Cegos de Madrid tem por origem uma cena vista numa rua de Madrid, em 1956, que o artista anotou num caderno de viagem, em duas ou três folhas. É uma situação observada, como então era mais habitual porque lhe faltava imaginação, como o próprio disse, antes do período tardio dedicado a literaturas e mitologias.
Vários cegos, um grupo, amparam-se mutuamente e caminham, avançam apoiados em bengalas e com as cautelas pregadas à roupa, um deles segue à direita numa espécie de triciclo. Os rostos são ou parecem caveiras. O espaço, certamenre já quase nocturno, é vago, sob um efeito de luz impreciso, abstracto, sem a perspectiva de um fundo urbano; a cena não é localizada.
Como muitas obras dos anos 50 e 60, quando o pintor já abandonara a convicção ou o movimento neo-realista, trata-se de uma pintura de observação, de uma “figuração dinâmica” como o próprio escreveu um pouco mais tarde (Relatórios de Bolseiro, FG), com que procurava explorar caminhos de renovação dos realismos.
O quadro é datado de 1957-59 e foi exposto na exposição “50 Independentes em 1959”, uma mostra relevante que inaugurou na SNBA no mesmo dia, 1 de Junho, do “Salão dos Novíssimos” no SNI (um episódio oposicionista muito curioso, com catálogos graficamente idênticos). Expôs também “Cena no Cais” (de 1959, nº 157, que ficou em Luanda, oferecido por António Champalimaud ao Museu de Arte Moderna local, que não existe e de lá não dão resposta aos pedidos de imagem e a ofertas de restauros) e igualmente “Boeira (Asturias)” de 1957 nº 143, que há tempos passou em leilão e não tenho agora imagem.
Todas as pinturas maiores podem ter uma leitura simbólica, o "Gadanheiro", o "Almoço do Trolha", "Mulheres na Lota", "Cegos de Madrid", começando por ser situações vistas pelo artista e escolhidas como assunto de pintura, associando-as ou não a (ou lembrando-se o pintor de) outras pinturas históricas. Essas esforçadas leituras de simbiologias e metáforas em muitos casos não ajudam nada, só estorvam ou desviam do essencial.
Surgiu há tempo uma interpretação erudita, que ignorava o desenho da cena vista na rua, então não divulgado, mas oferecia outra pista. Encontrei-a por acaso, escrita em 20 de fevereiro de 2021, no Facebook de Vitor Serrão, historiador:
“o pintor tomou a 'Parábola dos Cegos' de Brueghel (1568) e a palavra de Jesus aos Fariseus narrada por S. Lucas ('Quando um cego guia outro, acabam por cair os dois no precipício'), para enfatizar o sentido da parábola do Evangelho: 'O que importa mesmo é que saibamos fechar os olhos para melhor ver'".
Há razões sólidas para pensar que não foi assim, mas esta versão já foi repetida (está também na tabela da exposição do Atelier-Museu). Não há episódios bíblicos na sua pintura da época (surgiriam muito mais tarde, anos 80-90, mas livremente tomados como fantasias propícias ao humor). Não há também adaptações de obras históricas, mesmo que haja apropriações e influências de Thomas Benton, Portinari, Picasso, Rivera, talvez Tamayo... Uccello visto em 1958, nos Uffisi, aparece várias vezes de 1961 a 1964 (e outros “estudos foram destruídos em 66/67) , e há identicada uma “Mogiganga, segundo Goya”, por sinal d'après uma gravura de Goya, entre Tauromaquias.
Julgo que convém entender "Cegos de Madrid" na sequência d as MARCHAS que se iniciam em 1946, que passam por um "Estudo para o Ciclo 'Arroz'" de 1953 e continuam com a "Maria da Fonte" e terão sempre outros afloramentos em que importava representar figuras ou grupos humanos em movimento (é também o movimento que se vê em Tauromaquias, Corridas de cavalos, Metropolitanos e por aí fora).
Madrid, 1956, cena de rua e já estudo de pintura
"Cegos de Madrid" e "A Parábola dos Cegos", 1568 - de Pieter Bruegel o Velho.
Neste, os cegos tombam, arrastam-se uns aos outros para a queda, é uma visão com mensagem religiosa, uma condenação do homem, são cegos que guiam cegos para o abismo; os outros (de Madrid) avançam em grupo amparando-se uns aos outros, de cabeça levantada, caminham pela rua sem cair, com as cautelas da lotaria presas à roupa (2). É um "quadro de viagem”, como as séries das Asturias (1957-61, da mesma viagem), de Marrocos (1962-63), as tauromaquias espanholas... e há também séries de férias....
Escrevia Vitor Serrão: FECHAR OS OLHOS PARA VER. Recordo a propósito as palavras de Júlio Pomar a respeito do seu icónico quadro 'Cegos de Madrid' (1959), no Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian <como?, quando?>: o pintor tomou a 'Parábola dos Cegos' de Brueghel (1568) e a palavra de Jesus aos Fariseus narrada por S. Lucas (“Quando um cego guia outro, acabam por cair os dois no precipício”), para enfatizar o sentido da parábola do Evangelho: “O que importa mesmo é que saibamos fechar os olhos para melhor ver”. A tela, de uma enorme força goyesca, força-nos, assim, a ver o que tantas vezes queremos ignorar: as feridas da exclusão, as mágoas da fome e da guerra, a desesperança. E, mais, força-nos a pensar na justeza das bandeiras que assumem a igualdade, o bem-estar, o trabalho, a justiça para todos, como mais-valias inalienáveis. Em tempos em que a globalização pandémica se junta ao drama da migração, ao calvário dos refugiados das guerras de cobiça, a pintura e a palavra de Pomar ensinam: ver mais e melhor, e por dentro... (20-02-2021)
Pode ter interesse lembrar o quadro de Brughel, que seguramente Pomar conhecia, mas convém limitar a imaginação escolar. Não é uma eventual lembrança nos "Cegos de Madrid" da muito famosa pintura de Brueghel que nos orienta na apreciação do quadro, ou então teremos dizer que ele o vira do avesso, o nega ou "desconstrói". Aí os cegos não caem num qualquer abismo bíblico, não há a condenação da humanidade inscrita na parábola, pelo contrário.
E a melhor análise do quadro de Brughel que conheço é a de Daniel Arasse em "Un siècle d'Arpenteurs. Les Figures de la Marche", Musée Picasso, Antibes / RMN, 2000. (fica para depois, o catálogo não conhece o século XX)
Ao contrário da "Maria da Fonte", "Cegos de Madrid" não é pintura de história nem de imaginação.Tal como as obras que os acompanham no piso superior da exposição: o "Almoço do Trolha", uma cena vista quando pintava os frescos do Batalha, tornada um ícone de referência social, e a "Pisa III", certamente um cena vista em Aregos, Viseu, que tratou em mais duas telas.
Sabendo-se da cena vista numa rua de Madrid, que o artista desenhou no caderno de viagem (há inúmeros cadernos, alguns com estudos do Louvre), não há que forçar a interpretação, tanto mais que ela desvirtua a obra.
Se virmos o "Almoço" como uma variação sobre a “Sagrada Família” (como se lembrou Alfredo Margarido, criticando uma visão do núcleo familiar que seria conservadora), afastamo-nos do sentido e ambição do quadro, e em especial da sua concreta realidade figurativa. Já "Maria da Fonte" surge num período em que a “influência” de Goya, atentamente visto na viagem de 1956, e também muito presente dos "Cegos de Madrid" e noutras obras, se associa ao interesse pelo Columbano dos primeiros tempos, em busca do que poderia ser um "estilo" ibérico. Precedida pelas ilustrações e muitos estudos para "O Romance de Camilo", de Aquilino Ribeiro, era uma obra de grande ambição levada à 1ª exp. Gulbenkian de 1957 (o prémio foi para as gravuras...).
Escrevia ao tempo J.A França sobre os os quadros mostradas em “50 Independentes”: “Pomar vai firmemente e com extraordinária qualidade pictórica no caminho em que o víramos no Salão Moderno da S.N.B.A. <"Lota", 1958, nº 151> aceitando já em perfeita consciência valores abstractizantes que o próprio ritmo do pintar lhe impõe. O encontro de Goya e de Columbano do seu «projecto», é agora absorvido, reelaborado interiormente com uma «fugue» que a pintura portuguesa não iguala — e que tem paralelo na perfeição com que Vespeira desenvolve os seus espaços quase orgânicos, num ritmo pulsatório. Pintura lógica, ...” (in "Da Pintura Portuguesa", Ática 1960, p. 209-2018de O Comércio do Porto, 25-12-59)
(1) A ONCE Organización Nacional de Ciegos Españoles "Tiene reconocida una concesión estatal en materia de juego para la comercialización de loterías, que le permiten financiar su labor social y crear empleos para sus afiliados. " Wikipedia
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