Bienal gigantesca expõe débil panorama internacional <onde Bruno Gironcoli era a única surpresa relevante>
Foto PCR Studio / Tânia Simões. <A obra veio de Veneza para se arruinar ao longo de anos no Pátio da Inquisição em Coimbra, à porta do chamado CAV - ainda haverá restos? nunca + lá fui...>
A República Popular da China, que devia comparecer oficialmente em Veneza pela primeira vez, cancelou a viagem por causa da pneumonia atípica, mas muitos jovens chineses participam, com uma energia transbordante, numa das exposições sectoriais de uma bienal apostada em comprovar a globalização do universo artístico. Questões da actualidade também atingiram o pavilhão da Venezuela, que não chegou a abrir devido a declarações anti-Chavez. No entanto, foi muito mais notado o encerramento do pavilhão da Espanha por um muro de blocos de cimento erguido 65 centímetros a seguir à entrada (Parede Fechando um Espaço, é
o título da "obra"), enquanto o nome do país foi embrulhado em plástico negro - «Palavra Tapada é uma simples escultura realizada com materiais pobres», assegura a comissária.
Dois seguranças armados exigem o passaporte espanhol para se aceder pelas traseiras ao interior vazio e devastado. O sempre demagógico Santiago Sierra diz tratar-se de uma
«performance» sobre a fronteira e as políticas de imigração, acrescentando que «o orgulho nacional é um conceito do século passado». A direita civilizada <no caso, o governo de Aznar> já aprendeu a administrar a irrelevância do espectáculo cultural e as respectivas clientelas / ou camarilhas.
As bandeiras do arco-iris pacifista que pendem de muitas janelas de
uma cidade assaltada pelas exposições da Bienal, como metásteses que
invadem igrejas e palácios ao longo dos canais, são o testemunho mais
directo da conjuntura internacional (e também da contestação a
Berlusconi); o efeito é bonito mesmo se o argumento é atacável.
Entretanto, o título escolhido para a 50ª edição da Exposição
Internacional de Arte, «Sonhos e Conflitos» - seguido por um complemento mais obscuro, «A Ditadura do Espectador»
-, aponta para uma polarização da criação contemporânea nas direcções
alternativas do «sonho estético», mais ou menos separado do mundo, e o
«documento do conflito», segundo a lógica rudemente esquemática de
Francesco Bonami, um italiano sediado na América nomeado
comissário-director.
A alternativa mais evidente, no entanto, é a que resulta do modelo
organizativo da Mostra: por um lado, os representantes dos países (63,
número record) que expõem em pavilhões próprios (ou por vezes em
conjunto, mas há também mostras /nacionais ou regionais?/ autónomas da Escócia e do País de Gales,
por exemplo), uns construídos há muitos anos nos Giardini di Castello e
outros alugados em lugares mais ou menos periféricos, como se fossem
embaixadas oficiais; em simultâneo, o comissário encarrega-se duma
exposição colectiva onde propõe um tema ou uma perspectiva genérica
sobre o estado das artes.
Este ano, porém, Bonami decidiu partilhar
responsabilidades e dividiu os 12 mil metros quadrados dos antigos
Arsenais com mais 11 comissários, que apresentam oito exposições
temáticas sucessivas, conseguindo assim fazer das divergências estéticas
assumidas uma demonstração equívoca da unicidade do mundo da arte. Se
no subtítulo se pretendeu sublinhar a liberdade de apreciação do
espectador face à singularidade das obras, o resultado acaba por ser uma
esmagadora demonstração da ditadura dos comissários, cuja visibilidade
autoral suplanta em muito a dos artistas. Como estes são perto de 400, o
espectáculo é o de um gigantesco bazar, e o calor sufocante dos dias da
pré-inauguração ainda tornou um pesadelo maior a romagem dos seis mil
jornalistas e críticos acreditados. Até 2 de Novembro esperam-se mais de
350 mil visitantes, em geral turistas estrangeiros, o que resultaria em
receitas globais de cinquenta milhões de euros para um investimento de
cerca de oito milhões, segundo números do «Corriere dela Sera».
A fórmula dos pavilhões dos países é uma herança oitocentista das
exposições universais e das escolas nacionais (a Bienal festejou o
centenário em 1995, mas os anos de guerra atrasaram a chegada à edição
nº 50). Criticada por alguns, porque as nacionalidades artísticas são
uma questão controversa face à dominação dos grandes centros e à
circulação dos artistas, ou porque muitas presenças periféricas nunca
acertam com o padrão dominante, não deixa de ser uma oportunidade de
competição internacional arduamente disputada, e cada país dedica sempre
o maior espaço informativo a defender os seus representantes.
Não é possível fugir à regra e não há que temer dúvidas de chauvinismo quanto à participação de Pedro Cabrita Reis
como representante português, reforçada por um convite de Bonami para
expor uma segunda obra nos Giardini. A apresentação dos projectos em
Lisboa (ver «Actual» de 24 de Maio) assegurava que um
forte impacto visual os distinguiria da cacofonia ambiente, mas essa é
apenas uma questão de eficácia elementar. No terreno, a presença
espectacular das duas obras, diversas entre si mas identificando nas
suas estruturas formais uma mesma autoria, é também a afirmação da
densidade poética de um artista que se serve da escala arquitectónica
para equacionar simbolicamente questões vitais e que se arrisca a
utilizar de novo a condenada palavra beleza.
A dupla presença de Pedro Cabrita Reis é uma das mais destacadas da 50ª Bienal
Nomes Ausentes, uma casa fechada instalada nos
Giardini, pintada no interior com um uniforme cor-de-laranja incendiado
sobre o qual se desenham, por vezes em desordem, centenas de lâmpadas
brancas de néon (em que cada um poderá ler os nomes das suas próprias
memórias), habita-se como um lugar de recolhimento e celebração, um
espaço monumental e de dimensão humana, ao mesmo tempo dramaticamente
íntimo e solar. Viagens Cada Vez Mais Longas é uma
longa estrutura de vigas de alumínio, de dois pisos, como uma casa
inacabada, cortada por portas móveis pintadas de um branco irregular e
néons também brancos. Fotografada antes ao ar livre, percorre-se (na
Giudecca) no espaço imenso de um antigo depósito de cereais, de paredes
de pedra, numa disposição ligeiramente oblíqua, com um perfeito sentido
de escala e, como dissera Cabrita Reis, «com a leveza e o rigor de um
traço de desenho no papel». Ideia de casa e arquitectura ambiguamente
precária, confronta-nos com a estranheza absoluta do próprio acto de
construir.
Um livro monográfico onde se ilustra e comenta toda a
obra de Cabrita Reis acompanha a presença em Veneza, cujos ecos na
imprensa internacional já tinham principiado antes da inauguração,
apontando-a como uma das mais destacadas da Bienal. A concorrência,
acrescente-se, não é grande, nomeadamente quanto aos países que
justificariam maiores expectativas.
Bruno Gironcoli, um veterano escultor austríaco (n. 1933)
É o caso da França com Jean-Marc Bustamante (n.
1952), que juntou a fotografias «sem qualidade nem actualidade» (será um
elogio do «Le Monde»?), ampliadas como grandes quadros, mais algumas
pinturas banais transformadas em fotografias sobre plexiglas. E também o
da Grã-Bretanha e dos Estados Unidos, ambos com representações decerto
muito correctamente políticas, confiadas a artistas identificados como negros que «reflectem» sobre questões de identidade rácica.
Chris Ofili (1968, Manchester, com raízes na
Nigéria), Prémio Turner 98 e vedeta da exposição «Sensation» graças a
uma Virgem com bosta de elefante, pintou agora «amantes afro-lunares»
com a grosseira debilidade «kitsch» de decorações de bar em versão
popular africana, inevitavelmente apoiados em volumosos dejectos,
forrando as salas com o mesmo verde ou vermelho berrante dos quadros
(cores do nacionalismo pan-africano). As autoridades britânicas
queixaram-se de a oposição à guerra do Iraque lhes ter tirado o prémio…
Fred Wilson
(1954, Bronx, NY) reuniu referências aos negros na arte veneziana e
também em bugigangas decorativas, colocando à entrada do pavilhão um dos
muitos irmãos de cor, mas não de classe, que pela cidade vendem malas
de senhora aos turistas – tudo mais do domínio da sociologia da arte do
que da criação artística.
Candida Höfer comprovou os limites inultrapassáveis de um género alemão de grandes fotografias neutras de interiores arquitectónicos; Jana Sterbak,
canadiana nascida em Praga, apresentou ao som de Glenn Gould uma
instalação-vídeo em grandes ecrãs articulados, usando o ponto de vista
irrequieto do seu cão, que transportava a câmara numa viagem até Veneza;
Thierry de Duve comissariou uma representação belga confiada a
discretos discursos confessionais femininos.
A um nível mais afirmativo deve citar-se a presença do Brasil, comBeatriz Milhazes e Rosângela Rennó,
que já expuseram em Portugal, pintora a primeira de abstractos motivos
florais e geométricos, vibrantes de cor, e a segunda fotógrafa pictural
que tinge de vermelho sangue quase invisíveis retratos antigos. Olafur Eliasson,
pela Dinamarca, é um construtor de experiências perceptivas, que, num
espaço labiríntico, oferece ao visitante visões caleidoscópicas ou o
coloca no interior de espelhos multifacetados.
Presença insólita num contexto filtrado pelo grande mercado institucional globalizado é a de Bruno Gironcoli,
veterano escultor austríaco (n. 1933) pouco conhecido no exterior, de
quem se apresentou uma antologia de obras singulares. Algo de Giacometti
e Moore (nomes finais da tradição da escultura?) comparece nas suas
obras monumentais, onde elementos biomórficos ou a figura humana se
fundem em estruturas maquínicas de ficção científica ou em composições
teatrais de formas simbólicas proliferantes, com elementos ornamentais
de aparência oriental, sempre integrando a «assemblage» sob a cor
uniforme (prateada, amarela, etc) do metal. <Foi apresentado por outro veterano: (Commissioner: Kasper König)>
Museu Gironcoli, Viena
O júri preferiu a surpresa de premiar a representação do Luxemburgo confiada a uma jovem sino-britânica estudante em Paris, Su-Mei Tse
(n. 1973), muito pouco visitada por se situar fora dos Giardini.
Trata-se de uma instalação-vídeo em dois ecrãs, um ocupado por
varredores parisienses (imigrantes, claro) a vassourarem um deserto
africano e o outro pela própria artista tocando violoncelo diante de uma
«paisagem das montanhas suiças, idílica ou mesmo kitsch-sublime», em
estilo «Heidi», segundo o catálogo. Air Conditioned (jogando com o sentido de era, ária e área) era o título mais promissor sob o sol abrasador de Veneza.
Em
2003, e de novo em 2005, Lisboa teve o seu mês da fotografia, o
LisboaPhoto. Em 2007, a bienal desapareceu ou interrompeu-se (?), sem
explicações públicas que se tenham ouvido, ou que se aceitem. Em 1993 já
tinha havido um primeiro Mês da Fotografia dirigido por Sérfio Tréfaut,
que ficou sem continuidade (mas o Arquivo Fotográfico de Lisboa abriu no ano seguinte, 1994).
A história repete-se: 1993. 2003-2005. E depois?
Entretanto o PhotoEspaña continua
I "Fotografias pela cidade" . 24-05-2003
II "Retratos da América". 07-06-2003
III "Visões da cidade". 14-06-2003
I "Fotografias pela cidade"
Expresso/Cartaz , 24-05-2003
LisboaPhoto,
primeira edição da bienal de fotografia promovida pela CML, vai
apresentar 22 exposições em torno de questões urbanas
Como
Madrid, Barcelona, Paris e outras cidades, Lisboa vai ter o seu mês da
fotografia. Ou vai voltar a ter, depois da falsa partida de 1993, que,
como diz o comissário do 1º LisboaPhoto, Sérgio Mah, deixou uma marca
indiscutível «no imaginário da oferta cultural da cidade». Entretanto,
Coimbra e Braga perderam ou interromperam os seus Encontros, que tiveram
um papel central na divulgação da fotografia…
O projecto
esta semana apresentado por José Monterroso Teixeira, director municipal
de Cultura, terá um formato de Bienal e potencia a actividade regular
do Arquivo Fotográfico de Lisboa, articulando-a com outros espaços
institucionais da cidade num programa diversificado. A inclusão do
Pavilhão de Portugal tem um declarado papel de alerta e de pressão no
sentido da definição de uma vocação de índole cultural para o edifício
(aí ficará o Museu Berardo?).
Com a adopção de uma linha temática em torno da cidade e questões urbanas, coroada por um título – «Passagens»
- que alude ao filósofo marxista alemão Walter Benjamin (1892-1940), o
programa, sustentado por uma verba da CML de 400 mil euros, compreende
um núcleo central de 14 exposições e mais oito apresentadas por
entidades convidadas a aderir ao projecto. A abertura ao vídeo e ao
cinema, a confluência com o que se designa como arte contemporânea (o
que refere mais questões de estilo e circulação institucional que de
cronologia) e a acentuação da dimensão teórica na relação com as imagens
são outras das regras seguidas por Sérgio Mah, professor na
Universidade Nova e no Ar.Co.
É o que vai verificar-se na mostra colectiva «Arquivo e Simulação»,
com que o programa se inícia no CCB (dia 29), «visando a reflexão sobre
a natureza e cultura da fotografia – nas suas dimensões estéticas,
perceptivas e especulativas – no actual panorama de combinação e
contaminação com outros dispositivos de imagem». Entre 15 autores
encontram-se Francis Alÿs, Sophie Calle, Thomas Demand, Lorca diCorcia,
Pierre Huyghe, Beat Streuli, Frank Thiel e os portugueses Daniel
Blaufuks, Alexandre Estrela, Augusto Alves da Silva e João Tabarra.
Também no CCB será apresentado Chris Marker, com o filme La Jettée (1962) e o CD-ROM Immemory. Na Cordoaria (dia 29) ver-se-á uma selecção das grandes paisagens norte-americanas de Joel Sternfeld,
«American Prospects», realizadas a cores desde os anos 70, e também
retratos recentes da série «Stranger Passing». Outra mostra é dedicada a
fotografias e vídeos do teórico e artista conceptual inglês Victor Burgin. A componente histórica do programa inicia-se (dia 31) na Galeria D. Luis do Palácio da Ajuda com «O Mundo de Weegee», antologia do famoso fotógrafo das ruas de Nova Iorque, nos anos 30 e 40, vinda do Internacional Center of Phtography. Já em Junho, o Pavilhão de Portugal abre dia 4 com outras tantas esposições: de Hiroshi Sugimoto, que já foi visto no CCB, chegam as imagens desfocadas de ícones da arquitectura do séc. XX, e o brasileiro Arthur Omar
mostra «Antropologia da Face Gloriosa», dezenas de rostos fotografados
durante o Carnaval do Rio ao longo dos anos, a que se juntam um vídeo
de Gilberto Reis e trabalhos recentes de Daniel Malhão e Nuno Ribeiro. A Galeria da Mitra apresentará fotografias de Lagos (Nigéria) realizadas pelo holandês Edgar Cleijne, na sequência de um projecto dirigido por Rem Koolhaas, e o Oceanário 25 imagens de Luís Pavão de "Lisboa em Vésperas do Terceiro Milénio" (ed. Assírio e Alvim). O Arquivo mostrará em estreia parte da Colecção de Ferreira da Cunha, incluindo alguns pioneiros da reportagem fotográfica em Portugal, e, no Convento das Bernardas, a primeira retrospectiva de Eduardo Portugal,
que fotografou Lisboa nas décadas de 30 a 50. Por último, o Museu do
Chiado vai expor uma antologia vinda do Centro Pompidou do fotógrafo e
cineasta Eli Lotar (1905-1969), francês de origem romena que colaborou com as revistas «Documents» e «Minotaure». O programa (a consultar em www.lisboaphoto.pt)
prolonga-se com participações das escolas Ar.Co e Maumaus, do Instituto
Franco-Português e das galerias Cristina Guerra, Luís Serpa, Lisboa 20,
Baginski e Promontório Arquitectos.
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LisboaPhoto 2003 - II
"Retratos da América" (Weegee e Sternfeld)
in Expresso/Cartaz 07-06-2003
Dois fotógrafos dominam o programa do LisboaPhoto, o histórico Weegee e o contemporâneo Joel Sternfeld
As
paisagens americanas de Joel Sternfeld expunham-se em grandes provas de
40,7 por 50,8 centímetros e eram fascinantes no seu registo distanciado
de infinitos pormenores, e na tranquila suavidade das cores em que se
distinguiam as diferenças de luminosidade dos lugares e das estações.
Agora surgem em enormes ampliações de 122 por 152,4 cm (em edições de
dez exemplares) e ganharam ainda melhores condições de visibilidade no
novo formato permitido pelas tecnologias digitais de impressão. O
olhar, e também o corpo, deambula por estas imagens de inexcedível
clareza, percorrendo a paisagem, os seus objectos e habitantes, num
lento exercício de descoberta onde o realismo mais banal se encontra com
o humor e a estranheza. Não podia ser mais cruel o contraste com os
quadros fotográficos da exposição no CCB, onde a grande dimensão (e a
unicidade ou escassez das provas) é quase sempre e só uma imposição do
mercado e uma cedência à cegueira dos espectadores e às convenções
estéticas da pintura (académica).
Com a
mostra de Sternfeld no espaço amplo da Cordoaria, desiquilibra-se a
colectiva central da LisboaPhoto como uma monótona acumulação de
retóricas estereotipadas ou vulgarmente pretenciosas. É ele quem leva
mais longe a ambiguidade da fotografia como uma arte da percepção em que
se conjugam e enfrentam o registo e a construção da imagem, o documento
e a visão subjectiva, a informação e o indizível, explorando ao mesmo
tempo o mundo real e as condições ou contradições da reflexão sobre a
apreensão fotográfica. Os artistas reunidos no CCB, encenadores ou
cultores do instantâneo em forma de quadro, parecem, nos melhores casos,
executar exercícios escolares inspirados pela sua obra. É o que sucede
com os episódios cinematográficos de Gregory Crewdson, cujo sentido se
esgota na compreensão da estratégia de produção, ou os transeuntes
fotografados por Philip-Lorca diCorcia, que nada acrescentam às suas
séries anteriores. Com ressalva do trabalho de Frank Thiel sobre a
renovação arquitectónica de Berlim, onde a interpretação documental e a
construção plástica são também uma radical reflexão empírica sobre a
monumentalidade objectual permitida pelos recentes meios técnicos da
fotografia (a sua maior prova, de quase cinco metros de comprimento, não
é uma proeza vã).
Joel
Sternfeld é um artista contemporâneo e os 65 retratos da série «Stranger
Passing», de que se expõem 14 peças, foram pela primeira vez reunidos
em 2001 no Museu de Arte Moderna de São Francisco. Realizados ao longo
dos últimos 15 anos, em grande parte muito recentes, respondem a
numerosas obras que desde os anos 70 pretenderam ilustrar a
desvalorização ou a impossibilidade do retrato realista através das
estatégias da encenação, da apropriação ou da hiper-objectividade de
rostos anonimamente vulgares, com que se justificaram projectos
neo-conceptuais, neo-picturialistas, simulacionistas, etc, que abastecem
o mercado institucional e ocupam a reflexão teórica académica (o «adeus
à fotografia» de Victor Burgin, «a batalha contra a fotografia» de Jeff
Wall, de que este se autocriticou depois de se confessar derrotado). São
os retratos de Sternfeld que situam a mais extrema actualidade e que
estabelecem os padrões de avaliação crítica mais exigente da produção
fotográfica contemporânea, actualizando com personagens de hoje e meios
técnicos actuais uma tradição viva, que nunca se congelou numa lógica
modernista fechada à mudança. August Sander é uma referência citada a
propósito destes retratos integrados na paisagem urbana ou rural, que de
certo modo também se podem ver como um inventário de tipos. No entanto,
estes personagens desafiam, de facto, a possibilidade da sua
categorização como representantes de classes, raças e profissões,
mantendo sempre uma ambiguidade essencial àcerca da sua identidade
individual e da natureza da representação fotográfica.
Os ténis
vermelhos do velho homeless negro de Nova Iorque, cujo olhar nos
interpela frontalmente, distinguem-no individualmente, tal como as
marcas de uma inacessível vida pessoal que esculpem a dureza do rosto da
mulher a vender os jornais de domingo numa estrada do Colorado. Uma
outra ambiguidade essencial reside nas expressões de surpresa ou súbita
rejeição face à câmara que são visíveis nos rostos do bancário que
almoça na esplanada ou do advogado surpreendido a comprar o jornal,
segurando a roupa para a lavandaria. Não se tratando de instantâneos
furtivos nem de actores encenados, e não existem informações sobre os
métodos de trabalho, têm de supor-se a disponibilidade do fotógrafo para
o acaso da fotografia de rua e excepcionais aptidões de empatia, que se
adivinha na frontalidade e reciprocidade dos olhares. Retratos como os
da mulher que brinca com a filha (Tres Orejas, Novo México) ou o casal
de finalistas vestidos para a festa no Hilton (San Antonio, Texas)
transbordam de uma energia exaltante, que se constitui como uma visão
do mundo, uma poética e uma crítica. Sternfeld,
nascido em 1944, fotógrafo «freelance» desde 1966, professor desde
1971, reunira a série das suas paisagens em 1987, exercendo uma grande
influência no uso da cor documental por fotógrafos mais jovens.
Americans Prospects era o trabalho de nove anos de viagens de carro
através da América, com que retomava a ambição dos grandes itinerários
de Walker Evans e Robert Frank, renovando uma tradição que entretanto se
alargara com os fotógrafos da paisagem social (Diane Arbus, Bruce
Davidson, Lee Freedlader e Garry Wininogrand) e com a «New Color» de
Stephen Shore, Joel Meyrowitz e William Egglston. Tudo isso foi muito
pouco visto em Portugal. Outro
dos marcos da tradição documental é Weegee, de quem se apresenta uma
retrospectiva itinerante do International Center of Photography de Nova
Iorque. Usher Fellig, depois Arthur Fellig, nasceu em 1899 na Áustria
(hoje, Ucrânia), numa família judia, e chegou aos dez anos a Nova
Iorque; aos 14 arranjou o primeiro emprego na fotografia comercial,
tornando-se depois impressor e foto-repórter. A sua obra é um dos
exemplos de como a fotografia americana se construiu num diálogo
permanente entre o realismo vernacular e a intenção artística. Entre
1935 e 1947, Weegee construiu como «freelance» um vasto panorama da
vida urbana e popular de Nova Iorque, especializando-se em imagens de
crimes violentos e desastres, da suas vítimas e espectadores, notáveis
pela expontaneidade e a crueza do seu voyeurismo. Trabalhando quase
sempre de noite, com a clássica Speed Graphic dotada de um potente
flash, tornou-se famoso também pela rapidez com que acorria aos lugares
dos acidentes e seguia com os seus «scoops» para as primeiras edições
dos jornais. Dormia ao lado de um rádio sintonizado na frequência da
polícia e circulava com outro no carro, levando no porta-bagagens todo o
equipamento de revelação e impressão, a máquina de escrever e a caixa
dos charutos. Notável era
igualmente o sentido de auto-promoção com que carimbava as fotografias
com o crédito «Weegee o Famoso». A partir de 1940 começou a publicar
foto-histórias no vespertino progressista «PM» e em 41 a Photo League
dedicou-lhe a exposição «Weegee: Murder is My Business», a que se seguiu
em 43 a compra de fotografias pelo MoMA (exposição «Action
Photography»). Depois do enorme êxito do livro Naked City, em 1945,
transferiu-se para Hollywood, onde trabalhou como actor e consultor de
filmes, fixando o estereótipo do fotógrafo-detective, mas decaiu como
autor. Usem-se com prudência os textos do catálogo, onde escasseiam as
informações e sobram especulações deste género: «Endereçar a democracia
da fotografia como um médium modernista é uma posição mais típica da
Europa que da América… » Joel Sterfeld / O Mundo de Weegee Cordoaria e Palácio da Ajuda
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LisboaPhoto 2003 - III
"Visões da cidade" Expresso/Cartaz 14-06-2003
Lisboa em três exposições e um pequeno salto a Paris (com Eli Lotar)
Um dos principais méritos da
LisboaPhoto é a abertura da programação, onde a par da arte
contemporânea que utiliza a fotografia e o vídeo, vulgarizando novas
aquisições técnicas, se incluem práticas funcionais da fotografia como o
fotojornalismo e a actividade documental e topográfica. Com
o museu e a galeria, em que se estabelece o reconhecimento histórico
(Weegee e Eli Lotar) e se propõe o contemporâneo como género específico
ou nova categorização essencialista, concorre o espaço incerto do
arquivo, no qual se suspende a atribuição prévia de uma natureza
artística dos objectos. Essa contiguidade é positiva para se entender a
ambiguidade do medium fotográfico. Quando qualquer coisa pode ser arte,
as distinções que importam dizem respeito à atenção que as imagens
despertam e aos sentidos e prazeres que asseguram.
Aliás, o
próprio projecto da bienal veio afirmar com nitidez a importância do
arquivo – e concretamento, do Arquivo Fotográfico Municipal – como
parceiro e instituição âncora do programa, potenciando uma das raras
situações de continuidade de uma missão que tem sido sacrificada noutros
casos. Com o curto tempo de
preparação que teve a LisboaPhoto, o Arquivo optou por apresentar
trabalhos que tinha em curso sobre dois espólios entrados nos seus
depósitos. Por sinal, o de Eduardo Portugal foi o primeiro que recebeu, em 1991, por ocasião da passagem para as instalações na Rua da Palma, inauguradas em 94, e o espólio de Ferreira da Cunha é o mais recente, doado em Junho de 2000 pela Sojornal, depois de ter sido adquirida pela empresa de «A Capital».
Fotógrafo
do «Diario de Notícias» até à sua morte em 1970, depois de ter
trabalhado desde meados dos anos 20 em «O Século» e outras publicações,
Ferreira da Cunha foi também um coleccionador. O seu acervo de 2270
negativos em chapas de vidro de formato 9x12 cm (de que são expostas 84
provas muito bem impressas no AFM, havendo mais cem incluídas no
catálogo e um total de 800 consultáveis na base de dados) é consagrado
ao fotojornalismo da primeira metade do séc. XX, contando nomeadamente
com trabalhos de Joshua Benoliel, para a «Ilustração Portuguesa» no
período de 1906 a 1918. Neles se vinca o papel pioneiro da sua prática
do instantâneo de rua e o interesse pela efervescência do quotidiano e
os rostos anónimos, que influenciou os foto-repórteres seus
contemporâneos e posteriores.
Da agitação
dos anos da República à ordem pesada do Estado Novo, a mostra reúne uma
importante galeria de retratos informais, de Afonso Costa a Carmona, e a
Salazar – vejam-se o encontro de ambos em 1934, a sessão fotográfica de
Carmona com Judha Benoliel e Leitão de Barros, e Salazar recebendo
informações da revolta militar de 1931. A sequência é cronologicamente
disposta com agilidade, em vários formatos, acompanhando as convulsões
da política com os «fait-divers» da vida urbana e social, num panorama
em que a memória histórica se preenche de acontecimentos e figuras
humanas. No renovado Convento
das Bernardas, um lugar a descobrir, apresenta-se Eduardo Portugal, cujo
nome se manteve quase ignorado apesar da vastíssima produção entre as
décadas de 30 e 50. É um caso raro dum espólio integralmente conservado,
oferecido pela família, com cerca de 30 mil negativos, contactos,
provas ampliadas (também de outros autores), postais, 170 álbuns e
registos pessoais, que se encontram ainda em grande parte por estudar. Em
vez de uma síntese apressada da respectiva carreira, optou-se por
dedicar a exposição às fotografias em que documentou as transformações
urbanísticas de Lisboa (entre 1928 e 1954), acompanhando em especial os
anos decisivos de Duarte Pacheco (1932-43). Organizada, com as suas
provas de contacto (9 x 15 cm), em três itinerários topográficos que no
catálogo a publicar são objecto da leitura histórica de Ana Tostões, a
mostra apresenta-nos uma prática rigorosa da cartografia fotográfica,
que se destinou à edição de postais, roteiros turísticos, publicações de
olisipógrafos e outras, para além das encomendas que realizou para a
Câmara. Evitando selecções que
poderiam inventar um autor-artista através da concentração em alguns
temas ou tipos de imagens (lugares pitorescos dos bairros populares,
espaços de amplas perspectivas quase desérticas, séries «conceptuais» de
candeeiros de rua, etc), a mostra segue a competente neutralidade com
que Eduardo Portugal faz o inventário dos lugares, antecipando-se às
alterações da paisagem urbana, regista as demolições de núcleos antigos
ou o rasgar das quintas periféricas, e acompanha com minúcia a
construção da nova cidade. Outras
mostras virão depois a avaliar a obra realizada com ambição artística,
nos primeiros anos de actividade (de 1918 até 1928-30), de que se
divulgam no catálogo e em vitrinas alguns exemplos com marcas
picturialistas, e também os seus retratos e temas etnográficos.
Entretanto são as imagens de Lisboa que ficam disponíveis, ampliando a
paisagem urbana e oferecendo-se a várias direcções de investigação.
É
sensivelmente na mesma data em que Eduardo Portugal troca a «fotografia
de arte» pela objectividade documental que tem início a actividade
parisiense de Eli Lotar (1905-1969), sintonizada com o crescimento da
grande imprensa ilustrada. Trata-se aqui de uma muito diferente prática
do documento, fortemente autoral, distanciada da ilustração e com um
novo tipo de intenção artística identificada com a consciência da
modernidade tecnológica e social. Antologia
de uma obra breve (1927-37), que foi partilhada com o cinema e não
chegou a ganhar uma especial individualidade entre os renovadores da
mesma época (em França, Man Ray, Germaine Krull, Maurice Tabard,
Kertesz, Brassai, etc), esta é também uma exposição de arquivo, até por
contar só com impressões recentes, vindas do Centro Pompidou - teria
sido mais produtivo fazê-las acompanhar ou mesmo substituir pelas suas
publicações nas edições do tempo, em que também se renovavam a paginação
e o lugar da fotografia. (Que o Museu continue esvaziado da sua
colecção histórica é apenas a continuação de um conhecido escândalo,
talvez mais chocante neste caso.) Nascido
em Paris, de origem romena, Eli Lotar trabalhou a partir de 1927 com
Germaine Krull, a influente autora do álbum Métal, desse mesmo ano e
verdadeiro manifesto da modernidade associada à era da máquina. Foi um
dos primeiros colaboradores do semanário «Vu», criado em 1928, e teve
uma breve colaboração de estúdio com o surrealista J.-A. Boiffard. O seu
trabalho mais famoso, sobre o Matadouro de La Vilette, que realizou na
companhia de André Masson, foi encomendado por Bataille para acompanhar a
entrada «Abattoir» no «Diccionário Crítico» que publicava na revista
«Documents», e surgiu depois mais extensamente em «Variétés» e «Vu».
Abandonou a fotografia em 1937, passando ao cinema com Jean Painlevé,
Joris Ivens, Renoir e Buñuel (foi câmara em Las Hurdes, 1933),
realizando um importante documentário de cunho social, Aubervilliers, em
1946. Parte substancial da sua
produção segue o modelo da «Nova Visão», que se afasta dos modelos
picturais para explorar a objectividade da imagem fotográfica pura,
através do pormenor significante e dos pontos de vista inesperados e
insólitos, a par de uma procura poética da estranheza do banal
quotidiano que interessava ao surrealismo. Uma fotografia de Lisboa
(1927-30) substitui-se à modernidade que então não tivemos.
De Paris regressa-se a Lisboa e chega-se à actualidade com Luís Pavão,
de quem se expõe no Oceanário uma selecção de 25 fotografias, em provas
de grande formato quadrado (um metro de lado), seleccionadas do livro
editado em 2002 pela Assírio & Alvim, "Lisboa, em Vésperas do Terceiro Milénio".
Poderiam desejar-se, porém, melhores condições de produção para esta
mostra que apenas apresenta cerca de dez por cento do projecto editado e
a que haveria que atribuir um lugar central num programa dedicado à
cidade e às questões urbanas. Durante
dois anos (Janeiro 2000-Dezembro 2001), Pavão calcorreou Lisboa com a
disciplina de quem desenha o mapa da cidade em mudança, fixando os seus
alvos, procurando os melhores lugares (e horas) de observação – muitas
vezes elevados, às vezes com recurso a gruas – e assegurando o acesso a
lugares reservados. O retrato resultou, em livro, num imenso «puzzle»
organizado com um sentido do ritmo e da surpresa que continuam a ser
surpreendentes. Documento, testemunho, inventário cartográfico,
percurso sentimental, esta obra é um monumento erguido a uma cidade
concreta, conhecida e revelada, com a sua arquitectura, trânsitos e
habitantes. E é também um manifesto por uma urbanidade mais digna.
Colecção Ferreira da Cunha, Eduardo Portugal, Eli Lotar e Luís Pavão Arquivo Municipal, Convento das Bernardas, Museu do Chiado e Oceanário