2º PERÍODO MILITANTE, 1951-1954
OS CARPINTEIROS* 1953 nº 100, 144x112cm. Exposto na 7ª EGAP. Col. Sociedade Portuguesa de Escritores (1956-1965) > Associação... após o seu encerramento. A bicicleta era muito usada pelos funcionários clandestinos do PCP por razões de segurança - pode ser essa a "razão" do quadro, depois da bicicleta ter surgido noutra obra de 1950 com um casal de namorados (Na estrada de Aveiro, 1950 nº 66).
MULHERES NA LOTA (NAZARÉ)* 1951 nº 74, 74x121cm aglom. Exp. XLVIII Salão da Primavera SNBA. Col. Alice Jorge > ... AMJP. Uma fotografia que ficou no acervo documental registava esta cena, e uma linogravura de 1952 usou parte desta composição.
Não exposto:
Em 1953, num artigo publicado em O Comércio do Porto, JP fazia a revisão (e reorientação) do percurso do neo-realismo e a auto-crítica dos desvios que ocorriam desde 1949:
"Entre aqueles que se afirmavam dentro dos princípios da corrente, alguns perigosos caminhos começaram a desenhar-se. Um lirismo, complacente, tende a substituir a agressividade dramática das primeiras tentativas. A procura de soluções formais começa a sobrepor-se ao vigor de conteúdo; e isto não reflecte senão um alheamento dos problemas realmente vivos. Boa parte do que pintei nos anos de 49 a 51 oferece tais características, e desvios de tipo análogo marcam a obra plástica de Mário Dionísio.
Tinham-se aberto «as portas ao maneirismo e ao formalismo e, em último grau, à renúncia dos objectivos abraçados com entusiasmo»
"As razões desta fragmentação [no seio da corrente ou tendência do ‘realismo social’] devem procurar[-se] na evolução dos acontecimentos da vida portuguesa, no cair das ilusões que uma interpretação apressada das consequências da II Guerra Mundial ajudara a criar."
in «A tendência para um novo realismo entre os novos pintores portugueses», 22 dez 1953, reeditado em Estrada Larga 2, Porto Editora 1959, pp. 40-45 (antologia d'O Comércio do Porto, dir. Costa Barreto); reed. no catálogo Arte em Portugal nos anos 50, 1992, pp. 48-50 (dir. Rui Mário Gonçalves), e em Notas sobre uma arte útil, Atelier-Museu/Documenta 2014, pp. 287-288. Porque foi este o seu último artigo publicado na imprensa, à época, ficou sempre por esclarecer.
A mudança envolvia a temática de várias das pinturas posteriores a 1951, numa nova militância política, e partidária, e também o estilo ou linguagem da pintura, que é mais austera (sem a pulsão lírica e decorativa anterior) e de uma figuração mais exacta, numa certa aproximação ao que era o realismo socialista de produção francesa, e tinha, aliás, larga expressão internacional, em especial americana: na exposição "Postwar" de Enwezor, 2016, JP é exposto ao lado de Alice Neel. A par de numerosas obras decorativas de encomenda, incluindo vitrais e baixos-relevos, uma outra linha de produção experimentava livremente a paisagem sem sentido naturalista, antes com abertura ao imaginário (Barcos, Ericeira 1953- nº 94*) e que há data não foi exposta -, e produziu várias gravuras que se integravam na campanha política pela paz. (ver a seguir)
A antologia de 1986 (itinerante no Brasil e vista no Centro de Arte Moderna) passava directamente de 1951 para 1960. Na anterior retrospectiva (1978 Gulbenkian, Museu Soares dos Reis e Bruxelas) tinham entrado onze obras da década de 40 e só duas da de 50: só Mulheres na Lota (Nazaré)*, que ficara na casa de Lisboa com Alice Jorge, e o Estudo para o Ciclo 'Arroz' II. É um tempo de crise, também pessoal, de escassa produção e em grande parte encomendas decorativas. foi depois um tempo de apagamento de memórias.
É o período das campanhas pela paz que o PCP promovia nos anos 1949-54, no quadro da Guerra Fria e da guerra quente da Coreia. Mobilizavam-se acções de rua e abaixo-assinados de apoio ao Apelo de Estocolmo pela proibição das armas nucleares, aprovado em 1950, e em especial contra a reunião do Conselho do Atlântico, em Fevereiro de 1952 no Instituto Superior Técnico, depois da adesão portuguesa à NATO ter sido ratificada em Julho de 1949 – acontecimento e movimentações que vinham abrir brechas nas dinâmicas da Oposição, antes tendencialmente unitária, separando comunistas e democratas, estes favoráveis ao lado ocidental.
É também um período de forte repressão policial e censória que decorreu durante e depois das candidaturas presidenciais de Norton de Matos e Ruy Luís Gomes (em 1949 e 1951, respectivamente, quando falhara a candidatura do almirante Quintão Meireles e a de R. L. G. não foi aceite). Naquele ano de 1952 a SNBA foi fechada e interrompeu-se a sequência das Exposições Gerais, por Eduardo Malta ter sido expulso de sócio devido a um conflito público com Dias Coelho. Era também o tempo da polémica interna do neo-realismo, em torno da orientação da Vértice, a que se liga um «desvio sectário» que fracturava os meios intelectuais, com um PC debilitado por muitas prisões. (Depois, com a morte de Stalin e o relatório de Khrushchev, viria o chamado «desvio oportunista de direita», de 1956-59, a seguir outra vez «corrigido» pela fuga de Cunhal de Caxias, em 1961.)
Em 1952 fizera uma declaração de independência, numa publicação francesa em que José-Augusto França o associava ao realismo socialista:
Sem título [ Le sujet n’est pas le contenu» (O assunto não é o conteúdo) ]
«Deformação profissional: não acredito na infalibilidade do Papa. Cada dia, cada minuto, reponho o mundo em questão. O trabalho (métier) de pintor é um trabalho de pesquisas, de descobertas, de invenções: pesquisas, invenções, descobertas que nascem da vida e a ela retornam. Houve um tempo em que desprezei certos assuntos? Erro meu. O assunto não é o conteúdo, é um pretexto, e mais nada. O conteúdo é a síntese dialéctica entre o tema e a experiência pessoal e vivida do artista. Ela manifesta-se na forma, vive nela, é exaltado por ela. Os conteúdos das minhas telas são “as razões que me ajudam a viver”.»
in Premier bilan de l’art actuel 1937-1953 (sous la direction artistique de Robert Lebel), Le Soleil Noir: Positions, Paris. Cahiers Trimestriels, n.º 3 et 4, p. 314
As pinturas políticas:
Esse segundo período, que se situa a partir de Mulheres na Lota (Nazaré) de 1951, recupera a firmeza austera de um realismo social interventivo, seguramente sensível à disciplina estética que chegava de França (era o "nouveau réalisme" de breve curso), mas com liberdade formal. Fez nesse ano a primeira viagem a Paris e aí visitou Pignon, Fougeron e Taslitzky, mas não deixou testemunho do que viu, apenas referência ao facto. Ao tempo Mário Dionísio publicava na Vértice os seus Encontros em Paris, onde dialogava com muita reserva com os dois últimos pintores franceses referidos, e em 1952 deixou o PCP, na sequência do conflito sobre as colaborações de comunistas na revista Ler, das Publicações Europa-América; a seguir condenou a participação portuguesa na 2ª Bienal de São Paulo tutelada pelo SNI, deixou de expor nas Gerais e desligou-se da SNBA. Em face do artigo publicado no "Comércio", cortou logo relações (até 1966). Ver M. Dionísio, "Passageiro Clandestino" Volume I, p. 112: um breve parágrafo em que o refere como "uma das várias serpentes que ingenuamente abriguei no meu seio"
De facto, a reconsideração do movimento neo-realista e a explícita autocrítica presentes no artigo de Pomar publicado em 1953 n’O Comércio do Porto (e não na Vértice como era mais habitual) não seria uma cedência circunstancial à pressão partidária, mas foi muitas vezes como tal interpretada - e por isso depreciada.
Vejamos a seguir as obras decorativas, as paisagens "íntimas" e imaginárias, por fim as gravuras que participam da militância pela paz.
Mário Dionísio manteve uma irredutível hostilidade (eu direi incompreensão...) sobre este período da obra de Pomar e expressa-a sem reservas no último texto que escreveu: "O Último Baluarte” em "Pomar", Mário Dionísio, Pub. Europa-América, 1990, pag. 24 e 49-52. Era o seu conflito de 1952-54 com o PCP que o continuava a marcar:
ResponderEliminar“Mas nessa altura Pomar pertence já <...por ainda> ao PCP. que tem ou deseja ter a sua estética própria. O bom militante é aquele que cumpre e está de acordo. E, se o não é, deve tentar sê-lo. Quando em 52, vários escritores saem desse mesmo Partido, por discordâncias várias que se ligam também, e muito, a problemas ideológicos no domínio da arte, ele fica. E, como fica, tem de esforçar-se por seguir novos ideólogos, um deles, por sinal, de conversão recente, cuja visão é tão obcecada quanto curta. E conhecida. . Seguir sem discussão o exemplo da URSS e os conhecidos mandamentos jdanovistas: representação de cenas, colhidas in loco, de trabalho e luta (ainda que a não houvesse senão como desejo) numa linguagem de pronto a todos «acessível». Ou seja: um naturalismo impossível de refazer no nosso século e por isso dessorado. Como toda a gente (hoje) sabe, incluindo o Partido em questão. E na URSS também, ou muito em vias disso.
Foi um momento de «recuo» na linha evolutiva da obra de Pomar. E a ele me referia nos meus ingénuos receios, posteriormente confessados, aquando do nosso reencontro : «Certos retratos, por exemplo, fizeram-me recear uma autodestruição iminente» (nota 9). Eram os retratos, quase académicos e parafotográficos, de Maria Lamas, Vera Azancot, Alice Jorge, Cardoso Pires, que foram expostos, se me lembro bem, uma vez e nunca mais. «Bem medíocres» os considera hoje o seu autor” (10).
Anos atrás, Alves Redol, que, como Zola, trabalhava muito sobre notas tiradas no local, tivera a bela ideia de fazermos um livro em comum, escrito por ele e pelo Manuel da Fonseca, ilustrado pelo Pomar e por mim, sobre a faina piscatória de Lisboa. (...) Redol insistia agora na ideia. Mas só se tratava de pintura desta vez e com outras ambições. Como a de tirar a limpo, na prática, até que ponto os que recusavam Jdanov o fariam mesmo com razão. Nunca falei disto com o meu amigo Redol. Mas sei que, com a esperança de princípio nele habitual, encaminhou Pomar (mais Rogério Ribeiro, Cipriano Dourado, Alice Jorge, António Alfredo e um Lima de Freitas que então se pretendia mais neo-realista que ninguém) para terras do Ribatejo, que conhecia como as próprias mãos. Esperando uma resposta, penso eu, aos que nunca tinham querido identificar neo-realismo com realismo-socialista. Que eram poucos, parece (11), bastando embora para desarrumar a casa.
Parte II: Mas dessa iniciativa, dessa espécie de chuva no molhado, que resultou no caso de Pomar? O «ciclo do arroz». E que é o «ciclo do arroz»? Uma desesperada tentativa de pôr de acordo o que nele há muito se digladiava, sem o ter (era impossível!) conseguido. São óleos de camponesas ceifando, bebendo água, de que a pintura anda longe. Aquela, pelo menos, que ao artista certamente interessava. São sobretudo duas grandes composições - “Ciclo do arroz”, I e Il - , onde o desenho fechado leva a melhor, a pincelada a si mesma se disfarça, como sentimentalmente pareceria convir à gravidade do assunto: mulheres vergadas para a terra manejando enxadas, numa das composições, mulheres, na outra, indo para ou regressando do trabalho em fila indiana, sóbrias, quase rígidas, com a fixidez de instantâneos em pose. Mas manejavam as enxadas? Mas caminhavam? A arte aqui está mesmo no limite de ser apenas meio. A velha história das boas intenções que nunca bastam. Mas não é aí, muito evidentemente, que o ponto bate ou batia.
ResponderEliminarComo o pintor terá sido o primeiro a entender. A sua posterior saída do PC fez-se sem drama, sem discussões teóricas ou outras. (...) O que se liga, bem parece, ao facto de ter ultrapassado também sem grandes sobressaltos -- é uma evolução quase linear de um ponto para o seu oposto -- a crise (inibitória) do «ciclo do arroz», ele mesmo desencadeando a crise (criadora) que marca o fim da sua primeira grande fase. Estou pensando n’"O carro dos cómicos”, por exemplo, talvez já para lá da crise ou, quando muito, um pé cá, outro lá.
É a altura então de nos perguntarmos se a linha interrompida que já se verifica em vários dos “XVI Desenhos” (1948) não será uma premonição (a que distância!) do desenho aberto que, em pintura, a expressão do movimento exige e que, como hoje sabemos, é muito cara a Pomar. Desde que se distinga a «descrição» de figuras colhidas em acção (por fora), como num instantâneo fotográfico, que neste artista sempre houve -- “Gadanheiro” (1945), “Golo” (1948), “Carro na calçada” (1950), as próprias camponesas do «ciclo do arroz» simulam vir andando ou manejar enxadas -- e o movimento total, de dentro imposto; mais «narração» que «descrição», que começa com “Maria da Fonte” (1957), cujo desenho já não é rigorosamente contornante e denuncia, mais a composição em diagonal dinâmica e a própria cor (Goya à vista, Columbano também: “uma arte nacional pela forma” queriam os jdanovistas...), a existência, agora às claras, de forças internamente digladiantes atiradas para um arranque definitivo. Só depois do contacto directo com Goya - o próprio artista o disse - foi possível o movimento de "Lota", clara resposta a "Mulheres na Lota", de 51, onde tudo é estático e quase hierático. (...)"
NOTAS
9. Mário Dionísio, «Reencontro com Pomar». Diário de Lisboa, 2.3.67
10. Cf. Júlio Pomar in Helena Vaz da Silva, Com Júlio Pomar. Edições António Ramos. Lisboa, 1980, p. 67.
11. O próprio Pomar diz: «...um verismo na corda limite do realismo socialista; limite do neo-realismo, como no país, por imposições censórias lhe chamávamos». Cf. Helena Vaz da Silva,. p. 68.
12. Cf. Helena Vaz da Silva, pp. 60-61.