A morte por doença de Adelino Lyon de Castro no verão de 1953 (nascera em 1910) é seguramente uma das razões do esquecimento deste fotógrafo. As razões políticas serão também significativas, e adiante se referem. Outra razão determinante tem a ver com o facto de ser recente (a partir dos inícios dos anos 80) a alargada atenção à fotografia e a construção mais ou menos rigorosa da sua memória histórica, como algo de exterior aos seus diversos círculos fechados de interessados ou praticantes (fotojornalistas e outros profissionais; amadores e demais salonistas; artistas plásticos que usam a fotografia).
De facto, A.L.C continuou a ser invisível até 2008/09 (*) e foi ignorado na história de António Sena (ed. 1998), tal como sucedeu com Maria Lamas e AS MULHERES DO MEU PAÍS. Quanto a A. Sena, certamente porque as suas obras - e outras mais - contrariavam a tese que aí se quis apresentar sobre os anos 1946-59: a proposta de uma chamada "revolta silenciosa da intimidade", assente em parte na promoção de várias obras deixadas inéditas e em parte na apreciação menos correcta das obras que na época se divulgaram. Refiro-me neste segundo ponto à ocultação da ligação de Fernando Lemos ao movimento da Fotografia Subjectiva de Otto Steinert, para além da sua tardia informação surrealista, e à desvalorização da ligação de Victor Palla e Costa Martins (LISBOA, 'Cidade Triste e Alegre', 1958) a uma ambição de realismo humanista e documental bem como ao efeito "Family of Man" (MoMA, 1955 e seguintes)
O esquecimento de A.L.C. prende-se com uma situação portuguesa mais ampla de incompreensão da fotografia de intenção social (concerned photography ou social documentary photography) enquanto arte - enquanto arte maior ou menor (ou mesmo arte aplicada) numa época em que as várias técnicas ou disciplinas muito se valorizavam (como a gravura, a cerâmica, a tapeçaria, etc), e em especial enquanto objecto de exposição, o que é o mesmo - por parte dos artistas neo-realistas seus contemporâneos, o que, aliás, não tem nada de original. O contrário é que seria excepcional, porque só pelos finais dos anos 70 e inícios dos 80 essa produção fotográfica - destinada em princípio à publicação em livro ou na imprensa - dá entrada nas galerias ao lado da "arte fotográfica" ou "fotografia artística", ou "fotografia criativa" como também se dizia. Essa entrada parece fazer-se primeiro como recuperação histórica, como valorização de clássicos e alargamento da oferta mercantil e coleccionista; depois, num segundo passo, sob a forma de uma produção de raíz ou matriz documental que já tem como destino a parede da galeria e não (apenas) a revista e o livro - o regresso dos grandes formatos facilitou o interesse pelo "quadro fotográfico" e várias formas de neo-picturialismo não declarado.
Adelino expôs imagens do povo e do trabalho popular, fotografias "humanistas", com um sentido de denúncia e de elegia, próximas da arte e do cinema neo-realista, na 5ª Exp. Geral de Artes Plásticas, em 1950, com Keil do Amaral e certamente por iniciativa ou cumplicidade deste, mas os teóricos do neo-realismo (no caso, Júlio Pomar e Mário Dionísio) não as viram ou não valorizaram - não as referem nos seus textos sobre a 5ª EGAP. A fotografia social é então entendida apenas como um auxiliar do artista (da observação e da memória), para além do seu eventual valor informativo e testemunhal. Ao rejeitar o naturalismo, a cópia ou imitação da natureza, a favor dos estilos modernos que cultivam a "deformação" (a estilização), os neo-realistas rejeitam ou ignoram o realismo da fotografia directa no campo das artes plásticas (mas ela pode ser reconhecida, por outros, no espaço da "arte fotográfica", no espaço do Salão).
As razões politicas terão desempenhado também um papel nesse esquecimento, mas um papel relativo, que se terá jogado menos quanto à projecção póstuma do que na ausência de diálogo e ao silenciamento no início dos anos 50. Adelino L.C. foi co-fundador das Publicações Europa-América, com o seu irmão Francisco, no início do pós-guerra, e foi depois o editor da "Ler, Jornal de Letras, Arte e Ciências", mensário assegurado pela Europa-América em 1952-53. Esta publicação foi forçada ao encerramento pelo governo em 1953, um mês depois da morte do editor (último nº, 19, em Outubro), por não ter sido aceite a respectiva substituição, MAS esteve antes no centro de uma grave crise interna aos meios culturais da Oposição. A "Ler" foi duramente combatida pelo PCP por ser redactorialmente orientada por Fernando Piteira Santos, expulso em 1950 e então acusado com Mário Soares de pro-americanismo e de alinhamento com a Jugoslávia de Tito. Os militantes comunistas foram intimados a cessar a colaboração no jornal, que chegou a ser denunciado como "orgão do SNI", num contexto de manifesto sectarismo ideológico com continuidade na chamada "polémica interna do neo-realismo", vivida em torno da "Vértice". O episódio é desenvolvido por Pacheco Pereira no 3º vol. da biografia de Álvaro Cunhal, ed Temas e Debates, Lisboa, 2005, em capítulos que se chamam “A purga dos intelectuais” e “O jornal Ler, ‘orgão do SNI’”. O PCP viria a corrigir o "desvio de esquerda", mas o fotógrafo teria de esperar seis décadas para ser homenageado no Museu do Neo-Realismo...
Paradoxalmente, Adelino Lyon de Castro foi o primeiro fotógrafo dos anos 40/50 a ter a sua obra reunida em livro, O MUNDO DA MINHA OBJECTIVA, álbum fotográfico editado em 1980, com uma nota introdutória (..."um poeta das imagens") do acima referido Fernando Piteira Santos, que era então professor universitário de história contemporânea e director-adjunto do "Diário de Lisboa", sem particular cultura fotográfica ou artística (a antiga cumplicidade política e pessoal tinha-se também associado o gosto comum pelo desporto e pelo campismo).
A edição quis ser uma homenagem póstuma do fotógrafo, mas foi também uma edição comemorativa dos 35 anos da criação das Publicações Europa-América - e certamente por isso o livro terá sido mais destinado a ofertas do que à distribuição comercial normal. Desconheço qualquer recensão ou crítica do volume, que nunca encontrei referido na literatura fotográfica do tempo (A. Sena inclui-o num índice de fotógrafos mas não o comenta). Mais estranhamente, o livro não consta da bibliografia citada no catálogo que acompanha a exposição do Museu do Chiado em Vila Franca de Xira (..."o fardo das imagens", 2011). Julgo que a edição nunca esgotou e, hoje ainda (acedido em 11 Jan. 2018), parece que continua disponível no site da Wook por 15,90 € (e talvez tb nos da Fnac e do editor...).
Depois de o ter depreciado por muito tempo (pelo carácter "salonista" das imagens e por o julgar deficientemente impresso - dois erros!), passei a considerar o álbum - e o seu prefácio - a mais acertada apresentação da obra de Lyon de Castro, em 70 fotografias que são certamente reproduzidas sempre a partir de provas de época, com respeito pelos seus variados enquadramentos.
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BIBLIOGRAFIA
(*) Emília Tavares, "Fotografia e neo-realismo em Portugal", in Batalha pelo Conteúdo..., Museu do Neo-Realismo, 2007 (pp. 263-273). (Um ensaio pioneiro sobre a presença da fotografia nas Exposições Gerais de Artes Plásticas).
Alexandre Pomar, "O neo-realismo na fotografia portuguesa, 1945 – 1963", in INDUSTRIALIZAÇÃO EM PORTUGAL NO SÉCULO XX. O CASO DO BARREIRO, Actas do Colóquio Internacional Centenário da CUF do Barreiro, 1908-2008, Universidade Autrónoma de Lisboa, 2010. (Pp. 423-442). O Colóquio teve lugar no Auditório Municipal Augusto Cabrita, Barreiro, 8-10 de Outubro de 2008. Painel 4 - Do Realismo ao Neo-realismo: imagens do trabalho e do operário na arte portuguesa). Ver tb em http://independent.academia.edu . E outros textos sobre adelino-lyon-de-castro, e temas próximos, desde 16 Maio 2008.
Emília Tavares, BATALHA DE SOMBRAS - COLECÇÃO DE FOTOGRAFIA PORTUGUESA DOS ANOS 50 DO MUSEU DO CHIADO, Museu do Neo-Realismo, Vila Franca de Xira, 2009 (A primeira leitura de conjunto deste período, através do acervo de provas de época e de autor reunidas pelo Museu)
Emília Tavares, Adelino Lyon de Castro, O Fardo das Imagens (1945-1953), Museu do Chiado, 2011.