdio com o surrealista J.-A. Boiffard. O seu trabalho mais famoso, sobre o Matadouro de La Vilette, que realizou na companhia de André Masson, foi encomendado por Bataille para acompanhar a entrada «Abattoir» no «Diccionário Crítico» que publicava na revista «Documents», e surgiu depois mais extensamente em «Variétés» e «Vu». Abandonou a fotografia em 1937, passando ao cinema com Jean Painlevé, Joris Ivens, Renoir e Buñuel (foi câmara em Las Hurdes, 1933), realizando um importante documentário de cunho social, Aubervilliers, em 1946.
Parte substancial da sua produção segue o modelo da «Nova Visão», que se afasta dos modelos picturais para explorar a objectividade da imagem fotográfica pura, através do pormenor significante e dos pontos de vista inesperados e insólitos, a par de uma procura poética da estranheza do banal quotidiano que interessava ao surrealismo. Uma fotografia de Lisboa (1927-30) substitui-se à modernidade que então não tivemos.

De Paris regressa-se a Lisboa e chega-se à actualidade com Luís Pavão, de quem se expõe no Oceanário uma selecção de 25 fotografias, em provas de grande formato quadrado (um metro de lado), seleccionadas do livro editado em 2002 pela Assírio & Alvim, "Lisboa, em Vésperas do Terceiro Milénio". Poderiam desejar-se, porém, melhores condições de produção para esta mostra que apenas apresenta cerca de dez por cento do projecto editado e a que haveria que atribuir um lugar central num programa dedicado à cidade e às questões urbanas.
Durante dois anos (Janeiro 2000-Dezembro 2001), Pavão calcorreou Lisboa com a disciplina de quem desenha o mapa da cidade em mudança, fixando os seus alvos, procurando os melhores lugares (e horas) de observação – muitas vezes elevados, às vezes com recurso a gruas – e assegurando o acesso a lugares reservados. O retrato resultou, em livro, num imenso «puzzle» organizado com um sentido do ritmo e da surpresa que continuam a ser surpreendentes.  Documento, testemunho, inventário cartográfico, percurso sentimental, esta obra é um monumento erguido a uma cidade concreta, conhecida e revelada, com a sua arquitectura, trânsitos e habitantes. E é também um manifesto por uma urbanidade mais digna. 

Colecção Ferreira da Cunha,  / Eduardo Portugal,
Eli Lotar
e Luís Pavão
Arquivo Municipal, Convento das Bernardas, Museu do Chiado e Oceanário